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Relatório de Participação Social: Quotas e Ações

Prof. Doutor Evaristo Mendes

O Dever de Lealdade ou Fidelidade nas Sociedades Comerciais

Cumpre-nos, em primeira mão, analisar o conceito de lealdade. A origem dogmática do


conceito proveio da Alemanha com HUECK que propôs a distinção normativa de boa-fé
(Treu und Glauben) e os deveres de lealdade (Treugebot). ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO sugere que a lealdade traduz “a característica daquele que atua de acordo
com uma bitola correta e previsível”1. A previsibilidade, segundo o autor, está na base da
confiança uma vez que é possível projetar a ação futura de determinado indivíduo
surgindo, da parte dele, “a convicção que permite a preferência, a entrega e o
investimento”2. JOSÉ FERREIRA GOMES, por seu lado, afirma que o dever de lealdade
“é reconhecido na relação dos sócios entre si e com a sociedade, impondo a cada sócio
que não contrarie o interesse social no seu comportamento enquanto sócio e que coopere
com os demais ... na prossecução do fim comum”3. A jurisprudência, num sentido mais
prático, elucidou o termo como uma obrigação de não adotar comportamentos suscetíveis
de lesionar, por um lado, os interesses legítimos e expetativas dos outros sócios e, por
outro, da sociedade e os seus membros.

Os deveres de lealdade dos sócios, integrantes da relação obrigacional complexa4, na


opinião de muitos autores portugueses e na doutrina predominante alemã, surge do
princípio da boa-fé5, embora isto seja visto de diferentes formas e perspetivas. Este dever
impõe aos sócios o ónus de atuarem em prol do interesse social (o interesse comum a
todos os sócios enquanto tais) ou de outros relacionados com a sociedade6. Para além das
obrigações contributivas dos sócios, podemos incluí-lo na componente passiva da

1
CORDEIRO, António Menezes, A Lealdade no Direito das Sociedades, ROA, 2006, Vol. III, I, 1.
2
CORDEIRO, António Menezes, Direito das Sociedades, 2011, I, 3ª Edição, p. 451
3
GOMES, José Ferreira, Conflito de Interesses entre acionistas nos negócios celebrados entre a sociedade
autónoma e o seu acionista controlador”, Coimbra, Almedina, p. 128
4
Partindo do princípio que se desdobra em outras e variadas obrigações, cfr. António Menezes Cordeiro,
Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 590 e ss.
5
Ideia de que o dever de lealdade não surge por intermédio do contrato de sociedade, mas antes pelas regras
de condutas impostas pela boa-fé no cumprimento das obrigações assumidas por intermédio desse mesmo
contrato.
6
ABREU, Coutinho de, Direito Comercial, Vol. II, p. 310

1
participação social. Apesar de não haver nenhuma norma explícita e inequívoca que
sublinhe a sujeição dos sócios a este dever, tal como existe quanto aos gerentes e
administradores7, podemos encontrar manifestações do mesmo ao longo da legislação das
sociedades comerciais. Encontramos, ainda, algumas conexões do dever de lealdade, por
um lado, ao princípio da igualdade de tratamento, nomeadamente na imposição à
sociedade de não tomar decisões arbitrárias que possam beneficiar ou prejudicar certos
sócios em detrimento de outros e, em segundo lugar, ao conferir uma proteção especial
das minorias, garantindo aos sócios minoritários os mesmos direitos e oportunidades
coerentes com a sua posição na sociedade. Por outro lado, fazemos ainda a relação do
dever de lealdade ou fidelidade com o princípio da confiança, dado que a vida societária
impõe uma atuação honesta, criteriosa e transparente em relação aos sócios e à sociedade.

A doutrina diverge quanto a classificar este dever: quem se afasta da conceção


predominantemente alemã, define o dever de lealdade como de conteúdo negativo, ou
seja, de non facere e omissão, e que não interfere ou prejudica o interesse social8
(COUTINHO DE ABREU e PEREIRA DE ALMEIDA). Na corrente predominante,
surge como um dever de conteúdo positivo e que visa condutas positivas apostas no
contrato social para promoção do interesse e fim social. Desta forma, a lealdade exigida
aos sócios inscreve-se no seu próprio status enquanto sócios e desdobra-se num conjunto
de direitos e deveres ínsitos na própria ideia de participação social.

Contudo, a identificação e autonomização do dever de lealdade dos sócios perante a


sociedade que integram não é unânime na doutrina9. Para PAULO OLAVO CUNHA o
dever de lealdade está implícito na noção de sociedade comercial, enquanto ente jurídico
de substrato essencialmente patrimonial, composto por uma ou mais pessoas jurídicas,
estando os sócios adstritos à lealdade e fidelidade do fim comum, integrando este dever
o espírito do próprio sistema jurídico-societário. A lealdade caracteriza o relacionamento

7
Artigo 64º, nº 1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais: “Deveres de lealdade, no interesse da
sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros
sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e
credores.” Os administradores estão obrigados a administrar a sociedade com a diligencia de um gestor
criterioso e ordenado com vista à promoção do fim e interesse social da sociedade.
8
O Professor Pedro Pais Vasconcelos aponta o interesse social como vetor fundamental do dever de
lealdade dos sócios. Não devem os sócios comportar-se de modo a frustrá-lo sob pena de deslealdade ao
fim comum visado pela sociedade.
9
O Professor Cassiano dos Santos nega também o reconhecimento dos deveres de lealdade societários,
reforçando a falta de fundamento dogmático válido e a falta do conteúdo dispositivo autónomo.

2
entre os sócios perante a sociedade nomeadamente no cumprimento das obrigações
assumidas, devendo os sócios atuar com respeito pelos demais e cumprir as vinculações
a que estão adstritos, a mais não sendo obrigados. Explica a título de exemplo, que as
regras constantes dos artigos 186.º, n. º1, alínea a) e 242.º, n. º1 refletem apenas a
consequência esperada de uma atuação que viole gravemente o dever geral de atuação
leal, conformado ao princípio da boa fé.

À data de hoje, o dever de lealdade existe em todos os tipos de sociedades embora com
relevos diferentes. Durante muito tempo, na Alemanha, este dever existia apenas nas
sociedades de pessoas, excluindo as sociedades anónimas. Claro é que, aceitando
genericamente o dever de lealdade em todas as sociedades, o conteúdo e extensão varia
consoante o tipo legal societário e a natureza personalística ou capitalística da sociedade,
assim como a posição e poder dos sócios. Desta feita, a lealdade será mais intensa numa
sociedade de pessoas do que nas sociedades de capitais e, ainda, mais intenso para os
sócios maioritários e de controlo do que para os minoritários. Quanto às sociedades de
sócio único, sobretudo nas sociedades por quotas unipessoais, a jurisprudência e parte da
doutrina respondia negativamente, justificando que a sociedade não tinha interesses
próprios diferentes do único sócio, ao passo que hoje o dever tem sido aceite.

Na evolução quer do plano jurisprudencial como nas querelas doutrinárias, os deveres de


lealdade conhecem diferentes campos de aplicação que, por sua vez, originaram
conteúdos específicos difusos (MARCUS LUTTER10): a lealdade dos sócios nas relações
entre si e com a sociedade, a lealdade da sociedade para com os sócios e, finalmente, a
lealdade requerida aos órgãos da sociedade. COUTINHO DE ABREU, por seu turno, não
faz uma distinção vincada destes deveres, realçando apenas que um dever de não atuar
em prejuízo ou de modo incompatível com o interesse comum a todos os sócios acaba
por redundar no interesse da sociedade. Desta forma, o interesse social é lesado quando
algum sócio pretende alcançar maior poder ou ganhos em prejuízo de outros sócios. No
entanto, não afasta a possibilidade de os sócios lesarem ilicitamente interesses de outros
sócios sem que haja simultânea lesão do interesse social, o que justifica a autonomização
de dois conceitos: dever de lealdade entre os sócios e o dever de lealdade para com a
sociedade. Para além destes deveres, podemos ainda identificar o dever dos sócios

10
Citado por António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 469

3
maioritários para com os minoritários, na medida em que não devem adotar condutas
prejudiciais aos interesses dos sócios minoritários com o intuito de os prejudicar ou causar
dano, assim como também devem os sócios minoritários, em prol da lealdade e fidelidade,
não exceder o poder de bloqueio, não impedir a constituição de um quórum necessário ou
abusar do direito à informação e discussão em assembleia geral.

Quanto ao interesse social de que tanto tem sido mencionado, no entendimento de


PAULO OLAVO CUNHA, não é um princípio estruturante da sociedade comercial, muito
embora represente o fim desejável e expectável prosseguido pela sociedade, com o
objetivo de proporcionar a todos os que nela intervêm (sócios, trabalhadores, clientes, in
maxime financiadores e fornecedores) um ganho com o resultado da atividade da
organização em causa11. Na análise da problemática do interesse social entram em
confronto as teses institucionalistas e contratualistas. Essencialmente, na primeira tese, o
interesse social é um interesse comum, não dos sócios mas de toda a coletividade em
torno da sociedade. Na segunda tese, o interesse da sociedade é o interesse comum dos
sócios enquanto tal. Não há dúvida que à data de hoje, tanto os mercados de capitais como
a globalização impulsionaram para a adoção generalizada da conceção do stakeholder
value.

Em relação às manifestações dos deveres de lealdade podemos encontrar vários exemplos


na lei: as deliberações abusivas para satisfazer o propósito de um dos sócios ou adquirir
vantagens em prejuízo da sociedade ou de outros sócios (artigo 58º, nº1, alínea b), por
exemplo, aumentos de capital injustificados ou reduções em momentos inoportunos12; a
sujeição de um sócio à exclusão por comportamento desleal ou gravemente perturbador
do funcionamento da sociedade cuja atuação possa causar prejuízos relevantes (artigo
242.º, nº1); obrigação do sócio de não exercer uma atividade concorrente à sociedade,
salvo expresso consentimento dos restantes sócios (artigo 180.º, n.º 1); a utilização de
informações societárias que possam prejudicar injustamente outros sócios ou a sociedade

11
CUNHA, Paulo Olavo, Direito das Sociedades Comerciais, 6ª Edição, 2016, p. 115
12
Destaca-se, a título de exemplo, o Acórdão de 18 de abril de 2023 (nº 9333/21), pelo seu carácter
hodierno, que anulou uma deliberação social aprovada em Assembleia Geral uma vez que a visada alteração
dos estatutos traduzia a excluía um dos sócios, violando assim o princípio da igualdade de tratamento (e
violação in casu do princípio da proporcionalidade carecendo de uma justificação objetiva e necessária) e,
consequentemente, a violação do dever de lealdade, não obstante a violação do princípio geral de sujeição
das deliberações sociais a um controlo material de conformidade com os deveres de lealdade da maioria
(Ana Perestrelo de Oliveira).

4
(artigos 181.º, n.º 5, 214.º, n.º 6 e 291.º, n.º 6). Outros exemplos: o dever de o sócio
maioritário não transmitir a participação a terceiro mal intencionado, principalmente
quando se antecipa a influência deste terceiro para prejudicar a sociedade; o dever da não
apropriação em benefício próprio das oportunidades de negócio da sociedade; a não
distribuição de lucros durante um prolongado período de tempo pode ser visto como um
abuso do direito ao lucro dos sócios que consubstancia uma violação do dever de
informação e lealdade dos sócios; o dever de não fazer uso abusivo do direito da
impugnação de deliberações sociais; e o dever de não divulgar factos potencialmente
lesivos para a sociedade que possa prejudicar o crédito da mesma, nomeadamente nas
sociedades com características de índole pessoal devido, sobretudo, à relação de
confiança que deve ser mantida e serenada entre os sócios (COUTINHO DE ABREU).

A violação da parte dos sócios do dever de lealdade comporta uma ilicitude que se pode
traduzir, nomeadamente, e consoante os casos, na anulabilidade da deliberação afetada,
em deveres de indemnizar ou na exclusão (artigo 242.º para as sociedades por quotas,
discute-se a eventual aplicação às SA) ou exoneração do sócio (artigo 58.º, n.º 1, alínea
b), como forma de tutela das minorias: o direito de sair face a determinada situação que
torne a presença na sociedade incomportável).

A título de nota conclusiva, parece-nos que o dever de lealdade ou fidelidade dos sócios
vai além do princípio da boa-fé. A lealdade, de modo geral, é a bitola da conduta à luz
dos princípios transversais à ordem jurídica. Não é por acaso que não foi exceção na
transposição para o Código das Sociedades Comerciais pelo Decreto-Lei nº76-A/2006,
nos termos da alínea b) do n. º1 do artigo 64.º. Embora neste caso associado aos
administradores das sociedades (sobretudo anónimas), a lealdade que se impõe é referente
aos interesses da sociedade, embora o legislador a tenha prolongado aos sócios e
stakeholders (em particular, trabalhadores, clientes e credores).

João Francisco da Silva Ribeiro


08/01/2024

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