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Função social dos juros sobre o capital próprio – JCP

Os juros sobre o capital próprio são um mecanismo para reduzir o impacto na


inflação na situação econômico-financeira das empresas, e não um benefício
fiscal

Colunista convidado: Edison Carlos Fernandes, doutor em Direito pela


PUC/SP, professor do CEU-IICS Escola de Direito e da FGV Direito SP
(GVlaw)

Dizem que, em razão de o Brasil ter tido uma das maiores inflações do mundo,
durante um longo período, os profissionais e os acadêmicos brasileiros
desenvolveram o melhor sistema de correção monetária de balanço do mundo.
No âmbito da implantação do Plano Real, que combateu de maneira eficaz a
gigantesca inflação da época, principalmente por anular a chamada inércia
inflacionária, não houve opção diferente de extinguir a correção monetária de
balanço. Acontece que a situação econômico-financeira das empresas continuou
sujeita aos impactos da inflação, motivo pelo qual, como contrapartida à extinção
da correção monetária de balanço, a legislação tributária passou a assegurar a
dedutibilidade, ao menos de forma limitada, da despesa relativa a juros sobre o
capital próprio.

A inflação impacta os itens monetários das empresas, normalmente, registrados


em contas do ativo circulante e do passivo circulante. Considerando que o
cálculo e a demonstração dos efeitos da inflação sobre esses itens (circulantes)
podem ser bastante complexos, a legislação brasileira, à época, regulamentou a
correção monetária de balanço pela atualização dos itens não monetários. Dessa
forma, o procedimento adotado foi o ajuste monetário das contas do antigo ativo
permanente, atualmente os ativos investimento, imobilizado e intangível e do
patrimônio líquido.

Quando as demonstrações contábeis da empresa apresentam o ativo permanente


superior ao patrimônio líquido, significa que o ativo circulante – exposto à
inflação – é menor do que o passivo circulante – exposto à inflação. Com isso, a
exposição inflacionária dos ativos é inferior à exposição inflacionária dos
passivos. Portanto, a empresa teve um ganho com a inflação, porque o seu
passivo se deteriorou mais do que seu ativo.

Nesse sentido, a correção monetária do ativo permanente tem como contrapartida


uma receita, enquanto a correção monetária do passivo, uma despesa. No caso
descrito acima (ativo circulante menor que passivo circulante), o ganho é
representado pelo lucro inflacionário: receita de correção monetária subtraída da
despesa de correção monetária. A solução adotada simplificava a correção
monetária de balanço e, por decorrência, a demonstração dos efeitos da inflação
para a situação econômico-financeira da empresa.

A posição inversa também cumpria o seu objetivo. O ativo permanente menor do


que o patrimônio líquido pressupõe que os ativos expostos à inflação (circulante)
são maiores do que os passivos expostos à inflação (circulante). O registro da
correção monetária de balanço, então, mostrará uma despesa superior à receita,
gerando uma perda com a inflação.

Vejam-se as simulações abaixo, considerando o período de 2009 a 2014,


considerando a inflação acumulada (IPCA) de 40,34%:

MARISA1 NATURA2 TOTVS3


Investimento 2 - 10
Imobilizado 240.314 492.256 32.887
Intangível 51.772 82.740 613.502
TOTAL 292.088 574.996 646.399
Atualização - RECEITA 117.770 231.838 260.628

Capital 650.642 547.240 425.344


Lucros 53.475 611.304 78.104
AAP (DRA) - (18.723) (1.977)
TOTAL 704.117 1.139.821 501.471
Atualização - DESPESA 283.900 459.576 202.193

Resultado CMB (166.130) (227.737) 58.435

Com a extinção da correção monetária de balanço, esses efeitos deixaram de ser


apresentado, mas, o efeito mais relevante, foi o impacto na apuração do resultado
do exercício. Por força de lei, a apuração do lucro ou do prejuízo deve seguir a
escrituração contábil. O resultado apurado é considerado para todos os efeitos
jurídicos, tais como: distribuição de lucros, garantia de credores, cumprimento de
cláusulas contratuais (covenants), entre outros.

Acontece que desde a extinção da correção monetária de balanço, em 1995, até a


entrada em vigor dos International Financial Reporting Standards – IFRS como
marco regulatório da contabilidade brasileira, em 2008, foi permitida a
reavaliação dos ativos registrados como permanentes – conquanto a contrapartida
da reavaliação de ativos fosse registrada em conta do patrimônio líquido, o valor

1
Empresa de varejo.
2
Indústria.
3
Empresa de tecnologia (prestação de serviço).
correspondente era expressamente excluído do cálculo do limite de
dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio pela lei tributária. Os itens
passíveis de correção monetária do lado direito do balanço patrimonial (ativo
permanente) estava garantido, por meio da reavaliação; porém, o mesmo não
aconteceria com o lado direito do balanço (patrimônio líquido). Para reequilibrar
essa situação, a legislação tributária previu a possibilidade de dedução dos juros
sobre o capital próprio, ainda que de maneira limitada.

A permissão para a reavaliação dos ativos pode ser restabelecida a qualquer


momento, ainda que por lei, pois a versão original do padrão internacional de
contabilidade (IFRS) a admite. Se e quando isso acontecer, tratar-se-á de
avaliação a valor justo dos ativos, com contrapartida à conta de resultado
(receita). Com isso, o efeito dessa “reavaliação” se fará sentir no patrimônio
líquido somente maneira indireta e pelo saldo líquido do resultado, o que não
interfere substancialmente no cálculo do limite de dedutibilidade dos juros sobre
o capital próprio.

Convém, então, esclarecer que o referido limite de dedutibilidade é instituído de


maneira absoluta com base na variação da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP.
No mesmo período de 2009 a 2014, essa taxa ficou em aproximadamente
39,02%. Dada a proximidade das taxas – inflação e TJLP –, é lícito concluir pela
adequação desse índice como limite à dedutibilidade da despesa financeira
relativa aos juros sobre o capital próprio.

Note-se que a remuneração dos juros sobre o capital próprio não tem a natureza
jurídica de um benefício fiscal. Trata-se de um procedimento destinado a reduzir
o impacto da inflação nas demonstrações contábeis, e, por decorrência, no
resultado, das empresas brasileiras. Sua natureza jurídica é, no âmbito do direito
contábil, o registro do impacto inflacionário sobre a situação econômico-
financeira da empresa.

Por conta disso, a inclusão da remuneração dos juros sobre o capital próprio no
relatório sobre Erosão da Base de Cálculo e Transferência de Lucros (conhecido
pela expressão inglesa Base Erosion and Profit Shifting – BEPS), elaborado pela
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, entre as
operações controladas, é absolutamente indevida. A previsão de dedutibilidade
da “despesa financeira” representativa dos juros sobre o capital próprio não se
enquadra como medida sujeita ao combate da competitividade fiscal
internacional, simplesmente porque não é capaz de gerar desvio de comércio ou
de sede de empresa que atue no âmbito global. Considerando o direito tributário
internacional, a discussão que existe com relação aos juros sobre o capital
próprio reside na classificação para efeito de aplicação dos acordos de dupla
tributação, o que não é o foco deste texto.
Do ponto de vista da legislação tributária nacional, esse pagamento representa
uma despesa financeira dedutível do lucro real e da base de cálculo da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL (respeitados os limites
legais), estando sujeito ao Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF. Tendo em
vista que o destinatário da remuneração do capital próprio são os sócios, a lei
estabeleceu que eventual pagamento a esse título seria imputado aos dividendos
mínimos obrigatórios. De qualquer maneira, o registro dessa despesa financeira,
de modo a reequilibrar o impacto inflacionário nas demonstrações contábeis das
empresas, não exige, necessariamente, o seu pagamento aos sócios, podendo o
respectivo valor ser mantido no caixa corporativo.

Atualmente, em razão da crise econômica pela qual passamos – e diria mais, pelo
embate ideológico pelo qual passamos –, a revogação da dedutibilidade da
despesa financeira relativa aos juros sobre o capital próprio tem sido apontada
como meio de aumento da arrecadação tributária. E o argumento que tem sido
utilizado para defender essa medida é o equívoco de considerar tal dedutibilidade
como um benefício fiscal. A função social dessa despesa é, em verdade,
reequilibrar a situação econômico-financeira das empresas, diante dos impactos
da atualização monetária.

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