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L I B E R D A D E

UM ULTIMATO A TODA FORMA DE VIDA SEM ESCOLHAS

Por muito tempo se sustentou uma crença segundo a qual a indeterminação da


vontade devia ser compreendida como condição indispensável para a realização da
liberdade. Para tal sustentação (teórica) foi preciso antagonizar essa noção ao conceito de
moralidade, razão pela qual o ente livre deveria ser concebido sem uma metafísica. Sendo
assim, entendia-se que toda engenharia da moral era construtora de cárceres sociais para
vontade, um fenômeno antropológico subjetivo que representa o controle da liberdade. A
moralidade era, pois, de natureza social, enraizada em uma cultura religiosa. Acreditava-
se, portanto, que enquanto a moral instituía regras para monitorar e preservar a ‘ordem
funcional’ de uma sociedade, a liberdade era apresentada como uma espécie de ameaça
potencial com vocação de transgredi-la. A ‘autorreferencialidade’, deste modo, passou a
ser considerada uma base ontológica da própria liberdade, uma vez que fora dessa
condição (autorreferencialismo) o ente livre seria facilmente suprimido.
Vários matizes filosóficos propuseram modos para se pensar a vida livre. O
anarquismo, por exemplo, emergiu como um modelo alternativo de vida social no qual
opera uma forma individual de ‘mobilidade licenciosa’. A ordem constitui um
componente refratário letal para a sobrevivência do modelo de vida em sociedade
proposto por ele. O anarquismo preconiza a crença na existência de uma sociedade sem
lei que deve ser, em tese, composta de indivíduos descomprometidos com a moral,
vivendo sem regras (sociais), e ancorados pelo valor fundante de modos de vida
disfuncionais e incondicionados. No anarquismo, a ordem tem um sentido destrutivo para
o instinto de desconstrução de todos os limites estabelecidos pelo senso de preservação
da vida em sociedade. Vale a pena ressalvar aqui que o 'autonomismo' é compreendido
como um instrumento utilizado para ferir de morte a vitalidade das instituições sociais
(tradicionais), de quaisquer naturezas existentes (heteronomia). Esse é o legado que esse
conceito recebe de sua herança iluminista. Nele, o instinto de sobrevivência dos
indivíduos consiste na supressão de toda racionalidade de submissão.
Seria contraditório, pois, pensar em ‘vida com escolhas’ numa configuração social
de existência fundamentada na total negação da validade normativa de uma moralidade
coletiva. Com a negação da moral, as escolhas passariam a ser instintivas e destituídas de
senso ponderável. O anarquismo representa a morte das escolhas responsáveis pela via da
validação deliberada de uma ‘liberdade sem metafísica’. A anomia deixa de ser
compreendida como a ‘negação da lei’, sendo, portanto, ressignificada subjetivamente
(interiorização da norma): ‘minha vida, minhas regras’, e ‘meu corpo, mando eu’. As
regras que se negam aí não são de natureza hedônica, mas sim ascéticas e enraizadas em
tradições padronizadoras de comportamento social. Toda racionalidade operante que se
epifaniza (neste âmbito) busca suprir a fome de beleza que o primitivismo instintual
reivindica para vitalizar a mecânica de consumismo de um hedonismo cultural
(generalizado). Este ideal de vida feliz anatematiza qualquer padrão cultural coletivo que
exija certo grau de renúncia hedônica do indivíduo que não esteja disposto abrir mão
(dele).
Mas a autonomia da escolha moral sempre foi condição (sine qua non) para o ideal
moral de pessoas que optam por viver inseridos em sociedades democráticas. A liberdade
preconiza o protagonismo das escolhas individuais. Entretanto, duas formas civilizatórias
de vida marcam o mundo contemporâneo: 1) a ascética e 2) a hedônica. Uma exige a
supressão da liberdade em nome de um ideal de igualdade que logra homogeneizar todo
layout social; a outra tem na liberdade o seu lastro moral fundacional por meio do qual a
vida é apresentada como ‘possibilidade e diversidade’. A primeira é representada por um
tipo cultural de organização social em que acontece uma (des)estratificação coletiva de
benefícios morais (ascetismo cultural), o que implica a despersonalização das escolhas
individuais: o Estado é quem assume essa prerrogativa e esse protagonismo. Ele passa a
deter o monopólio do controle absoluto (no sentido hobbesiano). As sociedades não
democráticas apresentam uma forma de vida destituída de escolhas responsáveis ... Já as
sociedades legitimamente democráticas figuram um horizonte diverso em virtude das
possibilidades e das obras criativas associadas à mobilidade de indivíduos livres.
A liberdade nelas (sociedades democráticas) se define como escolha moral,
laboriosidade e mobilidade auto transformadora. Ela permite estabelecer uma relação de
identificação entre ‘a obra e seu autor’. O indivíduo possui o status de sujeito e
protagonista quando exerce escolhas no ambiente livre. Por causa dela (liberdade), todo
layout social se torna heterogêneo, diversificado, instigante, competitivo (no bom
sentido), desentediante, com possibilidade de alterar a rotina da vida cotidiana, o que
permite a associação das variáveis ‘trabalho, identidade e criatividade’ a fim de que se
valorize toda iniciativa espontânea realizada por indivíduos livres. O ideal de igualdade
das sociedades ‘não’ democráticas, no entanto, tem efeito ‘despersonalizante’ ... Pois não
valoriza qualquer mobilidade criativa e despredicaliza a identidade social da pessoa
humana. As escolhas, no entanto, sempre permitem que a esfera do cotidiano seja repleta
de mecanismos que torne a esperança uma possibilidade real (e não utópica) de renovação
e conversão da pessoa humana.
Por isso, o conceito de ordem deve ser entendido em perspectiva democrática, haja
vista que ele tem na liberdade a condição para que a pessoa humana exerça suas escolhas
indiviuais sem comprometer ou ameaçar de ruptura seus vínculos sociais. A liberdade
tem sentido duplo: 1) auto confrontação do Eu frente a necessidade de auto renovação
continua diante de uma realidade que a valida e 2) adaptação permanente ante às novas
demandas que as lógicas de interação sugerem, cotidianamente. Ademais, por causa da
liberdade é que as escolhas pessoais podem ser realizadas com o fim de tornar profícuo o
espaço em que a reflexão livre sobre vida (social e individual) se torne um bem simbólico
compartilhado por todos ou pela maioria. A liberdade de pensamento não pode se revestir
de ameaça letal a uma ordem jurídico-social: ela existe para tornar viável o ‘consenso’ de
uma realidade que comporta a diversidade. Na supressão dessa forma de liberdade, a
ordem democrática é deslegitimada à medida que o fenômeno social deixa de ter caráter
dialético, inovador e (re)adaptativo.
Proteger a ordem social é um ideal do ego da liberdade à medida em que as
escolhas morais dos indivíduos são realizadas com senso de responsabilidade, cujo
objetivo é garantir a coexistência dos contrários sem que se produza grandes prejuízos às
partes envolvidas. Essa é, pois, uma autêntica antropologia da justiça. Sendo assim,
‘liberdade e justiça’ foram postas como colunas da democracia (ocidental): só é possível
sustentar a ordem quando o equilíbrio operacional desses dois valores é mantido de modo
invariável, permanente e inatacável. A liberdade é a estrada por meio da qual a justiça
caminha com o objetivo de garantir a ordem e estabelecer deveres sociais sem suprimir
direitos individuais. Por essa razão é preciso valorizar o uso das escolhas conscientes
feitas em condições democráticas, ou seja, no ambiente em que a liberdade é considerada
condição fundamental, fundante e fundacional de uma ordem social. A liberdade é o
primeiro valor moral apresentado pela Bíblia judaico-cristã através da qual se preconiza
uma antropologia da criação no livro de Gênesis (Bereshit).
Tão somente por causa da liberdade que ‘toda forma de vida sem escolha
individual’ é colocada em situação de ULTIMATO: ou fazemos nossas escolhas
(individuais), ou nos tornamos escravos de um coletivismo despersonalizante. Cada qual
é quem decide o que/quem quer ser, e a forma como se quer viver. Essa escolha é
inalienável e, suas consequências, intransferíveis. A democracia é o único regime social
que garante o monitoramento contínuo do desdobramento escatológica das escolhas feitas
cotidianamente por cada pessoa. Por isso, a ‘liberdade’ deve ser apresentada nela como a
‘alma do corpo social’. Quando ela é tirada, a ‘vida’ do corpo se esvai. Por essa razão é
que, na democracia, os indivíduos devem ser tratados como ‘adultos’, pessoas
responsáveis pelas decisões que tomam (individualmente) no dia a dia. Ao ser pensada
dessa forma, a liberdade acaba produzindo uma consciência individual na qual comporta
a permanência de uma ‘microfísica da justiça’. Cada pessoa, portanto, deve ser pensada
como uma ‘unidade complexa’, vivendo responsavelmente num equilíbrio moral a fim de
minimizar os efeitos patogênicos previstos para quem vive sem ponderar num mundo de
escolhas de uma ‘sociedade hipercomplexa’.

ANDERSON CLAYTON PIRES


Doutor em Sociologia (UFRGS) e doutor em Hermenêutica (PPG/EST)
Pastor luterano e professor de pós-graduação na PUC Goiás

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