Você está na página 1de 17

TRÂNSITO: DA LENDA DO “JUDEU ERRANTE” À PARÁBOLA

DO BOM SAMARITANO*

D aniela de F reitas M arques**

Sumário: 1. Trânsito: “porque agora vemos através de


um espelho, obscuramente; mas depois veremos face
a face” (São Paulo); 2. “Quem é o meu próximo?" A
misericórdia e o dever; 2.1. Crimes omissivos puros; 3.
Princípio da Subsidiariedade; 4. Recusa de socorro
pela vítima; 5. Proposições Finais; 6. Referências Bi-
bliográficas; 7. Resumo; 8. Abstract.

1. TRÂNSITO: “PORQUE AGORA VEMOS ATRAVÉS DE UM ESPELHO,


OBSCURAMENTE; MAS DEPOIS VEREMOS FACE A FACE” (SÃO PAULO)

“Cumpre ao Direito Penal, na sua tarefa de proteger valores, a grave missão


de regular situações que transformam uma atividade lícita em meios de
perpetração de crimes, ou como diz Basileu Garcia: ‘em impedir que a ativi-
dade lícita se desvie para fins criminosos’.’"

O trânsito, não raram ente, serve com o m eio de perpe tra ção de crim es e, por
essa razão, o siste m a juríd ico -p e n a l responde com a dupla função não declarada
de co n te n çã o e de m a rg in a liz a ç ã tf do delinqüente.

E m bora a C rim in olo gia, tradicionalm ente, utilize o term o d elinqüente na nece s-
s á ria referência ao su jeito ativo do crim e, tal expressão, na realidade, poucas

* C o m u n ic a ç ã o fe ita no C ic lo d e P a le stra s in titu la d o , “ T e m a s A tu a is d e P ro c e sso P e n a l” , p ro m o v id o p e lo I n stitu to d o s A d v o g a d o s d e M inas


G e ra is e m p a rc e ria c o m a F a c u ld a d e d e D ire ito da U F M G , no p e río d o d e 8 a 11 d e abril d e 2.0 0 2 , no A u d itó rio da F a c u ld a d e d e D ire ito da
UFM G

** M e s tr e e D o u to r a n d a em C iê n c ia s P e n a is p e la F a c u ld a d e d e D ire ito d a U F M G P ro fe ss o ra A ssiste n te d a F a c u ld a d e d e D ire ito d a U F M G


A d v o g a d a C rim in alista.

1 L E IR IA , A n tô n io J o s é F a b ric io D e lito s d e T râ n sito R e v ista d o s T rib u n a is, v.4 7 5 , p .2 3 5 /2 4 3 , m a io I9 7 5 . p 235.

2 “N o s s o D ire ito P enal e o s n o sso s siste m a s p e n a is em g e ra l s ã o d e c o n te n ç ã o e d e m a rg in a liz a ç ã o .” C f Z A F F A R O N I, E u g ê n io R a ú l C ristia n is-


m o e D ire ito P enal. R e v ista d o s T rib u n a is, S ã o P a u lo , v .5 9 l, p 4 4 6 /4 5 0 , 1980 p .450
vezes é utilizada nos crimes de trânsito, devido à negatividade emocional que lhe
é inerente.

Afinal, o delinqüente ou o marginal é aquele situado à margem da sociedade e


não o próximo, como comprova a criação do conceito de homem m arginal por
Robert E. Park, em 1.928, para designar o conflito cultural dos imigrantes nos
Estados Unidos da América.3

No entanto, nos crimes de trânsito, a identificação singular4 com o delinqüente


ocorre com certa freqüência, porque, ao fim e ao cabo, “sou eu próprio" que, por
infelicidade, acaso ou descuido poderia ter praticado o crime.

“O agente crim ino so no tráfego, não tem classe social, não se subo rdina a
nenhum a classificação já te n ta d a nem a critérios de d efinição já esb o ça -
dos. Tanto pode se r um m inistro de E stado com o um m édico, um bancário,
um estivador ou um sim ple s servente.
E ssa constatação é significativa, porque devem os c o n c lu ir que sujeito ativo
de crim es no trân sito pode s e r o hom em eticam e nte considerado norm al,
ou, m ais propriam ente, ‘a ju s ta d o ’, o que ocorre, em regra.”5

Ora, não há como legitimar a repressão penal dirigida à pessoa humana, pois
ela é um verdadeiro labéu na fronte do acusado, uma verdadeira poena cu lle icom
a múltipla simbologia da serpente, do galo, do cachorro e do macaco.6 No caso
específico do trânsito, os crimes não causam asco como o parricídio da poena
cullei, mas, em regra, na prática dos crimes de trânsito há intensa reprovação
social mesclada com a subliminar identificação individual com o delinqüente.

3 C A N C E L L 1, E lizab e th . A c u ltu ra d o crim e e d a lei. 1 88 9 -1 9 3 0 . B rasilia U nB . 2 .0 0 1 . p. 149.

4 “A id en tid ad e é re alm en te alg o fo rm a d o , a o lo n g o d o tem p o , a tra v é s d e p ro c e s s o s in co n scie n te s, e n ão a lg o in ato , ex is te n te na c o n s c iê n c ia no


m o m en to d o n a sc im e n to E x is te sem p re a lg o ‘im ag in ário ’ o u fa n ta s ia d o s o b re su a u n id a d e E la p e rm a n e c e se m p re in co m p le ta , e s tá sem p re
‘p ro c e s s o ’, sem p re ‘sen d o fo rm a d a ’ A s p a r te s ‘fe m in in a s’ d o e u m ascu lin o , p o r e x e m p lo , q u e são n eg a d as, p e rm a n e c e m c o m ele e e n c o n tra m
ex p re ssã o in co n scie n te em m u ita s fo rm a s n ã o re co n h ec id as, n a v id a a d u lta A ssim , em v e z d e falar da id e n tid a d e c o m o u m a c o is a acab a d a,
d ev e ríam o s falar d e id en tifica ção , e v ê-la c o m o u m p ro c e s s o e m an d a m e n to A id e n tid a d e su rg e n ã o ta n to d a p le n itu d e d a id en tid ad e q u e j á e s tá
d e n tro d e n ó s co m in d iv íd u o s, m as d e u m a fa lta d e in te ire z a q u e é ‘p re e n c h id a ’ a p a rtir d o n o sso ex te rio r, p ela s fo rm a s a tra v é s d a s q u a is n ó s
im ag in am o s ser v is to s p o r o u tro s P sic an aliticam e n te , n ó s c o n tin u a m o s b u sca n d o a ‘id e n tid a d e ’ e c o n s tru in d o b io g rafias q u e te c e m a s d iferen tes
p a rte s d e n o s s o s e u s d iv id id o s num a u n id ad e p o rq u e p ro c u ra m o s re c a p tu ra r e sse p ra z e r fa n ta siad o d a p le n itu d e ." S T U A R T H A L L . A id e n tid a
d e c u ltu ra l n a p ó s -m o d e m id a d e 4 ed R io d e J an e iro DP& * 2 0 0 0 p 38/39

5 R O S A , F ábio B itte n c o u rt P en a e cu lp a n o s d elito s d e trâ n s ito R ev ista d o s T rib u n ais, S ão P au lo , v.5 3 2 , p .3 1 1 /3 1 3 ., 1 9 8 0 .p.311

6 B E R IS T A ÍN , A n to n io N o v a crim in o lo g ia à lu z d o d ire ito p enal e d a v itim ologia. A p ê n d ic e: D e c la ra ç ã o s o b re o s p rin cíp io s fu n d a m e n ta is d e


ju stiç a p a ra a s v itim as d e d elito s e d o ab u so d e p o d e r (O N U ) B rasília U nB S ão P a u lo Im p re n s a O ficial d o E s ta d o 2 .0 0 0 p 161
Por outro lado, a vítima, não raro seriamente ferida, busca uma reparação que
não se exprime primacialmente em pecúnia. Antes apela para o que Giorgio Del
Vecchio chama de

“ inveterado preconceito pelo qual se considera com o ‘reparação’ o fato de


quem tenha com etido um delito, passe um certo período encarcerado,( . . . )
se bem que seja bastante evidente que, de tal m aneira, o dano causado
pelo d elinqü ente não é reparado de nenhum modo, antes é aum entado
pelo custo da m anutenção oferecida nos estabelecim entos penais. É verda-
de que os códigos penais contem plam , com o conseqüência do crim e, tam -
bém a ob rigação da restituição e do ressarcim ento; m as esta norm a tem
esca ssíssim a aplicação, seja porque não se estende ao dano causado à
ordem pública, seja porque, na m aior parte dos casos, os culpados são
insolventes.”7

Além do mais, a vítima costumava ser alijada do drama judiciário, voz calada
por ouvidos moucos, linguagem silenciada pelo sistema jurídico. Hoje, o alijamento
da vítima é amenizado pela transação penal, pela suspensão condicional do pro-
cesso e, destacadamente no trânsito, amenizado pela multa reparatória prevista
no artigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro.8

A multa reparatória é vista ora como forma de indenização civil, ora como espé-
cie de pena, ora como efeito da condenação.9 Na perspectiva criminológica, é
vista como forma de satisfação à vítima, ou seja, como “( ...) mais uma evidente
manifestação do impacto do movimento vitimológico entre nds.”10 No entanto, na
perspectiva da “cinderela”11 das ciências processuais, o entrelaçamento entre a
concepção patrimonialística do processo civil e a concepção garantista do pro-

7 D E L V E C C H IO , G io rg io A L u ta c o n tra o c rim e R ev ista d e D ire ito d o M in isté rio P ú b lico d o E s ta d o d e G u a n ab ara, n. 1 v. 1., ja n e iro /a b ril d e
1.967. p .8.

8 “A rt. 2 9 7 . A p en a lid a d e de m u lta re p a ra tó ria c o n s is te n o p a g a m e n to , m ed ian te d e p ó s ito ju d icial em fa v o r d a vitim a, o u seu s suc e s s o re s , d e
q u a n tia c a lc u la d a co m b a s e n o d is p o s to n o § 1 ° d o a rt 4 9 d o C ó d ig o P enal, sem p re q u e h o u v e r p re ju iz o m aterial re s u lta n te d o crim e

§ 1 0 A m u lta re p a ra tó ria n ã o p o d e rá se r s u p e rio r ao v a lo r d o p re ju i/o d e m o n s tra d o n o p ro c e s s o


§ 2 0 A p lica-se à m u lta re p a ra tó ria o d is p o s to n o s arts SO a 52 d o C ó d ig o P enal

§ 3 ° N a in d e n iz a ç ã o civil d o d an o , o v a lo r d a m u lta re p a ra tó ria s e rá d e s c o n ta d o ”

9 C f. S C H M ID T , A n a S o fia A vítim a e o D ire ito P enal S ão P au lo RT. 1.999. p. 162.

10 C f. S C H M ID T , A n a S o fia A v itim a e o D ire ito P en al S ã o P au lo RT. 1.999 p. 164

11 A ex p re s s ã o é d e F ra n c e s c o C arn e lu tti, re fe rin d o -s e a o d e sc a so d o s e s tu d o s d o P ro c e s s o P en al c o m p a ra d o co m o s es tu d o s d o D ire ito P en al e d o


P ro c e s s o C ivil. C f. C A R N E L U T T I, F ra n c e s c o L a ce n icienta. C u e stio n e s s o b re el P ro c e s o P enal E d icio n es Ju rid ica s E u ro p a -A m é ric a p. 15/21.
cesso penal pode dar azo a indesejáveis conflitos, transform ando o sistema pro-
cessual penal em instrumento de barganha.

Antonio Beristain, atribui a vítima o papel que o Código de Trânsito Brasileiro


não pôde ou não lhe quis atribuir, “parece necessário e urgente m odificara formu-
lação de quase todos os artigos do Código atual que falam em reparação. ( . . . ) O
projeto alternativo alemão pede que o delinqüente faça ofertas às vítimas e tenha
com elas conversações compensatórias e, inclusive, reconciliadoras."'2

É inegável que o papel atribuído à vítima deita raízes na matriz cristã do siste-
ma jurídico penal - somente esquece as ofensas aquele que consegue perdoar. A
respeito do resgate da vítima no sistema penal, à semelhança da mensagem “contra
a aparência e a ostentação da virtude, a fé sincera; contra as práticas exteriores,
a simplicidade e as qualidades do coração; contra a letra que mata a lei, o espírito
que a vivificai’,'3 pode-se dizer que o perdão da vítima deve ser sincero e o desejo
do delinqüente de reparação do dano, verdadeiro.

O Código de Trânsito Brasileiro, como não poderia deixar de ser, reflete as


distorções e as tensões sociais acerca da criminalidade de trânsito, v.g., o tipo-de-
ilícito de em briaguez ao volante,14 no qual está evidenciada a tensão entre a con-
cepção garantidora das liberdades individuais e a concepção asseguradora do
interesse público no sistema processual penal.

Com efeito, a embriaguez ao volante,15 deverá ser averiguada e determinada


por meio de perícia, pois a confissão do acusado, a prova testemunhal, o exame
clínico podem apenas indiciariamente supri-la. O artigo 277 do Código de Trânsito
Brasileiro dispõe que o condutor de veículo automotor envolvido em acidente de
trânsito, ou que for fiscalizado pelas autoridades de trânsito sob suspeita de haver

12 BERISTA IN , A ntonio N ova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia Apêndice: D eclaração sobre os princípios fundam entais de
justiça para as vítim as de delitos e do abuso de poder (O N U ). Brasília UnB São Paulo Im prensa O ficial d o E stado. 2 00 0 p 193.

13 M A R Q U E S, D aniela de Freitas G irolam o Savonarola m ilenarism o, liberdade e fogueiras - a tensão da am bigüidade. B elo H orizonte. 2.000.
p .23. [m anuscrito]

14 “A rt 306 C onduzir veículo autom otor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, ex p o n d o a dano potencial a
incolum idade de outrem : (...)”

15 O artigo 165 do C ó digo Nacional de Trânsito descreve, com o infração adm inistrativa, a co n d u ta do ag ente q u e dirige sob a influência de álcool,
em nível superior a seis decigram as por litro de sangue
A m edição do te o r alcóolico por litro de sangue é feita objetivam ente, conform e a redação d o artigo 277 d o C ódigo N acional de T rânsito, in
verbis
excedido na ingestão de álcool ou de substância de efeitos análogos será subme-
tido aos testes de alcoolemia, aos exames clínicos, em aparelhos homologados
pelo CONTRAN, com a finalidade única de constatação do estado de embria-
guez.

Obviamente, inexiste a obrigatoriedade de submissão do suspeito ao exame de


embriaguez, em razão do princípio da não auto-incriminação ,16 No entanto, par-
cela não pouco significativa da doutrina pretende recorrer à aplicação do princípio
da proporcionalidade, atendendo à jurisprudência alemã que o aplica, “dado as
milhares de vítimas mortais que a condução sob a influência do álcool vem anual-
m ente produzindd' ,17

Neste particular, o princípio da não auto-incriminação deve prevalecer, ou seja,


o suspeito, indiciado ou acusado não deve ser obrigado a produzir prova contra si
m esmo e tam pouco a sua recusa em se submeter ao exame deve ser considera-
da em seu detrimento. Aliás, entendimento diverso erigiria a verdade, própria das
confissões religiosas, à condição de regra jurídica.

O suspeito, indiciado ou acusado não pode ser obrigado, sob o risco de retro-
cesso à maneira de Torquemada, a realização de exames ou a aceitação de inge-
rências em seu próprio corpo no vago e no cambiante pretexto do interesse públi-
co. Por assim dizer, o fundam ento da recusa em produzir prova contra si mesmo é
o mesmo da não obrigatoriedade do suspeito, indiciado ou acusado de responder
ao interrogatório, portanto, é cabível a transcrição da antiga

“fórmula constante do Jervis-Act, com a qual o juiz, na Inglaterra, termina-

“Art.277.Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de
trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia,
exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo
CONTRAN, permitam certificar seu estado.”
16 “É parad ig m ática a decisão d o T ribunal d e A lçada C rim inal do Rio G rande d o Sul: 'D esobediência D elito não configurado. A cusado que se
recu sa ao exam e de dosagem alcoólica, p a ra instruir p rocesso contravencional de em briaguez O posição legítima. A bsolvição d ecretada Inteli-
gência d o art. 33 0 do C P A negativa d o réu ao exam e para a pesquisa e dosagem de álcool de seu sangue ge ra presunção em seu desfavor, mas
não tipifica a infração p revista no art 330 d o e sta tu to repressivo ’ (rei Sebastião A droaldo Pereira, RT 435, j a n , 1972, p 413-414) E sta decisão
d eix a de levar em consideração, obviam ente, o principio nem o ten etu r se ipsum accu sare que, um a vez invocado pelo indiciado ou acusado, não
po d e g erar circunstâncias de ag ravam ento de sua situação processual ” G U IM A R Ã E S, Isaac Sabbá Exam e de alcoolem ia sua validade com o
p ro v a no p ro cesso penal. R evista B rasileira de C iências Crim inais, v.33, p 121/132, jan /m arço 2.001 p 122/123.

17 C f G U IM A R À E S, Isaac Sabbá E xam e d e alcoolem ia sua validade com o p ro v a no p ro c e sso penal R evista Brasileira de C iências Crim inais,
v.33, p. 121/132, ja n /m arço 2.001 p 132
dos os atos de instrução, adverte ao acusado daquele seu direito:
‘Acabaste de ouvir depor as testemunhas; queres responder alguma coisa
aos seus depoimentos? Não és obrigado a fazê-lo; mas o que disseres será
consignado por escrito e poderá ser invocado contra ti, no dia do julgamen-
to. E deves saber que nada tens a esperar de promessa ou favor, nem a
temer de ameaça alguma, que te pudessem ter feito, para te disporem a
confessar tua culpabilidade; aliás, tudo que possas dizer agora poderá ser
produzido em testemunho contra ti, na ocasião do teu julgamento, não
obstante qualquer promessa ou ameaça."18

Também o tipo-de-ilícito de afastar-se do local do acidente19 obscurece e distorce


o sistem a jurídico-penal na sua função de tutela de valores, pois sob o falso pre-
texto de tutelar a adm inistração da justiça, nada tutela em razão da inexistência de
um bem jurídico concreto ou concretizável.

Por último, o parágrafo único do artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro20


descreve com o crim e a conduta do agente que omite socorro à pessoa que morre
instantaneam ente no acidente de trânsito. A hipótese é de crim e impossível, con-
forme previsão do artigo 17 do C ódigo Penal, em razão da im propriedade absolu-
ta do objeto jurídico, isto é, em razão da inexistência de vida.

A cisão entre direito e religião é imprescindível. No direito, a om issão é um


dever circunscrito e lim itado e a pena, tem poralm ente limitada; por sua vez, na
religião, a om issão aliada à soberba conduz ao castigo eterno, à sem elhança do
judeu errante, Samuel Beli-Bet.

Samuel Beli-Bet foi castigado a vagar eternam ente, por um século, por outro e
por outro ainda. No cam inho do Gólgota, Jesus sedento, cansado e exaurido pelo
peso da cruz, pediu o auxílio de Samuel, na água que não lhe foi ofertada, na
sombra da videira que abrigaria o seu corpo supliciado, na divisão do peso do
madeiro, que ele não mais suportava, ouviu-lhe apenas a resposta “ vai" repetidas

18 R O M E IR O , Jo rg e A lberto E lem en to s d e D ireito Penal e P ro c e sso Penal S ão P a ulo S araiva 1 978 p 106

19 “ A rt. 305 A fa sta r-se o c o n d u to r d o veículo d o local d o acid en te, p a ra fugir à resp o n sab ilid ad e p enal o u civil q u e lhe p o ssa ser atribuída (...)”

20 “A rt 304 (...)
P arág rafo único. Incide n as penas prev istas ne ste a rtig o o c o n d u to r d o veiculo, ainda q u e a sua o m issão seja su p rid a po r te rc e iro s o u q u e se tra te
de vítim a c o m m o rte in stan tân ea o u c o m fe rim en to s leves ”
vezes.

Anos e anos após o m artírio no Gólgota, Boanerges, o cantor do Evangelho,


encontra um velho exaurido com o bordão na mão que lhe diz:

“Eu sou Samuel Beli-Bet, o maldito de Deus, o homem imortal destinado a


vaguear eternamente, a escutar em seus ouvidos a misteriosa voz do Anjo
que lhe repete: VaiiVai! Vai! Até à consumação dos séculos.Os séculos vin-
douros me conhecerão com o nome de 'Judeu errante’.”21

2. “QUEM É O MEU PRÓXIMO?” A MISERICÓRDIA E O DEVER

A presença de crim es om issivos puros que são afinal crim es de perigo à vida,
à integridade física ou à incolum idade de outrem fazem-se necessários pois o
dever de auxílio encontra am plo espaço para o seu exercício no trânsito.

Na parábola do B om Samaritano, a assistência ao desamparado, ferido ou vul-


nerável é o exercício concretizado da misericórdia.

“Um homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de assaltantes


que, depois de o roubarem e de o espancarem, lá se foram deixando-o
semimorto. Por acaso, um sacerdote descia pelo mesmo caminho. Ele o viu
e seguiu adiante por outro lado. Um levita passou também pelo mesmo
lugar, viu o homem e seguiu adiante por outro lado. Mas um samaritano,
que estava viajando, quando o viu, ficou com muita pena. Aproximou-se
dele, enfaixou as feridas derramando azeite e vinho. Depois, colocou-o na
sua própria montaria, levou-o a um albergue onde continuou a cuidar dele.
No dia seguinte, desembolsou duas moedas de prata e deu ao hospedeiro
dizendo: Toma cuidado dele e, o que gastares a mais, eu pagarei na vol-
ta’.”“

Nem a nobre origem , com o a do sacerdote, nem a condição de funcionário de


Jerusalém , com o a do levita levaram-nos ao necessário socorro do próxim o rou-

21 P E R E S E S C R IC H , H enrique O M á rtir do G ó lg o ta São P aulo Paulinas I 961 p 359

22 L ucas, 10, 3 0 -3 6
bado e espancado. Apenas um sam aritano, então desprezados e perseguidos
pelos judeus ortodoxos, estendeu-lhe as mãos.

A m isericórdia cristã com preende o pensam ento elevado, as palavras nobres e


as ações abençoadas estendidas a todos, iguais e irm ãos no sofrim ento e na
felicidade. A m atriz cristã do sistema jurídico-penal reflete-se na misericórdia erigida
à categoria de dever delim itado pela humana imperfeição. Nesse particular,

“o Direito Penal foi o primeiro a antecipar-se ao futuro social, cobrando como


dever jurídico o altruísmo, ao considerar crime a omissão de socorro. O
Direito Penal é a única disciplina jurídica que tem por objeto, diretamente, o
homem, em si mesmo, no corpo e na alma, mergulhando na sua personali-
dade, desde as origens atávicas às previsões do destino.”23

C onvém dizer que o direito penal não é um simples direito altruístico, pois quem
presta socorro não precisa chegar às raias do heroísm o ou da santidade.

2.1. Crimes omissivos puros

Os tipos-de-ilícito são essencialm ente diferentes na referência à ação ou à


omissão, em bora form alm ente dotados da mesm a estrutura gram atical e lógica.

No que se refere à ação, há a previsão norm ativa do modelo de conduta proibi-


da, como, v.g., o artigo 306 da Lei n .9.503/97, C ódigo de Trânsito Brasileiro, in
verbis: “ C onduzir veículo autom otor, na via pública, sob a influência de álcool ou
substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolum idade de ou-
trerri'. Na verdade, proíbe-se a conduta do agente que, embriagado, conduz veí-
culo autom otor, expondo a perigo a incolum idade de outrem: “não conduzir veícu-
lo autom otor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos
análogos, expondo a dano potencial a incolum idade de outrem."

Por sua vez, no que se refere à omissão, há a previsão norm ativa do m odelo de
conduta imperativa, como, v.g., o artigo 304 da Lei n. 9.503/97, C ódigo de Trânsito
Brasileiro, in verbis: “D e ixa r o co n d u to r do veículo, na ocasião do acidente, de

23 LY R A , R o b e rto R evista d e D ireito do M inistério Público d o E sta d o d a G uanabara, n .L , v I, ja n abril d e 1967.


p re s ta r im ediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, p o r justa
causa, deixar de so licitar auxílio da autoridade pública". Na verdade, o deixar de
prestar socorro descrito com o figura típica, determ ina ao agente o dever de auxi-
liar, por ocasião do acidente, a vítim a ou, ao menos, determ ina ao agente o dever
de solicitar auxílio à autoridade pública: “ o condutor do veículo prestará im ediato
socorro à vítima, na ocasião do acidente, ou, não podendo fazê-lo diretamente,
p o r ju s ta causa, solicitará auxílio da autoridade pública.’’2*

Assim , a omissão, em si mesm a considerada,25 fundam enta-se no fato de que


o “com portam ento verificado não foi o com portam ento esperado e im posto pela
ordem ju ríd ic á ’26 ao agente da conduta crim inosa. De forma mais acertada, o
fundam ento da om issão penalm ente relevante é a não atuação no sentido deter-
m inado pela ordem jurídica .27 Aliás, algum as páginas adiante, Alcides Munhoz
Netto, esclarece que

“a omissão não existe em si, o que existe é a omissão de uma ação determi-
nada. (...)
O comportamento só assume a qualificação de omissão em relação à uma
norma que impõe a alguém o dever de agir. Fragoso chega a afirmar que,
no plano ontológico, existem apenas ações, sendo a omissão o não fato,

24 " A ç ã o e o m issão são, em sin tese, d u a s té c n ic a s diferentes p a ra p ro ib ir co n d u ta s hum anas A m bas surgem de d u a s form as d e en u n cia r a norm a
q u e d á o rig e m a o tip o em b o ra to d a s as n o rm as q u e d ã o origem a o tip o sejam proibitivas, no sentido d e que proíbem ce rta s co n d u tas, não é
m en o s c e rto q u e algum as p o d em ser en u n c ia d a s p ro ib itiv am en te ( ‘n ão m a ta rá s ’), e n q u a n to o u tra s são enunciadas p re c e p tiv am en te ( ‘’auxilia-
r á s ’) E n q u a n to n o e nunciado proibitivo p ro ib e * sea realização d a ação q u e se in dividualiza co m o verbo (m atar), no en u n c ia d o p receptivo
p ro ib e -se a realização d e q u a lq u e r o u tra ação q u e n ão a q uela individualizada pelo v e rb o (auxiliar)” .

T ip o a tiv o T ip o o m issiv o
D e sc re v e a c o n d u ta p ro ib id a D e sc re v e a co n d u ta d ev id a (e stá p ro ib id a a q u e é diferente»
F x p re ssa -se e m u n ia n o rm a e n u n c ia d a p ro ib itiv a m e n te ( “n ão F x p re ssa -se e m um a n o rm a e n u n c ia d a p re c e p tiv a m e n te
m a ta r á s ') ( 'a u x ilia rá s ')

C f. Z A FFA R O N 1, E u g ên io R aúl e P IE R A N G E L L I, Jo sé H e nrique M anual d e D ireito Penal B rasileiro P a rte G eral S ão P aulo R evista dos
T ribunais. 1.997. p .5 3 9 /5 4 0

25 A rigor, o s crim es om issivos d ividem -se em crim es om issivos p u ro s ou p ró p rio s e crim es om issivos im p u ro s ou im próprio s ou crim es com issivos
p o r o m issão

26 M U N H O Z N E T T O , A lcides O s crim es o m issiv o s no B rasil C o m unicação a o X III C o n g re sso Intern acio n al d e D ireito Penal, Cairo,
1.984 p 11.

27 O p ro b lem a principal d a o m issão no siste m a ju ríd ic o penal con c e rn e á p ossibilidade de a trib u ição d e um a feição ex tre m a m e n te a u to ritá ria e
p o u c o legalista a o s crim es o m issiv o s p u ro s o u a o s crim es om issivos im puros
C o m efeito, em re lação a o s crim es o m issiv o s p uros, além d o su bstrato m oral q u e lhes é p róp rio, pod em , em pe río d o s m enos dem ocráticos,
a ssu m ir c o n to rn o s de crim es d e m era d e so b ed iên cia A p ro p ó sito , “o u so indiscrim inado d a tipificação om issiva p o d e red u n d ar, c o m o assinala
E R Z affaroni,
imperceptível se contemplada apenas a realidade fenômenica. Mas, apesar
de ser uma realidade normativa, a omissão existe objetivamente: é produto
da vontade de não realizar a ação esperada ou da vontade de não impedir
o resultado e reveste-se da evidência de um acontecer. Este acontecer é
que constitui o ponto de apoio do juízo de valor. Daí a observação de Heitor
Costa Júnior de que o conceito não é meramente normativo, pois tem um
conteúdo ontológico: não é um juízo sobre um juízo.”28

O b v ia m e n te , o s is te m a ju ríd ic o -p e n a l so m e n te pod e d is p o r so b re a realid ade,


o rd e n a n d o ou p ro ib in d o d e te rm in a d o s c o m p o rta m e n to s e, a c o n d u ta o rd e n a d a
o m itid a p e lo a g e n te , s o m e n te p o d e lhe s e r im p u ta d a , em regra, se pe la c o n d u ta
o rd e n a d a e le p u d e s s e e v ita r o re su lta d o .

N a fe içã o d e m o c rá tic a q u e o s is te m a ju ríd ic o -p e n a l n e c e s s a ria m e n te deve a s -


su m ir, a o m is s ã o deve e s ta r re s trita a a lg u n s p o u co s tip o s -d e -ilíc ito , c o m o sói
a c o n te c e r na Lei n .9 .5 0 3 /9 7 , C ó d ig o de T rânsito B rasileiro, q u e d escreve, no a rti-
g o 3 0 4 e n o p a rá g ra fo ú n ic o d o a rtig o 3 0 7 , tip o s o m is s iv o s p u ro s ou p ró p rio s.

N ão p o r a ca so , a a n te c ip a ç ã o d a tu te la p enal, por m e io de tip o s o m is s iv o s


p u ro s ou p ró p rio s e de tip o s de perigo, o c o rre ju s ta m e n te no tráfego , o n d e a v e lo -
c id a d e , a re a lid a d e do ris c o e à s u b tra ç ã o à re s p o n s a b ilid a d e s ã o a tô nica .

3. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

A o m is s ã o d e s o c o rro d e s c rita no C ó d ig o d e T rânsito B ra s ile iro te m re s trita


a p lica çã o , re fe rin d o -s e , e v id e n te m e n te , a o c o n d u to r d o v e íc u lo a u to m o to r que,

num autoritarism o penal m uito restritivo d o âm bito ou espaço d a liberdade das pessoas e em abertas violações a direitos fundam entais do
hom em O ra, se o s crim es om issivos pró p rio s continuarem a ser considerados com o m odalidades de crim es de m era desobediência, que se
perfazem pela sim ples inobservância d o co m ando ju ríd ico penal d e agir, abre-se a oportunidade a que o E stado todo-poderoso utilize-se da
criação de delitos de om issão própria para a defesa de interesses indignos d a tutela penal, ou seja, para a defesa de m eras conveniências políticas,
econôm icas ou adm inistrativas conjunturais, tudo em detrim ento do ju s libertatis M ister se faz, assim, fixar doutrinariam ente limites à punibilidade
da om issão própria, substituindo a concepção de crim es de desobediência, característica dos sistem as totalitários, p o r outras construções que
perm itam sujeitar o s crim es om issivos p ró p rio s ao princípio dem ocrático da objetividade jurídica ” M U N H O Z N E T T O , A lcides O s crim es
om issivos no Brasil. C om unicação ao XIII C ongresso Internacional de D ireito Penal, C airo, 1.984 p. 14/15.
Em relação ao s crim es om issivos im puros, a particularidade do sujeito ativo, na posição de garante, confere abertura e vaguidade de todo
indesejáveis ao tipo-de-ilícito, ante o princípio da reserva legal

28 M U N H O Z N E T T O , A lcides O s crim es om issivos no Brasil C om unicação ao X III C ongresso Internacional de D ireito Penal, C airo, 1 984
p .15/16
s e m d o lo ou s e m culpa, e n vo lve-se no a c id e nte de trâ n s ito .29

“O e m in e n te Prof. F ra g o s o a s s im se expressa: ‘O m otorista


que, se m culpa, a tro p e la o p e d e s tre e o d e ixa ao de sa m p a ro , pratica
o c rim e de o m is s ã o de s o c o rro ('J u ris p ru d ê n c ia C rim in a l’, n .3 2 8 )’.
M a is a d ia n te , o a b a liz a d o m e stre en sin a: 'Se um m otorista a tro p e la
um p e d e s tre se m culpa e o m ite soco rro , p ratica o c rim e que estam o s
e xa m in a n d o , c o m o já vim os, se o dolo se lim ita à om issão de socorro.
F ig u re m o s , ag o ra , o se g u inte e xem p lo : o m otorista T íc io atropela,
se m culpa, um pedestre, e m lu g a r erm o. S altando do ve ículo, T ício
v e rific a q u e a v ítim a é seu in im ig o C a io e que ele so fre u lesã o que
p ro v o c a g ra n d e h e m o rra g ia Q ue re n d o , ou a s s u m in d o o risco da
m o rte de Caio, T ício afasta-se do local, om itind o socorro. R esponderá
p o r h o m icíd io , p o rq u e tin h a o d e v e r ju ríd ic o de im p e d ir o resultad o
(d e c o rre n te da c a u s a ç ã o de pe rig o e não da o m is s ã o ).”30

N o s is te m a ju ríd ic o -p e n a l, a in te n c io n a lid a d e do age n te d e te rm in a a c a p itu la -


ç ã o d a s c o n d u ta s a o s c o rre s p o n d e n te s tip o s -d e -ilíc ito , c o m o bem c o m p ro v a o
e x e m p lo de H e le n o C lá u d io Fragoso: no p rim e iro caso, o crim e é a q u e le previsto
no a rtig o 3 0 4 do C ó d ig o de Trânsito B rasileiro; no se gundo, pela p re s e n ça do dolo
e v e n tu a l, o c rim e é a q u e le p re visto no a rtig o 121 do C ó d ig o Penal brasileiro.

O c a rá te r s u b s id iá rio in e re n te a o s c rim e s o m is s iv o s p ró p rio s a s s e g u ra o c u m -


p rim e n to ao p rin c íp io d o n e b is in idem , no s c a s o s e m q u e a o m iss ã o fu n c io n a
c o m o c a u s a de a u m e n to de pe n a nos c rim e s de h o m ic íd io cu lp o s o e de lesão
c o rp o ra l cu lp o sa.

A liás, a liç ã o é a n tig a , ta n to na d is c ip lin a d o C ó d ig o Penal q u a n to na d is cip lin a


d o trânsito, pois

“Euclides Custódio da Silveira, em sua obra de Direito Penal, fez a seguinte

29 “ C om o bem acentua Sérgio Salom ão S hecaira (Prim eiras perplexidades sobre a nova lei de trânsito, cit., p .3 ) , o tipo penal aplica-se som ente na
hipótese do co n d u to r d o veículo qu e, ‘sem qualquer culpa, atropelar alguém e om itir-se a prestar socorro ” Citado p or PIR ES, A riosvaldo de
C am pos e SA LES, Sheila Jorge Selim C rim es d e Trânsito na Lei n 9.503/97 B elo H orizonte Del Rey. 1.998 p. 203.

30 P IN H E IR O , G eraldo de Faria L em os Ilícitos de Trânsito R evista dos Tribunais, v.525, p 287/297, julho d e 1979. p 295
afirmação: ‘A omissão de socorro à vítima, que revela ausência do senti-
mento de piedade, poderá configurar o crime de perigo descrito no art. 135
do CP, mas, uma vez prevista como agravante especial, não poderá ser
duplamente imputada ao impiedoso: 'ne bis in idem'. O concurso material é
inadmissível na espécie.”31

O princípio da subsidiariedade, expressa ou tácita, representa diferentes está-


gios de ataque ao mesmo bem jurídico, conforme consagrado entendimento de
Honig. 32 Assim, a subsidiariedade não se constitui propriamente em um conceito,
ao invés, como princípio referente ao concurso aparente de normas, evita que
uma mesma conduta seja tipificada em dois ou mais tipos-de-ilícito.

Seria correto afirmar, juntamente com Andrei Zenkner Schmidt, que

“ao admitirmos a subsidiariedade como etapas ou graus diversos da ofensa


a um mesmo bem jurídico, estaremos divagando, somente, acerca da
tipicidade objetiva, e não da subjetiva, pois é só com essa ênfase que se
pode admitir ser o perigo, a lesão ou a morte graus diversos de agressão a
um mesmo bem jurídico”?33

Na verdade, o princípio da subsidiariedade não desconsidera em momento al-


gum as intencionalidades exteriorizadas pelo agente do crime. O ataque ao bem
jurídico, afinal, somente pode ser compreendido por meio de duas perguntas: “Qual
o bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão?''e “ Qual a intenção do agente ao
praticara conduta?’. A última pergunta implicitamente acompanha a primeira, de
forma algo intuitiva. O mérito do modelo final de conduta humana foi, justamente,
a compreensão dessa particularidade.

A aplicabilidade do princípio da subsidiariedade somente é compreendida na


visão integral do modelo de conduta proibida. A redação inadequada dos tipos-de-
ilícito, prescrevendo a subsunção da conduta ao tipo se o fato não constituir crime

31 PIN H E IR O , G eraldo de Faria Lemos Ilícitos de Trânsito Revista dos Tribunais, v.525, p .287/297, ju lho de 1979. p 294.

32 “ Honig (95) a essência da subsidiariedade está em que ela representa estágios de ataque contra o m esm o bem jurídico” . C f ROCHA, Lincoln
M agalhães Contribuição à teoria do conflito aparente de norm as Justitia, v 75, p 7/36 , 4o trim estre de l .9 7 1 p 26.

33 SCHM IDT, Andrei Zenkner. C oncurso A parente de N orm as Penais Revista Brasileira de Ciências Criminais, v 3 3 , p 67/100, jan /m arço 2.001
p .94
mais grave, não retira a utilidade do princípio da subsidiariedade. Vale dizer, a
redação dos tipos-de-ilícito na referência feita ao princípio da subsidiariedade deve
ser proscrita, não só por sua impropriedade técnica, como também por sua inuti-
lidade.

O princípio da subsidiariedade restringe-se e integra-se às condutas típicas de


perigo, das quais os tipos omissivos puros fazem parte.

4. RECUSA DE SOCORRO PELA VÍTIMA

No necessário enfoque da dupla de atores do drama criminal, delinqüente e


vítima, há de se considerar os casos em que a vítima recusa o socorro. Neste
caso, especificamente, em regra, não subsistirá o crime.

O sistema jurídico-penal não deve assumir feição paternalista, naquelas hipó-


teses em que a vítima autonomamente pode decidir sobre si mesma ou sobre o
seu bem-estar. A autonomia envolve decisões espirituais e físicas, decisões sobre
a saúde e sobre a doença, decisões sobre os lenitivos e sobre a continuidade do
sofrimento. A autonomia diz respeito à decisão sobre direitos relativos ao próprio
corpo, pois “o corpo do homem vivo é um sítio arqueológico que promete tudo",34
inclusive, a liberdade de decidir entre o socorro e o não-socorro.

Para o exercício de recusa da vítima em ser socorrida, considera-se generica-


mente:

a) a capacidade de autodeterminação da vítima;

b) as condições físicas de recusa de socorro por parte da vítima, v.g., não se


pode atribuir valor à recusa daquela vítima quase exânime.

A autodeterminação não se confunde com a capacidade civil. Apenas se averi-


gua, no caso concreto, as condições pessoais da vítima na recusa em ser socor-
rida. Dito de outra forma, a vítima pode se responsabilizar diante da situação em

34 CAM PELO, Cleide Riva C al(e)idoscorpos Um estudo sem iótico do corpo e seus códigos São Paulo Annablume 1 996 p 30
que se viu envolvida pelo acidente de trânsito. Aliás, a autonomia da vítima pode
ser limitada pela insistência em prestar socorro por parte do agente, o que reflete
o contexto ético-religioso da sociedade.

Ao fim e ao cabo, os limites da autonomia da vítima são estabelecidos pelo


entrelaçamento entre o biológico e a cultura,35 isto é, por duas perguntas funda-
mentais: “ tenho condições físicas e mentais de recusar o socorro?” e “qual o mo-
mento em que a minha recusa em não ser socorrida interfere na possibilidade
religiosa, moral e jurídica de disposição do meu corpo?'

Ao futuro suicida, não se proíbe jurídico-penalmente, o atentado contra a pró-


pria vida. No entanto, caso ele se jogue na frente de um automóvel, ferindo-se
gravemente, o condutor do veículo tem o dever de prestar-lhe socorro, pois a
recusa da vítima é inadmissível na hipótese.

O individualismo não se confunde com a autonomia e o sistema jurídico-penal,


uma vez mais, demonstra que “ao longo da história, em todos os povos, o religioso
cria e recria o campo cultural e, mais ou menos, o jurídico-penal-criminológico-
vitimológico.’’36

5. PROPOSIÇÕES FINAIS

1a Proposição: O princípio da subsidiariedade restringe-se e integra-se às con-


dutas típicas de perigo, inclusive às condutas típicas omissivas puras.

2a Proposição: Não há prática de omissão de socorro pelo agente, nos casos


de recusa da vítima, desde que ela tenha capacidade de autodeterminação e
tenha condições físicas de recusar o socorro.

35 “O biológico permite a vida; a cultura possibilita a transcendência O biológico garante herdeiros, a cultura possibilita a eternidade (...) Assim,
o homem já traz, indelevelmente, seu corpo portador do biológico e dos textos da cultura ” C f CAMPELO, Cleide Riva Cal(e)idoscorpos. Um
estudo semiótico do corpo e seus códigos. São Paulo Annablume. 1.996. p 44.

36 BER1STAIN, Antonio N ova criminologia á luz do direito penal e da vitimologia Apêndice Declaração sobre os principios fundamentais de
justiça para as vitimas de delitos e do abuso de poder (ONU) Brasilia UnB São Paulo Imprensa Oficial do Estado 2 000 p 158
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERISTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia.


Apêndice: Declaração sobre os princípios fundamentais de justiça para as víti-
mas de delitos e do abuso de poder (ONU). Brasília: UnB: São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado. 2.000.

CAMPELO, Cleide Riva. Cal(e)idoscorpos. Um estudo semiótico do corpo e seus


códigos. São Paulo: Annablume. 1.996.

CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. 1.889-1.930. Brasília: UnB. 2.001.

CARNELUTTI, Francesco. La cenicienta. Cuestiones sobre el Proceso Penal.


Ediciones Jurídicas Europa-América. p. 15/21.

DELVECCHIO, Giorgio. A Luta contra o crime. Revista de Direito do Ministério


Público do Estado de Guanabara, n .1 v .1 ja n e iro /a b ril de 1.967.

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Exame de alcoolemia: sua validade como prova no


processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.33, p. 121/132,
jan ./março 2.001.

LEIRIA, Antônio José Fabrício. Delitos de Trânsito. Revista dos Tribunais, v.475,
p.235/243, maio 1975.

LYRA, Roberto. Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara,


n.1., v.l, jan.abril de 1967.

MARQUES, Daniela de Freitas. Girolamo Savonarola: milenarismo, liberdade e


fogueiras - a tensão da ambigüidade. Belo Horizonte. 2.000. p. 23. [manuscrito]

MUNHOZ NETTO, Alcides. Os crimes omissivos no Brasil. Comunicação ao XIII


Congresso Internacional de Direito Penal, Cairo, 1.984.

PERES ESCRICH, Henrique. O Mártir do Gólgota. São Paulo: Paulinas. 1.961.


PINHEIRO, Geraldo de Faria Lemos. Ilícitos de Trânsito. Revista dos Tribunais,
v.525, p.287/297, julho de 1979.

PIRES, Ariosvaldo de Campos e SALES, Sheila Jorge Selim. Crimes de Trânsito


na Lei n. 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey. 1.998.

ROCHA, Lincoln Magalhães. Contribuição à teoria do conflito aparente de nor-


mas. Justitia, v.75, p.7/36., 4° trimestre de 1.971.

ROMEIRO, Jorge Alberto. Elementos de Direito Penal e Processo Penal. São


Paulo:Saraiva. 1.978. p. 106

ROSA, Fábio Bittencourt. Pena e culpa nos delitos de trânsito. Revista dos Tribu-
nais, São Paulo, v.532, p.311/313., 1980.

SCHMIDT, Ana Sofia. A vítima e o Direito Penal. São Paulo: RT. 1.999.

SCHMIDT, Andrei Zenkner. Concurso Aparente de Normas Penais. Revista Brasi-


leira de Ciências Criminais, v.33, p. 67/100, jan./março 2.001.

STUART HALL. A identidade cultural na pós-modernidade. 4.ed. Rio de Janeiro:


DP& A. 2.000.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Cristianismo e Direito Penal. Revista dos Tribunais,


São Paulo, v.591, p.446/450,1980.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito


Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1.997.
p.539/540.

7. RESUMO

Aborda, de forma pontual, aspectos referentes aos crimes de trânsito, em es-


pecial os crimes omissivos puros. Na verdade, em relação aos crimes omissivos
puros, são destacadas apenas duas hipóteses: o princípio da subsidiariedade e
os efeitos da recusa da vítima em ser socorrida.
8. ABSTRACT

It explains, in a punctual way, the aspects referred to traffic crimes, specially the
pure omissive crimes. Truthfully, there are only two hypothesises related with pure
omissive crimes: the subsidiarity principle and the effects of the victim’s denial in
being aided.

Você também pode gostar