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Os Lusíadas

Luís de Camões — I
A epopeia

EPOPEIA — género narrativo de remota origem e considerável


prestígio cultural, a epopeia (do gr. epopoiia) assenta as suas
raízes nas mais vetustas manifestações literárias da Antiguidade.

Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes, Dicionário de Narratologia,


Almedina, 2011.

A epopeia é um género do modo narrativo, em verso,


que consiste no elogio e na exaltação de um herói.
Este herói é visto como um modelo a seguir.
N’Os Lusíadas, o herói é o povo
português, representado nas figuras
de Vasco da Gama e dos navegadores
que descobriram o caminho marítimo
para a Índia.

Retrato de Vasco da Gama, Escola


Portuguesa (século XVI).
Os antecedentes d’Os Lusíadas
A epopeia, ou o género épico, remonta à Antiguidade e à Grécia.
Estas narrativas de heróis eram cantadas para grupos de pessoas,
inspiravam os homens e serviam-lhes de modelo. Consolidadas
e enriquecidas pela tradição oral, as histórias passaram de geração
em geração.

Terá sido Homero, no século VIII a. C., a fixar, na escrita,


duas importantes narrativas épicas.
É atribuída a Homero a autoria das obras:

• Ilíada — relato de parte do último ano da guerra de Troia e da fúria


de Aquiles, o mais valente dos Gregos;

• Odisseia — relato da viagem e das errâncias de Ulisses, o mais


esperto dos Gregos, ao regressar a casa, após a guerra de Troia.

Pormenor de uma ânfora representando Ulisses


e Atena, deusa grega da sabedoria e das artes.
Quando Roma conquista a Grécia, o povo romano inspira-se
na cultura e na arte gregas. Na época de Augusto, o imperador
pretende exaltar as origens e a valentia do povo romano.
Para tal, rodeia-se de escritores.

Virgílio, poeta romano, compõe a Eneida. Esta obra tem como herói
Eneias, príncipe troiano, filho de Vénus, que, na noite da destruição
de Troia, sai da cidade com o objetivo de fundar outra que a iguale.
Depois de navegar pelos mares, chega à região do Lácio,
na Península Itálica, onde se fixará, dando origem a uma
descendência que culminará em Rómulo e Remo, fundadores
de Roma.
A Eneida toma como modelo as epopeias gregas. É, sobretudo,
nesta obra que Luís de Camões se inspira, imbuído dos valores
do Renascimento da imitação e da superação de um modelo.

N’Os Lusíadas, a estrutura da obra, a presença do divino


e a proteção de Vénus aos Portugueses são exemplos
da influência da Eneida na epopeia camoniana.

Retrato de Luís de Camões.


A estrutura interna d’Os Lusíadas
O Poema é composto pelas seguintes partes:

• Proposição
(Canto I, estâncias 1-3);
• Invocação
(Canto I, estâncias 4-5);
• Dedicatória
(Canto I, estâncias 6-18);
• Narração
(Canto I, estância 19 — fim do Poema).
Frontispício d’Os Lusíadas (1572).
A narrativa começa in medias res, ou seja, a meio dos
acontecimentos, quando a armada de Vasco da Gama se encontra
já no oceano Índico.

O Poeta recorre a analepses, a fim de apresentar o que aconteceu


antes da viagem, e também a prolepses, com o intuito de relatar
factos que ocorreram depois da viagem.

Luís de Camões acrescenta uma inovação em relação à estrutura


das epopeias clássicas: a inclusão da Dedicatória.
A estrutura externa d’Os Lusíadas
O Poema é composto por dez cantos (de extensão variável),
num total de 1102 estâncias.

As estâncias têm oito versos — oitavas — e seguem o esquema


rimático abababcc — rima cruzada nos primeiros seis versos
e rima emparelhada nos dois últimos.

Cada verso tem dez sílabas métricas — decassílabos —,


maioritariamente heroicos (acentuados na sexta e décima sílabas)
e, em alguns casos, sáficos (acentuados na quarta, oitava
e décima sílabas).
A narrativa d’Os Lusíadas

A armada de Vasco da Gama navega no oceano


Canto I Índico.
Desembarque na Ilha de Moçambique.
A armada segue viagem e chega a Mombaça.

O rei de Mombaça convida a armada a entrar no porto.


Vasco da Gama não entra e segue até Melinde.
Canto II Os portugueses são recebidos em Melinde.
O rei de Melinde visita a armada e pede a Vasco da Gama
que lhe conte a História de Portugal e a viagem até Melinde.
Vasco da Gama faz a descrição geográfica
da Europa e a localização de Portugal e narra:
a história da fundação de Portugal; os reinados
Canto III de D. Afonso Henriques a D. Afonso IV; o episódio
de Inês de Castro; os reinados de D. Pedro
e D. Fernando.

Vasco da Gama narra:


o reinado de D. João I; a Batalha de Aljubarrota;
Canto IV
os reinados de D. Duarte a D. Manuel I; as despedidas
em Belém; o Velho do Restelo.
Vasco da Gama narra:
a viagem da armada no Atlântico; o fogo de Santelmo;
Canto V
a tromba marítima; o Adamastor; o escorbuto;
a viagem até Melinde.

Os portugueses partem de Melinde.


A armada navega no oceano Índico.
Canto VI As embarcações enfrentam uma tempestade muito
violenta, que põe a armada em perigo.
Os portugueses chegam a Calecute (Índia).
A armada chega ao porto de Calecute. O mouro
Monçaide visita a nau de Vasco da Gama. Este
desembarca e é recebido pelo Catual, governador
Canto VII da cidade, dirigindo-se ao palácio do Samorim.
O Catual visita a armada, onde é recebido por Paulo
da Gama, a quem pergunta o significado das bandeiras.

Paulo da Gama explica as 23 figuras históricas representadas


nas bandeiras. Gera-se uma revolta

Canto VIII contra a armada portuguesa. O Catual prepara


uma cilada contra os portugueses, mas Vasco da Gama
tem a proteção do Samorim.
Vasco da Gama vence as manobras contra
os portugueses. A armada parte de Calecute, de regresso
Canto IX a Portugal. Vénus recompensa os portugueses preparando
a Ilha dos Amores.

Nesta ilha, Tétis e as restantes ninfas oferecem


um banquete aos portugueses.
Tétis mostra a Vasco da Gama a «máquina do Mundo»
Canto X e apresenta-lhe os locais onde os Portugueses hão de
praticar feitos heroicos, como o descobrimento do Brasil
e a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães.
Partida da Ilha dos Amores e regresso a Lisboa.
Proposição (Canto I, 1-3)
Como esta designação indica, o Poeta propõe, nas três primeiras
estâncias, o tema que vai desenvolver na epopeia.

As armas e os Barões assinalados 1 — Os navegadores


Que da Ocidental praia Lusitana e conquistadores de novas terras.

Por mares nunca de antes navegados


Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas 2 — Os reis portugueses
Daqueles Reis que foram dilatando da época da Expansão.
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
3 — Todos os que
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
empreenderam feitos dignos
de perdurar na História.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano O povo português —
o herói d’Os Lusíadas.
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Pormenor do Padrão dos Descobrimentos (Lisboa).


Invocação (Canto I, 4-5)
O Poeta invoca as Tágides (as ninfas do Tejo), para que estas
o inspirem ao cantar os feitos ilustres dos Portugueses.

E vós, Tágides minhas, pois criado O Poeta invoca as ninfas


Tendes em mi um novo engenho ardente, do Tejo — as Tágides

Se sempre em verso humilde celebrado («Tagus» = «Tejo» em latim).

Foi de mi vosso rio alegremente,


Dai-me agora um som alto e sublimado, Voz/canto.
Um estilo grandíloco e corrente,
Estilo.
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.
Pormenor de Camões e as Tágides,
Columbano Bordalo Pinheiro (1885).

Dai-me ũa fúria grande e sonorosa, Inspiração.


E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa Capacidade à altura dos
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; feitos dos Portugueses.

Que se espalhe e se cante no universo,


Se tão sublime preço cabe em verso.
Dedicatória (Canto I, 6-18)
O Poeta dirige-se ao rei D. Sebastião, nunca o nomeando, mas
descrevendo-o como um elemento de esperança e símbolo de poder.

E vós, ó bem nascida segurança Elemento de esperança


Da Lusitana antiga liberdade, na sucessão do trono.

E não menos certíssima esperança


De aumento da pequena Cristandade; Elemento de esperança
Vós, ó novo temor da Maura lança, na difusão da fé cristã.
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande;
[…]
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.

O Poeta pede ao rei que


olhe para Os Lusíadas.

Retrato de Camões, José Malhoa (1907).


Consílio dos Deuses (Canto I, 20-41)

Depois do início da narração


(I, 19), estando a armada de Vasco
da Gama no oceano Índico,
os deuses reúnem-se no Olimpo.

Saímos, assim, do plano


da viagem para entrarmos
no plano mitológico.

O Olimpo, Luigi Sabatelli (fresco, c. 1850).


A presença de divindades que intervêm na vida dos humanos
— neste caso, no decurso da viagem de Vasco da Gama — é uma
das heranças da Antiguidade Clássica, visto que o mesmo sucede
nas epopeias que inspiraram Camões.

Quando os Deuses no Olimpo luminoso,


Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em consílio glorioso,
Sobre as cousas futuras do Oriente.
[...]
I, 20

Os deuses reúnem-se no Olimpo para


decidir acerca do futuro do Oriente — a chegada dos Portugueses à Índia
originará laços comerciais e um poder europeu naquela zona do globo.
Camões recorre ao panteão romano. Neste, Júpiter é o pai dos deuses
e a divindade mais importante. Todos os outros lhe obedecem.

Estava o Padre ali, sublime e dino, O Consílio é presidido por Júpiter,


Que vibra os feros raios de Vulcano, que se senta num lugar mais alto.
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano;
[...]
Em luzentes assentos, marchetados
I, 22
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Os outros deuses, sentados abaixo,
Como a Razão e a Ordem concertavam
estão por ordem de importância.
(Precedem os antigos, mais honrados,
Mais abaixo os menores se assentavam);
[...]
I, 23
Discurso de Júpiter

[...]
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados grandes certo intento
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
I, 24

Pormenor d’O Olimpo, Luigi Sabatelli,


representando Júpiter.

Júpiter refere que o Destino (os Fados), a quem todos obedecem, inclusive
os deuses, estabelece que os Portugueses vão realizar grandes feitos.
Júpiter relembra que o Destino «Prometido lhe está do Fado eterno,
também já decidiu que Cuja alta lei não pode ser quebrada,

os Portugueses vão ter Que tenham longos tempos o governo

um império a Oriente. Do mar que vê do Sol a roxa entrada.


[...]
I, 28

[...]
Júpiter determina que os portugueses
Que sejam, determino, agasalhados
devem parar na costa oriental de África,
Nesta costa Africana como amigos;
E, tendo guarnecido a lassa frota, numa cidade amiga, para descansar

Tornarão a seguir sua longa rota. da viagem.


I, 29
[...]
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente.
I, 30

Pormenor d’O Olimpo, Luigi Sabatelli, representando


Baco.

Baco não concorda com Júpiter.


Não quer que os Portugueses cheguem à Índia,
pois perderá a sua influência nessa região.
Baco revela-se, assim, um oponente à viagem dos Portugueses,
à sua chegada à Índia e ao estabelecimento de laços com aqueles
locais.

• No canto I e no canto II, ao longo da navegação na costa


oriental de África, Baco prepara ciladas aos portugueses.

• No canto VI, é o responsável pela tempestade que quase


culmina no naufrágio da armada.

• Já na Índia, no canto VIII e no canto IX, mais uma vez é o autor


de ciladas contra os portugueses.
Vénus é adjuvante dos Portugueses e da sua
chegada à Índia. Ao longo da ação, na sequência
dos planos de Baco, é ela que intervém e protege
a armada. No canto IX, recompensa os marinheiros
preparando-lhes estes a Ilha dos Amores.

Sustentava contra ele Vénus bela,


Afeiçoada à gente Lusitana
Pormenor d’O Olimpo,
Por quantas qualidades via nela Luigi Sabatelli,
Da antiga, tão amada, sua Romana; representando Vénus.

[...]
I, 33
Vénus discorda de Baco e é favorável aos Portugueses,
já que neles encontra semelhanças com os Romanos.
Decisão de Júpiter

Como isto disse, o Padre poderoso,


A cabeça inclinando, consentiu
No que disse Mavorte valeroso
[...]
I, 41 Júpiter concorda com
as palavras de Marte.

Enquanto isto se passa na fermosa


Casa etérea do Olimpo omnipotente,
Cortava o mar a gente belicosa Pormenor d’O Olimpo, Luigi Sabatelli,
representando Marte.
Já lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a famosa Os portugueses continuam a sua
Ilha de São Lourenço; [...]
viagem, perto da Ilha de Moçambique.
I, 42
Os excertos d’Os Lusíadas apresentados seguem a edição de Álvaro Júlio da Costa Pimpão:
Luís de Camões, Os Lusíadas, leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão,
apresentação de Aníbal Pinto de Castro, 2.ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1989.
Atualizou-se a ortografia, mas mantiveram-se as formas originais que o editor decidira
conservar.

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