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A Paz Internacional no Pensamento de Hans Kelsen.

Introdução
O projeto de paz de Hans Kelsen, pode-se assim dizer, é a coroação do pensamento do autor.
Suas ideias são tão fundamentais para a filosofia do Direito quanto o são para o estudo do
Direito internacional; sendo sua teoria da paz internacional uma das contribuições mais
originais que nos legou na segunda área. Todo o seu pensamento pode ser interligado como os
blocos de uma grande torre, a qual tem como ápice a defesa da paz universal por meio do
Direito. Neste grande edifício teórico encontramos preciosas contribuições para compreender
as relações internacionais do mundo contemporâneo, de um ponto de vista que busca construir
uma sociedade mundial pacífica, sem fugir ao enfrentamento das complexidades que o mundo
real impõe.

O caminho para a teoria da paz de Hans Kelsen passa pela compreensão da sua
caracterização do Direito internacional e da sociedade internacional, que é construída de um
ponto de vista exclusivamente jurídico, aproveitando-se dos conceitos centrais desenvolvidos
pela sua teoria pura do Direito. E, também, pela percepção da intima identificação que é
construída pelo autor entre os conceitos de Direito, segurança coletiva e paz; em sua visão
amadurecida elementos inseparáveis. A adequada compreensão de seu pensamento quanto a
relação entre Direito e violência, incluindo-se a interpretação jurídica que faz da guerra é, da
mesma forma, essencial.

O argumento do projeto de paz internacional de Kelsen pode ser dividido em dois eixos
principais, o primeiro é a criação de uma corte internacional de jurisdição compulsória para os
conflitos entre Estados, e o segundo a responsabilização individual por atos de estado ilegais
em relação ao Direito internacional. Ambos conduzem a solidificação de uma comunidade
jurídica universal constituída pelo direito internacional e significam um impulso de
centralização da função judicial da comunidade, que o autor acredita estar dentro das
possibilidades da atual realidade da sociedade internacional. Aproximar ao argumento de
Kelsen, por meio de uma breve exposição de sua teoria da paz internacional, é a intenção
principal deste breve estudo.

1. Direito, sociedade Internacional, segurança coletiva e paz.


1.2 A caracterização do Direito e da sociedade Internacional em Hans Kelsen.
O projeto de paz de Hans Kelsen é direcionado para a sociedade internacional e a base
conceitual por meio da qual Kelsen caracteriza a sociedade e o Direito internacionais é a sua
teoria pura do Direito 1. Nesta teoria o Direito é entendido como uma ordem normativa de
conduta, caracterizada pelo uso da coação física. O elemento central do conceito é a norma e a
sua característica distintiva é o uso da força física, por meio de uma técnica específica, para a
obtenção de uma conduta desejada (ou seja, coação); a força física é utilizada como instrumento
para a realização de uma sanção (um ato indesejado de interferência na esfera de interesses do
indivíduo), caso o comportamento esperado não seja seguido. A norma jurídica é o sentido
subjetivo de um ato de vontade humana, que pode ser expresso por meio de uma hipótese
constituída dos seguintes elementos: “se A é B deve ser”, onde A significa um fato e B uma
sanção. O fato A é a conduta indesejada que é punida pela sanção B, fazendo com que a
execução da hipótese normativa produza a conduta desejada, para evitar o recebimento de uma
sanção como resultado da conduta oposta. O conjunto de normas forma uma ordem normativa,
que constitui uma comunidade jurídica. Uma sociedade, para Kelsen, é o conjunto de
indivíduos submetidos a mesma ordem normativa.

Kelsen compreende que o Direito internacional pode ser caracterizado de tal maneira; ele
apresenta a estrutura hipotética “se A é B deve ser”, onde A é a conduta oposta ao costume ou
tratado internacional e B é a sanção constituída pela represália e guerra. O Direito internacional
é, portanto, uma ordem normativa, onde as normas são produzidas de maneira descentralizada
por meio do costume e dos tratados. A sociedade internacional é a comunidade jurídica
constituída pelo Direito internacional, assim como o Estado é a comunidade jurídica constituída
pelo Direito nacional. Ambas as comunidades são jurídicas, apenas distintas pelo grau de
centralização de suas funções de produção do Direito, enquanto no Estado o Direito é
produzido de maneira centralizada por órgãos especiais como as câmaras legislativas e os
tribunais, na sociedade internacional o Direito é produzido pelos próprios membros da
comunidade jurídica, os Estados, por meio da conduta que observam e que forma o costume, o
qual passa a ser normativo; e, também, não existem tribunais compulsórios para determinar o
Direito no caso concreto, fazendo com que isso tenha de ser feito com base no acordo de
vontades dos próprios envolvidos num conflito. Uma situação que faz Kelsen classificar o
Direito internacional como um Direito primitivo, pois possuidor de uma técnica deficiente,

1
Aqui, como usualmente, quando se refere a teoria pura do direito não quer se nomear apenas o principal livro
do autor, que possui o mesmo nome, mas, sim, todo o conjunto de sua teoria jurídica.
onde a determinação de A na estrutura da hipótese normativa é dificultosa e a segurança
coletiva e pacificação dentro da comunidade jurídica muito frágeis.

1.3 A identificação entre Direito, segurança coletiva, justiça e paz no pensamento de


Hans Kelsen.

Para Hans Kelsen a segurança coletiva é um elemento essencial do Direito, e segurança


coletiva leva ao estabelecimento da paz, um status que pode ser identificado com a justiça
internacional; esta identificação é desenvolvida pelo autor numa etapa mais madura do seu
pensamento2, por volta do final da segunda fase do período clássico 3. A segurança coletiva é
função de uma ordem jurídica, pois é característica fundamental deste tipo de ordem

2 Esta transição, inclusive, é feita notar pelo próprio autor na nota 27 do capítulo 1 da segunda edição da obra
Teoria Pura do Direito, como uma modificação não destituída de relevo; e pode ser observada ao comparar-se as
obras mais maduras de Kelsen com seus primeiros escritos, no que toca a questão.

Nas obras da fase construtivista e do início da fase clássica [ver a próxima nota] o autor reluta em relacionar o
conceito de Direito com qualquer conteúdo que possa ter um viés ético. Na sua Teoria Geral do Estado de 1925
pode-se ler (lembrando que para Kelsen a ordem estadal/estatal e o Direito referem-se ao mesmo objeto): “Na
verdade nem sequer é essencial à ordem estadal a organização da proteção do indivíduo, quere dizer, que ela faça
corresponder uma sanção a qualquer acto lesivo da vida, da saúde, da honra ou dos interesses econômicos dos
indivíduos” (KELSEN, 1938, pg. 84). Na segunda edição da teoria pura do Direito, de 1960, Kelsen faz notar sua
transição de pensamento numa nota de rodapé (como dito), mesmo mantendo o entendimento no texto principal,
que diz: “[...] enquanto nas relações entre os Estados, a guerra não for proibida pelo Direito internacional, não
pode validamente afirmar-se que a situação jurídica represente necessariamente uma situação de paz, que
assegurar a paz constitua uma função essencial do Direito.” (KELSEN, 2009, pg. 42, grifo acrescentado).

Já em obras mais tardias Kelsen começa a elaborar uma intima interligação entre os conceitos de Direito,
segurança coletiva, justiça e paz; na Teoria Geral do Direito e do Estado, de 1945, pode-se ler: “[...] apesar de o
ideal de justiça em seu sentido original, tal como o desenvolvido aqui, ser razoavelmente diferente do ideal de
paz, existe uma tendência definida de identificar os dois ideais ou de, pelo menos, substituir o ideal de justiça pelo
de paz.” (Kelsen, 2005, pg. 20) mais adiante na mesma obra se lê: “O Direito, com certeza, é uma ordenação que
tem como fim a promoção da paz, na medida em que proíbe o uso da força nas relações entre os membros da
comunidade. [...] o Direito faz do uso da força um monopólio da comunidade. E, precisamente por fazê-lo, o
Direito pacífica a comunidade.” (Kelsen, 2005, pg. 30). Na obra Princípios do Direito Internacional se lê: “Ao
reservar à comunidade o uso da força, ou seja, ao determinar as condições em que determinados indivíduos — e
apenas estes indivíduos —, como órgãos da comunidade jurídica, estão autorizados a interferir compulsoriamente
no domínio de interesses dos que estão sujeitos a ordem jurídica, o Direito garante paz.” Em Collective Security
under International Law, obra de 1954 , se lê: “If peace is defined as the absence of force, it is the essential function
of the law to guarantee peace in the relations among the members of the community, the subjects of the law. In
guaranteeing peace by protecting the members of the legal community against the use of force, the law—any legal
order—guarantees its subjects security. Hence, the prohibition of the use of force is an essential element of any
system of collective, and that means, legal security. Legal security is identical with peace, or rather with that
relative peace which a legal order can secure.” (KELSEN, 1954, pg. 6-7). Este ponto de vista é trabalhado por
Kelsen também em diversos artigos, dentre eles o mais relevante é Essential Conditions of International Justice
de 1941 onde pode se ler “[...] the aim of every social order, especially of the legal order, is peace, justice in the
sense of conformity with law, means peace guaranteed by the law. [...] international justice means international
peace, peace secured by international law.” (KELSEN, 1941, pg. 72).
estabelecer o monopólio da violência, do uso da força física para exercer coação, na
comunidade formada pelo Direito. Na medida que autoriza tal uso apenas de acordo com o
Direito, delimita a violência e estabelece a paz, gerando segurança. Embora grande parte da
obra de Kelsen se dedique a classificar a justiça como um ideal irracional, ele chega a admitir
uma identificação entre a ideia de justiça e de paz, especialmente no contexto da sociedade
internacional, tendo desenvolvido este argumento principalmente num artigo chamado
Essencial Conditions of International justice de 1941. Já a relação entre Direito e segurança é
amplamente trabalhada na obra Collective Security Under International Law de 1954. Esta
transição é certamente marcada pela influência da segunda guerra mundial que é concomitante
com o segundo período da fase clássica do autor e motivou diversas de suas publicações à
época. A liga que compõe a identificação dos quatro conceitos fornece um pano de fundo
teórico excepcional para acomodar o projeto de paz internacional de Hans Kelsen.

1.4 O conceito de Paz e sua relação com o Direito em Hans Kelsen.

2. A interpretação jurídica da guerra e a paz internacional (o princípio do bellum


justum).4
2.1 A interpretação jurídica da guerra e a natureza jurídica primitiva do Direito
internacional.

2.2 A limitação da guerra pelo Direito internacional (o princípio do bellum


justum).

2.3 O Direito e a paz na sociedade internacional.

3. A paz internacional por meio do Direito (a proposta de Kelsen) 4

3 Utiliza-se aqui a periodização proposta por Stanley L. Paulson (2013), em que se organiza a obra de Kelsen em
uma fase construtivista (de 1911 em diante), com uma sub-fase de transição (de 1913 a 1922); uma fase clássica
(de 1922 a 1960), com duas sub-fases, a primeira o período neokantiano (de 1922 a 1935) e a segunda o período
híbrido (de 1935 a 1960); e por fim, uma fase cética (a partir de 1960).
3.1 O Direito como meio para a paz internacional.

3.2 Uma corte internacional compulsória.

3.3 A responsabilização individual por atos de estado

Considerações finais

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