Você está na página 1de 7

Covid: o que é cérebro

pandêmico e como ele afeta


nosso dia a dia
A exposição prolongada ao estresse crônico provocado
pela pandemia está tendo mais consequências do que
podemos imaginar.
Por José Carlos Cueto, BBC
09/08/2021 08h58 Atualizado há 6 horas

O estresse crônico e os longos períodos de confinamento não afetaram apenas


nossa capacidade de memória e concentração. — Foto: Getty Images

Sento para escrever este texto. Começo. Estou indo


bem, já tenho 100 palavras. Na verdade, acho que esta
última frase talvez não esteja clara. Deleto. Acabo
apagando tudo. Como faço para voltar? Página em
branco. Mente em branco. Os minutos passam. Eu checo
o telefone. É impossível me concentrar!
É muito provável que no último ano e meio você tenha
sentido algo semelhante ao realizar alguma atividade.
Se for o caso, não se preocupe. Você não está sozinho.
Temos um cérebro pandêmico.
Não se trata de um termo clínico, mas é assim que
alguns cientistas chamam a série de males que nosso
cérebro está sofrendo como resultado da pandemia.
O estresse crônico e os longos períodos de confinamento
não afetaram apenas nossa capacidade de memória e
concentração. Alguns especialistas acreditam que é
possível que algumas áreas do nosso cérebro também
tenham diminuído de tamanho.
Mas será que vamos ficar assim para sempre?
LEIA TAMBÉM
 Covid longa: pacientes ‘recuperados’ podem ter problemas de
raciocínio e memória, ENTENDA
 Doença deixou sequelas? Os cuidados que o paciente deve ter
mesmo após se 'curar'
Estresse prolongado
Os especialistas concordam que o principal responsável
pelas mudanças na nossa mente é a longa exposição ao
estresse por tanto tempo, o estresse crônico.
"Há níveis 'bons' de estresse. Se você precisa completar
uma tarefa em um prazo apertado, uma vez que você
completa, o estresse vai embora. Tudo acaba",
exemplifica Michael Yassa, neurologista do Centro de
Neurobiologia da Aprendizagem e Memória da Califórnia,
nos EUA.
O isolamento social causa exposição prolongada ao estresse, impactando o
volume de várias áreas do cérebro envolvidas em nossas atividades diárias —
Foto: Getty Images

"Mas quando o fim não está à vista, e o estresse


continua por uma sessão prolongada, se torna
problemático", explica Yassa à BBC News Mundo,
serviço de notícias da BBC em espanhol.
É isso que está acontecendo com a gente na pandemia.
Vivemos um estado prolongado de espera, de
confinamentos e relaxamentos, restrições e medidas de
proteção sem saber quando vamos recuperar o que hoje
chamamos de normalidade.
O estresse prolongado libera cortisol e, se você tiver
problemas contínuos com esse hormônio, ele pode afetar
o volume de algumas áreas do cérebro.
A neuropsicóloga Barbara Sahakian, da Universidade de
Cambridge, no Reino Unido, tem analisado os efeitos do
distanciamento social e da ansiedade durante a
pandemia em nossa massa encefálica.
"Por meio de exames de imagem de pessoas
socialmente isoladas, detectamos mudanças no volume
das regiões temporal, frontal, occipital e subcortical,
assim como no hipocampo e na amígdala", conta
Sahakian à BBC News Mundo.
"Já no passado, níveis elevados e prolongados de
cortisol foram associados a transtornos de humor e
encolhimento do hipocampo. Isso é observado
especialmente em pacientes com depressão",
acrescenta.
Em 2018, por exemplo, um estudo publicado na revista
científica Neurology, da Academia Americana de
Neurologia, mostrou que um alto nível de cortisol em
pacientes estava associado a uma memória e percepção
visual pior, assim como a volumes mais baixos de massa
cinzenta total, occipital e do lobo frontal.
E essas mudanças de volume, como as detectadas por
Sahakian, podem afetar diretamente as atividades que
realizamos no dia a dia.
"Esse conjunto de problemas que afetam a saúde mental
e geram depressão e ansiedade é o que estamos
chamando coloquialmente de cérebro pandêmico",
ressalta Yassa.

--:--/--:--

Estudo do Incor mostra que 80% dos pacientes recuperados da Covid tiveram
sequelas como perda de memória e dificuldade de concentração

Como o cérebro pandêmico nos afeta no


dia a dia?
Sahakian dá um exemplo muito comum.
"Você para o carro em um estacionamento de vários
níveis em um shopping. Você volta depois de várias
horas. Por um momento, você se perde e não consegue
lembrar onde deixou o carro. O hipocampo é a área do
cérebro responsável por implementar essa memória,
justamente uma das áreas mais afetadas pelos efeitos
da pandemia."
O hipocampo também está envolvido nos processos de
aprendizagem. Além disso, é uma área que normalmente
se deteriora com a idade.
"É por isso que os idosos podem ser mais vulneráveis,
embora também tenhamos detectado que as crianças
podem sofrer atrasos no desenvolvimento social e de
linguagem", argumenta Sahakian.
Mas os efeitos do chamado cérebro pandêmico vão
muito além de um leve comprometimento da memória ou
declínio na capacidade de aprendizagem.
Há muitos receptores que são sensíveis ao cortisol, por
isso várias redes neurais são afetadas, o que se revela
em nossas possíveis oscilações de humor frequentes,
sentimentos de medo ou incapacidade de concentração,
de realizar várias tarefas ao mesmo tempo ou tomar
decisões sem hesitação.
Isso se deve ao seu impacto no sistema límbico e na
amígdala, sendo esta última responsável por nos fazer
sentir emoções.
"Muitos pacientes descrevem uma sensação de 'névoa
cerebral' e se queixam que não tomam mais decisões da
mesma forma que faziam antes", explica Yassa.
Naturalmente, essa carga psicológica também é
acompanhada por consequências fisiológicas
irremediáveis.
"A depressão e a ansiedade afetam nosso sono, alteram
nosso apetite e causam fadiga", acrescenta o
neurologista.

Sahakian e sua equipe estão estudando as variações em nossos cérebros


causadas pela pandemia — Foto: Getty Images

Não afeta a todos da mesma forma


Como em tudo, o cérebro pandêmico é mais suscetível
em algumas pessoas do que em outras. Aqui, entram em
cena a resiliência individual e o nível de estresse a que
estamos submetidos.
Quem padeceu com o isolamento social não sofre tanto
quanto alguém que perdeu um familiar ou conhecido,
ficou desempregado ou foi infectado.
Nestes casos, além do estresse crônico, também pode
surgir o estresse pós-traumático, aumentando a
instabilidade da saúde mental, a depressão, o sofrimento
e a ansiedade.
"Alguns de nós mostraram mais resiliência e criaram
estratégias durante o confinamento para nos mantermos
saudáveis, como seguir uma rotina de exercícios físicos.
Mas, para os mais afetados, pode ser mais difícil seguir
esse tipo de atividade", diz Sahakian.
"A autogestão do estresse é algo pessoal que nem todos
nós alcançamos da mesma forma. Todos nós já tivemos
estresse em nossas vidas. Se conseguimos superá-lo,
esse estresse pode até ser bom em certo ponto",
completa.
É possível se recuperar?
Yassa quer acreditar que é possível superar as
mudanças sofridas, mas reconhece que não será da
noite para o dia — e que vai demorar.
"As pessoas superam desastres naturais ou a perda de
entes queridos, por isso também devemos superar isso.
Mas primeiro a causa precisa desaparecer", esclarece.
"À medida que as liberdades forem recuperadas, e as
pessoas retomarem o contato social, todos nós vamos
melhorar", acrescenta Sahakian.
Enquanto esperamos pelo retorno à normalidade, os
especialistas aconselham adotar algumas técnicas para
trazer de volta nossas funções cognitivas.
"Precisamos nos desafiar com jogos de memória para
recuperá-la, assim como aprender coisas novas",
recomenda a neuropsicóloga.
Yassa acredita que devemos nos concentrar em criar
uma espécie de "harmonia de ritmos".
"Levantar da cama na mesma hora, comer regularmente
e fazer exercício físico dá ao cérebro uma chance
melhor de se recuperar."
Mas embora essas atividades possam ser suficientes
para muitos, Sahakian reconhece que alguns de nós
podem precisar da ajuda de profissionais.

Você também pode gostar