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Como sempre, este livro é para a minha família.

E também para quem está do lado de fora olhando para dentro.


SUMÁRIO

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Argumento

PARTE 1: CEUNON
Maddentide
O Festim Abundante
Garfo e faca
Conclave
Voo de dragão

PARTE 2: GIL’EAD
Território hostil
Perguntas para uma gata
Criaturas tumulares
Histórias de pescador
Boca de Lodo
Luta e labuta
Em defesa de mentiras
Máscaras
Uniformes
Andando de mansinho...
A porta de pedra
Caminhos escuridão adentro
Confronto com uma gata
Duelo de inteligências
A caixa de confusão
Consequências
Exílio

PARTE 3: NAL GORGOTH


O vilarejo
Bachel
A Torre de Pederneira
Sonhos e presságios
Recitações de fé
A Corte dos Corvos
Presa e espada
Clemência de mãe
Ponto de ruptura
Agitação
Expectativa
O poço do sono inquieto
Pesadelo
Uvek
Obliteração
Sonhando acordado
Fragmentos
Sem defeitos
Escolhas
Qazhqargla
Uma questão de fé
Fumaça negra
Fogo e vento
Grieve

PARTE 4: OTH ORUM


Criaturas da escuridão
Liberdade da desgraça
Defendendo o centro
Islingr

PARTE 5: REUNIÃO
Aceitação

ADENDOS
Nomes e idiomas
SOBRE A ORIGEM DOS NOMES
PRONÚNCIA
GLOSSÁRIO
RUNAS HUMANAS
Posfácio e agradecimentos
Índice
Argumento

Eis a terra da Alagaësia, vasta e verdejante, cheia de mistérios. Aqui há montanhas


que tocam as estrelas, florestas tão extensas quanto um oceano, desertos áridos e
muito mais. Por essas terras, encontram-se diversos povos e criaturas, de humanos
vigorosos a elfos anciões, de anões das profundezas a Urgals guerreiros. E, acima
de tudo, dragões — brilhantes e belos e assustadores em sua antiga glória.
Durante o século passado, o rei Galbatorix governou como um tirano na maioria
das terras habitadas pelos humanos e foi um terror para as outras raças. Para fazer
cumprir sua vontade, os dragões foram derrotados a ponto de apenas alguns
restarem.
Os corajosos que se opunham a Galbatorix fugiram para o interior, onde vieram a
tomar o nome de Varden. Ali ficaram, com pouca esperança de vitória, até que o
dragão Saphira nasceu para o humano Eragon.
Juntos, e sob a liderança de lady Nasuada, eles marcharam contra o império de
Galbatorix.
Agora o rei está morto, a guerra se encerrou, e o reino entrou em um processo de
renovação.
No entanto, sombras começam a se agitar e surgem rumores sobre
acontecimentos estranhos nos limites de Alagaësia. E há um homem que busca
descobrir a verdade a respeito deles...
Defender o centro em meio a uma tempestade,
Atacar, se manter firme ou fugir?
É uma questão que incomoda até mesmo
A mente mais aberta. Um bosque de faias
Cresce tão alto e forte quanto o solitário
Carvalho. A honra exige, o dever obriga,
E o amor seduz, mas a personalidade insiste.

— Dilemas, 14-20
Atten, o Ruivo
CAPÍTULO I

Maddentide

V ocê vai sozinho?


Murtagh olhou para Thorn com uma expressão intrigada. O dragão vermelho
estava sentado e agachado ao lado dele no topo da colina rochosa onde haviam
pousado. No entardecer, as escamas do animal cintilavam de forma suave, contida,
como carvão coberto por cinzas em uma fogueira, esperando uma brisa soprar para
reacender e brilhar.
— Como assim? Você iria comigo?
Um sorriso perigoso rasgou as mandíbulas de Thorn, mostrando fileiras de dentes
brancos afiados, cada um tão comprido quanto uma adaga.
Por que não? Eles já nos temem. Deixe que gritem e corram com a nossa
chegada.
Os pensamentos do dragão ressoaram como sinos na mente de Murtagh. Ele
balançou a cabeça enquanto desafivelava a espada, Zar’roc, da cintura.
— Você adoraria isso, não é?
As mandíbulas de Thorn se abriram mais um pouco, e sua língua rebarbada
percorreu a boca.
Talvez.
Murtagh imaginou na mesma hora Thorn sobrevoando baixo uma rua estreita,
arranhando as laterais dos prédios com os ombros encouraçados, quebrando vigas,
persianas e cornijas enquanto as pessoas fugiam diante dele. Sim, Murtagh sabia
como aquilo terminaria: com fogo e sangue e um círculo de destruição.
— Acho melhor você esperar aqui.
Thorn agitou as asas sedosas e soltou uma tosse do fundo da garganta. Seu
equivalente a uma risada.
Você poderia usar magia para alterar a cor das minhas escamas, e poderíamos
fingir ser Eragon e Saphira. Não seria uma boa brincadeira?
Murtagh bufou enquanto pousava Zar’roc em um trecho de grama seca. Ficou
surpreso ao descobrir que o dragão tinha um senso de humor mordaz. Não
percebera isso imediatamente quando se uniram, em parte por causa da juventude
de Thorn e em parte por causa das… circunstâncias da ocasião.
Por um momento, Murtagh ficou mais sério.
Não? Bem, então, se você mudar de ideia...
— Você será o primeiro a saber.
Hum. Com a ponta do focinho, Thorn cutucou a espada. Eu gostaria que você
levasse sua presa. Sua garra. Sua agonia afiada.
O dragão estava nervoso. Murtagh sabia disso porque era sempre a mesma coisa
quando se afastava, mesmo que por pouco tempo.
— Não se preocupe. Eu vou ficar bem.
Uma baforada de fumaça clara subiu das narinas dilatadas de Thorn.
Não confio naquele sujeito sorrateiro cheio de dentes.
— Não confio em ninguém. A não ser em você.
E nela.
Murtagh vacilou ao se aproximar dos alforjes pendurados na lateral do corpo de
Thorn. Uma imagem dos olhos amendoados de Nasuada ressurgiu em sua mente.
Maçãs do rosto. Dentes. Partes e pedaços que não formavam um todo. Uma
lembrança do cheiro dela, acompanhada por desejo e sofrimento, uma ausência
dolorida de possibilidades perdidas.
— Sim.
Ele não conseguiria mentir para Thorn, mesmo se quisesse. Estavam unidos
demais para isso.
O dragão fez a gentileza de reconduzir a conversa para um tema mais seguro.
Você acha que Sarros farejou algo interessante?
— Seria melhor se não tivesse farejado. — Murtagh retirou um novelo de
barbante marrom do alforje.
Mas e se ele farejou? Voaremos em direção à tempestade ou para longe dela?
Um sorrisinho apareceu nos lábios de Murtagh.
— Isso depende da violência da tempestade.
Talvez seja difícil saber. O vento é capaz de mentir.
Murtagh mediu um pedaço de barbante.
— Então continuaremos farejando por aí até não haver dúvida.
Hum. Desde que ainda possamos mudar de rumo, se necessário.
— Vamos esperar que sim.
O olho próximo de Thorn — um rubi incrustado que brilhava com uma luz
interna intensa — permaneceu fixo em Murtagh, que cortava o barbante para
amarrar o guarda-mão de Zar’roc ao cinto e à bainha, de modo que a espada
carmesim não caísse. Depois, ele colocou a arma no alforje, onde estaria segura e
escondida, e voltou para ficar diante de Thorn.
— Estarei de volta antes do amanhecer.
O dragão se agachou um pouco mais, como se estivesse se preparando para
receber um golpe. Com as garras curvas, amassou o chão como um gato grande
amassando um cobertor, e pedrinhas voaram e quebraram com uma força explosiva.
Um zumbido baixo, quase um gemido, escapou de seu peito.
Murtagh pôs a mão na testa irregular de Thorn e se esforçou para transmitir uma
sensação de calma e confiança ao dragão. Acordes sombrios de angústia ecoaram
nas profundezas da mente de Thorn.
— Eu vou ficar bem.
Se precisar de mim…
— Você estará lá. Eu sei.
Thorn dobrou o pescoço, e as garras ficaram imóveis. Murtagh sentiu uma
determinação inflexível, ainda que frágil, reverberar por sua mente.
Eles se entenderam.
— Tome cuidado. Fique de olho em qualquer pessoa que possa tentar se
aproximar de você sorrateiramente.
Outro zumbido emanou do peito de Thorn.
Murtagh puxou o capuz da capa para cobrir a cabeça e começou a descer a
encosta da colina, escolhendo um caminho entre pedras solitárias e grupos de
arbustos espinhosos.
Ele olhou para trás uma vez e viu Thorn, ainda agachado no topo da colina,
observando-o com olhos semicerrados.

Um homem com um dragão nunca estava sozinho de verdade.


Foi o que Murtagh pensou enquanto avançava para oeste a passos longos. Não
importava quantas léguas os separassem, uma parte dos dois sempre permanecia
conectada, mesmo que não fossem capazes de ouvir os pensamentos nem sentir as
emoções um do outro. Ambos eram unidos pela magia mais antiga, e nunca se
livrariam dela até que um deles morresse.
No entanto, a magia não era o único vínculo dos dois. As experiências que
compartilharam — as agruras, os ataques mentais, a tortura — foram tão intensas,
tão singulares em sua natureza, que Murtagh achava que ninguém mais poderia
realmente entender o que haviam sofrido.
Havia certo conforto em saber que, aonde quer que ele fosse e o que quer que
fizesse, Thorn sempre estaria com ele. Além do mais, o dragão entenderia. Talvez
desaprovasse de vez em quando, mas mesmo assim com empatia e compaixão. E
vice-versa.
Havia também uma sensação de confinamento. Nunca podiam fugir um do outro.
Mas Murtagh não se importava. Estava cansado de ficar sozinho.
A terra foi descendo sob seus pés, até que, depois de vários quilômetros, chegou
à Baía do Fundor. Ali, à beira d’água, ficava a cidade de Ceunon: uma coleção de
prédios de paredes irregulares, escurecidos por sombras, exceto por uma lamparina
ou vela aqui e ali — joias quentes contra a noite que avançava. Barcos de pesca
enfileirados e com as velas recolhidas flutuavam ao longo dos cais de pedra junto
com três embarcações de alto-mar com mastros extensos e cascos largos, capazes de
sobreviver à passagem pela extremidade norte da península que separava a baía do
mar aberto.
Do outro lado da baía ficavam as montanhas da Espinha, serrilhadas, ondulantes
e obscurecidas pela névoa, e a água salgada que as separava parecia escura, gelada e
pouco amigável.
Nuvens cinzentas pairavam sobre a água e a terra, e um silêncio abafado
suavizava o som dos passos de Murtagh.
Um toque frio na mão o fez olhar para cima.
Grandes flocos de neve tinham começado a cair: a primeira neve do ano. Ele
abriu a boca e pegou um na língua. O floco se derreteu como uma lembrança
agradável, fugaz e insubstancial.
Mesmo tão ao norte, era cedo demais para nevar. O Maddentide havia ocorrido
dois dias atrás, e a data marcou a primeira leva de bergenhed, o peixe prateado de
escamas duras que invadia a baía todo outono. Os cardumes eram tão grandes e
densos que quase dava para caminhar sobre eles, e Murtagh tinha ouvido falar que,
no auge, os peixes se jogavam no convés dos barcos, levados à loucura pela
intensidade do desejo de desova.
Ele acreditava que havia uma lição nesse fato.
Em geral, a neve levava até um mês ou dois depois do Maddentide. Estar caindo
tão cedo significava que um inverno rigoroso e brutal estava a caminho.
Ainda assim, Murtagh gostava da queda suave dos flocos e curtia a frieza do ar.
Era a temperatura perfeita para andar, correr ou lutar.
Poucas coisas eram piores do que lutar pela própria vida sentindo tanto calor a
ponto de desmaiar.
Sua pulsação acelerou. Murtagh jogou o capuz para trás e começou a caminhar
rápido, sentindo a necessidade de andar mais depressa.
Ele manteve um ritmo constante ao entrar nas planícies ao redor de Ceunon,
passando por riachos e bosques, sobre cercas de pedra e através de campos de
cevada e centeio prontos para a colheita. Ninguém o notou, exceto o cão no portão
de uma casa de fazenda, que lhe deu um uivo indiferente.
Para você também, pensou Murtagh.
A conexão com Thorn enfraqueceu com a distância aumentando entre eles, mas
não desapareceu. O que foi um alívio para Murtagh. Ele se sentia tão nervoso
quanto Thorn quando estavam separados, embora se esforçasse para esconder o
sentimento, não querendo deixar o dragão ainda mais preocupado.
Murtagh gostaria de ter pousado mais perto de Ceunon. Se precisasse de ajuda,
cada segundo seria importante. No entanto, o risco de alguém avistar o dragão era
grande demais. Era melhor manter distância e evitar um confronto com as forças
locais.
Ele virou o pescoço para alongá-lo. Andar a pé — com os pulmões cheios de ar
limpo e fresco, o coração batendo em um ritmo rápido e sustentável — era bom
depois de passar a maior parte do dia montado em Thorn. Sentia um pouco de dor
nos joelhos e nos quadris. Suas pernas não eram tortas como as de muitos dos
soldados da cavalaria de Galbatorix, mas, se continuasse a passar muito tempo em
cima de Thorn, elas poderiam acabar assim. Será que era inevitável ao ser um
Cavaleiro de Dragão?
Murtagh deu um sorriso torto.
A ideia de famosos Cavaleiros de Dragão, principalmente élficos, com pernas
arqueadas como as de um lanceiro veterano era divertida. Mas ele duvidava que
fosse o caso. Era provável que os Cavaleiros tivessem uma maneira de neutralizar o
efeito de estar na sela e, de todo modo, quando um dragão chegava ao seu tamanho
máximo, ficava impossível montar neles com uma perna de cada lado, como se
fazia em um cavalo. Shruikan — o montanhoso dragão negro de Galbatorix — era
enorme. Para voar com ele, o rei instalara um pequeno pavilhão, em vez de uma
sela, em seus ombros enormes.
Murtagh estremeceu e parou perto de uma árvore atingida por um raio. Um
arrepio súbito percorreu seus braços e suas pernas.
Ele respirou fundo e depois de novo. Galbatorix estava morto. Shruikan estava
morto. Eles não tinham poder sobre ele ou qualquer pessoa que ainda vivesse.
— Estamos livres — sussurrou Murtagh.
Ele sentiu um calor reconfortante, como um abraço distante, vir de Thorn.
Cobriu a cabeça com o capuz mais uma vez e retomou a caminhada.

Quando chegou à estrada costeira ao sul de Ceunon, Murtagh parou atrás de uma
sebe próxima e olhou por cima dela. Para seu alívio, a estrada estava vazia.
Murtagh correu em direção à massa enorme e disforme da cidade ao norte. A luz
fraca filtrada pelas nuvens estava quase desaparecendo, e ele queria estar em
Ceunon antes que caísse a noite.
Rastros fundos de carroças abriam sulcos na estrada desgastada, e montinhos de
estrume de vaca o impediam de andar em linha reta por mais que poucos passos.
Uma fina e delicada camada de neve estava se acumulando no chão, fazendo-o se
lembrar das rendas decorativas que as damas usavam em eventos importantes na
corte.
Ele diminuiu a velocidade ao se aproximar da muralha externa de Ceunon. As
fortificações eram robustas e bem construídas, ainda que não tão altas quanto as de
Teirm ou Dras-Leona. A argamassa entre os blocos de pedra negra áspera não
deixava brechas entre eles, e a muralha tinha um batente no ângulo correto na parte
inferior, o que ele apreciou.
Não que qualquer um desses detalhes importasse se a pessoa estivesse
enfrentando um dragão ou um Cavaleiro.
Dois vigias estavam apoiados em suas lanças, cada um de um lado do portão sul
de Ceunon. Murtagh olhou para as ameias e os balestreiros acima. Nenhum arqueiro
fora postado na passarela da murada.
Que desleixo.
Ao se aproximar, Murtagh viu os vigias se empertigarem e deixou sua capa se
abrir para mostrar que estava desarmado.
Um baque metálico soou quando os vigias cruzaram as lanças.
— Quem vem lá? — perguntou o homem à esquerda.
Ele tinha um rosto como uma rutabaga de inverno, com um narigão cheio de
vasos sanguíneos estourados e um hematoma amarelo sob o olho direito.
— Apenas um viajante aproveitando o Maddentide — disse Murtagh em um tom
tranquilo. — Vim comprar bergenhed defumado para meu patrão.
O homem à direita o olhou de cima a baixo com desconfiança. Ele parecia ser
primo do Narigão.
— É o que você diz. De onde vem, viajante? E que nome usa?
— Tornac, filho de Tereth, e eu venho de Ilirea.
A menção da capital enrijeceu um pouco as costas dos vigias. Eles se
entreolharam, e Narigão cuspiu no chão. O escarro derreteu um pedaço de neve.
— É muito chão para se andar a pé, sem bolsa nem cavalo, para alguns alqueires
de peixe.
— Verdade — concordou Murtagh —, mas minha égua quebrou a perna ontem à
noite. Pisou em um buraco de texugo, coitada.
— E você deixou sua sela? — disse o homem à direita.
Murtagh deu de ombros.
— Meu patrão paga bem, mas não o suficiente para eu carregar uma sela e
alforjes por meia Alagaësia, se você me entende.
Os vigias deram sorrisinhos.
— Sim. Entendemos — respondeu Narigão. — Você tem hospedagem garantida?
Dinheiro para uma cama?
— Tenho o suficiente.
Narigão concordou com a cabeça.
— Certo. Não queremos estranhos dormindo em nossas ruas. Se descobrirmos
que você está fazendo uso delas, metemos o pé no seu traseiro. Se descobrirmos que
está arrumando confusão, botamos você para fora. Da meia-noite até a quarta
vigília, os portões ficam fechados, e eles não abrirão para nada além da Rainha
Nasuada em pessoa.
— Parece razoável — disse Murtagh.
Narigão grunhiu, e os vigias afastaram as lanças. Murtagh fez um aceno
respeitoso de cabeça, passou entre eles e entrou na cidade.

Murtagh coçou o queixo ao entrar em Ceunon.


Ele havia deixado a barba crescer no início do ano, para não ser reconhecido com
facilidade. Parecia estar funcionando; até então ninguém o havia abordado. Mas a
barba coçava, e ele não estava disposto a deixá-la crescer o suficiente até que os
pelos ficassem macios e sedosos. A aparência desleixada o incomodava.
Apará-la com a adaga se provara impraticável, e ele relutava em recorrer à magia,
uma vez que moldar a barba com nada mais do que uma palavra e um resultado
imaginário era uma perspectiva incerta — sem contar que temia que sua pele fosse
arrancada junto. Além disso, havia uma satisfação artesanal em realizar a tarefa à
mão.
Ele comprara uma tesoura de ferro de um funileiro nos arredores de Narda. Ela
funcionava bem, contanto que a mantivesse afiada, bem lubrificada e livre de
ferrugem. Mesmo assim, Murtagh achava que conservar a barba era quase tão
incômodo quanto fazê-la.
Talvez ele a tirasse depois de ir embora de Ceunon.
A rua principal era uma faixa lamacenta com o dobro da largura da estrada sul.
As estruturas dos prédios eram de madeira em enxaimel, com reboco caiado de
branco entre as vigas. As vigas em si estavam manchadas de preto pelo alcatrão de
pinho, que protegia contra a maresia da baía, e muitas eram decoradas com entalhes
de serpentes marinhas, pássaros e svartlings. Havia cata-ventos de ferro que quase
não giravam no topo de cada telhado íngreme, e uma cabeça de dragão entalhada
ornava o topo da maioria das casas.
Murtagh se obrigou a parar de coçar.
Ele poderia contar toda a história da cidade, desde a fundação até o presente.
Murtagh sabia que os entalhes eram do estilo geralmente chamado de kysk,
inventado por algum artesão anônimo há mais de um século. Sabia que a pedra
negra nas muralhas externas viera de uma pedreira a menos de vinte quilômetros a
nordeste. E sabia que o bom povo de Ceunon tinha um medo mortal da floresta dos
elfos, Du Weldenvarden, e fazia de tudo para que as fileiras de pinheiros negros não
invadissem seus campos. Tudo isso e muito mais ele sabia.
Mas para quê? Murtagh recebera a melhor educação do reino, e mesmo assim a
vida dele se tornara uma jornada difícil, na qual um ouvido atento e mãos rápidas
significavam mais do que qualquer aprendizado acadêmico. Além disso, havia uma
diferença muito grande entre entender como as coisas são e quais as coisas que
você precisa fazer. Isso tinha acontecido com Galbatorix. O rei sabia mais do que a
maioria — mais até do que alguns dos elfos ou dragões mais antigos —, porém, no
final, o conhecimento dele não veio acompanhado de sabedoria alguma.
Havia poucas pessoas nas ruas. Já era tarde, e os dias que se seguiam ao
Maddentide eram repletos de banquetes. A maioria dos cidadãos estava em casa,
comemorando outra safra bem-sucedida de bergenhed.
Um trio de trabalhadores bêbados passou cambaleando, fedendo a cerveja barata
e tripas de peixe. Murtagh manteve o rumo, e os três saíram de sua frente. Assim
que os trabalhadores viraram uma esquina, a via principal voltou a ficar silenciosa,
e ele não viu outra pessoa até cruzar a praça do mercado da cidade e um par de
mercadores emplumados irromper pela porta de um armazém, discutindo
ruidosamente. Uma figura baixinha e barbuda seguiu os dois até a praça, e sua voz
era ainda mais alta do que a deles.
Um anão! Murtagh abaixou a cabeça. Desde a morte de Galbatorix e a queda do
Império, há mais de um ano, os anões se tornaram cada vez mais comuns em todas
as terras habitadas pelos humanos. Em sua maioria, eram comerciantes vendendo
gemas, metais e armas, mas ele também tinha visto anões trabalhando como
guardas armados (por mais baixos que fossem, sua proeza em combate não deveria
ser subestimada). Não conseguiu deixar de imaginar quantos estavam agindo como
olhos e ouvidos para o rei deles, Orik, que se sentava no trono de mármore na
cidade montanha de Tronjheim.
O anão iluminado por trás pareceu olhar na direção de Murtagh, que cambaleou
ligeiramente — outro bêbado festejando o Maddentide a caminho de casa.
A farsa funcionou, e o anão voltou a atenção para os mercadores briguentos.
Murtagh apressou o passo. A expansão dos anões tornou as viagens ainda mais
difíceis para ele e Thorn. Murtagh não nutria nenhuma animosidade em relação a
eles como raça ou cultura — na verdade, ele gostava bastante de Orik, e as
realizações arquitetônicas dos anões eram extraordinárias. No entanto, eles
mantinham um ódio intenso e duradouro por Murtagh ter matado o rei Hrothgar, o
predecessor e tio de Orik. E os anões eram conhecidos por guardar rancor.
Será que algum dia ele conseguiria fazer as pazes com Orik, seu clã e os anões
como um todo? Se fosse possível, Murtagh ainda não havia pensado em como.
Infelizmente, ele não tinha problemas apenas com os anões. Os elfos mantinham
uma animosidade semelhante em relação a Murtagh e Thorn, devido ao papel de
ambos nas mortes de Oromis e Glaedr. Murtagh não podia culpá-los; Oromis e
Glaedr tinham sido os últimos dragão e Cavaleiro do período anterior à ascensão de
Galbatorix ao poder.
A maioria dos humanos também não gostava deles, por causa do que se
acreditava ser a traição dos Varden a Galbatorix durante a guerra. Traidores só
recebiam desprezo de ambos os lados em um conflito, e com razão — o próprio
Murtagh não tinha simpatia por gente venenosa que não cumpria promessas, como
seu pai —, mas ser falsamente rotulado como tal não era nada fácil.
Não há porto seguro para nós, pensou Murtagh. Um sorriso forçado e sem
humor se formou em seus lábios. Tinha sido assim a vida toda. Por que seria
diferente agora?
O fedor de peixe, algas marinhas e maresia ficava mais forte à medida que ele se
deslocava pelo cais e passava por fileiras de estendais colocados ao longo da rua.
Murtagh ergueu o olhar. Faltavam três ou quatro horas para a meia-noite. Tempo
de sobra para concluir seus negócios e partir de Ceunon. Depois de tanto tempo ao
ar livre, nos confins incivilizados da terra, a proximidade dos prédios incomodava
de tão confinante. Nisso, ele estava se tornando cada vez mais parecido com Thorn.
Música e vozes soaram adiante, e ele viu a taverna que era seu destino: o Festim
Abundante. O prédio baixo de vigas escuras tinha janelas de cristal na parede da
frente — um luxo raro naquela parte do mundo —, e pétalas de luz amarela se
espalhavam pelas pedras do calçamento da rua: um convite cordial para entrar,
descansar e se divertir.
Sarros havia escolhido o lugar como ponto do próximo encontro, o que já deixou
Murtagh desconfiado. Ainda assim, o Festim Abundante parecia inócuo — era mais
um estabelecimento bagunçado e mal administrado como tantos outros. Tirando as
janelas de cristal, o local poderia estar em qualquer cidade ou vila litorânea do
reino. Mas Murtagh havia aprendido muito tempo atrás que as aparências raramente
eram dignas de confiança.
Ele se preparou contra o barulho que viria a seguir e empurrou a porta.
CAPÍTULO II

O Festim Abundante

A estalagem era um lugar aconchegante e acolhedor, limpo e bem cuidado.


Juncos recém-cortados cobriam o chão, as mesas estavam limpas e os tonéis,
garrafas e canecas atrás do bar envernizado estavam dispostos em fileiras
organizadas. De dentro de uma lareira de pedra negra livre de fuligem, uma
fogueira crepitante aquecia o salão e, perto do fogo, um homem de cavanhaque com
extravagantes mangas boca de sino dedilhava um alaúde.
O que quer que ele estivesse cantando era difícil de ouvir sob o clamor da
conversa que vinha do salão lotado. O Maddentide havia acabado, e o povo de
Ceunon estava feliz com isso.
O estalajadeiro era um homem baixo e careca, de avental sujo e testa suada, que
corria de mesa em mesa, entregando bebidas e pratos de arenque defumado. Não,
notou Murtagh, bergenhed defumado.
Devem ter comido bergenhed o suficiente para o resto do ano, pensou.
Ele se sacudiu para tirar um pouco de neve da capa e foi em direção a uma mesa
vaga perto da lareira. Quando se sentou, o estalajadeiro se aproximou com pressa e
disse:
— Sigling Orefsson ao seu serviço, mestre…?
— Tornac, filho de Tereth.
Sigling enxugou as mãos no avental.
— Uma honra, com certeza. E o que deseja?
— Algo quente para comer. Meu estômago está vazio.
Murtagh não perderia uma oportunidade de comer uma refeição quente, ainda
mais sem precisar cozinhá-la.
— E para beber?
— Uma caneca de cerveja. Não muito forte, por obséquio.
Murtagh colocou três moedas de cobre na mão do estalajadeiro.
Sigling já estava indo em direção aos fundos.
— Não vou demorar mais do que duas sacudidas do rabo de um cordeiro, mestre
Tornac.
Mestre Tornac. Ouvir o nome sempre o fazia hesitar. Considerando o estado de
sua reputação, Murtagh torcia para que o antigo instrutor de esgrima não se
importasse com o uso de seu nome. Ele só queria honrar a sua memória, como havia
feito ao nomear seu garanhão depois que Tornac morreu durante a fuga deles de
Urû’baen…
Murtagh franziu o cenho, irritado. Nunca de fato descobrira o que acontecera
com o cavalo quando Galbatorix armou para que ele fosse capturado em Tronjheim.
Ele olhou pelo salão. Aquele grupo de estivadores, pescadores e outros habitantes
de Ceunon era barulhento. Muitos pais ausentes voltavam após semanas no navio e
no mar para celebrar os proveitos do Maddentide. Eles pareciam amigáveis. Ainda
assim, Murtagh identificou o caminho mais rápido para a porta da frente e a dos
fundos.
Era importante sempre estar preparado.
Não havia nenhum sinal de Sarros, mas isso não o preocupava. Foi o mercador
quem decidiu o dia do encontro, e iria preferir cortar a própria mão a perder a
chance de ganhar mais dinheiro.
Dois trabalhadores — pedreiros, se os aventais de couro e os braços grossos e
sujos de argamassa servissem como indicação — esbarraram nas cadeiras do outro
lado da mesa de Murtagh e as puxaram.
— Desculpe, mas estou esperando um amigo — avisou Murtagh, e sorriu de uma
forma que esperava ser inofensiva.
Um dos pedreiros pareceu querer discutir, enquanto o outro deu a impressão de
ter visto alguma coisa que não gostou no rosto de Murtagh. Ele puxou o braço do
amigo.
— Vamos, Herk. Eu pago uma rodada no balcão.
— Ah, tudo bem. Está bem. Não precisa me puxar.
Mas o outro continuou puxando-o pelo braço até irem em direção ao bar.
Murtagh relaxou um pouco. Não queria se envolver em uma briga sem sentido.
Então um nome o alcançou ecoando do burburinho geral do salão.
— … Eragon…
Murtagh enrijeceu e se virou no assento enquanto procurava quem disse aquilo.
Ali estava. O trovador de cavanhaque dedilhando o alaúde. A princípio, foi difícil
entender a letra da canção, mas Murtagh observou os lábios do homem e se
concentrou, e pouco a pouco ele compreendeu os versos.
E o trovador cantou:

… e assim foi à temida Urû’baen.


Alegria! Alegria! O famoso Cavaleiro de Dragão voou para lutar,
Para nossa terra do perigo e do medo livrar.
Então o poderoso Eragon enfrentou o rei em uma batalha sangrenta,
Em uma disputa grande e violenta.
E com espada flamejante e grandioso luzeiro,
Ele matou o tirano horrível, aquele flagelo verdadeiro,
Galbatorix, a desgraça de todo dragão e Cavaleiro.

Os lábios de Murtagh se contraíram, e ele sentiu vontade de jogar uma bota no


homem. Não apenas os versos eram mal compostos e mal cantados — nenhum
bardo teria ousado cantar tão desafinado na corte por medo de ser espancado —,
como estavam errados.
— Ele teria perdido se não fosse por mim — murmurou Murtagh, pensando em
Eragon.
E, no entanto, tirando aqueles que estiveram presentes na sala do trono de
Galbatorix durante o confronto final, ninguém sabia nem se importava. Ele e Thorn
tinham deixado a capital logo após a morte do rei, preferindo se isolar da civilização
do que encarar a hostilidade do povo ignorante.
Tinha sido a escolha certa. Murtagh ainda acreditava nisso. Porém, significava
perder a chance de se defender diante da opinião popular. E se Eragon, Nasuada ou
Arya, a rainha dos elfos, falaram em defesa dele ou de Thorn, para explicar o papel
que desempenharam na morte de Galbatorix e Shruikan, Murtagh não ficara
sabendo. Fato que o incomodava. Talvez a verdade precisasse de mais tempo para
se espalhar entre o povo. Ou talvez Eragon, Nasuada e Arya estivessem satisfeitos
em deixar o mundo pensar o pior a respeito dele, em usá-lo como um bode
expiatório conveniente, um monstro no escuro, que pudesse concentrar os medos
das pessoas e deixar os três livres para governar como bem quisessem.
O pensamento fez seu estômago revirar.
De qualquer maneira, no que diz respeito à maioria das pessoas, Eragon era o
maior herói que já existiu e ninguém poderia resistir a ele.
Murtagh soltou um muxoxo de desdém baixinho. Longe disso. Mas não havia
como lutar contra uma música ou história depois que ela se tornava popular. Muitas
vezes, a verdade se curvava diante do que parecia correto. Pelo menos o trovador
não se deu ao trabalho de descrever o suposto triunfo de Eragon sobre Murtagh e
Thorn. Se isso acontecesse, Murtagh acreditava que teria mesmo jogado uma bota
nele.
— E cá está, mestre Tornac! — proclamou Sigling enquanto empurrava um prato
e uma caneca sob o nariz dele. — Se precisar de mais alguma coisa, grite meu
nome, e eu volto rapidinho.
Antes que Murtagh pudesse agradecer-lhe, o estalajadeiro saiu correndo para
cuidar de outra mesa.
Murtagh pegou o garfo de ferro forjado ao lado do prato e começou a comer.
Carneiro assado e nabos com meio pão de centeio preto como acompanhamento.
Comida humilde, mas com um sabor melhor do que qualquer coisa que ele havia
cozinhado nos últimos três meses. E, embora a cerveja fosse só um pouco mais
forte do que água, não era problema, pois era como ele havia pedido. Ele queria
manter o juízo em Ceunon.
Enquanto comia, Murtagh equilibrou o prato no joelho e se recostou na cadeira,
esticando as pernas como faria diante de uma fogueira.
Era estranho estar perto de tantas outras pessoas. Ele se acostumou a ficar
sozinho com Thorn nos últimos doze meses. Ao som do vento e dos cantos dos
pássaros. A caçar a própria comida e ser caçado. Conversar com os vigias e Sigling
— e até mesmo com os pedreiros — foi como tentar tocar um instrumento mal
afinado.
Ele passou um pedaço do pão de centeio pelo molho do carneiro espalhado no
prato e o enfiou na boca.
A porta da estalagem se abriu e uma garota entrou com pressa. O cabelo escuro
estava bem preso em um par de tranças cacheadas. Seu vestido era bordado com
padrões chamativos, e havia marcas de choro em seu rosto.
Murtagh a observou cruzar o salão, leve como uma pluma. Ela deu a volta no
balcão nos fundos do bar, onde Sigling lhe disse algo. Parados um ao lado do outro,
Murtagh viu uma semelhança familiar. A garota tinha a boca e o queixo do
estalajadeiro.
Ela reapareceu, carregando um prato cheio de pão, queijo e uma maçã. Ergueu o
prato sobre a cabeça e, com uma habilidade que vinha com a experiência, passou
por entre as mesas lotadas até chegar em frente à grande lareira de pedra. Sem pedir
licença, ela se jogou na cadeira em frente à mesa de Murtagh.
Ele abriu e fechou a boca.
A menina não tinha mais de dez anos, e podia ser que tivesse apenas uns seis (ele
nunca foi bom em julgar a idade de crianças).
Ela partiu um pedaço do pão do prato e mastigou com ferocidade. Murtagh
observou, curioso. Fazia anos desde que estivera na companhia de uma criança, e se
sentiu inesperadamente fascinado. Todos nós começamos assim, pensou. Tão
jovens, tão puros. Em que ponto as coisas davam errado?
A garota parecia prestes a chorar de novo. Ela mordeu a maçã e soltou um som
de frustração quando o talo ficou preso no espaço entre os dentes da frente.
— Você parece chateada — comentou Murtagh em um tom de voz brando.
A garota fez uma careta. Arrancou o talo e jogou no fogo.
— É tudo culpa de Hjordis! — Ela tinha o mesmo forte sotaque do norte do pai.
Murtagh olhou em volta. Como ainda não tinha visto Sarros, decidiu que era
seguro conversar um pouco. Mas com cuidado. As palavras podiam ser tão
traiçoeiras quanto uma armadilha para ursos.
— Ah, é? — Ele largou o garfo e se virou na cadeira para olhar melhor para ela.
— E quem é Hjordis?
— A filha de Jarek, o mestre de obras do conde — disse a garota, emburrada.
Murtagh se perguntou se o conde ainda era lorde Tarrant ou se os elfos haviam
colocado outra pessoa no lugar dele quando capturaram a cidade. Ele conhecera
Tarrant na corte anos antes: um homem alto e contido que raramente falava mais do
que algumas palavras de cada vez. O conde parecera decente na ocasião, mas
qualquer um que permanecesse nas graças de Galbatorix por anos a fio tinha gelo
no coração e sangue nas mãos.
— Entendo. Isso faz dela alguém importante?
A menina balançou a cabeça.
— Isso faz ela pensar que é importante.
— O que ela fez para chatear você, então?
— Tudo!
A garota deu uma mordida violenta na maçã e mastigou forte e rápido. Murtagh a
viu se contrair ao morder a parte interna da bochecha. Os olhos da menina se
encheram de lágrimas, e ela engoliu em seco.
Murtagh tomou um gole de cerveja.
— Que interessante. — Ele enxugou um pouco de espuma do bigode. — Bem, e
essa é uma história que você quer contar? Talvez falar a respeito faça você se sentir
melhor.
A garota o olhou com suspeita em seus olhos azul-claros. Por um momento,
Murtagh pensou que ela fosse se levantar e ir embora.
— Papai não gostaria que eu incomodasse você.
— Eu tenho um pouco de tempo. Estou esperando por um conhecido meu que,
infelizmente, tem o hábito de se atrasar. Se você deseja compartilhar sua história
triste, então, por favor, me considere sua plateia atenta.
Enquanto falava, Murtagh se viu voltando à linguagem e às frases que teria usado
na corte. Essa formalidade parecia mais segura e, além disso, estava se divertindo
ao falar com a garota como se ela fosse uma dama nobre.
A menina balançou os pés.
— Bem… Eu gostaria de contar para você, mas não posso, a menos que sejamos
amigos.
— É mesmo? E como nos tornamos amigos?
— Seu bobo, você tem que me dizer seu nome!
Murtagh sorriu.
— Claro. Que tolice da minha parte. Sendo assim, meu nome é Tornac. — E ele
estendeu a mão.
— Essie, filha de Sigling.
A palma e os dedos da garota eram surpreendentemente suaves e pequenos em
comparação com os dele. Murtagh sentiu a necessidade de ser gentil, como se
estivesse tocando uma flor delicada.
— Muito prazer em conhecê-la, Essie. Agora, diga, qual é o problema?
Essie olhou para a maçã parcialmente comida em sua mão. Ela suspirou e a
colocou de volta no prato.
— É tudo culpa de Hjordis.
— Foi o que você disse.
— Ela está sempre sendo má comigo e fazendo seus amigos me provocarem.
Murtagh adotou uma expressão solene.
— Isso não é nada bom.
A garota assentiu, os olhos brilhando de indignação.
— Exatamente! Quero dizer… Às vezes eles me provocam de qualquer maneira,
mas, hum, Hjordis… Quando ela está presente, a coisa fica muito ruim.
— Foi o que aconteceu hoje?
— Foi. Mais ou menos.
Ela partiu um pedaço de queijo e o mordiscou, parecendo perdida em
pensamentos. Murtagh esperou pacientemente. Ele decidiu que, da mesma forma
como quando você lida com cavalos, a gentileza dava mais frutos que a força.
Por fim, em voz baixa, Essie disse:
— Antes da colheita, Hjordis começou a ser mais legal comigo. Pensei... que
talvez as coisas fossem melhorar. Ela até me convidou para ir à casa dela. — Essie
lhe lançou um tímido olhar de soslaio. — É bem ao lado do castelo.
— Impressionante.
Ele estava começando a entender. Os trabalhadores em melhores posições sempre
se aproximavam dos nobres, como carrapatos fazem com os cães. A inveja era uma
característica humana universal (e as outras raças também não estavam isentas
dela).
Essie concordou com a cabeça.
— Ela me deu uma de suas fitas, uma amarela, e disse que eu poderia ir à sua
festa do Maddentide.
— E você foi?
Outro aceno de cabeça.
— A festa foi… foi hoje.
Seus olhos voltaram a se encher de lágrimas, e a garota piscou furiosamente.
Preocupado, Murtagh tirou um lenço gasto de dentro do colete. Ele podia estar
vivendo como um animal selvagem, mas ainda tinha alguns modos.
— Aqui, pronto.
A garota hesitou. Mas as lágrimas rolaram por seu rosto, e ela pegou o lenço e
enxugou os olhos.
— Obrigada, senhor.
Murtagh se permitiu outro sorrisinho.
— Faz muito tempo que não sou chamado de senhor, mas de nada. Presumo que
a festa não tenha corrido bem...
Essie fez uma careta e empurrou o lenço para ele, embora ainda parecesse prestes
a chorar.
— A festa foi boa. O problema foi Hjordis. Ela foi má de novo, depois, e… e…
— a garota respirou fundo, como se procurasse coragem para continuar — … e
disse que se eu não fizesse o que ela queria, diria ao pai dela para não usar nossa
estalagem durante a celebração do solstício.
Ela deu uma olhadela para Murtagh, como se para verificar se ele estava
acompanhando a história.
— Todos os pedreiros vêm aqui para beber e... — ela soluçou — … eles bebem
muito, e isso significa que eles gastam pilhas e pilhas de cobres.
A história fez Murtagh ter lembranças incômodas dos maus-tratos que sofreu nas
mãos das crianças mais velhas enquanto crescia na corte de Galbatorix. Antes de
aprender a ser cuidadoso, antes de Tornac lhe ensinar como se proteger.
Com ar sério, ele colocou o prato na mesa e se inclinou na direção de Essie.
— O que ela queria que você fizesse?
Essie baixou o olhar e balançou os sapatos enlameados contra a cadeira. Quando
falou de novo, as palavras saíram se atropelando.
— Ela queria que eu empurrasse Carth para dentro de um cocho de cavalo.
— Carth é um amigo seu?
Ela assentiu, infeliz.
— Ele mora nas docas. O pai dele é pescador.
Murtagh sentiu uma aversão repentina e intensa por Hjordis. Conhecera muita
gente como ela na corte: pessoas horríveis e mesquinhas, empenhadas em melhorar
a própria situação social e tornar um sofrimento a vida de todo mundo abaixo delas.
— Então ele não seria convidado para uma festa como esta.
— Não, mas Hjordis mandou sua criada chamá-lo e… — Essie o olhou com uma
expressão intensa. — Eu não tive escolha! Se eu não tivesse empurrado Carth, ela
teria dito ao pai para não vir ao Festim Abundante.
— Entendo — disse Murtagh, forçando um tom tranquilizador, apesar de um
sentimento crescente de raiva e injustiça, que era uma irritação conhecida. — Então
você empurrou seu amigo. Você conseguiu se desculpar com ele?
— Não — respondeu Essie, e seu rosto se contraiu. — Eu… eu corri. Mas todo
mundo viu. Ele não vai querer mais ser meu amigo. Ninguém vai. Hjordis me
enganou, e eu a odeio.
Ela pegou a maçã e deu outra mordida rápida. Os dentes bateram quando a
mandíbula se fechou.
Murtagh começou a responder, mas Sigling, a caminho para entregar um par de
canecas em uma mesa perto da parede, parou ao seu lado. Ele lançou um olhar de
desaprovação para Essie.
— Minha filha não está sendo impertinente, está, mestre Tornac? Ela tem o
péssimo hábito de importunar os clientes quando estão tentando comer.
— De jeito nenhum — respondeu Murtagh, sorrindo. — Estou na estrada há
muito tempo, sem nada além do sol e da lua como companhia. Um pouco de
conversa é exatamente o que eu preciso. Na verdade…
Ele enfiou a mão na bolsa sob o cinto e entregou duas moedas de prata para o
estalajadeiro.
— Talvez você possa providenciar que as mesas próximas a nós permaneçam
vagas. Estou esperando um conhecido meu, e temos alguns... negócios para discutir.
As moedas desapareceram dentro do avental de Sigling, que assentiu.
— Claro, mestre Tornac. — Ele olhou para Essie novamente, com uma expressão
preocupada, e continuou seu caminho.
Por sua vez, a garota parecia um tanto envergonhada.
— Muito bem, então — disse Murtagh, esticando as pernas na direção do fogo.
— Você estava me contando sua história triste, Essie, filha de Sigling. Esse foi o
relato completo?
— Foi — falou ela em voz baixa.
Ele pegou o garfo do prato e começou a girá-lo entre os dedos. A garota assistiu
em transe.
— A situação não pode ser tão ruim quanto você pensa. Tenho certeza de que se
você explicar ao seu amigo…
— Não — disse ela em tom firme. — Ele não vai entender. Ele não vai mais
confiar em mim. Eles vão me odiar por isso.
A voz de Murtagh ganhou um tom incisivo.
— Então talvez eles não sejam seus amigos de verdade.
Ela sacudiu a cabeça, e as tranças balançaram.
— São sim! Você não entende! — E ela bateu com o punho no braço da cadeira
em um pequeno gesto impaciente. — Carth é… Ele é legal mesmo. Todo mundo
gosta dele, e agora não vão gostar de mim. Você não sabe como é. Você é todo
grande e… velho.
Murtagh ergueu as sobrancelhas.
— Você se surpreenderia com o que eu sei. Então eles não vão gostar de você. O
que vai fazer a respeito disso?
— Vou fugir — respondeu a garota sem pensar.
No momento em que percebeu o que havia dito, ela lançou um olhar de pânico
para Murtagh.
— Não conte para o papai, por favor!
Murtagh tomou outro gole de cerveja e alisou a barba enquanto a mente
disparava. A conversa passara de divertida para séria. Se dissesse a coisa errada,
poderia enviar Essie para um caminho do qual ela se arrependeria — e Murtagh
sabia que ele se arrependeria se não tentasse convencê-la a voltar ao caminho certo.
Cuidado agora, pensou ele.
— E para onde você iria?
— Para o sul — respondeu Essie com convicção; ela obviamente já havia
considerado a questão. — Onde é quente. Tem uma caravana partindo amanhã. O
capataz vem aqui. Ele é legal. Posso sair de mansinho e depois seguir com eles até
Gil’ead.
Murtagh cutucou os dentes do garfo.
— E depois?
A garota se sentou mais reta.
— Eu quero visitar as Montanhas Beor e ver os anões! Eles fizeram nossas
janelas. Não são bonitas?
Ela apontou.
— São mesmo.
— Você já visitou as Montanhas Beor?
— Sim. Uma vez, há muito tempo.
Essie olhou para ele com interesse renovado.
— Sério? Elas são tão altas quanto todo mundo diz?
— Tão altas que os picos nem são visíveis.
Ela se recostou na cadeira e virou a cabeça para o teto como se estivesse
imaginando a cena.
— Que maravilha.
Um muxoxo de desdém escapou dele.
— Se você não se importar em ser alvejada por flechas, então sim… Você
percebe, Essie, filha de Sigling, que fugir não vai resolver seus problemas aqui?
— Claro que não. — Seu bobo, disse a expressão dela. — Mas, se eu for embora,
Hjordis não pode mais me incomodar.
A absoluta convicção do tom da garota quase fez Murtagh rir. Ele escondeu o
sorriso tomando um longo gole da caneca e, quando terminou, recuperou a
compostura.
— Ou, e isso é apenas uma sugestão, você pode tentar resolver o problema em
vez de fugir.
— Não dá para resolver — insistiu ela, teimosa.
— E seus pais? Tenho certeza de que sentiriam muito a sua falta. Você quer
mesmo fazê-los sofrer assim?
Essie cruzou os braços.
— Eles têm meu irmão, minha irmã e Olfa. Ele tem apenas dois anos. — Ela fez
beicinho. — Eles não sentiriam minha falta.
— Duvido muito — disse Murtagh. — Além disso, pense no que fez. Você
ajudou a proteger o Festim Abundante. Se seus pais entendessem o seu sacrifício,
tenho certeza de que ficariam muito orgulhosos.
— Hã-hã — falou Essie, que não parecia convencida. — Não haveria problema
se não fosse por mim. Eu sou o problema. Se eu for embora, tudo ficará bem.
Ela pegou o caroço da maçã e jogou na lareira. Um turbilhão de faíscas subiu
voando pela chaminé, e o chiado de água fervendo e virando vapor soou mais alto
do que o crepitar da lenha.
A manga da garota havia subido e, no pulso esquerdo, Murtagh viu uma cicatriz
retorcida, vermelha, saliente e grossa como uma corda. Ele expôs os dentes e, em
um tom excessivamente casual, perguntou:
— O que é isso?
— O quê? — disse ela.
— Aí, no seu braço.
Essie olhou para baixo, e um rubor tomou suas bochechas e orelhas.
— Nada — murmurou ela, puxando a manga para baixo.
— Posso? — perguntou Murtagh com a maior gentileza possível, e estendeu a
mão.
A garota hesitou, mas assentiu, tímida, e deixou que ele pegasse o braço dela.
Essie virou a cabeça enquanto ele gentilmente puxava o punho da manga. A
cicatriz subia pelo antebraço até o cotovelo, uma prova longa e raivosa de dor. Ver
aquilo fez surgir um fogo frio nas veias de Murtagh, e ele sentiu a sua própria marca
furiosa nas costas arder em solidariedade.
Ele abaixou a manga de Essie.
— Essa… é uma cicatriz muito impressionante. Você deveria ter orgulho dela.
A garota olhou para ele, com confusão à espreita nos olhos.
— Por quê? Ela é feia, e eu a odeio.
Um leve sorriso levantou os lábios dele.
— Porque uma cicatriz significa que você sobreviveu, significa que você é
durona e difícil de matar. Significa que você viveu. Uma cicatriz é algo para se
admirar.
— Você está errado — disse Essie.
Ela apontou para um vaso com jacintos pintados em cima da lareira. Uma longa
rachadura corria da borda do vaso até a base.
— Significa apenas que você está rachado.
— Ah — disse Murtagh com voz suave. — Mas às vezes, se você trabalhar
muito, pode consertar uma rachadura para que fique mais forte do que antes.
A garota cruzou os braços e enfiou a mão esquerda na axila.
— Hjordis e os outros sempre zombam de mim por causa disso — murmurou ela.
— Dizem que meu braço é vermelho como uma caranha e que nunca vou conseguir
um marido por causa disso.
— E o que seus pais dizem?
Essie fez uma careta.
— Que isso não importa. Mas não é verdade, é?
Murtagh inclinou a cabeça.
— Não. Creio que não. Seus pais estão fazendo o possível para protegê-la, no
entanto.
— Bem, eles não podem — disse ela, e bufou.
Não, provavelmente não, pensou ele, ficando cada vez mais de mau humor.
Essie olhou para ele e pareceu se encolher na cadeira.
— Você tem alguma cicatriz? — perguntou ela em tom suave e hesitante.
Uma risada sem humor escapou de Murtagh.
— Ah, sim. — Ele apontou para a pequena marca branca no queixo: uma lacuna
na barba cheia. — Esta tem apenas alguns meses. Um amigo me deu por acidente
enquanto estávamos brincando. Ele é muito desajeitado.
A ponta de uma escama na pata dianteira esquerda de Thorn atingira o queixo de
Murtagh e rasgara a pele. Não foi um ferimento sério, mas doeu muito e sangrou
ainda mais.
— O que aconteceu com o seu braço? — perguntou ele.
Essie cutucou a beirada da mesa.
— Foi um acidente — murmurou ela. — Uma panela com água quente caiu no
meu braço.
Os olhos de Murtagh se estreitaram.
— A panela simplesmente caiu em você?
A garota concordou com a cabeça.
— Humm.
Murtagh olhou para a lareira, para as faíscas saltitantes e as brasas crepitantes.
Ele não acreditou na garota. Acidentes eram bastante comuns, mas a maneira como
ela se comportava sugeria algo pior.
A mandíbula se contraiu, os dentes se cerraram. Um latejar de alerta desceu pela
raiz do molar inferior direito. Havia muitas injustiças que ele estava disposto a
tolerar, mas uma mãe ou um pai machucando uma filha não era uma delas.
Ele olhou em volta, observando o bar. Talvez precisasse conversar com Sigling,
para incutir o medo de um Cavaleiro de Dragão no homem.
Essie se remexeu.
— De onde você é?
— De muito, muito longe daqui.
— Do sul?
— Sim, do sul.
Ela balançou os pés diante da cadeira de novo.
— Como é lá?
Murtagh inspirou lentamente e inclinou a cabeça para trás de modo a olhar para o
teto. O fogo no sangue ainda ardia.
— Depende de onde você vai. Existem lugares quentes e lugares frios, e lugares
onde o vento nunca para de soprar. Florestas que parecem não ter fim. Cavernas que
penetram nas partes mais profundas da terra e planícies cheias de vastos rebanhos
de cervos vermelhos.
— Existem monstros?
— Claro. — Ele voltou o olhar para Essie. — Sempre há monstros. Alguns deles
até se parecem com humanos… Eu mesmo fugi de casa, sabe.
— Fugiu?
Ele assentiu.
— Eu era mais velho que você, mas sim, fugi, embora não tenha escapado do que
estava fugindo… Preste atenção, Essie. Sei que você acha que ir embora vai
melhorar tudo, mas…
— Aí está você, Tornac da Estrada — disse uma voz dissimulada que Murtagh
reconheceu imediatamente.
Sarros.
O mercador deu um passo à frente entre as mesas próximas. Ele era magro e
curvado, com uma capa remendada sobre os ombros e roupas esfarrapadas por
baixo. Anéis brilhavam nos dedos. Ele cheirava a pelo molhado, e havia um andar
felino inquietante nos passos.
Murtagh conteve um palavrão. De todos os momentos para o sujeito aparecer…
— Sarros. Eu estava esperando por você.
— Os campos andam perigosos hoje em dia — comentou Sarros, que puxou uma
cadeira vazia da mesa, posicionou-a exatamente entre Essie e Murtagh e se sentou
de frente para os dois.
A garota se afastou no assento, cautelosa.
Murtagh deu uma olhadela para o salão. Avistou seis homens que entraram na
estalagem enquanto não estava prestando atenção. Eram sujeitos de aparência bruta,
mas não como os pescadores locais. Vestiam peles e couros e usavam suas capas de
uma maneira que dizia a Murtagh que estavam escondendo espadas presas aos
cintos.
Guardas de Sarros. Murtagh ficou aborrecido por ter parado de prestar atenção no
ambiente enquanto conversava com Essie. Sabia que não devia fazer isso. Um lapso
de concentração que era uma boa maneira de acabar morto ou na prisão.
No bar, Sigling vigiava os recém-chegados com atenção. O estalajadeiro puxou
um porrete envolto em couro e colocou ao lado do pano de prato como um aviso
silencioso.
Apesar das reservas de Murtagh quanto ao caráter de Sigling, ele aprovou o ato
cauteloso. O homem não era tolo, com certeza.
A atenção de Murtagh se voltou para Sarros quando o mercador apontou um dedo
comprido para Essie.
— Temos negócios a discutir. Mande a pequena embora.
Não, acho que não, decidiu Murtagh. Ele não havia terminado de conversar com
a garota e, de qualquer forma, mantê-la por perto poderia exercer uma influência
civilizadora em Sarros. O homem era bruto na melhor das hipóteses e agressivo na
pior.
— Não tenho nada a esconder. Ela pode ficar. — Murtagh olhou para Essie. —
Se você estiver interessada. Pode aprender algo útil a respeito do mundo.
Essie se encolheu na cadeira, mas não saiu.
Um sibilo longo soou entre os dentes de Sarros enquanto ele balançava a cabeça.
— Tolice, Andarilho. Faça como quiser, então. Não vou discutir, mesmo que
você me provoque.
Murtagh deixou o olhar ficar sério.
— Não, não vai. Me diga, então: o que você encontrou? Já se passaram três
meses e…
Sarros acenou com a mão.
— Sim, sim. Três meses. Eu disse; os campos são perigosos. Mas encontrei
notícias do que você procura. Melhor do que notícias, encontrei isso aqui…
Da carteira de couro no cinto, ele tirou e jogou na mesa um pedaço de uma coisa
preta do tamanho de um punho.
Murtagh se inclinou para a frente, assim como Essie.
A coisa era um pedaço de rocha, mas tinha um brilho intenso, como se um carvão
em brasa estivesse enterrado no centro. A rocha emanava um odor forte e sulfuroso,
pungente como um ovo podre.
Essie fungou e torceu o nariz.
Um nó de tensão se formou no peito de Murtagh. Ele torceu para que estivesse
errado. Torceu para que os sussurros e avisos não significassem nada… Cuidado
com as profundezas, não pisem onde o solo se torna negro e seco e o ar cheira a
enxofre, pois é onde se esconde o mal. Foi o que o antigo dragão Umaroth lhe disse
antes que ele e Thorn partissem em seu exílio autoimposto.
Murtagh havia rezado para que Umaroth estivesse enganado, para que não
houvesse um novo perigo surgindo nas regiões instáveis da terra.
Ele deveria saber que não se questionava a sabedoria de um dragão tão antigo
quanto Umaroth.
— O que é isso, exatamente? — perguntou Murtagh, sem tirar os olhos da rocha.
Sarros deu de ombros.
— Suspeitas de sombras são tudo o que tenho, mas você me pediu para procurar
o incomum, o fora do lugar e o anormal.
— Havia mais ou…?
Sarros assentiu.
— Foi o que me disseram. Um campo inteiro coberto de pedras.
O nó apertou no peito de Murtagh.
— Preto e queimado?
— Como se queimado por fogo, mas sem sinal de chama ou fumaça.
— De onde vem isso? — perguntou Essie.
Sarros sorriu e a garota recuou. Como em muitos dos homens que cavalgavam
pelas planícies centrais da Alagaësia, os dentes de Sarros eram afiados.
Para Murtagh, a visão era uma lembrança desagradável de outro homem, ainda
menos agradável, com dentes semelhantes… Durza.
— Pois bem — respondeu Sarros —, essa é a questão, pequena. Sim, de fato é.
Murtagh fez menção de pegar a pedra, e Sarros deixou cair a mão sobre a rocha
brilhante, prendendo o objeto entre os dedos.
— Não — disse ele. — Dinheiro primeiro, Andarilho.
Descontente, Murtagh pescou uma bolsinha de couro do bolso interno da capa. A
bolsa tilintou quando ele a colocou sobre a mesa.
O sorriso afiado de Sarros se alargou. Ele puxou o cordão da bolsa e revelou um
brilho de moedas de ouro dentro. Essie arfou. Murtagh duvidava que ela já tivesse
visto uma coroa inteira antes.
— Metade agora. E o resto quando você me disser onde encontrou isso. — Ele
cutucou a pedra com a ponta do dedo.
Sarros soltou um estranho som engasgado. Risada. A seguir, ele disse:
— Ah, não, Andarilho. Não mesmo. Acho que, em vez disso, você deveria nos
dar o resto do seu dinheiro, e talvez assim possamos deixá-lo manter a cabeça.
Do outro lado do salão, os homens vestidos de peles enfiaram as mãos sob as
capas, e Murtagh viu os punhos das espadas escondidas por baixo.
Não ficou surpreso, mas ficou desapontado. Sarros estava mesmo quebrando o
acordo por nada mais do que ganância?
Que atitude vulgar.
Essie viu as espadas e ficou tensa. Droga. Antes que Murtagh pudesse intervir,
ela abriu a boca e estava prestes a dizer ou fazer algum barulho alto no momento
em que Sarros sacou uma faca de lâmina fina e a pressionou contra a garganta da
garota.
— Hã-hã — disse ele. — Não dê um pio, pequena, ou vou abrir sua garganta de
ponta a ponta.
CAPÍTULO III

Garfo e faca

O nó apertado no peito de Murtagh parecia prestes a se romper. Naquele


momento, ele deixou de pensar em Sarros como uma pessoa. Em vez disso, o
homem se tornou uma coisa, um problema a ser resolvido, rapidamente e sem
hesitação.
Essie congelou ao toque da faca do mercador. Foi a atitude mais inteligente que
ela poderia ter tomado.
Uma pontada de preocupação vinda de Thorn atingiu Murtagh quando o dragão
se preparou para levantar voo em seu socorro. Ele respondeu com um firme “Não!
Não faça isso!”. A última coisa de que precisava era que o dragão invadisse
Ceunon.
— Por que a mudança de atitude, Sarros? Estou lhe pagando muito bem — disse
Murtagh, fazendo o melhor possível para manter as emoções escondidas.
— Sim. Essa é a questão. — Sarros se inclinou para mais perto, os lábios bem
abertos. Seu hálito fedia a carne podre. — Se está disposto a pagar tanto assim por
insinuações e boatos, então deve ter mais dinheiro do que bom senso. Muito mais
dinheiro.
Estúpido, pensou Murtagh. Ele deveria saber que espalhar tanto ouro por aí
poderia se tornar um problema. Não era um erro que cometeria novamente.
A verdade era que o dinheiro que trouxera quando fugira com Thorn para o mato
estava quase no fim. Murtagh andara ávido por informações, e esse desejo estava
lhe custando mais do que dinheiro.
Ele murmurou um único xingamento rude antes de responder:
— Esta não é uma luta que você queira lutar. Diga-me a localização, pegue o
ouro que lhe é devido e ninguém precisa se machucar.
— Que luta? — perguntou Sarros, irônico. — Você está sem espada. Somos sete
e você é um. O dinheiro é nosso, quer você queira, quer não.
A ponta de aço da faca deu uma espetada no pescoço de Essie, e ela enrijeceu.
— Viu só? Eu facilito a escolha para você, Andarilho. Entregue o resto do seu
ouro, ou a pequena aqui pagará com sangue.
A garota manteve os olhos fixos em Murtagh. Ele sentia o medo desesperado
dela e sabia que Essie estava esperando — torcendo — por sua ajuda. Ela parecia
terrivelmente jovem, terrivelmente vulnerável, e um sentimento avassalador de
afinidade brotou dentro dele.
A determinação o preparou para o desafio.
Murtagh sorriu levemente. Ele acreditara mesmo que iria visitar Ceunon sem se
envolver em algum problema? Ah, bem. Teria que ser assim.
Ele reuniu suas reservas mentais, concentrou sua determinação e derramou a
intenção ardente em uma única frase de palavras extraídas da linguagem antiga — a
linguagem da verdade, do poder e da magia.
— Thrífa sem knífr un huildr sem konr.
O ar entre eles pareceu estremecer. E isso foi tudo.
Murtagh hesitou, pego de surpresa. O feitiço falhou. Será que o mercador usava
proteções mágicas? E deviam ser fortes, pois a potência do feitiço teria atravessado
qualquer encantamento menor. Foi um acontecimento inesperado e indesejável.
Sarros riu novamente.
— Tolo. Muito tolo. — Com a mão livre, ele puxou um amuleto de caveira de
pássaro debaixo do gibão. — Está vendo isso aqui, Andarilho? A bruxa Bachel
encantou um colar para cada um de nós. Seus sortilégios não vão adiantar agora.
Estamos protegidos contra qualquer malefício.
— É mesmo? — disse Murtagh, contido.
O mercador deixara de ser um incômodo e se tornara um perigo genuíno. A
moderação não era mais uma opção desejável. Não se quisesse vencer, e Murtagh
tinha decidido havia muito tempo que estava disposto a passar dos limites para
evitar perder — de novo.
Então ele falou a Palavra, e que palavra ela era. Ecoou como um sino, e no som
estavam contidos todos os significados possíveis, pois era a palavra mais poderosa
de todas: o nome da língua antiga. O Nome dos Nomes. O mais secreto dos feitiços,
que apenas ele, Eragon e Arya conheciam. Com ela, Murtagh poderia romper ou
alterar qualquer feitiço. Com ela, Murtagh poderia mudar o próprio significado da
língua em si.
No Nome dos Nomes, ele imbuiu três intenções: um desejo de remover as
proteções mágicas de Sarros, uma vontade de agarrar e segurar a faca do homem e,
por último, uma ordem para proibir as pessoas que ouviram a Palavra de se
lembrarem dela.
Seguiu-se um silêncio mouco. Todos no salão olharam para ele, muitos dos
clientes com uma expressão confusa, como se tivessem acabado de acordar de um
sonho.
Essie o encarava com olhos arregalados, o medo aparentemente esquecido.
Para espanto de Murtagh, Sarros parecia não ter sido afetado, e ele sentiu um
gelo nas entranhas. A única maneira de desafiar o Nome dos Nomes era com magia
sem palavras, uma magia lançada sem o direcionamento seguro da língua antiga.
Era a mais arriscada, descontrolada e imprevisível forma de lançar feitiços. Mesmo
o mágico mais habilidoso ficava cauteloso de tentar.
Murtagh havia subestimado Sarros e quem quer que tivesse feito negócios com o
homem. A situação havia se tornado perigosamente imprevisível. E Murtagh não
gostava do imprevisível.
— Essie! — gritou Sigling quando percebeu a situação da filha.
Ele agarrou o porrete e saltou sobre o bar com mais agilidade do que Murtagh
teria imaginado que o estalajadeiro careca possuiria.
— Solte ela agora!
Antes que Sigling pudesse dar mais do que um passo, dois dos rufiões vestidos
com peles atacaram e o derrubaram no chão. Um baque soou quando um deles
atingiu Sigling na cabeça com o pomo de uma espada.
Ele gemeu e deixou cair o porrete.
Ninguém mais ousou se mexer.
Já chega disso, pensou Murtagh.
— Papai! — gritou Essie, contorcendo-se sob a faca de Sarros.
O mercador riu novamente, mais alto do que antes.
— Seus truques não vão salvá-lo, Andarilho. Nenhum encantamento é tão forte
quanto o de Bachel. Nenhuma magia é tão poderosa.
— Talvez você tenha razão — comentou Murtagh, a voz calma como um lago
sem vento.
Ele pegou o garfo e o girou entre os dedos.
— Muito bem, então. Parece que não tenho escolha.
— Nenhuma — retrucou Sarros, presunçoso.
Uma mulher corpulenta, de bochechas vermelhas e cabelos presos em um coque,
apareceu na porta da cozinha, enxugando as mãos na saia.
— Que confusão é… — começou ela, e então viu Sarros segurando a faca e
Sigling caído no chão, e seu rosto empalideceu.
— Não cause problemas, ou vai sobrar para o seu homem — disse um dos
homens vestidos com peles, apontando a espada para Sigling.
Enquanto todos estavam distraídos com a esposa de Sigling, Murtagh falou sem
emitir som:
— Halfa utan thornessa fra jierda.
Uma ondulação vítrea, semelhante a uma chama, percorreu toda a extensão do
garfo.
Os olhos de Essie se arregalaram, mas essa foi sua única reação.
Sarros deu um tapa na mesa.
— Chega de conversa. Seu dinheiro, agora.
Murtagh inclinou a cabeça e — com a mão esquerda — procurou algo sob a
capa. Ele se manteve relaxado até o último instante possível.
Em um único movimento, jogou a capa para o ar enquanto atacava com o garfo.
Pegou a faca de Sarros entre os dentes do garfo e a jogou por cima da mesa.
Ting! A faca ricocheteou contra a parede.
Sarros hesitou e congelou quando Murtagh pressionou os dentes do garfo contra
a parte debaixo do seu queixo. Em seguida, engoliu em seco e um brilho de suor
brotou em seu rosto. Porém, a mão dele permaneceu perto do pescoço da garota, os
dedos bem abertos como se fossem arrancar a garganta dela.
— Por outro lado — disse Murtagh, saboreando a virada de jogo —, não há nada
no seu amuleto que me impeça de usar magia em outra coisa. Como neste garfo, por
exemplo.
Ele enfiou mais fundo os dentes do garfo na carne de Sarros.
— Acha mesmo que preciso de uma espada para derrotá-lo, seu lixo tumoroso?
Sarros sibilou. A seguir, empurrou Essie para o colo de Murtagh e saltou para
trás, derrubando a cadeira.
Murtagh se levantou de um salto e a garota caiu no chão. Ela fugiu engatinhando
por baixo das mesas.
Os seis homens desembainharam as espadas, e o salão virou um mar de corpos se
debatendo conforme pescadores, trabalhadores e outros clientes corriam para
escapar pela porta da frente. O tocador de alaúde tropeçou e caiu. Houve gritos,
quedas e canecas sendo quebradas.
Murtagh tirou a capa para poder se mover melhor. Arriscou um olhar para o chão,
procurando a faca de Sarros. Não conseguiu encontrá-la. Seus lábios se retorceram.
Gostaria de ter Zar’roc ou mesmo uma faca de acampamento para se defender. Mas
não, ele foi muito confiante, muito esperto. Tudo o que tinha era um garfo.
Os assassinos tentaram encurralá-lo perto da lareira, mas ele se moveu para que
isso não acontecesse, ao mesmo tempo circulando entre as mesas para obter um
bom ângulo.
Sarros havia recuado para um canto.
— Cortem ele ao meio! Matem-no! — gritava. — Abram a barriga dele e
derramem suas entranhas.
Vou lidar com você pessoalmente, pensou Murtagh.
No fundo do salão, Essie alcançou a mãe. A mulher puxou a filha para trás das
saias e agarrou uma cadeira, que segurou na frente das duas como um escudo.
O rufião mais próximo atacou Murtagh, brandindo a espada. Tolo desajeitado.
Murtagh aparou o golpe e a seguir entrou na guarda do homem, enfiando o garfo no
peito dele.
Os dentes perfuraram ossos e músculos tão bem quanto Murtagh poderia desejar.
O homem convulsionou contra ele e desabou com um suspiro molhado e sufocado
por sangue enquanto o coração parava.
Uma onda de fúria terrível emanou de Thorn, e Murtagh sentiu a determinação
súbita do dragão de se juntar a ele. PARADO!, ordenou em sua mente antes de
proteger os pensamentos contra uma possível intrusão. Thorn se conteve, mas foi
por pouco.
Mais três mercenários de Sarros avançaram. Todos deram golpes com as espadas
ao mesmo tempo.
Murtagh agarrou uma cadeira e a arrebentou, com uma das mãos, em cima do
homem à esquerda. Ao mesmo tempo, usou o garfo para aparar os ataques dos dois
outros brutamontes. Ele respondeu a cada um dos golpes, esgrimindo com
facilidade, sem se esforçar, enquanto tentavam quebrar a sua guarda. Notou que
nenhum dos mercenários era bem treinado.
Os homens tinham a vantagem do alcance de suas espadas, mas Murtagh desviou
das lâminas e entrou em distância de ataque. Mais rápido do que o olho podia
enxergar, ele golpeou com o garfo: um, dois, três, quatro impactos fortes que
derrubaram os homens no chão. Alguns gemiam, e outros ficaram em silêncio.
Seu sangue estava quente, uma camada de suor lhe cobria a testa, e os cantos de
sua visão ficaram carmesim. Mas a respiração permaneceu moderada. Ele ainda
estava no controle, mesmo depois de ser tomado pela emoção do triunfo violento.
Do outro lado do salão, Sigling se apoiou no balcão do bar para se levantar e
ficou de pé. Ele havia recuperado o porrete — não que Murtagh pensasse que o
bastão envolto em couro seria de muita serventia contra as espadas dos rufiões.
— Essie, Olfa está na cozinha — disse a esposa do estalajadeiro. — Eu quero que
você vá…
Antes que ela pudesse terminar, um dos guardas de Sarros correu até as duas. Na
mão não dominante, segurava uma maça. Com ela, golpeou a cadeira que a mulher
segurava, fazendo-a voar de suas mãos e se quebrar.
A garota gritou quando o homem armou um golpe com a espada na outra mão…
Murtagh sabia que não conseguiria atravessar o salão a tempo de salvá-las. Então
ele apostou na boa vontade do destino e lançou o garfo…
Poc.
O garfo se cravou na parte de trás do crânio do homem. Ele desabou, mole como
um saco de farinha.
O alívio tomou conta de Murtagh, mas apenas por um segundo. Sarros e o último
companheiro restante tentaram flanqueá-lo. Murtagh chutou uma mesa no estômago
do espadachim e, quando ele tropeçou, pulou sobre o homem e bateu com a cabeça
dele no chão.
Sarros xingou e correu em direção à porta. Ao se virar, jogou um punhado de
cristais brilhantes em Murtagh.
— Sving! — gritou Murtagh.
Os cristais fizeram uma curva no ar e voaram para as chamas da lareira. Houve
uma série de estalos, e uma fonte de brasas vermelhas borrifou a lareira de pedra.
Antes que Sarros pudesse chegar à porta, Murtagh o alcançou. Ele agarrou a parte
de trás do gibão do homem e — com um grunhido e um puxão — levantou-o do
chão e por cima da cabeça, para depois jogá-lo nas tábuas de madeira.
O cotovelo esquerdo de Sarros dobrou em um ângulo não natural. O homem
gritou de dor.
— Essie — disse a mãe dela. — Fique atrás de mim.
Murtagh plantou um pé no peito de Sarros e disse:
— Agora, seu desgraçado. Onde encontrou aquela pedra?
Sigling saiu do balcão do bar e cambaleou pelo salão até a esposa e a filha. Eles
não falaram nada, mas a esposa passou o braço em volta dele, e o homem fez o
mesmo com ela.
Uma risada borbulhante escapou de Sarros. Havia um tom descontrolado na voz
que lembrou Murtagh dos momentos mais dementes de Galbatorix. Sarros lambeu
os dentes afiados e disse:
— Você não sabe o que procura, Andarilho. Está confuso e sem faro. O
adormecido se remexe, e você e eu… nós todos somos formigas esperando para
serem esmagadas.
— A pedra — repetiu Murtagh entre os dentes cerrados. — Onde?
A voz de Sarros ficou ainda mais alta, um guincho enlouquecido que rompeu o ar
da noite.
— Você não entende. Os Sonhadores! Os Sonhadores! Eles entram na sua cabeça
e distorcem seus pensamentos. Ahh! Eles deixam os pensamentos todos
desconjuntados.
Ele começou a se contorcer, batendo os calcanhares no chão. Espuma amarela
borbulhou nos cantos de sua boca.
— Eles virão atrás de você, Andarilho, e então você verá. Eles vão… — A voz
foi sumindo, virou em um coaxo rouco e, então, com um espasmo final, ele ficou
imóvel.
Uma ansiedade invadiu o estômago de Murtagh. O homem não deveria ter
morrido. Magia ou veneno estavam agindo ali, e nenhuma das duas explicações era
boa. Na verdade, toda a situação não significava nada de bom. Ele sentiu como se
tivesse sido pego em uma armadilha invisível e não sabia quem — ou o que — a
havia armado.
Por um momento, ninguém no salão se mexeu.
Murtagh sentiu os olhares dos outros em si enquanto arrancava o amuleto de
caveira de pássaro que estava pendurado no colar de Sarros, recuperava a capa e
voltava para a mesa perto da lareira. Ele embolsou a pedra com o brilho interno,
pegou a bolsa de moedas e então fez uma pausa, pensando.
Com a bolsa balançando na mão, ele foi até onde Sigling e sua esposa estavam
protegendo Essie. A garota parecia apavorada. Murtagh não podia culpá-la.
— Por favor… — disse Sigling.
— Minhas desculpas pelo inconveniente — pediu Murtagh. Ele sentia o fedor de
suor que exalava, e a frente da camisa de linho estava salpicada de sangue. — Aqui,
isso deve compensar a bagunça.
Ele estendeu a bolsa e, após um momento de hesitação, Sigling aceitou. O
estalajadeiro lambeu os lábios.
— A guarda da cidade estará aqui a qualquer minuto. Se sair pelos fundos… você
consegue chegar ao portão antes que eles o vejam.
Murtagh assentiu. Que atencioso da parte dele.
Então se ajoelhou e arrancou o garfo da cabeça do rufião caído nas tábuas
próximas. A garota se encolheu quando Murtagh olhou para ela.
— Às vezes, você tem que ficar e lutar. Às vezes, fugir não é uma opção.
Entende agora?
— Sim — sussurrou Essie.
Murtagh voltou a atenção para os pais dela.
— Uma última pergunta: você precisa do apoio da guilda dos pedreiros para
manter esta estalagem funcionando?
Sigling franziu a testa, confuso.
— Não, não se chegar a esse ponto. Por quê?
— Foi o que pensei — comentou Murtagh.
A seguir, ele presenteou Essie com o garfo. Parecia perfeitamente limpo, sem
sequer uma gota de sangue.
— Isso aqui é para você. Tem um feitiço para evitar que quebre. Se Hjordis
incomodar você de novo, dê uma boa cutucada nela, e ela te deixará em paz.
— Essie — disse a mãe em tom baixo de advertência.
Mas Murtagh percebeu que a garota já havia tomado uma decisão. Ela assentiu
com firmeza e pegou o garfo.
— Obrigada — disse Essie em tom solene.
— Todas as boas armas merecem um nome — falou Murtagh. — Especialmente
as mágicas. Como você chamaria essa?
A garota pensou por um segundo.
— Senhor Garfada!
Murtagh não pôde evitar que um sorrisão surgisse em seu rosto. Deu uma
gargalhada alta e sincera.
— Senhor Garfada. Gostei. Muito adequado. Que o Senhor Garfada sempre lhe
traga boa sorte.
E Essie sorriu também, embora um tanto incerta.
Então a mãe da menina perguntou:
— Quem… Quem é você?
— Sou só mais uma pessoa em busca de respostas — respondeu Murtagh.
Ele estava prestes a sair quando, num súbito impulso, estendeu a mão e tocou o
braço da garota. Murtagh falou as palavras de um feitiço de cura, e a garota
enrijeceu quando a magia fez efeito, remodelando o tecido cicatrizado no braço.
O frio invadiu os braços e pernas de Murtagh. Era o feitiço cobrando seu preço
em energia, extraindo a força de seu corpo para fazer a mudança que ele desejou.
— Deixe-a em paz! — disse Sigling, e tentou afastar Essie, mas o feitiço já havia
funcionado, e Murtagh passou por eles, a capa esvoaçando atrás de si.
Enquanto se movia pela cozinha nos fundos da estalagem, ouviu Sigling e a
esposa emitirem sons de espanto, e então os dois e Essie começaram a chorar, não
de tristeza, mas de alegria.
Murtagh não havia terminado. Enquanto os pais de Essie estavam distraídos, ele
expandiu a mente e entrou despercebido no fluxo de pensamentos deles. Foi sutil, e
nenhuma sondagem se fez necessária. Exatamente o que ele procurava estava em
primeiro plano em cada consciência: o momento, três anos antes, quando Essie
esbarrou no pai dentro da cozinha, enquanto ele carregava a panela de ferro
amassado com o cabo torto que estava cheia de água fervida para lavagem. Essie
entrou correndo, sem olhar, sem prestar atenção, e o pegou de surpresa. Agora,
naquele momento, uma mistura de culpa e alívio emanava de Sigling. Da esposa
vinha alívio, tristeza e um relaxamento do ressentimento contido que sentia pelo
marido por ter causado aquele acidente, embora sem intenção.
Murtagh se retirou. Seus medos tinham sido infundados, e ele estava contente por
isso. Essie e seus irmãos estavam seguros ali. Não havia mais nada que ele
precisasse fazer.
Sentiu lágrimas nos próprios olhos. Pelo menos ele foi capaz de fazer uma boa
ação naquele dia. Nenhuma criança deveria crescer com uma cicatriz como a de
Essie… ou como sua própria. Por um instante, Murtagh se imaginou reparando as
costas com magia, como havia reparado o braço de Essie, mas afastou a ideia.
Algumas feridas eram profundas demais para serem curadas.
Ele era filho de seu pai e nunca poderia fingir que não.

No beco do lado de fora do Festim Abundante, Murtagh ergueu a cabeça e respirou


fundo o ar noturno. Ainda estava nevando, os flocos delicados desciam em um véu,
e a cidade inteira parecia calma e silenciosa.
Seu pulso começou a desacelerar.
Quanto tempo fazia desde a última vez que ele matou um homem? Mais de um
ano. Uma dupla de bandidos o atacou quando voltava para o acampamento uma
noite — uns tolos sem instrução que não tinham a menor chance de derrotá-lo. Ele
lutou por reflexo e, quando se deu conta do que estava acontecendo, os dois
infelizes já estavam caídos no chão. Murtagh ainda podia ouvir os gemidos que o
mais novo fez ao morrer…
Fez uma careta. Algumas pessoas passavam a vida inteira sem matar. Ele se
perguntou como seria isso.
Uma gota de sangue — não dele — desceu pelas costas de sua mão. Enojado, ele
limpou a mão raspando na lateral do prédio. As farpas da madeira o incomodavam
menos que o sangue.
Embora não tivesse obtido uma localização específica de Sarros, pelo menos
sabia que o lugar comentado por Umaroth existia. Murtagh teria preferido muito
mais que não existisse. Qualquer que fosse a verdade escondida sob o campo de
terra enegrecida, ele duvidava que fosse o anúncio de uma coisa boa. A vida nunca
era tão simples assim.
Um pensamento questionador alcançou Murtagh vindo de fora de Ceunon. Thorn
temia pela segurança dele.
Estou bem, disse Murtagh ao dragão. Apenas um probleminha.
Eu preciso ir aí?
Creio que não, mas fique alerta.
Sempre.
Thorn recuou com uma sensação de vigilância cautelosa, mas Murtagh ainda
sentia o fio de conexão que os unia: uma proximidade reconfortante que se tornara a
única realidade imutável na vida dos dois.
Ele começou a descer o beco. Hora de ir. A guarda da cidade não demoraria a
chegar para investigar a agitação, e ele já se demorara demais.
Um lampejo de movimento no céu chamou a sua atenção.
A princípio, ele não tinha certeza do que estava vendo.
Um pequeno navio feito de grama descia das nuvens iluminadas pelo fogo; não
tinha mais do que um palmo ou dois de comprimento. O casco e a vela eram feitos
de folhas trançadas, e o mastro e os botalós foram construídos com caules.
Nenhuma tripulação — por mais diminuta que fosse — estava à vista. O navio se
movia por conta própria, impulsionado e sustentado por uma força invisível. O
objeto circulou Murtagh duas vezes, e ele viu uma pequena flâmula tremulando
acima do igualmente pequeno cesto da gávea.
Então o navio virou-se para o oeste e desapareceu dentro do véu de neve que
caía, sem deixar nenhum vestígio de sua existência.
Murtagh sorriu e balançou a cabeça. Ele não sabia quem havia feito o navio ou o
que significava, mas o fato de que algo tão excêntrico, tão singular, pudesse existir
o encheu de uma sensação incomum de alegria.
Pensou no que havia dito à garota, Essie. Talvez devesse seguir o próprio
conselho. Talvez fosse hora de parar de fugir e voltar aos velhos amigos.
O sorriso desapareceu. Em todo lugar que fora desde a morte de Galbatorix,
Murtagh ouvira o veneno nas vozes das pessoas quando pronunciavam o seu nome.
Poucos, além de Nasuada, confiariam nele depois de seus atos a serviço do rei. Era
uma verdade amarga e injusta, que há muito tempo as circunstâncias tinham-no
forçado a aceitar.
Por causa disso, escondera o rosto, mudara de nome e se mantivera às margens da
civilização, evitando lugares onde pudesse ser reconhecido. E embora o tempo que
passaram sozinhos tivesse feito bem a ele e a Thorn, Murtagh não achava que
poderiam continuar vivendo isolados para sempre.
Então, novamente ele se perguntou: teria chegado a hora de enfrentar o passado?
Não. O pensamento chegou com uma urgência decisiva. Murtagh não tinha
certeza se a convicção era dele ou de Thorn, ou uma combinação de ambos. Mesmo
que os dois tentassem se juntar à sociedade civilizada, Murtagh não conseguia
imaginar se algum dia seriam vistos como algo além de assassinos e traidores.
Olhou para o objeto que estava segurando: o amuleto de caveira de pássaro que
havia tirado do pescoço de Sarros. O crânio de um corvo, pelo que parecia.
Quem era a bruxa Bachel? Murtagh nunca tinha ouvido falar dela. Lançar feitiços
sem palavras era uma coisa descontrolada e perigosa, e raro era o mágico corajoso,
tolo ou talentoso o suficiente para arriscar tal ato. Mesmo com o treinamento
adequado, ele não teria ousado fazer aquilo no Festim Abundante, não com tantos
inocentes por perto. E quanto aos Sonhadores que Sarros havia mencionado?
Seriam companheiros de Bachel? Mais mistérios, como sempre.
Não, antes de qualquer coisa, ele queria saber de onde tinha vindo a pedra
brilhante e encontrar a bruxa Bachel para lhe fazer algumas perguntas.
Suspeitava que as respostas seriam muito interessantes.
Um sino agudo de alarme soou em algum ponto de Ceunon e tirou Murtagh do
seu devaneio. Ele enfiou o amuleto na capa e partiu em um ritmo rápido para os
portões do sul, determinado a escapar da cidade antes que a guarda o encontrasse —
e ele tivesse que matar alguém e se arrepender depois.
CAPÍTULO IV

Conclave

F ugindo outra vez, pensou Murtagh enquanto atravessava correndo os portões de


Ceunon. Parecia que ele e Thorn estavam sempre tendo que escapar de um lugar ou
outro. Indesejados. É isso que somos.
Um berrante soou pela cidade, e ele baixou a cabeça, em parte esperando que
uma chuva de flechas caísse ao seu redor. Já tinha ouvido esses alarmes em sonhos:
trombetas aterrorizantes que anunciavam a chegada de caçadores sem rosto,
implacáveis em sua perseguição.
Correu mais rápido.
Passou pelos estábulos no exterior das muralhas, então saiu da estrada e se
embrenhou pelas fileiras de cevada cobertas de neve, rumando para leste, onde
Thorn esperava por ele.
A noite estava ficando escura feito breu. Mesmo depois que seus olhos se
ajustaram à penumbra, mal conseguia ver onde pisava. Ainda assim, procurou
manter o ritmo, determinado a se afastar de Ceunon.
Tropeçou em vários montículos de toupeira no caminho e quase torceu o
tornozelo em uma toca de texugo.
— Filho de um Urgal — resmungou.
Ao chegar no fim dos campos, ele parou e olhou para trás. Os portões da cidade
haviam se fechado, e lampiões balançavam junto da muralha enquanto soldados
patrulhavam as ameias, mas ele não via sinais de ninguém deixando Ceunon para
segui-lo.
Começou a relaxar. Mas só um pouco.
Enquanto seguia caminho, arriscou convocar uma pequena luz mágica ao
sussurrar “Brisingr”.
A luz mágica era uma gota de chama sangrenta ondulando na noite e brilhando
apenas o suficiente para ele enxergar o caminho. Ela pairava poucos metros à frente
dele e mantinha a distância, não importando a velocidade com que ele corresse.
Brisingr. Eragon havia lhe ensinado aquela palavra de poder, assim como ensinou
muitas das palavras da língua antiga durante suas viagens juntos, no breve período
em que foram amigos e aliados. Por mais que tivesse sido uma época estressante, os
dois sempre se escondendo do Império, também fora um dos períodos mais
divertidos da vida de Murtagh, que se lembrava dele com uma mistura de gratidão,
pesar e ressentimento. Suas viagens tinham sido um período curto e brilhante de
liberdade, um momento após sua primeira fuga da tirania de Galbatorix em
Urû’baen e antes de sua recaptura pelas mãos dos seguidores do rei, em Tronjheim.
Depois disso, Galbatorix o forçara à submissão por meio da língua antiga e o
forçara a lutar contra seu irmão.
Murtagh se viu cerrando os dentes. Irmão. Ainda era estranho pensar em Eragon
dessa forma. Na verdade, meio-irmão, pois compartilhavam a mãe, mas Murtagh
era filho de Morzan, primeiro e mais importante entre os Renegados — como eram
chamados os treze Cavaleiros de Dragão que traíram a ordem para ajudar
Galbatorix a destruí-la, há mais de um século. Eu sou o filho traidor de um traidor,
pensou Murtagh, e essa compreensão queimou como ácido pingando no coração.
Eragon também era filho de um Cavaleiro, mas seu pai, Brom, havia feito uma
oposição ferrenha a Galbatorix e a todos os seus servos. Esse fato tivera uma
repercussão bastante pessoal, pois foi ele quem matou Morzan e seu dragão quando
Murtagh ainda era uma criança.
Murtagh contraiu os lábios. A história familiar deles era tão emaranhada e tão
dolorosa de mexer quanto um espinheiro. Desejou que a mãe deles ainda estivesse
viva para questioná-la, mas ela morreu pouco depois de dar à luz Eragon. E, embora
soubesse que era um pensamento irracional, ele culpava Eragon pela perda: mais
um motivo de ressentimento entre tantos outros.
Murtagh respirou fundo para limpar os pulmões e acelerou o passo. Sair do fluxo
principal dos acontecimentos na Alagaësia ajudou a acalmar a mente, mas ele ainda
sentia um nó por dentro — e Thorn também.
Poderia levar anos até que o nó de algum deles fosse desfeito, se era que isso
aconteceria algum dia.
Uma coruja piou de uma árvore próxima e, em algum lugar no mato, um animal
disparou para longe. Talvez um coelho. Talvez algo pior. Poderia ser um svartling.
Diziam que as pequenas criaturas de pele escura ajudavam nas tarefas domésticas se
recebessem pão e leite de presente, mas também diziam que pregavam peças cruéis
e muitas vezes perigosas nos viajantes.
Fosse o que fosse o som, Murtagh não queria encontrar seu autor no meio de um
campo à noite.
Ele diminuiu a velocidade enquanto subia a colina onde havia pousado com
Thorn, abrindo caminho entre os penhascos rochosos e as moitas de capim-de-
cavalo.
No topo, encontrou Thorn agachado, pronto para levantar voo. Os olhos do
dragão ofuscaram a luz mágica, e as escamas reluziram com brilho renovado.
Grandes sulcos marcavam a terra ao redor dele: tufos de grama amassados, arbustos
de capim-de-cavalo arrancados, pedras rachadas.
A cauda de Thorn se remexeu ao ver Murtagh, e o dragão estremeceu com toda a
energia que acumulara e não gastara. Um grunhido contraiu seus lábios.
Murtagh olhou para os sulcos, mas não comentou a respeito.
— Estou bem — disse ele. — De verdade.
Ele estendeu os braços e deu uma volta.
— O sangue não é meu.
Thorn o cheirou e rosnou ligeiramente antes de voltar a ficar de cócoras, o
focinho relaxado. Murtagh, no entanto, ainda podia sentir o medo, a frustração e a
raiva do dragão. Eu deveria ter ido ajudá-lo.
— Está tudo bem. De verdade.
Ele acariciou o pescoço de Thorn antes de ir aos alforjes para pegar Zar’roc;
desembrulhou a espada carmesim e — com uma sensação de alívio — prendeu a
arma na cintura.
— É melhor encontrarmos outro lugar para passar a noite — comentou, subindo
nas costas de Thorn até a sela amarrada entre os grandes espinhos nos ombros do
dragão.
Assim que se sentou, ele apagou a luz mágica.
Você sempre agita as cidades-formigueiros, disse Thorn.
— Eu sei. É um mau hábito. Vamos.
Após outro rosnado, com uma forte rajada de vento e um mover de músculos
iguais a aço, Thorn saltou para o ar da noite. A batida das asas foi como um golpe
de martelo invisível.
Mais três batidas e eles estavam nas nuvens. A névoa fria cortava as bochechas
de Murtagh, mas não era tão desagradável depois de ele ter corrido. Tinha gosto de
musgo, grama recém-cortada e novos começos.

Thorn voou para o leste pelo que pareceu um tempo interminável. Por fim, os dois
desceram e pousaram em um outeiro de topo plano com uma visão impressionante
da paisagem ao redor. Embora estivesse escuro, Murtagh conseguia divisar a
floresta de Du Weldenvarden mais ao sul — uma sombra que se estendia pela terra,
como se um grande braço apontasse para trás, em direção a Ceunon.
Sentiu um frio cortante nas costas quando tirou a capa e a camisa suja de sangue,
tentando não tocar nas manchas.
— Hvitra — murmurou ele enquanto impunha o desejo à vestimenta.
O pano brilhou ligeiramente, e as manchas vermelhas desapareceram.
Murtagh acariciou o linho. Parecia limpo o suficiente, mas ele ainda pretendia
lavar a camisa antes de usá-la novamente.
Em seguida, guardou a camisa nos alforjes e tirou a única outra peça de roupa
que possuía: um casaco grosso de lã — tricotado, não trançado —, tingido de
marrom-escuro com padronagem vermelha entrelaçada nos pulsos e na gola. A lã
pinicava, mas era a roupa que preferia usar enquanto voavam, porque esquentava
mais que o linho.
Ansioso para se cobrir, vestiu o casaco e se envolveu na capa logo em seguida.
Como uma fogueira poderia chamar atenção, Thorn se encolheu o máximo
possível, o nariz enfiado na cauda, e Murtagh se enfiou sob a asa direita do dragão e
estendeu o saco de dormir próximo às escamas lisas do seu ventre.
Valeu a pena?, perguntou Thorn.
— Acho que sim — respondeu Murtagh.
Abrindo a mente mais do que seria seguro entre estranhos, compartilhou as
memórias completas de Ceunon.
Eles não eram muito bons, comentou Thorn, se fixando na imagem dos guardas
de Sarros.
— Não, não eram. Sorte minha.
Um rosnado fraco, e o dragão apertou a asa em volta de Murtagh.
Vejo agora a tempestade diante de nós.
— Sim, mas que tamanho e força terá? Ainda não sabemos.
Mas ela existe.
— Sim.
A pálpebra encouraçada de Thorn se fechava e se abria com um leve estalo.
Você quer voar para dentro da tempestade.
— Talvez não para dentro dela, mas em sua direção, sim. O que me diz?
O dragão tossiu sua risada peculiar.
Que devemos levar a pedra para Tronjheim e mandar os anões esculpirem algo
bonito para nós.
Murtagh soltou um muxoxo de desdém.
— Com nossas cabeças assistindo sobre estacas?
Um leve cheiro de fumaça de dragão preencheu o espaço envolta deles enquanto
um fio de chama carmesim tremeluzia nas narinas de Thorn.
Não? Então digo que devemos dormir e falar a respeito disso pela manhã.
— Acho que você tem razão.
Atrás dele, Thorn zumbiu de novo e Murtagh cruzou os braços e deixou o queixo
afundar no peito. Debaixo da asa, tudo estava silencioso, e os dois pareciam ser as
únicas criaturas no mundo.
Antes que o sono o dominasse, Murtagh fez como era de hábito à noite e, em voz
silenciosa, pronunciou as palavras na língua antiga que formavam seu verdadeiro
nome. Ouvi-las nunca era fácil; conhecer o verdadeiro nome era conhecer as
próprias virtudes — e também os próprios defeitos. Ainda assim, ele o dizia todos
os dias para ter certeza de que ainda entendia a própria natureza e de que pertencia
apenas a Thorn. Pois um nome verdadeiro dava poder àqueles que o ouviam, e
assim como um mágico podia comandar um objeto com as palavras apropriadas,
também podiam comandar uma pessoa.
Foi o que Murtagh e Thorn aprenderam, para a tristeza e o desespero de ambos,
ao serem subjugados em Urû’baen.
Thorn também falou seu verdadeiro nome — um som grave de canto que fez
Murtagh sentir como se sua pele tivesse sido lavada com água morna. A seguir, as
tensões do dia deixaram braços, pernas e patas, e eles caíram em um sono profundo.

A manhã trouxe uma névoa congelante do oceano e uma camada espessa de geada
delicada. Cristais de gelo se soltaram quando Murtagh rastejou para fora da asa de
Thorn e franziu os olhos em direção ao disco pálido do sol nascente, fino e rosado
acima da borda de Du Weldenvarden. Serpentinas de névoa subiam das copas das
árvores. Toda a floresta fumegava com o calor armazenado do dia anterior.
Murtagh tremeu e fechou mais a capa. O frio da manhã nunca ficava mais fácil.
Ele verificou os arredores e ficou satisfeito por não ver nenhum sinal de busca ou
perseguição.
Confiante de que não tinham sido detectados, Murtagh se deu ao luxo de acender
uma pequena fogueira, feita com restos de arbustos secos de capim-de-cavalo que
colheu no topo e nas laterais do outeiro.
Thorn acendeu o fogo para ele com um único e minúsculo sopro de fogo das
narinas.
— Obrigado — disse Murtagh, com sinceridade.
Ele nunca considerou divertido mexer com pederneira e isca de fogo quando os
dedos estavam meio dormentes e preferia evitar o uso de magia para tarefas do dia a
dia. A magia fazia um tipo de ruído próprio para aqueles capazes de ouvi-la, e
nunca dava para saber quem poderia estar escutando.
O desjejum foi pão folha e bacon, com duas maçãs secas como acompanhamento
e uma caneca de chá de baga de sabugueiro para esquentar as entranhas. Thorn o
observou comer, mas não tinha comida para si; o dragão havia devorado vários
cervos menos de três dias atrás e não precisaria se alimentar novamente por quase
uma semana.
Quando Murtagh terminou, a manhã havia esquentado o suficiente para derreter a
geada e dissipar a névoa matinal.
Ele pegou o amuleto de caveira de pássaro e a pedra parecida com carvão e
colocou os dois em um pedaço de pano entre ele e Thorn.
Thorn cheirou os dois objetos, e a ponta da língua surgiu entre os dentes em um
movimento rápido. Ao farejar a pedra, as escamas na parte de trás da cabeça e
pescoço formigaram, como as de uma pinha se abrindo em uma fogueira.
— O que foi? — perguntou Murtagh, se inclinando para a frente. — O que é
isso?
Um arrepio percorreu a extensão sinuosa de Thorn, e ele se encolheu de uma
forma que Murtagh só tinha visto o dragão fazer diante de Shruikan.
A pedra tem um cheiro errado.
— Como assim?
Como… sangue, ódio e raiva.
Murtagh coçou a bochecha. A barba voltara a pinicar.
— Poderia ser mágica?
Outro movimento rápido da língua de Thorn.
Talvez. Mas, se fosse, a pedra deveria afetar você também.
— A menos que ela seja apenas para dragões.
Murtagh pegou a rocha e a quicou na mão. Em um impulso repentino, expandiu a
mente para o pedaço de pedra, pensando que talvez ela guardasse em seu interior
alguma centelha secreta de consciência. Mas não sentiu nada. Murtagh franziu a
testa e devolveu a rocha ao pano.
— Precisamos descobrir de onde ela veio.
Thorn sibilou como uma cobra.
Não. Você quer descobrir. Há uma diferença. Devemos destruir a rocha ou então
enterrá-la onde ninguém a encontrará. Há maldade nela. Abandone-a, esqueça-a,
não vá atrás.
— Você sabe que eu não posso.
Um grunhido retumbou na garganta de Thorn, e suas escamas ondularam.
Você pode! Ouça Umaroth. Ele nos alertou por um bom motivo.
— E qual seria esse motivo?
Não importa!
Thorn soltou uma baforada de fumaça escura e estendeu uma pata cheia de garras
em direção à rocha e ao amuleto, como se fosse empurrá-los.
— Não! — exclamou Murtagh, que se levantou em um salto para bloquear a
passagem de Thorn.
Eles se encararam, sem recuar. O ar entre eles parecia vibrar com a força do olhar
reluzente do dragão.
Saia do caminho.
— Não.
Esta caçada não trará nada além de tristeza.
— Eu não acredito nisso.
Pequenas chamas dançaram ao longo da língua de Thorn, e o interior de sua boca
brilhava como uma forja a pleno vapor.
Quando foi que o destino ocorreu como desejamos? Esqueça essa história.
— Não posso — disse Murtagh, sendo tomado por uma determinação e seriedade
que lhe eram conhecidas. — Não consigo dormir tranquilo sabendo que há um lobo
espreitando na escuridão. Algo tão perigoso que nem Umaroth ousa nomear.
É melhor deixar alguns segredos enterrados.
— Não! Não, não, não. Você quer acordar uma manhã e descobrir que fomos
derrotados, superados e enganados? Eu não. Nunca mais.
Murtagh parou com os punhos cerrados e as narinas dilatadas enquanto
estabilizava a respiração. Então, encarou Thorn com um olhar frio.
— Nunca.
O dragão soltou um silvo longo e sinuoso.
Não é o suficiente o que temos? Toda a terra e o céu são nossos para viajar.
Dormimos quando queremos, comemos quando queremos. Já demos o nosso
sangue.
— E ainda assim não estamos seguros!
Com um esforço consciente, Murtagh baixou a voz, embora as palavras
continuassem tão intensas quanto antes.
— Nunca estaremos, mas talvez possamos pegar nossos inimigos desprevenidos.
Umaroth está escondendo algo de nós, e não vou descansar até descobrir o que é.
Thorn soltou uma baforada de fumaça preta que envolveu a pedra e o amuleto de
crânio de pássaro. Se você os levasse para Eragon ou Arya...
— Eles não têm nada a ver com isso! — Murtagh passou a mão pelo cabelo, que
estava longo de novo. — Eu quero respostas. E quero ser útil.
Você já é útil o suficiente sendo você mesmo. Não precisamos nos provar para
ninguém.
Murtagh deu uma risada amarga.
— Talvez isso valha para você, que é um dragão. Mas sempre tive que me provar,
e sempre terei. Não há caminho fácil na vida quando você nasce como filho de
Morzan.
Ele foi até Thorn e colocou as mãos em cada lado do focinho escamado do
dragão.
— Além do mais, você e eu, nós somos Dragão e Cavaleiro. Não fizemos
nenhum juramento aos Cavaleiros…
Thorn arqueou o pescoço em uma curva orgulhosa, embora tenha deixado a
cabeça nas mãos de Murtagh.
E não farei mais juramentos de fidelidade. Nenhuma palavra me prenderá, nem
algemas ou grilhões.
— Não — concordou Murtagh. — Nem a mim. Mas temos uma dívida com
aqueles que vieram antes. Nós vestimos o manto deles, querendo ou não, e reluto
em desonrar sua memória ignorando isso.
Thorn fungou.
Ninguém saberia se escolhêssemos outro caminho.
— Nós saberíamos, e isso é o suficiente. — Ele gesticulou em direção à rocha e
ao amuleto de caveira de pássaro. — Este é um trabalho para um Cavaleiro e um
Dragão, como antigamente.
O dragão virou a cabeça para observar Murtagh melhor.
Então, devemos voar por aí lutando contra o mal e corrigindo injustiças onde
quer que as encontremos? É assim que você deseja passar seus dias?
Os lábios de Murtagh se contraíram.
— Não totalmente, mas talvez possamos fazer algum bem aqui e ali enquanto
cuidamos de nossos próprios interesses.
Como aconteceu com a garota.
— Como aconteceu com a garota.
Ele colocou a mão na bochecha de Thorn e a seguir abriu a mente o máximo que
pôde para o olho interior do dragão. Olhe, pediu, deixando Thorn sentir a plenitude
de seu coração.
Por fim, Thorn soltou um grunhido suave e afastou a cabeça.
Eu entendo.
— Mas não concorda.
A ponta da cauda de Thorn bateu no chão. Uma vez. Duas vezes. Três vezes.
O que você quer não é o que eu quero. Uma onda de hálito quente de dragão
percorreu Murtagh. Mas aonde você for, eu vou.
Ele concordou com a cabeça, agradecido. O relacionamento deles não era tão
tranquilo quanto o de Eragon e Saphira, e Murtagh achava que nunca seria. Mas
tudo bem. Um espinho cego não era um espinho.
Além disso, Murtagh sabia que não era a pessoa mais fácil de se conviver,
mesmo para um dragão.
Thorn devia ter percebido o humor dele, porque emitiu um leve zumbido de
deleite e enrolou o pescoço e o rabo em volta das pernas de Murtagh.
O que faremos, então?
Murtagh se ajoelhou e tocou o crânio do pássaro.
— Precisamos encontrar alguém que possa nos contar a respeito da bruxa Bachel
e desta pedra.
Umaroth?
Murtagh fez que não com a cabeça.
— Muito longe, e ele apenas diria para nos afastarmos da pedra novamente.
Thorn estalou as mandíbulas, afiadas e rápidas como uma armadilha de aço.
Será? Ainda acho que você deveria falar com Umaroth. Ele é mais sábio do que
a maioria.
Era um bom argumento. Não apenas Umaroth era velho e, presumia Murtagh,
dono de muito conhecimento, mas ele e seu Cavaleiro morto, Vrael, foram os
últimos líderes de sua ordem. Só isso já era motivo suficiente para dar peso às
palavras do dragão. No entanto, Murtagh permaneceu cauteloso.
— Eu respeito Umaroth — disse ele. — Mas não tenho certeza se confio nele.
Acha que Umaroth mente?
— Não. Acho que os objetivos dele podem não ser os nossos. Não sabemos.
Quanto tempo falamos com ele fora de Urû’baen? Apenas alguns minutos, se tanto.
Murtagh tirou uma migalha de pão da barba. Irritado, a jogou no chão.
Então, você quer descobrir a verdade sozinho.
— Quero.
Thorn inclinou a cabeça para o amuleto.
Então quem devemos procurar?
— Não tenho certeza. Precisamos de alguém aqui na Alagaësia, alguém que
conheça os segredos do reino.
Os olhos de Thorn se apertaram em fendas estreitas como facas.
E Yarek?
A nuca de Murtagh formigou e um punho pareceu se fechar no peito, dificultando
a respiração. Yarek Lackhand, discreto, frio e analítico, inteligente como um elfo e
cruel como um torturador — Murtagh ainda podia imaginá-lo parado nos corredores
de pedra da cidadela de Galbatorix, um homem de roupas monótonas com um
tampo de ferro no cotoco do pulso direito. Yarek fora o espião-mestre de Galbatorix
e, pelo que Murtagh tinha visto, ele se distinguia no cargo. Foi ele quem organizou
que os Gêmeos sequestrassem Murtagh, roubando-o dos Varden para que o rei
pudesse dominá-lo, subjugá-lo à sua vontade.
Thorn encostou o focinho no braço de Murtagh, que o acariciou.
Se não fosse por Yarek, eles não teriam se unido, e Murtagh tinha de considerar
isso uma coisa boa. No entanto, o espião-mestre era a própria definição de
implacável. E chutava cachorros, o que Murtagh desaprovava.
— Mesmo que ele ainda esteja vivo…
Você sabe que ele está.
Murtagh inclinou a cabeça.
— Provavelmente. Mas tenho certeza de que ele desapareceu em algum buraco, e
se eu começar a bisbilhotar, fazer perguntas, isso vai chamar a atenção.
Thorn fez um som grave de tosse. Seu jeito de rir.
— O que foi?
Se não Yarek, por que não a mulher, Ilenna?
— Ilenna…
Murtagh lançou um olhar curioso para o dragão. De todas as pessoas que
passaram pela corte de Galbatorix, Ilenna foi uma das mais incomuns, filha mais
nova de uma família de mercadores da cidade de Gil’ead. Os comboios de carga do
pai dela ajudaram a abastecer o exército do rei durante a guerra, e a família
enriqueceu. Apesar de plebeia, a garota flertava incansavelmente com ele sempre
que estava na corte, tanto que Murtagh passou a evitá-la. Aquilo por si só era mais
do que raro, mas o que chamou a atenção dele foi como Ilenna era bem informada.
Como Murtagh soube mais tarde, a família dela fez mais do que apenas transportar
suprimentos para Galbatorix. Eles também serviram como coletores e depuradores
de informações a serviço de Yarek, e Ilenna desempenhou esse papel da mesma
forma que seu pai e os irmãos.
— Não há como dizer se ela sabe alguma coisa a respeito de Bachel ou da pedra.
Thorn tossiu novamente e bateu com a ponta de uma garra afiada no chão.
É mais provável que ela saiba do que a maioria das pessoas. E, se não souber,
sem dúvida estaria disposta a fazer perguntas em nome do grande Cavaleiro de
Dragão Murtagh.
Murtagh grunhiu, sem achar graça.
— Mesmo que seja verdade… Não. Não faremos isso. Encontraremos outra
pessoa, em outro lugar.
Quem? Onde? Se você deseja achar Bachel e a fonte dessa rocha, Gil’ead é a
resposta. Se não, quanto tempo levará até encontrar o rastro deles?
— Nunca se sabe — murmurou Murtagh. — Pode acontecer. Talvez um dos
funileiros ou…
Uma baforada de fumaça acre soprou em cima dele quando Thorn bufou de
desdém.
Murtagh percebeu que falava absurdos e se calou. O dragão tinha razão. Sério,
cruzou os braços e olhou para as colinas e vales em direção ao horizonte.
O peso das memórias não mencionadas pairava entre eles.
— Gil’ead é perigoso.
Mais perigoso que Ceunon? Mais bem protegido do que Ilirea?
Murtagh mexeu os ombros, como se sentisse uma coceira no meio das costas. Ele
ainda não estava acostumado com o novo nome de Urû’baen. Toda vez que ouvia
Ilirea, sentia como se tivesse errado um degrau em um lance de escada.
Finalmente, ele respondeu, em pensamento, não em voz alta: Eu não quero. Não
havia dissimulação quando se tratava de comunicação mental nem barreiras para a
compreensão. Era a forma mais vulnerável de conexão que dois seres podiam
compartilhar, e ele a compartilhava com Thorn.
O dragão zumbiu um tom reconfortante e baixou a cabeça até pousar no chão aos
pés de Murtagh.
Deixe para lá, disse Thorn. Ou siga o caminho. Quanto esta caçada vale para
você?
Murtagh soltou o ar, descruzou os braços e se obrigou a ficar em pé. Colocou a
mão no meio da testa de Thorn e sentiu as escamas quentes em sua palma.
— Tudo bem. Iremos a Gil’ead e encontraremos Ilenna.

Antes de partirem do outeiro, Murtagh afiou a adaga na pedra de amolar feita por
anões que carregava consigo. Prendeu a arma no cinto da espada e, com a palavra
entha, fez um espelho com água derramada em um prato.
Ao olhar para a superfície cinza-prateada, ficou impressionado com a própria
aparência. Sem comer o suficiente, estava magro. Os dois nunca paravam, sempre
andando ou voando, muitas vezes em tempo inclemente. As refeições eram, na
melhor das hipóteses, intermitentes, e mais de uma vez ele passou um dia inteiro
sem dar uma mordiscada sequer em qualquer coisa.
Nada bom, pensou Murtagh. Quanto mais magro estivesse, menos reservas teria
para feitiços quando necessário. Os magos com o poder mais possante sempre
foram os mais pesados.
Ele puxou e esticou a pele da mandíbula, ergueu a adaga e começou a se barbear.
A adaga não era tão afiada quanto a navalha de um barbeiro, mas serviu. Murtagh
meio que se arrependeu da decisão já na primeira passada, porque sentiu o frio em
seu rosto. Ainda assim, persistiu, e logo acabou.
Ele se cortou apenas três vezes, o que considerou um sucesso.
Depois, se examinou no espelho improvisado. Sem a barba, ele parecia mais
jovem, só que também mais magro, mais maltratado, como um lobo faminto.
Ele derramou a água com a palma da mão.
Você voltou a ser você mesmo, disse Thorn.
Murtagh grunhiu. Talvez devesse ter esperado até chegar a Gil’ead para fazer a
barba, mas não suportava ter migalhas no queixo. Sem falar na coceira constante.
Ele secou o prato e o guardou nos alforjes. Depois, saltou para a sela de Thorn e
amarrou as pernas para não cair.
— Vamos voar!
Thorn rosnou em um tom feroz e satisfeito e saltou para o céu, batendo as asas.
O mundo deu uma guinada em torno de Murtagh, e ele agarrou o espinho do
pescoço do dragão, apertando os olhos contra a rajada de vento frio. Para o bem ou
para o mal, estavam indo para Gil’ead.
CAPÍTULO V

Voo de dragão

O mapa que Murtagh possuía — que havia comprado de um mercador de peles


perto de Teirm — não era detalhado o suficiente para dizer onde exatamente na
Alagaësia ele e Thorn estavam. Como a maioria dos mapas destinados ao uso de
mercadores, a preocupação se concentrava nas rotas terrestres e marítimas e não,
por exemplo, com a escala, localização e forma exatas da floresta Du
Weldenvarden.
Ele sabia que a floresta se estendia para o oeste em uma grande língua de árvores.
Ao sul ficava o lago Isenstar, e ao sul dele ficava Gil’ead. O caminho mais curto até
lá teria sido direto através da vastidão arborizada, mas isso implicaria entrar no
território dos elfos, guardado com muito zelo. Além disso, havia uma cadeia de
montanhas altas em algum lugar naquela seção da floresta, e as montanhas sempre
dificultavam o voo.
Então, em vez disso, ele e Thorn decidiram contornar a floresta enquanto
avançavam para o oeste e para o sul, até avistarem o lago Isenstar. Aí eles saberiam
onde estavam e poderiam virar em direção a Gil’ead.
Como havia se tornado hábito dos dois, Murtagh usava um feitiço simples para
esconder Thorn dos olhos daqueles no chão, humanos ou não. Por mais simples que
fosse, o feitiço exigia energia e, ao final de cada dia, Murtagh sentia um cansaço
entorpecedor, exacerbado pelo esforço necessário para montar o dragão, cuja batida
das asas era mais lenta em relação a outros pássaros, embora cada uma delas fosse
uma experiência cheia de solavancos e nada relaxante. Murtagh não conseguia
cochilar como faria a cavalo durante uma marcha longa.
Para passar o tempo, ficou pensando. Majoritariamente em magia. Tinha
percebido havia muito tempo que a magia era a chave para dominar o mundo,
controlar as circunstâncias e proteger a si mesmo e aos poucos de quem gostava.
Galbatorix não o treinara em encantamento enquanto crescia na corte, pois o rei
guardava tal conhecimento apenas para si. E, embora Eragon tivesse lhe ensinado as
primeiras palavras de poder, Murtagh não foi capaz de usá-las na época, por mais
que tentasse assiduamente. Somente alguns meses mais tarde, depois que Thorn
eclodiu durante sua prisão em Urû’baen, foi que Murtagh conseguiu quebrar a
barreira de vidro na mente e, pela força de vontade, realizar sua primeira magia.
Tinha sido um feitiço simples: lyftha, com o qual ele levitou uma coroa de ouro
da palma da mão de Galbatorix.
O rei tinha sido avarento com a educação de Murtagh desde então, ensinando a
ele o mínimo da arte. Um escravo armado era um homem liberto, e Galbatorix
deixara claro que tinha toda a intenção de manter um controle absoluto sobre
Murtagh e Thorn, ao mesmo tempo em que acorrentara seus temíveis servos, os
Renegados.
Incluindo meu pai.
Murtagh franziu a testa e desviou os pensamentos para um caminho diferente.
Tinha se tornado cada vez mais obcecado com entender o que era e o que não era
possível com magia. Como resultado, passava muito tempo pensando sobre as
complexidades da língua antiga e como a língua antiga não era mágica em si, mas
sim um meio de guiar sua intenção. Sem ela, um pensamento intrusivo durante o ato
de lançar um feitiço poderia resultar em algo completamente diferente e, talvez,
devastador. Por isso mesmo a magia silenciosa era tão perigosa.
O estudo da língua antiga era um trabalho para a vida inteira. E, no entanto... a
linguagem em si era insuficiente para explicar a verdadeira natureza da magia, pois,
na essência, a magia era um ato de manipular energia. E era isso que interessava a
Murtagh. O que era? De onde veio? Como poderia ser coletada e usada?
Era uma pergunta desconcertante.
Ele suspirou e olhou para o ápice escuro do céu. Talvez os elfos soubessem a
verdade a respeito da questão. Afinal, passaram séculos estudando os mistérios da
magia. A magia corria no sangue deles, assim como no dos dragões.
Se ao menos pudesse perguntar a eles.
Às vezes, desejava que ele e Thorn tivessem mantido o Eldunarí que Galbatorix
lhes dera. Assim jamais teriam que se preocupar com falta de energia, pois a
estrutura cristalina do Eldunarí mantinha armazenada uma quantidade enorme dela.
Tanto ou mais do que um dragão continha no corpo normal de carne e osso.
Murtagh ainda achava estranho pensar que os dragões criavam aquelas enormes
gemas em seus peitos. Antes de Galbatorix mostrar a ele um Eldunarí, Murtagh
nunca suspeitava de sua existência, e muito menos de que era possível para os
dragões armazenar a consciência dentro deles e continuar vivendo mesmo depois
que seu corpo morria.
Apenas mais um dos mistérios que envolvia os dragões.
O Eldunarí que o rei lhes emprestava com mais frequência era um dragão
chamado Yngmar. Assim como a maioria dos Eldunarí que Galbatorix possuía, era
uma criatura louca que o rei havia torturado até se tornar incoerente. Murtagh mal
era capaz de compreender o significado de seus pensamentos. Na maioria das vezes,
a tentativa não tinha feito nada além de lhe dar uma dor de cabeça latejante.
Mesmo assim, às vezes, Murtagh sentia falta de Yngmar e dos outros Eldunarí.
Sabia que Thorn também sentia. Os dragões sem corpo tinham dado a Murtagh
força e velocidade além do humanamente possível, o bastante para igualá-los aos
elfos. (O que nem sempre era um bom presente, pois a consequência eram dores
terríveis.) Porém, o mais importante era que a proximidade dos Eldunarí tinha
gerado certo companheirismo durante o tempo que ele e Thorn passaram
escravizados por Galbatorix. E aprendera com eles. Os Eldunarí tinham o hábito de
tagarelar na língua antiga, e Murtagh conseguia captar uma ou outra palavra,
embora não soubesse o significado exato delas.
Ele havia deixado os outros Eldunarí com Nasuada fora da cidadela em Urû’baen
após a morte explosiva de Galbatorix. Tinha sido a escolha certa; os dragões
precisavam de cuidados, e Murtagh se sentia inadequado para isso, assim como
Thorn. Até onde sabia, todos os Eldunarí existentes — incluindo Yngmar e
Umaroth — estavam agora com Eragon no extremo leste, além das fronteiras da
Alagaësia, onde foi estabelecer um bastião para a próxima geração de dragões e
Cavaleiros.
Era como deveria ser, mas mesmo assim, em seus momentos mais taciturnos,
Murtagh remoía o fato de Eragon ter tanto enquanto ele e Thorn levavam uma vida
muito mais difícil. Não era justo. Não que Murtagh acreditasse que justiça tivesse
algum papel naquilo. No entanto, o descontentamento permanecia, embora tentasse
não o alimentar, concentrando-se em pensamentos mais úteis.
Sem lembranças!
Murtagh cravou as unhas nas palmas das mãos e passou alguns longos minutos
observando o lento desfile da terra lá embaixo. Fileiras de nuvens longas e finas
faziam riscos diagonais abaixo de Thorn, dividindo o solo em listras discretas de
uma vista marrom-esverdeada.
O que você acha que é magia?, perguntou a Thorn.
Potencial, respondeu o dragão.
Quando se cansou de pensar nisso, Murtagh se ocupou em compor poemas no
estilo da corte de Galbatorix: em um estilo conhecido como Attenwrack, em
homenagem a seu criador, Atten, o Ruivo — um conde de pouca importância do
extremo sul, perto da cidade de Aroughs.
Murtagh nunca gostou de atividades acadêmicas. Ao crescer, bancou o aluno
obediente, mas tinha pouco interesse em matemática, lógica ou astronomia. A
história tinha sido um relato cuidadosamente regulado e aprovado por Galbatorix —
um ciclo repetitivo de autoelogios que o entediou desde a primeira vez que ouviu.
Ele aprendeu o alfabeto e praticou a leitura, mas os livros que poderiam interessá-lo
estavam trancados no grande cofre do rei, proibidos a todos os outros.
Murtagh sempre se sentira mais atraído por atividades físicas: combate, dança,
escalada, caça. Elas limpavam a mente, davam uma sensação de bem-estar e
realização e, mais importante, controle.
E, no entanto, na natureza selvagem e vazia, com nada além do céu e da terra
para contemplar, e um silêncio enorme e perigoso que o tentava constantemente à
retrospecção, ele encontrou um novo prazer em organizar as palavras de acordo
com os padrões do Attenwrack. Foi uma experiência estranha, mas Murtagh
insistiu, confuso e intrigado com a sensação de satisfação que o processo lhe
proporcionava.
Como era muito difícil escrever em um pergaminho montado em Thorn, ele
falava as palavras em voz alta e fazia o melhor que podia para manter todas na
mente.
Não era fácil. Às vezes, Murtagh esquecia o que havia composto, e isso era
frustrante. Outras vezes, ele não conseguia pensar na palavra certa, mesmo quando
sabia que existia — o que também era frustrante. A parte mais difícil era encaixar
as palavras em uma forma agradável enquanto ainda dizia o que queria dizer.
Falando devagar para evitar erros, ele recitou a mais recente estrofe:

A águia paira, a águia caça, um rei do ar.


Os pardais disparam, os pardais voam, sem coroa para usar.
Sempre em conflito, são muitos contra um só.
Em combate igual, a águia prevalece.
Em combate desigual e ferrenho, o soberano esmorece.
Voe como mandam ou voe sozinho, o
Final de cada voo ainda é o mesmo. O abraço
Gelado da morte acalmará sua última preocupação.

E os dragões comem todos eles, disse Thorn.


Murtagh coçou seu pescoço e olhou para o horizonte, taciturno, pensativo.
Desejava que Thorn pudesse comer todos os seres vivos, se necessário. Mas, ainda
assim, isso não salvaria nenhum dos dois de seu fim predestinado, pois o destino de
todas as coisas era morrer e ser esquecido. Até dragões.
Naquela noite, eles acamparam em um campo perto de um bosque de amieiros.
Murtagh preferia ter ficado sob as árvores — detestava dormir ao relento —, mas,
como sempre fazia quando paravam, ele se submeteu à escolha de Thorn.
Os amieiros estavam às margens de um pequeno riacho que brotava de Du
Weldenvarden a algumas léguas de distância. Enquanto esperava que a fogueira
atingisse o máximo de calor, Murtagh foi encher os odres.
A casca branca dos amieiros quase aparentava brilhar na luz que desvanecia, e o
ambiente parecia fresco, silencioso e venerável embaixo dos ramos arqueados. As
folhas estavam começando a ficar vermelhas e douradas, e o cheiro de musgo
orvalhado perfumava o ar.
Murtagh se ajoelhou perto do agitado riacho. A água passou fria por seus pulsos
enquanto ele submergia os odres, um após o outro. Uma vez cheios, os odres
ficavam pesados, desajeitados e escorregadios. Murtagh tinha trazido apenas dois,
mas descobriu que voar o deixava com uma sede inexplicável, então comprara mais
três de um caçador na Espinha.
Quando os levantou, a alça de transporte de um arrebentou, e o odre caiu no
chão.
— Barzûl — xingou ele no idioma anão.
Murtagh tentou pegá-lo, mas o objeto escorregava, e ele se atrapalhou tentando
equilibrar os outros quatro.
— Thorn! — gritou sem nem pensar. — Você pode me ajudar? Eu não consigo
carregar todos eles!
Um som de aspiração veio da borda do bosque. Ele olhou para trás e viu Thorn
agachado na frente das árvores, farejando e balançando a cabeça para a frente e para
trás.
Murtagh logo percebeu o problema. Havia espaço suficiente entre os amieiros
para o dragão, mas por pouco — uma trilha de caça levava até o riacho. O espaço
era muito confinado para Thorn abrir as asas, erguer a cabeça ou se virar com
facilidade.
— Você não precisa… — Ele se calou quando Thorn deu um passo adiante. E
depois outro. A esperança começou a se formar dentro de Murtagh.
Uma rajada de vento sacudiu os galhos acima da cabeça do dragão. A madeira
rangeu e gemeu, como se reclamasse. O bosque pareceu ganhar vida com intenções
hostis. Thorn recuou, mostrando as presas. Ainda rosnando, ele retrocedeu para a
beira dos amieiros e se encolheu de cócoras.
Uma mistura curiosa de tristeza e raiva desfez a esperança de Murtagh. Ele
retesou a mandíbula e ajustou a pegada nos odres.
Thorn estendeu a pata dianteira esquerda sob as árvores.
Me passe os odres. Eu os levarei de volta.
— Tudo bem — disse Murtagh, mantendo o olhar baixo. — Eu me viro. Vá. Te
alcanço daqui a pouco.
Thorn rosnou, mas havia um tom melancólico no som. Depois de um momento,
ele se virou e, com passos pesados, voltou ao acampamento.
A respiração de Murtagh falhou dentro do peito. Ele ignorou e contorceu a mão
direita até conseguir segurar o bocal do odre caído.
Em seguida, saiu penosamente do bosque.

A fogueira havia se apagado, deixando um leito de brasas fumegantes.


Murtagh olhou para os rubis brilhantes e comparou mentalmente com a pedra
encontrada por Sarros.
Ele coçou o antebraço onde doía. Estava mais cansado do que o normal. A briga
na taverna em Ceunon e o voo cobraram um preço.
Das bolsas, ele retirou o pacote de couro que continha as penas, o pergaminho e
um frasco de tinta de noz de galha. Pegou o pergaminho coberto em parte por sua
caligrafia vertical e escreveu cuidadosamente os versos que havia composto antes.
O resultado o deixou insatisfeito, com a sensação de que poderia ter feito melhor.
Enquanto esperava que os traços de tinta secassem, ele usou o dedo para
desenhar um sulco estreito no chão. Então, de uma extremidade, fez uma bifurcação
que se ramificava para a esquerda e para a direita.
Inclinou a cabeça, estudando a visão.
Durante as horas que passou contemplando a magia, ele começou a considerar as
possibilidades de feitiços condicionados. Acreditava que eles tinham mais potencial
do que a maioria se dava conta.
Murtagh tocou o ponto onde os sulcos se bifurcavam.
— Ílf adurna fïthren, sving raehta — sussurrou.
Ou, em tradução grosseira, se a água tocar, vire à direita. Então ele destampou o
odre ao lado e despejou um pouco de água na extremidade oposta do sulco.
A água percorreu o sulco até o caminho se dividir. Então, como se guiada por
uma mão invisível, fluiu para o ramo direito da vala rasa que ele cavara. E Murtagh
sentiu uma leve — mas proporcional — perda de energia. Ele encerrou o
encantamento e franziu a testa enquanto tampava o odre.
Quantas condições ele poderia empilhar em um feitiço? E a que distância
precisava estar do ponto de ação? Será que poderia vincular um feitiço
condicionado a um objeto, como uma joia, e deixá-lo cumprir suas ordens? Como
uma armadilha para um inimigo ou um alarme no caso de um determinado
acontecimento? Havia uma miríade de possibilidades. Será que ele conseguiria
construir uma estrutura de condições que protegeria Thorn e ele mesmo de todas as
ameaças concebíveis?
Tudo isso era digno de experimentar.
Do outro lado das brasas da fogueira, Thorn se mexeu e soltou um som de
lamúria. Ele estava dormindo, mas era um sono inquieto. Sempre era assim.
Murtagh observou o dragão, preocupado, e esfregou o antebraço esquerdo, para a
velha dor passar. Ele suspirou e olhou para o grande arco de estrelas salpicado no
céu noturno, desejando a sabedoria para acalmar e confortar, para curar mentes
feridas.
Se o pensamento era uma oração, ele não sabia a quem se destinava. Os deuses
dos anões não eram os de Murtagh, e as superstições do populacho não o atraíam.
Mas esperava que alguém ou alguma coisa pudesse ouvir seu apelo. E se não
ouvisse — se, como ele suspeitava, ninguém estivesse lá para responder —, então a
tarefa de melhorar era dele e somente dele. A perspectiva era intimidante, mas
também consoladora. O que quer que tivesse realizado — de bom ou de mau —
podia ser reivindicado sem divisão de legitimidade. Se o acaso ditava os
acontecimentos da vida, ele era o senhor de suas reações, e nenhum rei ou deus
poderia infringir esse direito.
Murtagh guardou o pergaminho, as penas e a tinta e então se deitou no cobertor.
Olhou para Thorn e decidiu deixar o dragão dormir em vez de acordá-lo para o
ritual noturno. Thorn precisava descansar depois de um longo dia voando, e
Murtagh já sabia o verdadeiro nome dele. Ele o prezava tanto como o próprio nome
e, como o incidente nos amieiros havia mostrado, ouvir o verdadeiro nome de
Thorn outra vez não lhe ensinaria nada de novo.
Fica para amanhã, pensou Murtagh.
Ele falou seu nome verdadeiro bem baixinho, e a nuca formigou e o coração
acelerou com o fluxo de autoconhecimento, implacável e intransigente.
Depois, puxou o cobertor sobre os ombros e observou a pulsação das brasas
enquanto esperava que o coração desacelerasse e o sono o levasse.

Murtagh sonhou, e foram sonhos difíceis.


Ele se viu revivendo a emboscada e captura que sofreu em Tronjheim. Sendo
amarrado pelos pés e mãos e forçado pelos Gêmeos a percorrer incontáveis
quilômetros de túneis escuros, e depois grande parte da Alagaësia até Urû’baen e o
rei Galbatorix. Murtagh nunca tinha se sentido tão impotente…
E então ele estava lutando contra Eragon na Campina Ardente. As hostes de
homens e anões se enfrentavam em volta dos dois enquanto o rei anão jazia morto
em sua armadura dourada em meio ao campo de chamas eternas. Arrependimento
misturado com raiva.
Quando a batalha recuou em sua mente, a visão de Murtagh mudou:
Nasuada parada diante dele. Nasuada, como Murtagh a tinha visto pela primeira
vez em Tronjheim. Jovem e ainda sem experiência com as dificuldades do comando,
sem ter ascendido à liderança dos Varden nem ao posto de rainha, mas alta e
majestosa de qualquer maneira.
E ele, por outro lado, um prisioneiro em uma cela, preso ali pelos Varden que
tentavam decidir a quem realmente pertencia sua lealdade.
A partir daquele momento, ele a admirou, pois podia ver que sua determinação
era páreo para a dele. E ela foi benevolente com ele quando nenhuma benevolência
era merecida; falou com ele sem preconceitos, movida por um desejo sincero de
entender o motivo de Eragon e ele terem ido aos Varden. Nasuada falou com ele
como a pessoa que ele era, não a pessoa que os outros acreditavam que fosse.
A visão mudou: o vestido se transformou no que ela usava quando, muito mais
tarde e por ordem de Galbatorix, Murtagh a capturou no acampamento dos Varden.
A sua expressão de resistência machucou o coração dele. Murtagh viu o medo que
ela sentia sob aquela atitude, e a injustiça monstruosa da situação o feriu.
Ele a viu acorrentada ao altar de cinzas no Salão da Profetiza, na antiga câmara
sob Urû’baen, onde Galbatorix a mantinha prisioneira. Manchas e lágrimas
apareceram no vestido, o cabelo de Nasuada ficou desgrenhado, e os olhos,
atormentados. Marcas lívidas desfiguraram os braços dela. Mas a expressão de
resistência nunca desapareceu durante as torturas que ele lhe infligiu, por ordem
de Galbatorix. E ainda assim, Nasuada demonstrou compreendê-lo.
E eis que os dois estavam no pátio coberto de escombros do lado de fora da
cidadela em Urû’baen. A fumaça escurecia o céu, e as cinzas caíam como neve. O
rei estava morto. A guerra fora vencida. Nasuada o encarou sem resistência, com
olhos escuros arregalados e vulneráveis. E as únicas palavras que ele conseguiu
pronunciar foram: “Sinto muito.”
Elas não eram suficientes. Como poderiam ser?

Estorninhos e pegas discutiam nas copas dos amieiros quando Murtagh acordou. A
testa e as axilas estavam suadas, e o pulso estava acelerado como o de um cavalo
assustado.
Ele se sentou e enxugou a testa.
O sol ainda não havia nascido, e Thorn ainda estava dormindo.
O coração de Murtagh parecia vazio. Houve um breve período, após a batalha de
Tronjheim, em que ele foi um homem livre e Nasuada ainda não estava
sobrecarregada com as responsabilidades do comando. A possibilidade de um flerte
apenas começou a se formar entre os dois quando o destino interveio. Se eles não
tivessem sido interrompidos…
Ele balançou a cabeça. Era inútil considerar o que poderia ter acontecido. A
situação era essa, e era o fardo dos vivos lidar com a vida da melhor maneira
possível.
Mas ter noção disso não aliviava a dor.
Com cuidado para não fazer barulho, Murtagh se levantou, pegou Zar’roc do
cobertor e caminhou para longe do acampamento.
A camada de geada sobre a grama estalava sob suas botas e fazia um som agudo
e seco.
Ele ficou parado em um campo vazio de relva. A postura ereta, os ombros
empertigados, olhando para o futuro.
Respirou fundo o ar gelado e sacou Zar’roc da bainha carmesim. Na luz cinzenta
do amanhecer, a lâmina da espada era um fragmento afiado de vermelho iridescente
— um espinho reluzente de sangue congelado, ansioso para cortar, perfurar e matar.
A espada de um Cavaleiro, forjada de aço de luz por um ferreiro élfico há mais de
um século e imbuída de feitiços de força, afiação e resistência. A melhor arma que
um guerreiro poderia empunhar na vida, e ainda assim ele sentia tanto aversão
quanto admiração por ela. A espada de um Cavaleiro, sim, mas esse Cavaleiro tinha
sido Morzan. O pai dele. E Morzan a usara para muitos atos cruéis e sangrentos…
assim como Murtagh depois dele.
Não foi à toa que Morzan batizou a espada de Desgraça na língua antiga e,
honrando o nome, foi isso que a espada trouxe a muitas pessoas em todo o reino,
incluindo ao próprio Murtagh.
Às vezes ele se perguntava se deveria ter tirado Zar’roc de Eragon.
Murtagh afastou aquele pensamento. Ignorar seu passado não mudaria nada.
Querendo ou não, a sombra de Morzan sempre pairaria sobre ele e, além do nome e
da cicatriz nas costas, Zar’roc era tudo o que havia herdado do pai. Era uma herança
irrisória e odiosa, mas era só dele, e por isso Murtagh se agarrava a ela.
Ele segurou a bainha na mão não dominante enquanto executava as manobras
familiares. Dar um passo, golpear, aparar, virar. Bloquear, brandir, dar uma
estocada. Murtagh se movia sem pensar, a mente tão quieta e vazia quanto um lago
sem vento em um dia sem nuvens.
Atacar, defender, escapar. Golpear e recuar, procurar a abertura, executar o corte,
arriscar a estocada. Ele usou a bainha como uma adaga, bloqueando, desviando,
batendo no pulso, criando oportunidades para um golpe letal.
O corpo dele se aqueceu, o pulso se estabilizou. Ele se moveu mais rápido, se
obrigando a manter o ritmo da batalha, cada movimento um estalo de ação para
preservar sua vida e encerrar outra.
Os pulmões cederam antes dos braços. Incapaz de continuar, Murtagh caiu de
joelhos e apoiou a bainha contra o chão, e a espada sobre as coxas.
À medida que os primeiros raios de luz varreram a grama congelada, o rubi em
forma de ovo no pomo de Zar’roc refratou e dividiu os raios em dardos vermelhos
brilhantes.
Assim que a respiração se estabilizou, ele se levantou, embainhou a espada e
cambaleou de volta ao acampamento.
Do outro lado da fogueira apagada, Thorn observava. Ele fungou quando
Murtagh se aproximou.
Você fede a medo.
Murtagh grunhiu.
— Eu sei. Vou me lavar.
Murtagh se encolheu quando o dragão lambeu seu cotovelo. Então se obrigou a
relaxar e deu um tapinha na cabeça de Thorn.

Os dias seguiram o mesmo padrão. Os dois voavam, tomando cuidado para não
serem avistados. Murtagh pensava, escrevia e pensava um pouco mais. No
acampamento, registrava tudo o que valia a pena guardar e às vezes lançava alguns
feitiços. E todas as noites depois da primeira, Thorn e ele falavam seus verdadeiros
nomes juntos em confissão silenciosa.
À noite, sonhavam, e nenhum dos dois falava sobre o que tinha visto na
madrugada.
Durante todo esse tempo, Du Weldenvarden permaneceu um mar aparentemente
interminável de árvores à esquerda. As profundezas escuras da floresta enchiam
Murtagh de apreensão e temor — não gostava da ideia de se perder entre as fileiras
de pinheiros sem trilhas. Mesmo assim, ainda se perguntava como seria caminhar na
floresta antiga. Ele e Thorn nunca tiveram a oportunidade de visitar o lar ancestral
dos primeiros Cavaleiros.
O pensamento o lembrou da Ilha de Vroengard, e ele estremeceu. Aquele foi um
lugar do qual ambos ficaram contentes de ir embora. A ilha inteira parecia nefasta,
maculada pela morte de dragões, envenenada pela magia liberada na queda dos
Cavaleiros.
Às vezes, Murtagh achava que toda a Alagaësia era um cemitério repleto de
tristezas da história.
Durante a terceira noite, com Thorn de bom humor, os dois lutaram juntos, ou tão
bem quanto um homem e um dragão poderiam lutar. Murtagh correu, disparou e
pulou em volta do dragão, tentando tocá-lo com a ponta de Zar’roc
(momentaneamente sem fio graças a uma magia). E Thorn, por sua vez, fez o
melhor possível para mantê-lo afastado, agarrá-lo e prendê-lo ao chão.
Foi muito divertido, mesmo Murtagh se machucando e ganhando um corte. Ele
também provocou alguns hematomas, mas Thorn não se importou. Os olhos do
dragão brilhavam com deleite feroz toda vez que Murtagh acertava um golpe ou o
obrigava a se esquivar.
Depois, Murtagh se deitou contra a barriga arfante de Thorn enquanto ambos
recuperavam o fôlego.
— Você foi lento feito uma tartaruga — implicou ele.
Thorn cutucou seu braço ferido com o focinho. E você foi sutil feito um touro.
Murtagh sorriu.
— Pode até ser, mas ainda consegui te alcançar.
A única coisa que recebeu em resposta foi um rosnado bem-humorado.

Na manhã do quarto dia, um lençol de prata apareceu estendido ao longo do


horizonte sul.
— Isenstar! — disse Murtagh, e Thorn fez uma curva suave.
O lago era um dos maiores da Alagaësia. Em circunstâncias normais, os dois
teriam voado sobre a costa, mantendo a terra sob eles, caso precisassem descer. No
entanto, certamente haveria pessoas ao longo das margens, e o feitiço que Murtagh
usava para esconder Thorn de olhos curiosos não ajudava a abafar o som de suas
asas ou a presença de sua mente. Então Thorn partiu direto para a extensão
ondulante.
Havia garças em Isenstar, e gaivotas e andorinhas-do-mar, que voavam para o
interior do lago para comer seus peixes. Uma formação em V de garças se juntou a
Thorn no céu; os pássaros não demonstraram medo do dragão, que era maior e mais
lento.
Murtagh se divertia gritando com as garças, e elas respondiam com uma grasnada
terrível que o fez pensar em um cruzamento de burro com porco.
Durante o dia inteiro, Thorn voou mantendo o ritmo com batidas lentas e
poderosas. Ao meio-dia, a luz refletida lá de baixo era tão brilhante que Murtagh
teve de desviar os olhos para não ficar cego. Mais tarde, a água adquiriu uma
clareza surpreendente — mesmo lá do alto, era possível ver grandes peixes e
trechos ondulantes de sargaço.
Havia barcos também, pescadores competindo com os pássaros pelo provento do
lago. E caçadores e mercadores que transportavam mercadorias para o norte ou para
o sul entre Gil’ead e Ceunon.
No entanto, o que mais chamou a atenção de Murtagh foi um bote estreito para
duas pessoas, com casco branco e uma forma elegante inconfundível.
— Elfos — disse, e sinalizou com a mente.
Thorn desviou para o oeste, para longe do barco a remo.
— Proteja seus pensamentos. Se eles não nos viram, podemos passar de
mansinho.
Thorn zumbiu em resposta.
O bote encolheu atrás deles mais lentamente do que Murtagh gostaria. Ele
observou até que a embarcação se transformou em um ponto minúsculo e indistinto,
e só então se permitiu relaxar.
De todas as raças, os elfos eram os mais habilidosos com magia e comunicação
mental. O feitiço que Murtagh usava para ocultar Thorn de olhares curiosos não
escondia as mentes dos dois, e se os elfos decidissem expandir os pensamentos e
testar o céu, bem… Ele se permitiu um sorriso irônico. O dia teria se tornado
desagradavelmente interessante.
Ele coçou os espinhos no pescoço de Thorn.
— Bom trabalho.
Olhos aguçados, foi tudo o que o dragão disse em resposta.
O céu tinha escurecido e ficado roxo, e uma cortina de nuvens douradas pairava
sobre o lago quando Gil’ead apareceu, além da costa, à frente deles.
A cidade era basicamente como Murtagh se lembrava. Baixa e rústica, com
prédios de paredes de toras e, no centro, uma fortaleza extensa. Era lá que deveria
residir lorde Relgin, o atual governador da cidade, e era lá que Murtagh suspeitava
que encontraria Ilenna, bajulando e reunindo segredos. Isso se a família dela não
tivesse sido exilada pela associação ao Império. Murtagh duvidava disso. A
empresa de transporte da família dela era útil demais para quem quer que detivesse
o poder, fosse Galbatorix, Nasuada ou lorde Relgin.
Murtagh estava contente por ter chegado, mas a visão de Gil’ead lhe trouxe
pouco prazer. Na última vez que estiveram na cidade, Thorn e ele lutaram a mando
de Galbatorix, em uma tentativa desesperada e fracassada de ajudar a defender o
local dos elfos. Uma batalha sangrenta e sofrida. E a ocasião antes dessa não tinha
sido melhor: uma emboscada, seguida de Murtagh entrando na fortaleza
sorrateiramente para resgatar Eragon das garras do Espectro Durza.
Ele procurou e viu: o telhado acima do salão de banquetes da fortaleza,
reconstruído e com telhas novas. O povo de Gil’ead esteve ocupado desde o fim da
guerra.
Na mente, Murtagh ouviu o poderoso estalo que soou quando Saphira arrancou o
teto original do salão de banquetes durante a fuga. Ele fez uma careta. Aquela tinha
sido uma noite terrível, mas não a primeira dessas para sua família em Gil’ead.
Tivemos uma história infeliz aqui, pensou. Melhor não colocar outra na conta.
Então não entre em mais nenhuma briga, disse Thorn.
Você sabe que não posso prometer isso.
Murtagh olhou para o oeste. Naquela direção, escondida em algum lugar entre as
colinas ao redor de Gil’ead, ficava a depressão onde ele se escondera com Saphira
enquanto planejavam resgatar Eragon…
— Por ali — disse ele, apontando.
O horizonte se inclinou quando Thorn se virou para o oeste, e Murtagh voltou a
estudar o desenho da cidade enquanto considerava a melhor forma de abordar
Ilenna.
CAPÍTULO I

Território hostil

A s batidas das asas de Thorn causaram uma enxurrada de folhas enquanto ele
descia entre salgueiros e choupos até a depressão isolada. Ele mal cabia na clareira,
e Murtagh sabia que o dragão estava incomodado.
Enquanto folhas ainda caíam, Thorn olhou em volta do espaço confinado. Ele
rosnou, e um par de corvos saiu crocitando de dentro dos choupos.
— Está tudo bem — disse Murtagh em um tom tranquilizador. — Temos que nos
esconder, e este é um bom lugar para isso. Se alguma coisa acontecer, você pode
levantar voo.
Thorn revirou os olhos, mas não saiu do lugar.
Depois de soltar as pernas, Murtagh deslizou até o chão. Era estranho estar de
volta àquela depressão, como se fosse um lugar saído de um sonho meio esquecido.
Ele se sacudiu e vasculhou a área com a mente. Ficou aliviado ao sentir que as
únicas criaturas vivas eram ratos e coelhos, duas doninhas e um pequeno rebanho
de veados pastando em uma colina próxima.
— É seguro — afirmou, satisfeito.
O dia já estava quase no fim, então os dois montaram acampamento e logo
adormeceram profundamente.

Lorde Relgin conhece você bem o suficiente para reconhecê-lo?


Murtagh tirou os olhos da tigela. Acender uma fogueira era muito arriscado tão
perto de Gil’ead, o que significava um café da manhã de mingau frio e carne-seca.
Thorn o observava do centro da clareira. Ele se recusou a entrar debaixo da copa
das árvores, onde Murtagh havia colocado seu saco de dormir.
— Ele sabe que eu existo, mas não acho que nos conhecemos. De qualquer
forma, não devo encontrá-lo.
E se isso acontecer?
— Vou mentir e, se mentiras não forem suficientes, vou fugir.
Thorn hesitou.
Um pardal passou disparado pela clareira, perseguindo insetos matinais.
Murtagh enfiou o resto do mingau na boca.
— De qualquer forma, estarei de volta ao pôr do sol. Se não…
A terra macia se espremeu entre as garras de Thorn enquanto ele amassava o
chão.
— Se não — repetiu Murtagh com ênfase gentil —, eu te aviso.
Você vai levar Zar’roc desta vez?
Murtagh olhou para a espada apoiada no tronco em que estava sentado. Queria
levá-la. Entrar em Gil’ead desarmado não era uma perspectiva atraente.
— Ela vai chamar muita atenção. Em vez disso, levarei minha adaga.
Thorn soltou um silvo de desaprovação.
Sempre isso. Você deve pegar outra espada, uma que possa carregar aonde quer
que vá.
— Não é uma má ideia — disse Murtagh, limpando a boca. — Eu teria que
encantá-la, no entanto, para que não quebrasse.
Então faça isso, insistiu Thorn.
Murtagh olhou para ele.
— Tudo bem. Gil’ead tem um grande mercado de armas. Ou tinha. Vou ver o que
encontro lá.
Bom, disse Thorn, cavando as garras mais fundo no chão.
— Mas até lá…
Murtagh se levantou de um salto e caminhou entre as árvores até encontrar um
broto de álamo da grossura do pulso que havia morrido por falta de luz, sob a
sombra dos ramos das árvores adultas. Ele arrancou o broto e levou de volta ao
acampamento.
Lá, Murtagh arrancou a casca e cortou o broto para que ficasse uma cabeça mais
alto do que ele.
— Feito — disse Murtagh ao erguer o cajado. — Não é a melhor madeira, mas
serve por enquanto.
Você sabe lutar com isso?, perguntou Thorn.
— Melhor, sei andar com isso — disse Murtagh enquanto se apoiava no bastão
como se tivesse um problema no joelho. — Se alguém olhar, verá minha perna, não
meu rosto.
Thorn cheirou o cajado.
Uma garra de madeira sem fio é melhor do que garra nenhuma, creio eu. Ainda
assim, tente não chutar um vespeiro como fez em Ceunon.
— Não foi de propósito.
Nunca é. Talvez Ilenna consiga evitar que você se meta em encrenca, hein?
Murtagh ergueu uma sobrancelha.
— Se não o conhecesse, acharia que você quer que ela me capture.
A boca de Thorn se abriu em algo parecido com um sorriso.
Talvez você devesse deixar isso acontecer. Pode aliviar o fogo em sua barriga.
Murtagh deu um muxoxo de desdém.
— Você sabe a consequência disso. Filhos.
Filhotes não são uma coisa ruim.
Ele olhou para Thorn, sério.
— São, se você não puder dar a eles os cuidados de que precisam. Eu não
submeteria um filho meu a isso. Prefiro morrer.

Saindo da depressão, Murtagh caminhou na direção nordeste até interceptar a


estrada principal que levava a Gil’ead. Havia soldados marchando ao longo do
caminho, fazendeiros conduzindo carroças e gado, carruagens fechadas e uma
caravana de mercadores carregada com mercadorias do sul.
Murtagh entrou na estrada e seguiu atrás da caravana, sem fazer nenhuma
tentativa de evitar a nuvem de poeira levantada pela fila de mulas. Ele puxou o
capuz sobre o rosto, abaixou a cabeça e adotou um passo manco.
Enquanto caminhava, ensaiava as mentiras. Sim, ele era Tornac, filho de Tereth,
vindo de Ilirea para comprar espadas, lanças e escudos para os soldados de seu
patrão. Seu patrão? Um tal Burdock Marrisson, que serviu com honra como capitão
no exército de Nasuada e recebeu um título menor como recompensa. Não, ele não
tinha nenhuma carta de recomendação. Por que deveria ter? Sim, ele tinha uma
carta de crédito para fazer as compras. Seu cavalo? Guardado no estábulo na
Estalagem Cattail, ao sul de Gil’ead.
E assim por diante. A história não resistiria a uma inspeção minuciosa, mas
Murtagh esperava que fosse o suficiente para evitar encrencas.
Nos campos ao lado da estrada, viu vestígios da batalha por Gil’ead, fantasmas
do derramamento de sangue passado. A cavalaria do Império havia se concentrado
ali, ao longo de uma sebe, e mesmo agora ainda havia um círculo de terreno sem
grama onde os cavalos pisotearam a terra até que ficasse dura como tijolo. Metade
de uma carroça em ruínas estava apodrecendo na borda de uma vala próxima, com a
madeira queimada por fogo mágico. Mais a leste foi onde os elfos romperam as
linhas defensivas do exército e começaram a expulsá-lo de Gil’ead.
Murtagh se obrigou a parar de olhar, mas não conseguia deixar de lembrar. Deve
ter sido assustador, pensou. Estar preso a pé, com dragões lutando no céu e fileiras
de elfos avançando em sua direção… Murtagh não podia imaginar uma situação
pior.
Ao se aproximar de Gil’ead, ele notou uma coisa estranha. A oitocentos metros à
frente, havia um caminho lateral estreito que corria para o oeste por uma
determinada distância até um grande carvalho na crista de um morro. Pelo menos
um terço dos viajantes se desviou da estrada e caminhou até o carvalho, então o
encarou por um longo tempo antes de dar meia-volta e retornar à estrada.
Murtagh não compreendeu. Não havia estandes ao lado do carvalho. Nenhum
mercador ou funileiro com mercadorias para vender. Era apenas… uma árvore.
Ele parou ao lado da estrada e esperou até que um carro de bois apareceu. O
homem que segurava as rédeas era esquelético, bronzeado pelo sol, com um talo de
grama verde pendurado no canto da boca. Ao lado dele estavam sentados dois
meninos que não deviam ter mais de dez ou doze anos.
— Com licença, vizinho — disse Murtagh, fazendo um sotaque do norte. — O
que está acontecendo naquela árvore lá?
O fazendeiro olhou para ele de soslaio e mexeu o caule entre os lábios.
— É onde o dragão está enterrado.
Um nó se formou no estômago de Murtagh.
— Um dragão?
— Sim. E um elfo também, acredite se quiser. — Os dois meninos ao lado do
fazendeiro lançaram um olhar curioso para Murtagh, e os bois mugiram. — Os elfos
queimaram o corpo do dragão e cultivaram aquela árvore sobre as cinzas.
Então a carroça passou, deixando Murtagh sozinho.
Com passos pesados, ele voltou a andar. Não tornou a olhar para a árvore e tentou
não pensar naquilo. Mas, quando chegou ao cruzamento, onde o caminho divergia
da estrada, murmurou:
— Desculpe.
Ainda era capaz de ver o corpo agredido de Glaedr caindo do alto, um meteoro
em chamas despencando em direção ao lodaçal sangrento que cobria o mundo, com
as asas tremulando como bandeiras rasgadas pelo vento.
A mente de Thorn tocou a de Murtagh, e o dragão disse:
O destino deles não foi nossa culpa.
Murtagh ficou tenso ao recordar a sensação de Galbatorix entrando e assumindo
o controle de sua mente. O rei o usara para matar Oromis, assim como forçara
Thorn a destruir Glaedr, embora este ainda vivesse no Eldunarí dele.
Não, mas Galbatorix não teria conseguido sem nós. Não naquele momento. Não
naquele lugar.
Uma sensação de concordância relutante veio de Thorn.
Eu gostaria de ter conhecido Glaedr como amigo, não como inimigo.
E eu, Oromis. É possível que ainda tenhamos uma chance com Glaedr, se ele
permitir.
As memórias dos dragões são tão longas e profundas quanto as raízes das
montanhas. Ele não vai nos perdoar por ter matado seu Cavaleiro.
Creio que não. Murtagh suspirou. Foi inevitável o ressentimento por Eragon e
Saphira terem tido a chance de estudar com Oromis e Glaedr. Se houvéssemos
recebido as mesmas oportunidades, o que poderíamos ter nos tornado?
Aquela era uma linha de raciocínio inútil, e ele sabia disso, mas o sentimento
pesava do mesmo jeito.
Nós nos tornamos fortes, disse Thorn. Ninguém sobreviveu ao que sobrevivemos.
Era verdade. Mas, apesar do que Murtagh havia dito a Essie, ele acreditava que
algumas feridas, algumas cicatrizes, eram grandes demais para serem superadas e
não faziam nada para tornar uma pessoa mais forte. Muito pelo contrário. Uma
lesão grave de verdade só deixava a pessoa enfraquecida, imperfeita, e não havia
como consertar a maior parte da ferida.
Ele manteve o sentimento para si. Não queria que Thorn acreditasse que o
enxergava como irremediavelmente traumatizado. Na verdade, acreditava que ele
tinha mais chance de se restabelecer. Pelos padrões de humanos e dragões, Thorn
ainda era pouco mais que um filhote, apesar de Galbatorix ter acelerado seu
crescimento físico. Ele era jovem e, como com a magia, juventude significava
potencial. Mas levaria tempo para Thorn sarar. Anos e anos, se não toda a sua
existência.
O padrão de nossas vidas é definido tão cedo, pensou Murtagh. Se algum dia
tivesse filhos — e o pensamento o enchia da mais profunda apreensão —, sabia que
faria tudo que pudesse para garantir que os primeiros anos das crianças fossem
cheios de amor e alegria.
Pelo menos, então, os filhos teriam aquelas primeiras lembranças felizes para
sustentá-los durante a escuridão. Qual presente seria melhor do que esse?
Suave como uma sombra, Murtagh mais sentiu do que ouviu: “Menino bonito.
Que menino forte. Você me deixa tão orgulhoso.” A voz da mãe, em uma lembrança
parcial, falando com ele no salão do castelo de Morzan.
O passo de Murtagh vacilou. Ele se apoiou de verdade no cajado e olhou para as
rachaduras na terra batida enquanto esperava que a onda de emoção passasse.
Aquilo era tristeza, raiva, saudade do que ele nunca teve? Murtagh não sabia dizer.
Deixando de lado os sentimentos, continuou em frente. Era tudo o que podia
fazer.
Gil’ead não tinha uma muralha propriamente dita, como Ceunon e Dras-Leona —
no caso de um ataque, era esperado que os plebeus se abrigassem dentro da
fortaleza central —, mas possuía uma guarita ao longo da estrada principal.
Murtagh ficou aliviado ao ver que os guardas estavam apenas mantendo uma
vigilância geral e não faziam esforço para inspecionar aqueles que entravam.
Ele abaixou a cabeça e passou rápido, tentando se misturar com a caravana.
A cidade em si era um lugar barulhento e agitado, simplório e vigoroso. O cheiro
de estrume dominava o ar, e as pessoas gritavam pelas ruas e das varandas das
casas. Havia menestréis nas praças e funileiros nas ruas, e dezenas de prédios
estavam sendo erguidos por toda a cidade — o que surpreendeu Murtagh. Eles
teriam que se apressar para colocar os telhados antes do inverno propriamente dito.
Viu muitas evidências da guerra. Os prédios ao longo da via principal tinham
marcas de chamuscados nas vigas e hastes quebradas de flechas cravadas que se
projetavam como espinhos em uma roseira. Um bando turbulento de anões estava
discutindo com um gerente de estábulo perto da entrada da cidade enquanto
tentavam chegar a um acordo a respeito dos valores para abrigar seus pôneis. Perto
do centro de Gil’ead, viu dois elfos — um homem e uma mulher, ambos com
cabelos pretos como tinta de escrever — parados dentro do portão de uma casa
pomposa com paredes de pedra, conversando no jardim da frente enquanto
borboletas de asas roxas esvoaçavam sobre suas cabeças e seus ombros.
Murtagh conteve um muxoxo de desdém. Isso é a cara deles. Somos todos fiéis à
nossa própria natureza, creio eu.
Ele fez questão de ficar bem longe da casa de pedra.
Após a tranquilidade dos últimos quatro dias, os cheiros e sons da cidade eram
avassaladores. Murtagh lutou contra o impulso de tapar os ouvidos — e o nariz — e
se encolhia diante de cada ruído inesperado.
Você está se transformando em um animal selvagem, pensou. Arisco e
indomável. Ele não tinha certeza se isso era uma coisa ruim.
Ele foi até o mercado principal, que de fato tinha muitas armas em exibição.
Decidiu não comprar nada por enquanto, pois achou que uma espada atrairia mais
atenção do que o cajado, e vagou entre as outras barracas, inspecionando as
mercadorias. Algumas perguntas discretas a respeito da origem de um cachecol de
lã macia, de um barril de vinho do sul e de um conjunto de colares esculpidos foram
suficientes para que ele descobrisse que a família de Ilenna ainda exercia seu ofício.
Mais indagações feitas a um vendedor de tecidos revelou que, como Murtagh
suspeitava, Ilenna costumava ser encontrada na corte de lorde Relgin, aconselhando
o conde em nome de seu pai.
Satisfeito com as descobertas, Murtagh parou em uma tendinha enfeitada com
gaiolas de vime contendo pombas brancas, pombos e pássaros canoros de vários
tipos. O proprietário era um homem bigodudo de aparência rústica que mais parecia
um intendente militar do que um mercador.
Depois de pechinchar, Murtagh comprou o tentilhão mais bonito e de som mais
agradável. Com um pano sobre a gaiola para manter o pássaro em silêncio, ele
andou rápido pelas ruas movimentadas até a entrada da fortaleza.
Os portões principais estavam abertos, e a porta levadiça com barras transversais,
erguida, mas Murtagh não foi na direção deles. Os guardas de cada lado dos portões
certamente inspecionariam qualquer um que tentasse entrar diretamente.
Esse nunca foi o plano. Em vez disso, Murtagh se posicionou atrás da esquina de
uma casa próxima. De lá, os guardas não podiam vê-lo, mas ele observaria todos
que entravam e saíam da fortaleza. Murtagh sabia que o tempo era limitado.
Alguém notaria se ele continuasse à toa por lá, mas não achava que precisaria
esperar muito.
E estava certo.
Menos de meia hora depois, um pajem ruivo com mangas franjadas saiu correndo
pelo portão da frente, em direção ao mercado. Murtagh se animou. Perfeito.
Ele passou por um beco que fedia por causa da coleta de excrementos feita à
noite e se posicionou ao lado da rua por onde imaginou que o pajem voltaria.
Um puxão na capa lhe deu um susto. Murtagh olhou para baixo e viu dois rostos
sujos olhando para ele, moleques de rua com quase metade de sua altura, vestidos
com trapos mais velhos do que eles.
— Por favor, mestre, senhor — disseram os dois em uníssono, e estenderam as
mãos em concha.
Murtagh não soube dizer se eram meninos ou meninas. Decidiu que não
importava. Também decidiu que não importava se o fizessem de bobo, se tivessem
uma casa com família, comida e uma lareira quente.
— Aqui. Vão comprar alguma coisa para comer — disse, tirando duas moedas de
cobre da bolsa.
Eles riram e assentiram.
— Obrigado, senhor! Corre, corre, corre e o dragão te engole!
Então, rápidos como ratos, eles correram pelo beco e desapareceram entre os
prédios.
Murtagh verificou o cinto. A bolsa ainda estava onde deveria estar, o que
considerou uma vitória. Deu um sorriso. Não importava como se saísse com Ilenna,
já fizera algo de bom naquele dia.
O sorriso morreu quando ele avistou o pajem voltando pela rua. O jovem estava
vagando, comendo uma tortinha, aproveitando o sol e observando as moças na rua.
Não tão ansioso para retornar para o patrão ou patroa, hein?
Quando o jovem passou perto do beco, Murtagh afastou a capa e, com uma voz
saída do passado, disse:
— Rapaz! Espere aí. Quero falar com você.
O pajem congelou, e Murtagh notou o pânico nos olhos dele enquanto tentava
descobrir se estava em apuros e, em caso afirmativo, o tamanho do problema.
— Si-si-sim, senhor?
O pajem se curvou ligeiramente e depois olhou de soslaio para as roupas de
Murtagh, sujas da viagem. Um pouco de recheio escorria da torta meio comida e
descia pela mão do pajem.
Hesitação colocaria tudo a perder. Assumindo um ar arrogante, Murtagh
gesticulou para que ele se aproximasse.
— Venha cá, rapaz. Você é um pajem da corte de lorde Relgin, certo? Preciso de
um mensageiro para entregar uma mensagem.
O jovem olhou de relance para a fortaleza e trocou o pé de apoio, como se fosse
se virar e correr.
— Meu patrão…
— Não me fale de seu patrão! Isso é da maior importância. — Murtagh deu um
tapinha na lateral do nariz. — Da mais alta importância.
A expressão do pajem demonstrou mais interesse. A intriga sempre tinha esse
efeito.
— Você conhece a virtuosa Ilenna, que frequenta a corte de lorde Relgin?
— Sei quem é, senhor.
Murtagh gesticulou como se isso não importasse.
— E você sem dúvida é capaz de chamar a atenção dela, por causa de seu cargo,
não é?
O jovem estufou levemente o peito.
— Ora, sim, senhor. Acho que sou.
— Excelente. — Murtagh estendeu um pergaminho dobrado em formato
quadrado, selado com uma gota de sebo derretido. — Então eu encarrego você de
transmitir esta mensagem à estimada Ilenna, e com esta missiva vai meu desejo
urgente de falar com ela o mais rápido possível. Juntamente com meu pedido,
ofereço este presente a ela, como sinal de meu profundo respeito.
Ele apontou para a jaula aos pés.
O pajem olhou para a gaiola e o pergaminho.
— Se eu conseguir encontrá-la, senhor…
— Então volte com diligência, garoto, e me informe a resposta dela. Isso é uma
questão de urgência.
O pajem aceitou o pergaminho com hesitação e Murtagh falou, como se tivesse
esquecido até aquele momento:
— Ah, sim, e pelo inconveniente. — Ele entregou uma moeda manchada. —
Uma prata agora e uma coroa quando você voltar.
O rosto do pajem ficou animado.
— Senhor, sim, senhor!
Uma coroa era mais do que o jovem via em um ano. Um suborno caro, e que
valia a pena, apesar de deixar a bolsa de Murtagh depauperada.
Se a coisa continuar nesse ritmo, talvez eu tenha que procurar um emprego
remunerado, pensou, sardônico. Talvez como mercenário ou cirurgião.
Quando o jovem pegou a gaiola, o tentilhão lá dentro gorjeou com uma
reclamação sonolenta.
— Voltarei assim que puder, senhor.
Murtagh concordou com a cabeça e fechou a capa novamente no corpo.
— Vou esperar até ouvir a resposta de Ilenna. Agora vá! E que o destino o guie
com pressa.
O pajem se virou e foi ligeiro em direção ao castelo, segurando a jaula em uma
das mãos e a torta comida pela metade na outra.
Murtagh balançou a cabeça enquanto o observava se afastar. Pajens tinham
formado um meio de comunicação essencial, ainda que ineficiente, na corte de
Galbatorix. Além disso, geralmente sabiam mais a respeito do que estava
acontecendo do que o próprio espião-mestre. Ele só torcia que a promessa do ouro
mantivesse o jovem concentrado na tarefa.
Enquanto esperava, Murtagh passou o tempo observando o povo de Gil’ead.
Havia soldados em gibões de cota de malha enferrujada com lanças apoiadas em um
ângulo relaxado nos ombros. Oficiais passavam trotando em cavalos bem tratados
com crinas trançadas. Mercadores com chapéus de plumas e roupas feitas de tecidos
caros. Nobres — ou aspirantes a nobres vindos dos escalões superiores dos Varden
— tentando evitar que lama sujasse suas roupas elegantes, muitas vezes seguidos
por uma fila de servos carregando pacotes de compras. Muitas das pessoas mais
importantes faziam uso de palanquins transportados por carregadores que trotavam
pelas ruas a passos largos, dando a impressão de que quem estava no interior tinha
os assuntos mais urgentes a tratar.
Na verdade, Murtagh sabia que os carregadores não conseguiriam manter esse
ritmo, e a maioria das viagens era do tipo mais mundano. Mas, como sempre, as
aparências tinham que ser mantidas.
Ele olhou para a bainha enlameada da capa. Por mais que gostasse de ordem e
limpeza, não sentia falta do eterno empenho de apresentar uma imagem perfeita ao
mundo. Depois de estar afastado da corte, aquela pressão parecia uma forma de
insanidade temporária.
No final da rua, em frente à fortaleza, ele via a praça principal. Uma música
animada soava entre os prédios e, em meio a uma multidão de corpos em
movimento, Murtagh vislumbrou uma dança da colheita: homens e mulheres dando
voltas em torno uns dos outros, de braços entrelaçados e pés sendo erguidos alto
seguindo o ritmo rápido.
Murtagh se viu marcando o ritmo com o pé. Dançar era a única coisa de que ele
gostava na corte, embora tudo em torno das danças — a política, as maquinações e
a vilania em geral — fosse uma desgraça. Mas as danças em si, ah, essas tinham
sido um prazer especial. Ele dominava até mesmo a sequência mais complicada de
passos, e isso o ajudara muito na esgrima. O jogo de pés era tudo na dança e na
guerra, fosse em nível individual ou em nível de exércitos e nações. O passo certo
no momento certo era a diferença entre a vitória e a derrota, e nem sempre era o
esperado.
Um rosto do outro lado da rua chamou a sua atenção. Um vislumbre de bochecha
pálida, o traço de uma mandíbula, a silhueta distinta de um nariz… Murtagh
enrijeceu ao ver o perfil de um jovem adulto andando em meio a um grupo de cinco
guardas.
Não pode ser. Lyreth? O filho mais velho de lorde Thaven, que serviu como
comandante da marinha de Galbatorix? Lyreth era quatro anos mais velho do que
Murtagh. Sempre foi maior e mais forte enquanto ele crescia e não teve vergonha de
usar isso a seu favor.
Pensando bem, Murtagh não o tinha visto em Urû’baen durante a última estada
na capital. O filho de Thaven foi esperto o suficiente para evitar comparecer à corte
enquanto Murtagh estava lá como Cavaleiro.
O que ele está fazendo aqui agora? Lyreth virou a cabeça para olhar alguma
coisa do outro lado da rua, e Murtagh recuou ainda mais no beco. Lyreth o
reconheceria com facilidade. Eu não devia ter me barbeado.
Mas nenhuma reação alterou a expressão de Lyreth, que continuou andando no
mesmo ritmo acelerado.
Murtagh soltou a respiração e voltou à esquina do edifício. Lyreth devia ter mais
motivos do que ele para não querer ser reconhecido. Todas as famílias nobres que
serviram Galbatorix — famílias que acumularam enorme riqueza e poder durante
seu mandato de um século no trono — perderam os cargos, e muitas delas foram
executadas ou exiladas. Mas a lealdade era forte, e a riqueza comprava proteção;
assim como aconteceu com Yarek, Murtagh sabia que um número não desprezível
de seguidores de Galbatorix, ricos e privilegiados, vivia em segredo.
Ele não invejava Nasuada, que tinha de lidar com a influência prejudicial deles.
Murtagh não tinha certeza de quanto tempo ficou parado na esquina, observando.
Pelo sol, ele imaginou que quase uma hora. Sentiu um leve formigamento no centro
da palma da mão direita — como se ela tivesse adormecido parcialmente — e a
coçou sem pensar.
Ele congelou. A palma direita era onde estava a gedwëy ignasia: a mancha
prateada semelhante a uma cicatriz que marcava onde ele havia tocado Thorn pela
primeira vez, quando ele era recém-nascido. E muitas vezes ela coçava ou
formigava quando havia perigo por perto.
A sensação não era infalível, mas salvou a pele de Murtagh mais de uma vez.
Novamente alerta, ele olhou em volta. Lá. Soldados saindo pela entrada da
fortaleza e se reunindo na esquina de uma casa. Ele esteve distraído e não reparou
nos primeiros que passaram.
E com os soldados… um homem usando um robe preto com acabamento roxo,
capuz jogado para trás revelando uma cabeça de cabelo tão claro que era quase
branco. No peito do robe estava bordado um símbolo dourado, um estandarte
heráldico: na metade superior, uma coroa com raios saindo das pontas. Abaixo
vinha uma faixa, dividindo o estandarte ao meio, e, depois dela, um cocatrice com
um grilhão de ferro em volta de cada tornozelo escamado.
Murtagh conhecia muito bem o símbolo. O brasão de armas da Du Vrangr Gata, a
guilda de mágicos que servia a Nasuada e que impunha as leis dela proibindo magia
não autorizada e não afiliada não apenas em todo o seu reino, mas também ao sul de
Surda. Todo mágico humano era obrigado a ingressar na guilda, ou então se
submeter a drogas e feitiços que o impediriam de usar magia sem permissão.
Murtagh ainda não havia concordado com nenhuma das cláusulas, e nunca
concordaria.
O que significava que o homem de cabelos louros era uma ameaça. Dada a
oportunidade, ele tentaria acorrentar Murtagh por uma questão ou outra, e mesmo
um mágico fraco poderia se mostrar um oponente formidável em combate um
contra um, pois lutas entre mágicos raramente eram resolvidas apenas com feitiços.
A destreza mental importava e, se fosse possível obter o controle da mente do
inimigo, ele ficaria à mercê, independentemente de sua habilidade, força ou
proteções.
— Maldito seja — murmurou ele, se referindo ao pajem.
Não era a traição em si que o incomodava — Murtagh estava bem familiarizado
com isso —, mas a inconsistência. Pajens não deveriam delatar aqueles que
chegavam em sigilo! Como uma corte poderia funcionar assim?
Um toque leve como uma pluma roçou a mente de Murtagh.
Ele recuou e retrocedeu nas profundezas de si mesmo, protegendo a mente com
uma parede de determinação ferrenha.
— Você não me pegará — murmurou várias vezes, usando as palavras para
concentrar os pensamentos. Quanto mais vazia a mente, menos haveria para o
mágico encontrar.
O homem de robe franziu a testa e disse algo aos soldados. Apontou para a rua.
Murtagh entrou em movimento. Precisava partir agora para que os soldados não o
encurralassem.
Ele tinha acabado de chegar à outra extremidade do beco quando um homem
atarracado em um gibão sem mangas parou na sua frente. Os braços do homem
eram tão musculosos quanto os de um ferreiro, e ele carregava um porrete em uma
das mãos.
Murtagh quase atingiu o estranho, mas o homem deu um passo para trás, com os
braços abertos.
— Você é Tornac? — perguntou com uma voz baixa e rouca.
— Quem pergunta?
Ele não havia mencionado Tornac para o pajem, embora tivesse usado o nome no
bilhete para Ilenna. O homem era criado dela? Se não…
Um lampejo de aborrecimento passou pelo rosto do homem.
— A mulher-gato Carabel me enviou. Ela pede a presença do tal Tornac.
Mulher-gato! Temor e curiosidade tomaram conta de Murtagh. Ele olhou para
trás. O mágico e os soldados estavam quase na entrada do beco. Precisava tomar
uma decisão.
— Sou eu — disse ele, curto e grosso.
— Por aqui, então. Rapidinho, por favor.
O homem de braços desnudos correu pela rua secundária, e Murtagh o seguiu de
perto, carregando o cajado de lado na mão. Não havia razão para subterfúgios.
Por alguns minutos, os únicos sons foram as respirações dos dois e o toque baixo
de suas botas no chão.
A mente de Murtagh girava com perguntas. Como a mensagem chegou até
Carabel? De todas as criaturas da Alagaësia, o povo-gato era o mais reservado. Eles
sempre se mantiveram afastados dos outros, embora na pressão final da guerra
tivessem unido forças com os Varden contra Galbatorix. Mas, no geral, eles não
tomavam partido, como as outras raças.
Desde a queda do Império, Murtagh tinha ouvido falar que um deles, homem-
gato ou mulher-gato, se sentava em uma almofada de veludo ao lado do trono de
Nasuada. E o mesmo acontecia na corte do rei Orrin em Surda, e nas cortes de todas
as grandes cidades. Murtagh presumiu que Carabel agisse de maneira semelhante
em Gil’ead. Mas o que ela queria com ele?
Ela não deve saber quem eu realmente sou, pensou Murtagh. A menos, claro, que
Carabel fosse cúmplice de Ilenna. Ele imaginou que descobriria em breve.
Murtagh sentiu outro toque leve na mente — mas bem suave, quase
imperceptível, passando sem parar.
Não é tão habilidoso assim, não é?, pensou ele. Mas Murtagh não se permitiu
relaxar. Ainda não.
O homem o conduziu até uma casa estreita construída perto da fortaleza.
Cruzaram o pátio fechado do edifício e depois desceram por um lance de escada
coberto de musgo e colado na muralha externa da fortaleza. No fundo, dentro de
uma alcova decorada com flores esculpidas, havia um poço. Murtagh não ficou
muito surpreso quando o homem apertou uma pétala e uma pequena porta de pedra
se abriu.
Uma lufada de ar frio passou pelos dois.
A maioria dos castelos tinha saídas secretas ou coisa do gênero. Rotas de fuga
para os nobres que viviam lá dentro. Tais coisas comprometiam as fortificações,
mas, quando se tornavam necessárias durante uma invasão, era porque nada mais
funcionara.
— O senhor na frente — disse o homem, segurando a porta aberta. Um túnel
baixo e escuro corria sob a fortaleza, com o fim ocultado pelas sombras. — Carabel
aguarda.
— E o que ela deseja comigo?
— Não saberia dizer. Terá que perguntar a ela pessoalmente.
Murtagh hesitou. Assim que ele entrasse na fortaleza, seria muito, muito mais
difícil sair, mesmo com toda a sua proeza mágica. Era um risco. Dos grandes. Qual
era a probabilidade de ele estar caindo em uma armadilha?
O homem se remexeu com impaciência.
Murtagh desejou poder contar a Thorn o que estava acontecendo, mas não ousou
expor a consciência pelo equivalente a um grito mental.
Ele olhou para o céu aberto e se perguntou quando o veria novamente. Então
fechou a capa e se abaixou para entrar no túnel.
A porta se fechou atrás deles com um baque suave, e o som ecoou por toda a
extensão do túnel.
CAPÍTULO II

Perguntas para uma gata

O túnel cheirava a pedra molhada, mofo e ao suor do homem que se arrastava


atrás dele, e estava escuro como breu.
Murtagh sentiu um formigamento incômodo na espinha — não era uma
premonição, mas uma preocupação. Seria fácil para o homem acertá-lo na cabeça
com o porrete. Fácil demais. Murtagh tinha proteções mágicas para se defender de
ataques, mas não havia como saber quais encantamentos o oponente possuía, ou
sequer se os possuía.
A marca na palma da mão não coçava mais, o que lhe dava algum alento. Mesmo
assim, ele permaneceu tenso.
— Siga em frente — disse o homem em tom grosseiro. — A cerca de trinta
metros há uma curva para a direita. Tenha cuidado, há degraus subindo logo depois.
— Entendido.
Murtagh ficou tentado a invocar uma luz mágica, mas não havia sentido em
revelar que sabia usar magia.
Enquanto avançava no escuro, uma profusão de possibilidades o atormentava.
Mil destinos prováveis e improváveis, cada um pior que o anterior. Como era uma
especulação infrutífera, afastou aqueles pensamentos à força e, no lugar deles,
revisou suas respostas para todas as perguntas que pôde imaginar.
Murtagh não estava disposto a permitir que Carabel percebesse algum deslize
seu, mesmo que ela fosse a mais esperta das mulheres-gato.
Na escuridão abaixo do solo, os trinta metros pareceram trezentos. Murtagh teria
jurado que os dois haviam cruzado o pátio da fortaleza e estavam embaixo das casas
do outro lado.
Justamente quando ele estava prestes a perguntar quanto mais iriam avançar, a
mão que Murtagh mantinha na parede escorregou em uma esquina. Finalmente! Ele
sentiu alívio ao fazer a curva. Mais um passo e o pé esquerdo bateu em um degrau.
Usando o cajado para se equilibrar, ele subiu.
Um…
Dois…
Três…
Quatro…
Cin… Ele escorregou no quinto degrau; um trecho de água fez com que a bota
perdesse a aderência. Murtagh se segurou no cajado e então continuou, com o
coração batendo forte.
Cinco…
Seis…
Sete. Um fio tênue de luz apareceu diante dele, alto e reto.
— Dê um bom empurrão — disse o homem. — Vai abrir direito.
Murtagh estendeu a mão e empurrou. Uma porta em arco se abriu e revelou um
pequeno depósito. Havia uma vela acesa em um candeeiro preso à parede e, depois
da escuridão profunda do túnel, a chama bruxuleante era quase ofuscante. Vários
barris estavam empilhados em um canto, e havia presuntos secos e tripas de
salsichas penduradas em ganchos no teto.
— Que túnel desagradável — disse o homem.
Murtagh se virou e viu o sujeito fechando a porta atrás deles. Quando fechada, o
contorno da porta era praticamente invisível. O homem limpou as teias de aranha
dos ombros e fez uma careta.
— Muitas aranhas lá embaixo. Muito bem, ela quer ver você imediatamente. Por
aqui.
Murtagh o seguiu, sendo conduzido por várias passagens secundárias na
fortaleza. Eles recuavam para os cantos sempre que ouviam vozes. Enfim chegaram
a uma porta de madeira escura em algum lugar no lado leste do complexo.
O homem sem mangas se curvou no que Murtagh pensou ser um gesto levemente
debochado e abriu a porta para ele.
Murtagh passou por ela.

Ele se viu em um gabinete suntuosamente decorado. Fileiras de estantes


envernizadas cobriam as paredes; tapetes grossos de fabricação dos anões, em tons
intensos de vermelho, verde e azul, cobriam o chão; e um belo mapa da Alagaësia,
com milhares de nomes anotados de forma minuciosa, estava emoldurado como
peça central acima de uma lareira de pedra, na qual uma pilha de lenha queimava.
Havia uma grande escrivaninha de madeira esculpida posicionada diante da porta
e, sentada atrás dela, apoiada em uma almofada de veludo verde, estava ninguém
menos que a mulher-gato Carabel.
Ela estava na forma humana, o que significava que, aos olhos de Murtagh,
parecia uma mulher esguia, de cabelos grisalhos, com menos de um metro e vinte
de altura. Um vestido branco folgado deixava os braços magros dela descobertos —
Murtagh imaginou que assim ficava mais fácil para ela mudar de forma, se quisesse.
Apesar de sua aparência se assemelhar, de modo geral, a de uma humana, não
dúvida de que Carabel não era uma. As maçãs do rosto eram muito altas e
marcadas, os olhos muito angulosos, com pupilas estreitas e na cor esmeralda, e
havia pequenos tufos de cabelo branco nas pontas das orelhas. Murtagh não sabia se
os tufos eram porque Carabel não havia se transformado totalmente ou se eram uma
característica normal da raça.
Ele nunca tinha visto uma mulher-gato antes e se viu inesperadamente hesitante.
Na mesa em frente a Carabel havia três coisas: a gaiola com o tentilhão que ele
havia comprado, vazia exceto por algumas penas amarelas; um prato com cortes de
frios; e o pergaminho que ele havia dado ao pajem, desdobrado e revelando as
linhas de runas escritas em seu interior.
Vê-la deixou Murtagh intrigado. Se a mulher-gato havia interceptado a
mensagem para Ilenna, ela estava agindo como espiã-mestre de lorde Relgin? E isso
significava que havia usado o mágico e os soldados como um estratagema para
forçá-lo a cair em suas garras? Ou as coisas eram como pareciam, e ela realmente
estava tentando salvá-lo das forças de Relgin?
Murtagh se obrigou a relaxar mesmo quando percebeu que a situação era
delicada. Tenho de ter cuidado. Muito, muito cuidado.
A porta se fechou atrás dele, e o guia assumiu uma posição no canto de trás, com
o porrete ainda na mão.
Carabel inclinou a cabeça e observou Murtagh exatamente da mesma maneira
que gatos de rua observam uma possível presa. Ele teve a sensação de que ela
ficaria feliz em permanecer sentada em silêncio pelo resto do dia.
Ou até que se entediasse... Murtagh achou que não seria bom lidar com uma
mulher-gato entediada.
Ele apontou para a gaiola de vime.
— Você gostou do pássaro, imagino.
Carabel levantou uma sobrancelha perfeitamente fina.
— Foi aceitável, homem da estrada.
Ela tinha uma voz doce e ronronante que exalava uma autoconfiança satisfeita. E,
no entanto, Murtagh detectou uma nota de tensão. O olhar de Carabel se deslocou
para o brutamontes sem mangas no fundo da sala.
— Houve algum problema no caminho?
— Passou perto, senhora, mas nada digno de ser mencionado.
— Bom. — Ela sorriu, revelando pequenas presas afiadas. — Você conheceu
Bertolf, certo? Ele é um criado excelente. Me traz carnes e petiscos e mistérios
saborosos como você.
Murtagh não tinha certeza se gostava de ser chamado de saboroso. Permitiu-se
uma expressão educada de deleite, como teria feito na corte, e fez uma reverência.
Um pouco de teatralidade nunca fazia mal, especialmente com gatos.
— Minhas desculpas, lady Carabel, mas o tentilhão era para outra pessoa. Ou
talvez você não soubesse?
Com uma unha longa e bem fina na ponta, ela cravou o centro do pergaminho
quadrado.
— Ah, sim, eu sabia. Você tentou falar com Ilenna, filha de Erith, não foi?
— Isso mesmo. — Murtagh ficou contente por ter escrito a mensagem em uma
linguagem deliberadamente vaga que, ele esperava, significaria pouco para os
outros.
Carabel gesticulou para a cadeira em frente à escrivaninha.
— Sente-se, humano. Temos muito o que falar.
— Temos?
Murtagh puxou a capa para o lado e se sentou. Ele encostou o cajado no joelho
direito, onde poderia agarrá-lo em um instante.
— Posso perguntar por que interceptou minha carta e meu presente? Não infringi
nenhuma lei nem causei problemas.
— Essa é a pergunta errada. Em vez disso, você deveria perguntar como eu sabia
que deveria confiscar sua carta e seu presente. O patrão do pajem é o camareiro de
lorde Relgin, e o pajem contou a ele a respeito do homem estranho oferecendo
dinheiro para falar com Ilenna, filha de Erith. Sem dúvida, o camareiro o
recompensou muito acima do seu suborno.
Murtagh estremeceu. Ele deveria ter feito mais perguntas ao pajem.
— E o camareiro veio até você. Entendo, mas…
— Não foi bem assim — disse Carabel. — O camareiro foi até lorde Relgin, e
lorde Relgin despachou vários subordinados para prendê-lo, ó Tornac. Muito
incomum. Essas intrigas da corte geralmente não chamam a atenção de Relgin.
Então os soldados estavam atrás dele. Um gosto amargo se formou em sua boca.
Parecia que ele não chegaria perto de Ilenna tão cedo. Murtagh afastou esse
pensamento, já que não era o problema imediato.
— Admito que estou confuso, lady Carabel. Lorde Relgin lhe contou tudo isso?
Se sim, por que me trazer aqui em provocação a ele? E por que vocês, nobres,
deveriam se importar com meus atos? Não sou ninguém importante.
Carabel lambeu as pontas dos dentes. A língua era pequena e rosa.
— Isso não é exatamente verdade... Não é, Murtagh, filho de Morzan?
Um carvão estalou na lareira, surpreendentemente alto.
Murtagh estreitou os olhos e agarrou o cajado, pronto para lutar.
— Como sabe disso?
Um sorrisinho cruel curvou os lábios escuros de Carabel. Murtagh ficou inquieto
ao pensar na frequência com que eles tocavam em carne crua e sangue.
— O nome Tornac não é desconhecido para nós do povo-gato, humano. Além
disso, você cheira a dragão.
A explicação não serviu para aquietá-lo.
— Tudo bem. O que você quer?
Uma expressão de reprovação franziu as feições delicadas de Carabel, e seu rosto
ganhou uma aparência sombria.
— Uma pergunta para você primeiro, humano. O que queria com Ilenna, filha de
Erith?
Queria. Murtagh não gostou que ela usasse o pretérito. Fingiu um olhar
envergonhado.
— Na verdade, não era nada. É um assunto particular entre nós. Tenho certeza de
que você entende.
Novamente, Carabel fez uma pausa. Ela está indecisa, percebeu Murtagh. Por
quê? Ele decidiu tomar a iniciativa.
— Há algum problema com Ilenna? Aconteceu alguma coisa com ela?
Os tufos nas orelhas de Carabel balançaram quando ela fez que não com a
cabeça.
— Ilenna está bem. O problema reside... em outro lugar. Vou perguntar de novo,
Murtagh, filho de Morzan. O que você queria com ela?
— Estou falando com você ou com lorde Relgin?
Ela inspecionou as unhas da mão esquerda, erguendo-as contra a luz para que as
pontas brilhassem vermelho-douradas por causa das chamas.
— O povo-gato só deve satisfação a si mesmo. Você fala comigo e apenas
comigo.
— E com ele. — Murtagh apontou o polegar para trás por cima do ombro.
Um leve ronronar escapou de Carabel.
— Bertolf é confiável.
— Talvez para você. — Murtagh ajustou a pegada no cajado. — Por que eu
deveria contar qualquer coisa para você, mulher-gato? Não há nada que possa fazer
para me impedir de ir embora.
As pupilas estreitas de Carabel se contraíram. Se a cauda dela estivesse presente,
ele imaginou que teria se contorcido.
— Não, mas você quer informação, humano. Por que outro motivo gostaria de
falar com Ilenna? Ah, sim, eu sei das atividades da família dela. Eles são grandes
idiotas desajeitados. Não são como os gatos. Mas posso lhe prometer uma coisa:
não conseguirá falar com Ilenna ou com o pai dela sem que lorde Relgin descubra.
Se você não se importa em se revelar, vá até eles. Saia agora. Mas acho que
preferem permanecer escondidos, você e seu dragão.
Murtagh virou o cajado na mão. O que a mulher-gato queria dizer? Ele sentiu
como se estivesse lutando um duelo e estivesse dois passos atrás do oponente.
— Talvez você esteja certa — disse ele. — Mas ainda não me deu uma razão
para compartilhar qualquer coisa com você.
Carabel encolheu os ombros magros.
— Se são segredos que você procura, então quem melhor para perguntar do que
uma gata? Pergunte a mim, Murtagh, filho de Morzan. Se eu não souber, falarei
com Ilenna em seu nome.
— Você está se oferecendo para me ajudar — falou Murtagh, cauteloso.
Ela baixou as pálpebras até que estivessem semicerradas e se encolheu, como se
para se proteger de um vento inclemente.
— Estou.
— Em troca de quê?
Ela pestanejou.
— Do menor dos favores.
Em um instante, as coisas ficaram claras para Murtagh. Uma risada cínica
escapou dele.
— Claro. E qual é o menor dos favores?
A mulher-gato ergueu o queixo pontudo, desafiadora.
— Uma tarefa que precisa ser feita, e não há ninguém em Gil’ead que possa
realizá-la, exceto você.
— Eu duvido disso. — Ele franziu a testa para Carabel; ela estava tentando
manipulá-lo. — Eu não sou seu menino de recados, gata. Ninguém vai me dar
ordens. Nem você, nem Relgin, nem mesmo Nasuada.
— Eu não ousaria dizer a um Cavaleiro de Dragão o que fazer. Esta é uma oferta,
não uma ordem.
Murtagh grunhiu e passou os dedos pelos cabelos.
— E o que você precisa que seja feito?
— Você vai concordar com a tarefa?
— Depende da natureza da tarefa e se você tem ou não as respostas que procuro.
Com um ar aparentemente desinteressado, Carabel lambeu uma manchinha de
sangue do dedo médio da mão esquerda.
— Isso não é justo, humano. E se eu precisar conversar com Ilenna? Devo caçar
para você por nada além da minha boa vontade enquanto espero que aceite o
acordo? Devo ajudar você por nada além da minha própria boa vontade?
Carabel flexionou os dedos, como se fosse estender e retrair as garras.
— A confiança é uma espada com uma lâmina no lugar do punho. Corta tudo da
mesma forma.
— Esse está longe de ser um argumento convincente ou reconfortante.
— Para um humano.
— É o que eu sou.
Ela deu a Murtagh um olhar sincero e sem humor.
— Não contei a lorde Relgin a respeito de sua presença aqui. Isso não é motivo
suficiente para confiar em mim?
Apesar da pose aparentemente relaxada da mulher-gato, Murtagh viu indícios de
tensão em seu corpo. Algo está muito errado ou ela não teria se dado a tanto
trabalho.
Murtagh ergueu o cajado e o bateu no chão. Uma vez. Duas vezes. Três vezes.
Até que se decidiu. A gata estava certa, ele não conseguiria falar com Ilenna sem
atrair muita atenção. Independentemente do favor que Carabel pensava em pedir,
ele poderia descobrir alguma informação fazendo as perguntas a ela. Mesmo que ela
não soubesse de nada útil, isso já seria uma informação. E, de qualquer forma, seria
prudente avisá-la e, por conseguinte, a lorde Relgin, a respeito dos estranhos
acontecimentos no reino.
— Não é, mas vou confiar em você — disse Murtagh.
De dentro da capa, ele tirou o amuleto de caveira de pássaro e a pedra com o
brilho interno e colocou os dois sobre a escrivaninha.
Um cheiro sulfuroso começou a contaminar o ar.
Carabel sibilou e se jogou para trás na almofada de veludo, as costas arqueadas
como se ela estivesse prestes a saltar. O cabelo grisalho quase ficou em pé.
— Onde você encontrou essas coisassss?
Mais uma vez, Murtagh teve a percepção desconcertante de que não estava
falando com um humano, mas com algo totalmente diferente.
— Em Ceunon. Tirei esses objetos de um mercador infame chamado Sarros.
Carabel estendeu a mão com garras e tocou a ponta da unha do dedo indicador no
amuleto. Ela recuou o braço como se tivesse se queimado, estremeceu e se
endireitou, novamente assumindo um ar digno. Era uma fachada falsa. Murtagh
percebeu que a mulher-gato estava abalada e isso o perturbou. O povo-gato era
muita coisa, mas não covarde.
— Conte a história completa, humano, e não deixe nada de fora.
Ele não fez o que Carabel pediu. Não completamente. Havia segredos que não
desejava compartilhar, como o uso do Nome dos Nomes. (Mesmo que o povo-gato
soubesse que o Nome existia, não via vantagens em revelar que o conhecia.) Mas,
fora isso, contou a verdade.
Enquanto falava, Murtagh percebeu que Bertolf também prestava atenção. Ele
torceu para que o homem fosse mais discreto que o pajem.
O crepitar da lareira era o único som na sala quando ele terminou.
Carabel se espreguiçou e estremeceu, e Murtagh notou pela primeira vez que os
pés dela estavam descalços.
— Sssah. Você faz perguntas que talvez não queira ver respondidas, humano.
— Então você sabe onde encontrar a bruxa Bachel?
— Sssim.
— E a origem da pedra? E também os Sonhadores que Sarros mencionou?
Os lábios de Carabel se retraíram, mostrando mais dentes pontiagudos.
— Sim e ssssim.
— E vai me contar?
O olhar de Carabel se dirigiu para o mapa sobre a lareira e depois voltou para a
pedra semelhante a carvão.
— Se você concluir a tarefa que vou lhe passar… sim.
— Que garantia eu tenho de que você realmente possui a informação que
procuro? Conte primeiro.
As orelhas com tufos de pelo se encolheram contra as laterais da cabeça.
— Depois, humano. Depois. Devemos confiar um no outro.
Murtagh ainda não estava convencido.
— Talvez eu devesse falar com Ilenna em vez disso. Tenho certeza de que
poderia encontrar uma maneira de abordá-la sem ser visto.
Um som desagradável de arranhão tomou conta do gabinete quando Carabel
passou as unhas pela superfície da escrivaninha, deixando linhas finas na madeira.
— Você ficaria desapontado, humano. Ela não tem conhecimento dessas coisas.
Eu juro.
— Mas você tem.
— Sssim.
Ele bateu com a ponta do bastão no chão.
— E por quê?
— Porque sou uma gata, humano. Ouço muitas coisas, sei mais. Caço nas
sombras, danço ao luar e, aonde quer que eu vá, vou sozinha.
Bobagens e enigmas, mas o que mais ele esperava?
— Qual é a tarefa?
Carabel ficou imóvel, com um ar tenso, e os olhos brilharam com uma raiva
sinistra. Ela parecia pronta para lutar ou disparar atrás de uma presa.
— Nas últimas seis luas, três de nossos filhotes foram capturados em Gil’ead.
Um deles foi encontrado mais tarde perdido ao longo da margem do lago sem
nenhuma memória de como chegou lá. Os outros nunca mais foram vistos. Mais
recentemente, uma filhote foi levada, não faz três dias.
Uma raiva solidária tomou conta de Murtagh.
— Apreendida por quem?
— Homens. Humanos. Mas não sei dizer o motivo.
— E você quer que eu encontre os responsáveis?
Carabel balançou a cabeça.
— Não. Quero que encontre a filhote que foi levada. Todos os filhotes, se
possível, mas temo que apenas essa ainda possa ser salva. Ela se chama Silna.
Seguimos o rastro dela pela cidade, pois o nariz do povo-gato é difícil de enganar, e
sabemos onde ela pode estar.
— Mas você não pode chegar até ela.
A mulher-gato hesitou um momento. Os cílios eram compridos e finos como seda
sobre a grama do verão.
— Há um capitão da guarda da cidade. Capitão Wren. No quartel que ele
comanda, uma escada leva ao subsolo, até uma sala onde ele e seus oficiais se
encontram uma vez a cada sete dias. Depois dessa sala existem outras câmaras, e,
no final delas, uma porta que nunca se abre. Suspeitamos que Silna possa estar lá.
Murtagh franziu a testa. Um capitão da guarda da cidade… As implicações eram
desagradáveis.
— Você acha que esse capitão é responsável por apreender Silna?
— Nós não sabemos.
— E quantos integrantes do povo-gato existem em Gil’ead?
As pontas das orelhas de Carabel tremeram.
— Há mais de nós na Alagaësia do que você imagina, humano.
Ele relevou o comentário.
— Quem mais tem acesso a essas câmaras?
— Novamente, não sabemos. Pode haver uma entrada do outro lado, algum túnel
secreto que ainda não descobrimos.
Murtagh fechou ainda mais a cara.
— Você falou com lorde Relgin a respeito disso? Presumo que não.
Carabel soltou um suspiro agudo.
— Somos do povo-gato, mas, no fundo, somos gatos. Somos aqueles que passam
por portas. Sempre, eternamente. Mas não conseguimos passar pela porta sob o
quartel, o que significa que há magia agindo, e ninguém a serviço de Relgin está
apto para lidar com essas coisas. É uma tarefa para um Cavaleiro. Além do mais...
sempre há uma chance de que Wren ou alguém em seu comando tenha recebido
ordens de cima.
Quanto mais ela falava, mais nervoso Murtagh ficava. Ele virou o bastão na mão.
— Que tal um dos Du Vrangr Gata? Eles poderiam ajudar.
Um som baixo de tosse e cuspe ecoou de Carabel.
— Eu não confiaria neles para pegar um rato com três pernas quebradas. Bah!
— E você precisa de alguém em quem possa confiar.
Ela encarou o olhar de Murtagh e o sustentou.
— Sim.
Murtagh se perguntou a respeito dos elfos. Que Carabel não os tivesse
mencionado já era resposta suficiente, mas ele estava curioso para saber o motivo.
Elfos e o povo-gato não pareciam tão diferentes, e se havia desavença entre eles —
ou até mesmo apenas uma aversão básica —, Murtagh estava interessado em saber
por quê. Uma pergunta para outro momento.
Os pensamentos se voltaram para Silna. Em sua mente, imaginou uma criança
encolhida sozinha em uma cela vazia de pedra. Podia imaginar o frio, a dor, a raiva
e o desespero que ela estaria sentindo. Ele não tinha vivido aqueles mesmos
tormentos quando os Gêmeos o colocaram na masmorra sob a cidadela de
Urû’baen? O pior de tudo era a incerteza, não saber que novos ultrajes poderiam vir
ou não a seguir.
Essa não tinha sido a única experiência de Murtagh em uma situação tão
desamparada e terrível. Ele ainda se lembrava, com nitidez dolorosa, de quando, aos
quatorze anos, escapou de Urû’baen sem permissão ou acompanhante. Naquela
noite, quando tentou se esgueirar pelos portões da cidade, os soldados de guarda o
pegaram e, sem reconhecê-lo, o jogaram em uma das celas enterradas sob a torre de
vigia. Galbatorix estava ausente da cidade na ocasião, assim como todos os outros
integrantes da comitiva do rei que ele poderia ter chamado para confirmar sua
identidade. Assim sendo, lá Murtagh definhou por uma semana e três dias,
convencido de que iria apodrecer e morrer no confinamento sem sol e que ninguém
saberia ou se importaria.
Então Galbatorix voltou, e de alguma forma a notícia a respeito da situação de
Murtagh chegou à corte, pois o camareiro do rei providenciou a sua libertação.
Depois disso, o homem mandou espancá-lo pelo transtorno que havia causado.
Murtagh reprimiu um arrepio. Ainda conseguia sentir o cheiro da umidade das
celas e o frio das pedras penetrando nos ossos. E, no entanto, apesar da
familiaridade com a angústia da provável situação de Silna — e sua compaixão por
ela —, ressentiu-se por Carabel usar o filhote. Mas sabia que se odiaria se decidisse
abandoná-la.
— Tudo bem — resmungou ele entre os dentes. — Eu irei. Mas não por você,
nem mesmo por mim. Por Silna.
Carabel concordou com a cabeça.
— Não importa o que você encontre atrás daquela porta, o povo-gato ficará
agradecido e o considerará um amigo, Murtagh, filho de Morzan.
Pare de me chamar assim!
— Onde fica o quartel?
O cabelo dela se eriçou ligeiramente.
— Não é assim tão simples.
— Por que não? Vou entrar e abrir a porta, e se alguém ousar me impedir, eu...
— Não! — Carabel cravou as garras nos braços da cadeira, e, por um momento,
Murtagh pensou que ela fosse pular sobre a mesa. — Se você disparar o alarme,
Silna pode ser levada embora antes que chegue até ela. Ou pior, ser morta. O risco é
muito grande. E você não sabe que magia está agindo naquele lugar.
Depois de um momento, Murtagh inclinou a cabeça.
— Então, como devo entrar sem atrair atenção indesejada?
Carabel se recostou na almofada e começou a alisar os pelos das orelhas.
— Você deve se tornar um integrante da guarda da cidade e se juntar à
companhia do capitão Wren.
Ele se permitiu um arquear de sobrancelhas.
— Ah, só isso? Bem, suponho que posso convencê-los a me deixar entrar em
suas fileiras, se necessário.
— Infelizmente, isso não será o bastante. — Carabel estava séria, mas parecia
sentir um prazer sutil em confundi-lo. — O capitão Wren não aceita mais recrutas
em sua companhia. Lorde Relgin permite que ele selecione seus comandados entre
o resto da guarda, e é considerado uma grande honra ser escolhido. Mas Wren só
procura homens em cujo serviço ele confia.
— E isso não é nada suspeito.
Carabel sacudiu as orelhas.
— Mas não é incomum para oficiais de destaque.
— É verdade. Então, como posso ganhar a confiança do capitão Wren?
— Não pode, não no tempo que temos. Em vez disso, você terá que impressioná-
lo.
Murtagh quase rosnou.
— E como vou conseguir isso? Realizando uma façanha militar?
Um sorriso malicioso curvou os lábios finos de Carabel.
— É muito simples, humano. Para impressioná-lo, você deve matar um peixe.
— Um peixe? Como assim, um peixe? Você me considera um tolo?
— De jeito algum. Mas, infelizmente, para matar o peixe, você precisará de uma
isca especial.
— Bah!
Murtagh se recostou na cadeira, os lábios torcidos em desgosto. Qual a
profundidade do buraco em que ele se meteu? Se já não tivesse dado sua palavra, e
se não fosse pela filhote desaparecida, ele teria se levantado e ido embora.
— Chega de enigmas, gata! Explique, e é melhor explicar bem.
— Claro, humano. A história é a seguinte: no lago Isenstar vive um grande peixe
astuto que os homens deste lugar nomearam de Boca de Lodo. Ele é feroz, faminto
e cruel, e, ao longo dos anos, afundou muitos barcos e comeu muitos pescadores.
Há uma recompensa em Gil’ead para quem capturá-lo e apresentar a cabeça dele
como prova do feito. Quatro moedas de ouro e a promessa de um cargo na guarda,
se a pessoa quiser. Não tenho dúvidas de que, se você levar a cabeça de Boca de
Lodo ao capitão Wren, ele o aceitará nas fileiras de seus comandados.
— Matar um peixe não é um grande desafio — observou Murtagh.
— Quem dera isso fosse verdade. Boca de Lodo não é uma fera comum. —
Carabel apontou para si mesma. — É algo que o povo-gato sabe muito bem.
Nenhuma isca comum, tecido ou fio colorido o atrai, apenas uma coisa com
significado especial.
— Ou eu poderia simplesmente encontrá-lo com minha mente. — Murtagh deu
um sorriso perigoso. — Um feitiço rápido e será o fim desse peixe.
A mulher-gato devolveu o mesmo sorriso.
— E como você vai separar os pensamentos de um único peixe entre todos os
peixes no lago Isenstar? Não, você vai precisar de uma isca, uma a que ele não
consiga resistir.
— Que tipo de isca é essa?
— Uma escama do dragão Glaedr, cujo corpo jaz queimado e enterrado fora
desta cidade.
A reação imediata de Murtagh foi de ultraje.
— Você só pode estar de brincadeira!
— Eu não brincaria com uma coisa dessas — disse Carabel, calma. — Não
quando um de nossos filhotes está em perigo. Confie em mim, humano, apenas a
escama de um dragão será suficiente para Boca de Lodo.
Mais uma vez, Murtagh viu Oromis e Glaedr caindo sem forças pelo ar enquanto
fileiras de homens e elfos se enfrentavam no solo abaixo. Ele esfregou os nós dos
dedos enquanto olhava para o chão.
— Eu não estou contente com isso, gata.
Um pouco de solidariedade surgiu no tom de voz de Carabel.
— Sei que lhe peço uma coisa difícil. Mas há justiça no pedido também.
— Eu não consigo ver nenhuma justiça em roubo de túmulos.
— Você matou Glaedr. Agora, pelos desígnios do destino, pode usar parte dele
para ajudar a salvar uma inocente. O que seria mais justo do que isso?
A pergunta atingiu o âmago de Murtagh. Ele se forçou a relaxar as mãos.
— Os elfos colocaram proteções mágicas ao redor da tumba de Glaedr para
impedir esse tipo de profanação.
Carabel deu de ombros.
— Sim. Provavelmente. É por isso que não tentamos. É por isso que temos que
pedir a você, Cavaleiro.
— E se eu não tivesse vindo para Gil’ead?
Quando ela respondeu, Murtagh não ouviu nenhum fingimento na voz, apenas
uma emoção honesta, crua, vulnerável e repleta de determinação.
— Então eu e todo o povo-gato em Gil’ead teríamos invadido o quartel e tentado
arrombar a porta. — Carabel encarou o olhar dele. — Se isso significasse lutar
contra uma companhia inteira de guardas, então assim seria. Não abandonaremos
nossos filhotes.
— Não...
Murtagh franziu a testa e olhou para o teto com vigas de madeira. Eu devia saber
que não podia ter prometido. Outro pensamento veio logo atrás: Thorn não vai
gostar de eu ter feito isso. Mas ele sabia que não podia ignorar o pedido de Carabel,
mesmo que, naquele momento, odiasse a mulher-gato.
— Pegar a escama, capturar o peixe, descobrir o que está atrás da porta. É isso?
Carabel assentiu.
— Exatamente. Mas você deve ser rápido, humano. Ouvimos rumores de homens
se deslocando durante a noite, carroças preparadas, cavalos recém-ferrados…
Amanhã à noite, Silna pode não estar mais na cidade.
Murtagh praguejou baixinho. Isso não vai ser fácil. Então, a sua determinação
aumentou, e ele se inclinou para a frente com os cotovelos nos joelhos. Se a
menina-gato estivesse em Gil’ead, ele a encontraria, mesmo que isso significasse
destruir a cidade viga por viga.
— Então é melhor não perdermos tempo.
Um sorriso selvagem e cheio de dentes se abriu no rosto de Carabel.
CAPÍTULO III

Criaturas tumulares

E ra fim de tarde quando Murtagh saiu do túnel secreto sob a fortaleza de Gil’ead.
As sombras haviam tomado as ruas, e apenas os telhados permaneciam banhados
em luz quente e dourada.
A porta de pedra atrás dele fez um rangido quando Bertolf, o criado, a fechou.
Cauteloso, Murtagh subiu a escada da entrada oculta, meio que esperando que
um bando de soldados o atacasse a qualquer momento. No topo, ele parou por
tempo suficiente para se certificar de que ninguém estava olhando e cruzou de
mansinho o jardim, passou pelo portão da frente e saiu para a rua.
Ele se obrigou a prestar atenção aos arredores enquanto voltava correndo para a
entrada sul de Gil’ead, mas não parava de pensar no encontro com Carabel.
Murtagh soltou uma risada irônica. Saindo em uma missão a serviço de uma
mulher-gato. Era o tipo de coisa que se ouvia nas histórias, onde o jovem herói
zeloso provava sua bravura e ganhava a mão de uma princesa.
Só que Murtagh sabia que o mundo não funcionava assim. Na maioria das vezes,
o herói acabava morto em uma vala ou então forçado a cumprir ordens de um rei
odiado...
O seu humor piorou ao chegar à fronteira de Gil’ead. Com passos largos,
Murtagh se afastou dos prédios até achar que estava a uma distância segura. Então
saiu da estrada, foi para o topo de um pequeno monte e se concentrou em pensar na
direção da depressão onde Thorn estava escondido.
Consegue me ouvir?, perguntou.
A resposta de Thorn foi imediata: uma onda de preocupação e irritação.
Claro. Você está seguro?
O suficiente.
Onde você está?
Murtagh transmitiu uma imagem dos arredores para Thorn. O dragão bufou, e
Murtagh ouviu o som na mente.
Conseguiu falar com Ilenna?
Não exatamente. Murtagh compartilhou a lembrança da conversa com Carabel.
Era mais rápido do que usar palavras para explicar cada pequeno detalhe.
Depois disso, Thorn bufou mais uma vez.
Acho que a gata levou a melhor sobre você.
Eu sei, concordou ele em tom brando. Não havia muito que eu pudesse fazer.
Ainda assim, será bom se você puder ajudar o filhote.
Farei o melhor possível. Você não se importa com a escama de Glaedr, não é?
Por que deveria me importar? A escama dele não é minha. Além disso, o corpo
de Glaedr está morto. Por que um dragão deveria se importar com o que acontece
depois que se vai?
Muitas pessoas se importam.
Thorn fez o equivalente a dar de ombros mentalmente.
Se não estou aqui para saber ou sentir, o que importa? É medo pensar o
contrário, e eu não tenho medo dos vermes.
Não. Há coisas muito piores do que a morte.
Murtagh quase podia sentir Thorn olhando para ele.
Às vezes, penso que você é parte dragão.
Claro. Estamos unidos, você e eu, não estamos? Ele olhou para o céu, avaliando
quanto tempo faltava para o anoitecer. Vou pegar a escama e talvez precise da sua
ajuda com o peixe.
Manchas de empolgação em tom de arco-íris coloriram os pensamentos de
Thorn.
Vamos caçar juntos?
Sim.
As manchas se iluminaram, luzes variadas se acendendo conforme Thorn
imaginava a conclusão bem-sucedida da perseguição, com os dentes se cravando na
carne do peixe.
Em breve, prometeu Murtagh.

Com um passo determinado, Murtagh rumou para oeste, em direção ao carvalho


que crescia no topo do morro onde os restos mortais de Oromis e Glaedr tinham
sido enterrados. À medida que se aproximava, viu várias pessoas reunidas ali,
algumas ajoelhadas, outras de pé, e ouviu canto ao longe.
Entre as pessoas, estava o que parecia ser um elfo de robe branco ao lado do
tronco retorcido.
— Barzûl — praguejou Murtagh, e virou-se de lado.
Não havia uma maneira garantida de se esconder ou ocultar o que estava fazendo
dos olhos élficos, que eram os mais aguçados e perspicazes de todas as raças.
Murtagh não queria perder tempo — cada momento que passava diminuía as
chances de resgatar Silna —, mas não havia outro jeito. Teria que esperar.
Frustrado, estudou os campos em volta. Ali. Um pequeno agrupamento de
salgueiros perto de uma depressão arredondada cheia de grama exuberante,
amentilhos e algumas macieiras cheias de frutos azedos.
Ele olhou para a estrada a fim de se certificar de que ninguém vinha e andou
rápido até os salgueiros. Havia mosquitos e moscas picadoras voando pela grama, e
suas botas afundaram no terreno pantanoso, mas Murtagh estava disposto a suportar
o aborrecimento para ter alguma proteção.
Uma mosca picou o pescoço dele, que a afastou com um tapa.
Murtagh se escondeu nos salgueiros em um ângulo que o impediria de cair no
chão molhado. Então, da bolsa pendurada no cinto, ele retirou uma maçã seca e um
pedaço de bacon frio e mastigou lentamente, saboreando cada mordida. Era toda a
comida que ele consumiria por um tempo.
Murtagh também estava com sede, mas não queria beber qualquer água
estagnada que conseguisse encontrar naquele terreno. Era uma boa maneira de
acabar doente nos dias seguintes.
Tem que haver uma maneira de tornar a água segura com um feitiço. Ele se
lembrava de alguma coisa parecida contida nas memórias de Yngmar, mas os
detalhes eram vagos.
Ainda pensando nisso, Murtagh cruzou os braços sobre o cajado, cobriu o rosto
com o capuz e fechou os olhos.
O zumbido de insetos logo embalou o seu sono.

Carne macia tateando a pele dele; dentes raspando; umidade indesejável na mão; a
seguir uma pontada de dor amarela, brilhante o suficiente para fazê-lo ganir.
Murtagh acordou sobressaltado, gritando, com os olhos arregalados. Ele brandiu
o cajado, esperando derrubar o que quer que o estivesse machucando.
Um rosto ossudo e lastimoso pairava diante dele. Pupilas laterais cruéis e
desumanas, contornadas por ouro velho; uma profusão de pelos pretos e brancos;
lábios protuberantes procurando como vermes cegos por comida; dentes rombudos
e amarelados nas bases, rilhando, rangendo, estalando a apenas alguns centímetros
da bochecha de Murtagh; e um bafo que lembrava um tanque de água podre.
Murtagh recuou. Aquele era o rosto de uma fome aterradora e indiferente,
decidida a devorar o mundo.
Os dentes amarelados se fecharam na mão dele novamente, com força, causando
dor. Com repulsa, Murtagh reagiu sem pensar e gritou “Thrysta!” enquanto
canalizava a força para o feitiço.
Um golpe no corpo inteiro o derrubou contra um tronco de salgueiro enquanto a
criatura à frente saiu girando no ar com um balido ultrajado.
O animal pousou a vários passos de distância e se pôs de pé.
Uma cabra. Não era nada além de uma cabra.
Murtagh pestanejou, ainda desorientado. Ele mexeu a boca, a língua inchada e
seca, e olhou em volta. Ninguém mais estava à vista. Ele e a cabra estavam
sozinhos na depressão mergulhada nas sombras.
A cabra se sacudiu e deu a Murtagh um olhar zangado e desaprovador. O animal
abaixou a cabeça e raspou o terreno pantanoso com o casco dianteiro, como se
estivesse se preparando para atacar.
— Letta — disse Murtagh em tom decisivo.
A palavra não era um feitiço, mas continha a autoridade da língua antiga, e a
cabra — como todos os animais — entendeu a intenção por trás do comando.
Ela jogou o pescoço para trás e balançou a cabeça como se uma vespa tivesse lhe
picado o nariz, com o lábio superior curvado demonstrando uma raiva
inconfundível. A seguir, fez “mééé” em um tom de nojo e saiu trotando, balançando
o rabo.
Murtagh desabou no salgueiro. A imagem do focinho boquiaberto da cabra ainda
o enchia de repulsa. Se não tivesse acordado, ele tinha certeza de que a fera
continuaria mordendo sem parar até consumi-lo vivo.
Um novo alarme inundou a sua mente. O medo que sentira havia acordado Thorn
de sua soneca. Por alguns segundos, reinou uma confusão enquanto as emoções dos
dois se sobrepunham e Murtagh tentava acalmar o dragão.
Foi apenas uma cabra, disse Murtagh enquanto se desvencilhava dos salgueiros.
Apenas uma cabra.
Você me assustou, disse Thorn, mais uma queixa do que uma acusação.
Eu me assustei. Desculpe. Está tudo bem.
Você quer que eu coma a cabra?
Por um momento, Murtagh pensou seriamente em aceitar.
Não, mas agradeço a oferta.
Tome cuidado. Mesmo quatro-patas-sem-presas podem ser perigosos.
Eu sei. Tomarei.
Fazendo uma careta, Murtagh se limpou. As costas doíam onde o feitiço o havia
jogado contra o salgueiro. Ele se repreendeu por não colocar uma proteção mágica
para acordá-lo se alguém ou alguma coisa se aproximasse... e por exagerar tanto na
reação. Todos os últimos encontros perigosos o deixaram mais nervoso do que
deveria.
Por outro lado, suas reações o mantiveram vivo.
Ele esfregou a mão onde havia sido mordido. A pele estava vermelha e
machucada, mas intacta.
As proteções mágicas que Murtagh tinha colocado em torno de si possuíam
limites. Proteção demais e ele não seria capaz de interagir com o mundo de uma
maneira normal — tocar o fio de Zar’roc ou uma panela muito quente, por exemplo
—, e fornecer energia para as proteções mágicas o tempo todo o esgotaria, visto que
ela saía dele. O que significava que nunca colocava uma proteção mágica para
evitar especificamente que um animal o mordesse. Os dentes da cabra também não
atenderam a nenhuma das condições que Murtagh havia colocado nas proteções
mágicas.
Vou ter que dar um jeito nisso, pensou. Seria um ato um pouco complicado de
feitiçaria, mas ele também não pretendia deixar uma maldita cabra comê-lo.
O horizonte era uma linha nebulosa que dividia a meia cúpula dourada do sol
poente. Sombras roxas riscavam o terreno, e acuranas disparavam no alto,
perseguindo insetos enquanto as primeiras estrelas apareciam no céu.
No morro onde Glaedr estava enterrado, luzes alaranjadas oscilavam e piscavam
em volta da base da elevação. Murtagh praguejou. Vocês não têm nada melhor para
fazer?, perguntou-se, olhando para as pessoas de luto ao longe. Elas não mostravam
sinais de ir embora — na verdade, o número havia crescido. Ele suspeitava que
algumas delas pretendiam manter vigília no túmulo durante a noite inteira.
Murtagh torcia para que o elfo tivesse partido. De qualquer maneira, não ousou
esperar mais. Ele não tinha muito tempo, e temia que pegar Boca de Lodo fosse um
processo mais complicado do que Carabel fizera parecer. Se o peixe dormisse,
como a maioria dos animais, ele não apareceria até o dia seguinte.
— Vamos acabar logo com isso — murmurou Murtagh, e partiu para o túmulo.
Desejou ter trazido um odre consigo. Estava com ainda mais sede agora.
Andar até lá deu tempo para Murtagh formular um plano. Sem dúvida, os elfos
colocaram feitiços no local para impedir que alguém profanasse os restos mortais de
Oromis e Glaedr. Essa era a primeira dificuldade. A segunda era encontrar uma
escama. Se o fazendeiro com quem falou estivesse certo, não haveria muitas
escamas sobrando depois de os elfos queimarem os corpos. Como o túmulo
formava uma colina de tamanho decente, localizar uma escama em meio àquela
terra toda seria complicado até mesmo com magia. A terceira dificuldade era não
chamar atenção.
Pelo menos o crepúsculo ajudaria a esconder suas ações.
A quarta e última dificuldade era a própria relutância de Murtagh. Ele não queria
visitar o túmulo, não queria desenterrar nada do corpo de Glaedr e se preocupava
com o motivo de uma escama de dragão ser necessária para atrair Boca de Lodo.
Por que não outra coisa igualmente grande e reluzente? Se havia alguma
propriedade nas escamas do dragão que ele desconhecia, isso era preocupante. Ou
será que Boca de Lodo era atraído por objetos arcanos? Isso também era
preocupante.
Ele diminuiu a velocidade ao chegar no caminho que levava ao túmulo. A partir
daí, andou em um ritmo controlado, como se fosse um peregrino cansado da viagem
no final de um longo dia de caminhada.
Isso não estava tão longe de ser verdade.
Ao redor do túmulo, contou doze pessoas: todos humanos, cinco mulheres, sete
homens. Eram plebeus, vestidos com aventais rústicos, toucas e calças folgadas.
Pareciam, em sua maioria, fazendeiros ou trabalhadores da cidade. Duas das
mulheres tinham o cheiro da doca de Gil’ead, e um dos homens, magro e de cabelos
eriçados, usava um avental de couro de ferreiro.
Alguns estavam ajoelhados e outros, de pé — com lanternas na mão —, e um
murmúrio baixo de vozes tristes flutuava no ar da noite. Estavam rezando pelos
mortos, percebeu Murtagh. Orando, implorando ou simplesmente lembrando.
O caminho continuava subindo pela lateral do túmulo coberto de grama até o
carvalho no cume. Lajes tinham sido colocadas no solo para facilitar a subida. Perto
da árvore, mais duas pessoas estavam ajoelhadas: mulheres com xales de renda
preta. Delas vinha um lamento baixo.
Murtagh se sentiu profundamente incomodado. Estar ali parecia uma intrusão e
um insulto à dor delas.
Ao contornar o túmulo para o lado com sombra, ele se deparou com um menir na
base do monte. A grande pedra batia na sua cintura, e havia mais dois menires de
altura semelhante enfileirados. Linhas de runas esculpidas cobriam as três pedras,
juntamente com desenhos de nós decorativos.
Curioso, ele parou para lê-las.
E o seu sangue gelou. O primeiro menir contava toda a história triste dos
Cavaleiros de Dragão, começando com a formação da ordem como um meio de
manter a paz entre as diferentes raças da Alagaësia — missão que eles realizaram
com sucesso por séculos — e seguindo até a sua destruição pelas mãos de
Galbatorix, então um jovem Cavaleiro sem experiência que se voltou contra a
ordem depois de perder seu dragão e enlouquecer de dor.
O estômago de Murtagh revirou enquanto examinava as linhas. Os Renegados
eram mencionados, em especial Morzan.
O segundo menir contava como Galbatorix estabeleceu o Império após a derrota
dos Cavaleiros e, com os Renegados ao seu lado, governou como soberano absoluto
sobre a maior parte da humanidade. As runas o chamavam de Galbatorix, o Imortal,
pois, de fato, o rei havia envelhecido pouco ao longo daqueles cem anos, um
resquício de seu vínculo como Cavaleiro.
Murtagh se perguntou quem teria esculpido e colocado os menires. Não os elfos,
pois não era a escrita deles, mas alguém que conhecia a verdadeira história do reino.
Aquilo que Galbatorix tinha proibido que o populacho compartilhasse.
O terceiro e último menir falava de Oromis e Glaedr. Como eles haviam ensinado
os Cavaleiros. Como foram os últimos sobreviventes de toda a ordem, e tinham
passado um século escondidos entre os elfos, em Du Weldenvarden. E como
morreram durante a guerra rebelde dos Varden contra o Império, derrubados em
Gil’ead pelo filho de Morzan. Derrubados pelo traidor, Murtagh.
Ele ficou parado por um tempo, sentindo como se tivesse levado um golpe no
peito. Então um acurana passou voando com uma leve roçada de asas e um trinado,
e Murtagh teve um sobressalto, como se acordasse de um devaneio.
Com passos lentos, ele passou pelos menires e se apoiou no cajado. Olhou para o
chão, com o capuz sobre o rosto, e fez o possível para se parecer com os outros
enlutados. De certa forma, era a verdade.
Perdoem-me, pensou.
No fundo da mente, ele sentia Thorn observando, e o arrependimento do dragão
se somou ao dele.
O chão sob suas botas era macio com trevos podados. Murtagh fechou os olhos e
se deixou balançar para a frente e para trás, acompanhando o lamento vindo de
cima.
Se tentasse usar um feitiço para arrancar uma escama do túmulo, com certeza
ativaria qualquer magia protetora que estivesse no interior. A chave, como sempre,
seria realizar o que ele queria de maneira indireta, oblíqua. Esse era o jeito de
derrotar proteções mágicas. Como Eragon fez com Galbatorix...
Ele pensou por alguns minutos. No fim, foi a sede que lhe deu a resposta.
Murtagh procurou falhas no raciocínio e, não tendo encontrado nenhuma óbvia,
reuniu as palavras de que precisava e murmurou:
— Reisa adurna fra undir, un ílf fïthren skul skulblaka flutningr skul eom edtha.
E ele enfiou um fiozinho de energia no solo sob o túmulo, procurando por
qualquer água que houvesse ali.
A ideia era relativamente simples. Em vez de lançar um feitiço no túmulo, ele
usaria magia para trazer a água para cima sob o solo e, caso a água tocasse uma
escama, ela levaria a escama através da terra até a mão dele. No entanto, Murtagh
limitaria a energia direcionada à água a uma área profunda no subsolo, de modo que
nenhuma parte da força que ele gastaria afetasse diretamente a escama ou qualquer
outra coisa no interior do monte.
Se isso seria suficiente para contornar quaisquer proteções mágicas que os elfos
tivessem colocado na tumba, ele não sabia.
Talvez tenhamos que fazer uma retirada às pressas, pensou.
Enquanto estava lá, se concentrando no fiozinho da própria força que penetrava
as profundezas da terra, passos arrastados soaram nas proximidades.
Murtagh olhou de relance. O ferreiro de cabelos eriçados, sabe-se lá por que, se
deslocou para se juntar a ele.
Pior ainda, o homem começou a falar.
— Eu não tinha visto você aqui antes, estranho. Você não é dessas paragens,
imagino?
Murtagh lutou para dividir a atenção entre o feitiço e o ferreiro. Por um
momento, quase encerrou a magia, mas não o fez. Cada tentativa aumentaria o risco
de descoberta.
— Não — respondeu, mantendo o rosto para baixo.
— É, foi o que pensei — disse o homem, satisfeito, e esfregou os braços ossudos
para afastar o frio da noite. — Eu me chamo Iverston. Iverston Varisson. Embora
todo mundo ao redor do lago me chame de Malho porque... Bem, essa é uma
história que levaria uma jarra de sidra para contar, se é que me entende. Se eu
começasse, falaria até o nascer do sol.
Murtagh sabia o que se esperava dele.
— Tornac, filho de Tereth — respondeu.
Malho olhou para ele com uma expressão um tanto preocupada.
— Você não é um elfo, é? Não... Vejo que não. Mas há algo de elfo no seu rosto,
se não se importa que eu diga.
Murtagh se importava, mas segurou a língua. O túmulo era grande demais para
ele trazer água do subsolo do monte inteiro. Teria que começar em um quadrante e
movê-la lentamente para cima.
Outra pausa, e Malho esfregou os braços mais uma vez enquanto olhava para as
mulheres no topo do monte. Ele gesticulou para elas.
— Elas estão sempre lá em cima, sabe? Irmãs que vieram da cidade. Perderam o
pai durante a batalha. O irmão também, creio eu. Todo mundo aqui perdeu alguém.
A maioria, pelo menos. Alguns são simplesmente apaixonados pela ideia de
dragões. — Ele bateu na têmpora com o dedo. — Acho que têm alguma coisa meio
solta na cabeça. Sem intenção de ofender, se for o caso.
— Não ofendeu — disse Murtagh, mantendo a voz baixa.
Malho assentiu, compreensivo.
— Que bom. Não é certo adorar um dragão, se quer saber... Eu não venho na
maioria das noites, sabe? Somente quando o volume de trabalho na forja está baixo.
Já se passaram algumas semanas desde minha última visita. A colheita está cheia de
forcados, ferraduras, foices e correntes que precisam ser consertados, e sempre é
necessário produzir mais pregos. Nunca há pregos suficientes no mundo, sabe?
Murtagh assentiu e fez um barulho como se concordando. Ainda nenhum
resultado do feitiço, mas ele sentia a água fria escorrendo através do solo escuro...
— Por quê... — disse ele, e então parou. Malho se inclinou um pouco, como se
fosse olhar por baixo do capuz de Murtagh. — Por que eles ficam de luto aqui, se...
se...
Murtagh não sabia como formular a pergunta de maneira diplomática. Ele ficou
aliviado quando Malho pegou o fio da meada.
— Se foram o dragão e os elfos que mataram seus entes queridos? — Os ombros
ossudos se ergueram sob o camisolão. — Eu não saberia dizer o motivo. Pode ser
que eles odiassem o Império, e se sintam mal pela morte do dragão e de seu
Cavaleiro. Pode ser também que o Cavaleiro os tenha ajudado durante a batalha. Eu
sei que esse é o caso de Neldrick ali. Soldados de Buncha atearam fogo em sua
fazenda para tentar flanquear os elfos. O dragão desceu e apagou o fogo com as
asas, parecendo uma tempestade ou uma força da natureza, pelo que ouvi.
O ferreiro cruzou os braços e enterrou o queixo no peito.
— No meu caso? Eu não tenho nenhuma história tão épica quanto essa. Nada que
os bardos fossem cantar a respeito, não mesmo. Meu filho, veja bem, Ervos, demos
a ele o nome do pai de sua mãe, meu filho mais velho, o único homem, pois então,
ele colocou na cabeça alguns verões atrás que se juntaria aos Varden. Sempre foi
um menino teimoso. Achei que fosse se dar bem por causa dessa teimosia, mas ele
fugiu sem nos avisar, e não soubemos dele até o fim da guerra. Alguns dos Varden
vieram nos contar que lutaram com ele na Campina Ardente. A Campina Ardente!
Consegue imaginar? — Malho balançou a cabeça. — Nunca vi nada assim, posso
garantir. Uma enorme faixa de terra que queima sem parar, para sempre. Uma coisa
de louco... De qualquer forma, os homens que vieram estavam com os pés doloridos
e cansados da batalha. Eles estiveram em Feinster e em Ilirea depois. Viram Roran
Martelo Forte lutar, disseram. E disseram, bem, disseram que Ervos estava com eles
quando o Império os atacou e, bem...
O peito de Malho subiu e desceu várias vezes. Então, o ferreiro ergueu o olhar
para as estrelas. Embora não quisesse ver, Murtagh deu uma espiada e captou o
brilho prateado de lágrimas nos olhos do homem.
— É engraçado, sabe? A pessoa gasta todo esse tempo alimentando e vestindo
uma criança. Cuidando dela. Evitando que se mate por qualquer coisinha. Mas não
consegue protegê-la de si mesma. Ervos… Ele queria fazer parte de algo maior,
creio eu. Queria uma causa na qual acreditar, pela qual lutar, e não havia como dar
isso a ele em uma forja, sabe? Ele sempre foi um menino teimoso.
O homem balançou a cabeça.
— Nunca consegui ver o corpo dele. Essa é a parte mais difícil, acredite se
quiser. Não posso me despedir direito sem um corpo. — Ele apontou para o túmulo.
— Portanto, eles terão que servir até que um corpo apareça, se algum dia isso
acontecer.
A boca e a garganta de Murtagh estavam tão secas que foi difícil falar. Ele achava
que sabia de que ataque Malho falava... Foi ele que o liderou.
— Meus sentimentos.
— O mundo é assim mesmo, e nenhum sentimento vai consertá-lo, mas obrigado
mesmo assim, estranho. — Mantendo os olhos fixos nas estrelas, o homem de
cabelos eriçados continuou: — Se você quiser, pode fazer bem falar a respeito
dessas coisas. E, se não estiver disposto, tudo bem também, sabe.
A privacidade sob as sombras do crepúsculo soltou a língua de Murtagh e fez
com que ele sentisse como se pudesse falar de coisas que normalmente eram
dolorosas demais para serem expressas. Mas sabia que era uma falsa sensação de
anonimato, então escolheu as palavras com cuidado.
— Eu perdi… perdi um amigo. Era mais como um pai. Morto pelos homens de
Galbatorix.
— Ah, isso é difícil, não há como negar.
— Não tão difícil quanto o que outras pessoas sofreram.
Malho tirou os olhos do céu.
— Bem, no meu jeito de ver, não dá para saber o valor de uma dor, entende?
Cada um pode ter a sua. Seria estranho dizer que algumas dores são mais fáceis que
outras sem estar na pele das outras pessoas, se isso fizer sentido.
— Faz, sim.
Malho bufou e acenou com a cabeça e depois surpreendeu Murtagh dando-lhe
um tapinha no ombro.
— Como você parece querer seu espaço, vou deixá-lo em paz, mas, se mudar de
ideia, estarei ali.
E o ferreiro contornou a base do monte até se tornar uma silhueta escura do outro
lado, deixando Murtagh sozinho na sombra do túmulo.
Murtagh soltou um risinho abafado que foi quase um choro. Ao longe e de leve,
Thorn disse em um tom cuidadosamente neutro:
Que homem estranho.
Nem tanto, disse Murtagh.
Então se concentrou no feitiço, conduzindo a água através do solo com maior
velocidade. Até o momento, não parecia ter desencadeado nenhum feitiço de
proteção.
Pouco a pouco, cuidadosamente, ele fez a água passar por pedras e seixos,
conduziu o fluxo por espaços intersticiais, penetrou lama e argila e camadas
compressas de cinzas — os restos mortais do grande dragão Glaedr. O dragão tinha
sido enorme, em comparação com outros de sua espécie. Menor que Shruikan, mas
ainda assim várias vezes maior que Thorn ou Saphira. E a pira de Glaedr havia
deixado uma camada espessa de músculos, órgãos, ossos e escamas incinerados.
Murtagh não sabia se alguma escama teria resistido ao fogo dos elfos, que era
feito com uma magia que queimava mais do que o de uma forja.
Mas continuou procurando. Cada centímetro de avanço parecia uma transgressão.
Ele não tinha um estômago delicado por natureza — não ficava enojado com
sangue nem com a carnificina e as vísceras de batalhas —, mas saber que os filetes
de água estavam passando pelo que antes foram as entranhas de uma criatura como
Thorn o deixou cada vez mais nauseado.
Ele desejou desistir da tarefa e amaldiçoou a mulher-gato com toda a energia que
pôde dispensar.
Então, assim que Murtagh começou a se desesperar… Ali! Uma mudança no
fluxo da água ao tocar um objeto próximo ao centro do túmulo. Uma escama, ele
esperava. A água acariciou o objeto, formou uma bolsa de líquido ao redor dele e,
suave como o toque de uma mãe, retirou-o do ventre da terra.
Estava longe de ser um processo simples. Rochas e ossos bloqueavam o caminho
e, a cada poucos centímetros, um obstáculo forçava a água a se desviar. Sempre que
isso acontecia, ele lutava para devolver a escama ao curso pretendido e conseguiu.
Quer dizer, até que ela encontrou uma pedra enorme que desafiou todos os esforços
de Murtagh para contorná-la.
— Barzûl — praguejou ele.
Murtagh não conseguia encontrar o fim da pedra; a escama ficava presa em
saliências invisíveis. Sem outra opção, aumentou o fluxo de água, penetrou cada
vez mais no interior do túmulo até amolecer o solo sob a pedra, que virou uma poça
de lama.
Filetes finos de água escorriam pelos pés de Murtagh, e a terra do túmulo cedeu
ligeiramente, como se fosse desabar.
— Espere — murmurou ele, desejando que o monte mantivesse a estrutura.
Ele sentiu a pedra afundar no brejo que havia criado. A escama deslizou para a
frente com uma onda de pressão liberada, e Murtagh reduziu a quantidade de água
ao mínimo necessário para mantê-la em movimento.
Como uma nascente de montanha que ganhou vida, um trecho de orvalho brotou
da superfície do túmulo gramado. O solo se abriu e, de dentro do interior escuro,
emergiu uma reluzente escama dourada, brilhante como uma gema facetada de
topázio. No escuro, ela era um pedaço da luz do entardecer em forma de escudo, um
foco concentrado de luminosidade, ainda possuindo uma sensação de vida e
movimento.
Maravilhado, ele encerrou o feitiço e pegou a escama do tamanho da palma da
mão.
No instante em que tocou a escama, uma mente estranha tocou a de Murtagh e
um ataque mental o atingiu com tanta força que ele cambaleou e se agarrou ao
cajado para permanecer de pé.
Murtagh reagiu sem pensar; os velhos reflexos assumiram o controle. Ele recuou
no interior de si mesmo, protegeu a mente e se concentrou na frase que usava para
bloquear quaisquer outros pensamentos.
— Você não me possuirá. Você não me possuirá. Você não me possuirá —
murmurou ele, sem parar.
Mas não foi rápido o suficiente. A outra mente avançou para cima dele com força
implacável. Quem quer que fosse, possuía uma disciplina mental incrível e, ao que
parecia, o completo domínio das emoções, pois Murtagh não sentiu nada além de
uma intenção ferozmente controlada.
Ele tentou se mover, tentou largar a escama, mas a consciência invasora o
manteve preso com uma força esmagadora.
Murtagh imaginou que o agressor fosse um elfo, um enviado de Gil’ead para
guardar o túmulo. Normalmente uma projeção mental de tal intensidade exigia que
o mágico estivesse relativamente próximo. Pelo menos dentro de um quilômetro.
No entanto, Murtagh supôs que a escama estivesse de alguma forma encantada para
atuar como um espelho de vidência ou uma lupa — um conduto — entre quem quer
que a tocasse e os protetores do túmulo.
Mesmo assim, o tempo era curto. Um elfo não demoraria muito para cavalgar de
Gil’ead até o túmulo. Minutos, se tanto.
Murtagh não sabia dizer se Thorn estava tentando ajudar. Torcia para que o
dragão não fosse até lá.
Entre as palavras do cântico defensivo, ele tentou novamente mover a mão que
tocava a escama. Nada.
— Você não me possuirá. Você não me possuirá.
Por mais determinada e disciplinada que fosse a outra mente, Murtagh sabia que
era mais forte. Quando se tratava de determinação, ele podia se defender contra as
maiores, mais antigas e sábias criaturas da Alagaësia. Galbatorix podia ter sido
capaz de romper as defesas de Murtagh, mas ele nunca derrotara sua determinação
— e isso dava a Murtagh coragem para prevalecer, não importando quão terrível
fosse a situação.
Eis que da mente intrusa veio um pensamento questionador, tanto na língua
humana quanto na língua antiga: Quem é você?
Temor ameaçou atrapalhar a concentração de Murtagh. Ele não podia esperar
mais. Se o agressor descobrisse seu nome... Ele tinha que encontrar uma maneira de
interromper a atenção do elfo e escapar.
Com a mão não dominante, tateou o cinto até encontrar o cabo da adaga. Sacou a
arma e então — com determinação obstinada — esfaqueou o antebraço direito.
Não foi um golpe fundo o suficiente para causar um grande dano, mas o bastante
para causar dor, e era dor que ele queria.
O rosto se contorceu de agonia, e a adaga caiu dos dedos. O pico inesperado de
dor passou pela mente dele e entrou na do elfo e, como Murtagh esperava, quebrou
a concentração do agressor.
Livre da influência imobilizadora, Murtagh largou a escama. Ao deixar sua mão,
o contato mental desapareceu e, com ele, a sensação de peso opressivo.
O alívio seria breve.
Usando a ponta da capa como proteção, Murtagh pegou a escama outra vez. A
camada de pano foi suficiente para evitar o desencadeamento de qualquer feitiço
que tivesse sido colocado nela. Ele largou a escama na bolsa pendurada no cinto e
se virou para pegar a adaga.
A alguns passos de distância, Malho observava com uma expressão de horror no
rosto. O ferreiro gaguejou, apontou e disse:
— Isso é... Você é... Você não é amigo. Ladrão de túmulos! Profanador!
A voz dele ecoou no ar da noite e interrompeu as lamentações daqueles ao redor
do túmulo. Os humanos se viraram, com expressões assustadas e hostis. Malho
ainda gritava.
— Ele pegou uma escama do dragão! Eu vi! Ladrão! Ladrão de túmulos!
O ferreiro golpeou Murtagh, tentando agarrá-lo com braços compridos e curvos.
Murtagh se virou e correu. Correu como um ladrão comum e se odiou por isso a
cada passo.
Eu não deveria ter dito a ele que meu nome era Tornac, pensou. Os elfos podiam
saber o suficiente para se dar conta de quem ele era. E, se não os elfos, então talvez
o mágico da Du Vrangr Gata descobrisse.
Uma pontada de dor no antebraço fez Murtagh olhar para baixo enquanto corria
pela paisagem. Uma mancha de sangue havia encharcado a manga, e o antebraço
inteiro estava duro e retesado, como se tivesse cãibras.
Ele pressionou a mão esquerda sobre a ferida.
— Waíse heill — rosnou.
Seja curado. Era um feitiço arriscado de conjurar sem saber a natureza exata do
dano que ele estava tentando reparar, mas não achava que fosse muito grave, e o
palpite se mostrou correto. O braço ardeu e doeu, e ele se sentiu tonto por um
momento, o suficiente para fazê-lo tropeçar alguns passos. Mas a dor desapareceu e
os músculos relaxaram, e Murtagh conseguiu abrir e fechar a mão como antes.
Perder a adaga doeu quase tanto quanto esfaquear a si mesmo. Ele possuía aquela
arma desde que a recebera de Galbatorix em Urû’baen, e ela o servira bem desde
então. Ele a tinha encantado — com feitiços para fortalecê-la, para proteger o fio do
gume e para ajudá-la a perfurar as defesas mágicas de outros feiticeiros.
Vou ter que pegar outra adaga e começar tudo de novo. Era uma questão de
praticidade, no mínimo. Ele precisava de uma faca para muitas das tarefas de
acampamento.
Murtagh jogou o capuz para trás, pendurou a capa na dobra do braço esquerdo e
se concentrou na corrida. Atrás dele, os gritos raivosos dos enlutados
desapareceram na noite.
Um péssimo começo, pensou Murtagh. Mas não podia parar. Silna ainda estava
em perigo e havia respostas a serem obtidas de Carabel.
Preocupado, ele acelerou o passo.
CAPÍTULO IV

Histórias de pescador

M urtagh correu até que a ardência nos pulmões o obrigou a desacelerar para uma
caminhada rápida. Então voltou a correr, a caminhar, e a correr mais uma vez.
Nesse ritmo, voltou depressa para a depressão onde Thorn o esperava.
Você sempre agita as pessoas como um formigueiro. Thorn estava agachado,
tenso e pronto para sair de dentro do círculo de salgueiros e choupos.
— Eu sei — disse Murtagh, apoiando as mãos nos joelhos. — Parece ser um mau
hábito.
Será que os elfos vão nos encontrar aqui?
— Não sei — respondeu, endireitando o corpo. — Mas não acho seguro ficar.
Murtagh foi até o odre que havia deixado pendurado em um galho ao lado do
saco de dormir, destampou-o e bebeu até se saciar. A água estava morna e um tanto
rançosa, mas era um deleite bem-vindo depois de um dia de sede.
Thorn observou, sem pestanejar.
Deixe-me ver a escama.
Murtagh secou a boca. Jogou o odre vazio sobre os cobertores, pegou as luvas e,
com cuidado, removeu a escama brilhante da bolsa.
Com um zumbido empolgado, Thorn avançou até que o nariz quase tocou a placa
de topázio. A respiração quente do dragão criou gotas de umidade na superfície, e
elas refletiram a luz interna da escama em uma exibição deslumbrante.
O cotoco da cauda de Thorn bateu no chão. Um corvo voou crocitando do topo
de um choupo.
Murtagh estudou a cicatriz branca enrugada que marcava onde Glaedr tinha
arrancado o último metro da cauda de Thorn com uma mordida. A cauda dele
voltara a ter o comprimento normal — Galbatorix havia cuidado disso —, mas a
cura tinha sido forçada e imperfeita. Como o que havia sido perdido não podia ser
substituído, o rei teve que lançar feitiços em Thorn para esticar os ossos e músculos
que sobraram. O dragão levou semanas para reaprender a se equilibrar durante o
voo.
Thorn soltou um longo suspiro.
Glaedr foi um inimigo digno.
— Sim, foi — concordou Murtagh.
Ele morreu como todo dragão deveria: batendo asas, lutando no céu.
— Ele não está totalmente morto.
Thorn hesitou.
Mas ele não consegue mais voar. Não consegue se mexer. Só consegue pensar.
Prefiro me chocar contra a encosta de uma montanha do que viver assim.
— Eu sei — disse Murtagh, em tom gentil.
Eles tiveram sorte. Galbatorix não tinha forçado Thorn a expelir seu Eldunarí.
Thorn era muito jovem ainda, e o contraste entre o tamanho de sua mente e o de seu
corpo teria sido enorme.
Depois que Murtagh embrulhou a escama em um pano e a guardou em um
alforje, Thorn disse:
E agora?
Murtagh verificou o céu. As estrelas estavam brilhando e os chifres de uma lua
crescente surgiam no horizonte. Perfeito. Estava escuro o suficiente para ajudar a
escondê-los de olhos atentos, mas não tão escuro que eles não pudessem enxergar o
serviço.
— Agora — disse ele, enrolando o cobertor —, vamos pescar.

Murtagh deixou escapar um som de frustração e desabou na sela de Thorn.


Uma hora voando ao redor e de ponta a ponta do lago Isenstar se mostrou
infrutífera. O lugar era enorme, e eles não faziam ideia de onde procurar Boca de
Lodo. Além disso, era impossível ver alguma coisa na água escura, mesmo com a
ajuda da lua crescente, e Thorn não ousou voar muito perto da superfície, para que
os pescadores que atuavam à noite não os vissem. Murtagh usou a mente para
procurar criaturas na água, mas lá do alto e em alta velocidade era fácil deixar
passar os pensamentos frios de um peixe. Principalmente se estivesse dormindo. De
qualquer forma, ele não sabia como era a consciência de Boca de Lodo.
Eles pousaram em vários trechos isolados da costa, e Murtagh balançou a escama
de Glaedr nas águas paradas, esperando atrair a atenção do peixe, como Carabel
falou para ele fazer. Mas as águas permaneceram calmas e tranquilas, e o pio dos
mergulhões sonolentos ecoando por Isenstar era o único sinal de vida animal.
Frustrados, eles voltaram a voar.
Isso não vai dar certo, disse Murtagh, usando a mente para que o som da voz não
se espalhasse pela água iluminada pela lua. Poderíamos passar dias patrulhando
Isenstar sem conseguir nada a não ser moscas na nossa cabeça e elfos em nosso
encalço.
Thorn sacudiu a cabeça, irritado.
É uma boa noite para caçar, mas apenas se soubermos onde caçar.
Exatamente... Murtagh olhou para Gil’ead. Uma constelação dispersa de
lampiões e tochas iluminava a cidade e formava uma recepção agradável e calorosa
na escuridão. Se ele fosse um pescador, imaginou que a visão teria sido
reconfortante. Murtagh bateu no ombro de Thorn.
Dê meia-volta. Eu tive uma ideia.
Por que tenho a sensação de que sua ideia será perigosa?
Porque você consegue ler minha mente, é por isso. E não será tão perigoso
assim. Não se eu for esperto.
Tente não ser muito esperto. A esperteza falha com mais frequência do que a
simplicidade.
Hum.
Murtagh orientou Thorn a pousar atrás de uma pequena colina a um quilômetro
do lado nordeste de Gil’ead. Torcia para que os elfos não estivessem de olho lá. Em
volta da colina havia uma densa colcha de retalhos de plantações: trevo, trigo e
fileiras compactas de vários tubérculos.
Murtagh deslizou para o chão e parou um momento para estudar o terreno. Havia
uma casa de fazenda ao norte, mais perto do que ele gostaria.
— Você vai ter que tomar cuidado. Pode haver cachorros.
Eu sei me esconder, disse Thorn, soando vagamente ofendido.
Ele sorriu.
— Sim, sabe. Mas preste atenção: se eu não voltar em algumas horas, vá embora.
Não espere o amanhecer. Fazendeiros acordam cedo e se virem você...
Eles não vão causar mais problemas do que já enfrentamos antes. Thorn bufou, e
uma fumaça branca saiu do focinho.
— Vamos evitar mesmo assim.
Murtagh se agachou, cavou um punhado de terra úmida debaixo da grama e
esfregou nas mãos e no rosto. Ele odiava a sensação da sujeira, mas isso o ajudaria
a parecer mais velho e mais plebeu.
Murtagh teve uma sensação súbita e intensa de familiaridade, como se já tivesse
vivido aquele momento. De certa forma, já tinha mesmo: antes de entrar em Gil’ead
para ajudar a resgatar Eragon, Murtagh fez exatamente o mesmo.
— Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.
Thorn inclinou a cabeça.
E no que ajuda saber disso?
— Não tenho certeza. Talvez a gente aprenda a reconhecer os padrões e possa
evitar cometer os mesmos erros duas vezes. — Ele ficou de pé. — Volto em breve.
E partiu em um passo rápido e constante, novamente indo em direção a Gil’ead.
Atrás dele, Thorn soltou um grunhido preocupado.

Murtagh não entrou na cidade pela estrada principal. Em vez disso, foi até o lago e
o beirou até chegar às docas externas de Gil’ead. De lá, foi fácil sair andando da
costa, subir em um cais incrustado de lama e passar por um vigia que estava
ocupado com o próprio cachimbo.
As docas dali exalavam um cheiro muito diferente das de Ceunon. Isenstar era
um lago de água doce, e a ausência do sal resultava em um aroma mais limpo e
fresco. Até o cheiro de peixe era mais suave, inofensivo.
Murtagh se esgueirou pelas construções à margem do lago — passou por casas de
triagem, celeiros de armazenamento e armazéns de secos e molhados —,
procurando o que sabia que deveria existir. Mas todas as tavernas e casas comunais
que encontrou já estavam fechadas para a noite, e ao invés de bêbados, deparou-se
com cachorros perambulando pela terra batida da rua, farejando e mordendo uns aos
outros de maneira errática.
Ele ouviu o som de passos leves se aproximando atrás dele.
Murtagh se virou rapidamente e viu os mesmos dois moleques de rua
esfarrapados que o abordaram do lado de fora da fortaleza de Gil’ead. Eles
ergueram as mãos sujas, com rostos pálidos e olhos arregalados sob os cabelos
desgrenhados.
— Por favor, mestre, senhor — disseram em tom de súplica.
Murtagh franziu a testa, os sentidos em alerta para uma emboscada.
— O que estão fazendo aqui a essa hora da noite?
Os dois se entreolharam com uma expressão animada e travessa. Eram irmãos,
pensou Murtagh, com apenas um ou dois anos de diferença.
— Ah, nada de mais, senhor. Só tentando encontrar comida — respondeu o mais
alto.
— Isso mesmo, senhor. Comida para nossa pobre mãe, quero dizer — completou
o menor, de supetão.
Os irmãos trocaram olhares alegres novamente. Então, ambos falaram:
— Por favor, mestre, senhor.
Encrenca, é isso que vocês são, pensou Murtagh. Ele olhou para a extensão da
rua escura. Um vigia apareceu entre um par de construções ao longe. O lampião do
homem lançou um clarão de luz amarela do outro lado da rua antes que ele
avançasse e uma esquina cortasse o brilho.
Murtagh voltou a olhar para os dois moleques travessos. Pescou um par de
moedas de cobre. Os meninos estenderam a mão para elas, e Murtagh ergueu as
moedas sobre as cabeças dos irmãos.
— Hã-hã. Não tão rápido. Primeiro vocês me dizem se ainda há alguma taverna
aberta a esta hora horrível.
Os meninos assentiram.
— Ah, sim! Várias.
— E onde posso encontrar a mais próxima?
— Descendo por ali, senhor! — disse o mais baixo, sem a menor hesitação, e
apontou ao longo dos edifícios à beira do lago. — Logo depois dos estábulos e à
esquerda. A Âncora Enferrujada. Não dá para errar.
Murtagh deixou cair o dinheiro, e os meninos pegaram as moedas no ar, rápidos
como pássaros.
— Meus agradecimentos. Agora vão para a cama, vocês dois, e não deixem que
eu os veja aqui fora de novo.
— Sim, senhor! Obrigado, senhor! — disseram, curvando o corpo e rindo.
Depois, correram para a cidade escura, o mais baixo conduzindo o mais alto.
Murtagh balançou a cabeça e continuou na direção que eles indicaram.
O caminho era mais longe do que esperava. Murtagh quase perdia a fé nas
instruções do menino quando avistou uma velha taverna com luzes nas janelas no
extremo oeste de Gil’ead, onde as construções eram baixas e miseráveis. Fiel ao
nome, a Âncora Enferrujada tinha uma âncora de navio pendurada na porta da
frente, junto com uma placa com duas canecas de cerveja brindando.
— Quanto mais as coisas mudam...
Por hábito, Murtagh tocou o cinto para verificar a posição da adaga. Mas a arma
não estava lá, apenas a bainha vazia.
Fez uma careta. Era arriscado ir desarmado a um lugar como aquele. Era o tipo
de estabelecimento de má fama onde estranhos muitas vezes acordavam no dia
seguinte com um galo na cabeça e a bolsa sem dinheiro. Isso se tivesse a sorte de
acordar. Mais de uma vez, ouvira falar de filhos de outros nobres que saíram para
beber em lugares assim e acabaram roubados, machucados ou pior.
Obviamente, ele era o tipo de pessoa de quem os outros precisavam recear.
Murtagh não conseguia mentir para si mesmo — gostava de ser assim. Depois dos
últimos anos, ficava contente em inspirar medo se isso mantivesse ele e Thorn
seguros.
Parou um momento para colocar a cabeça no lugar e assumir a personalidade
necessária. Então, avançou com passos brutos e entrou na taverna.
Ao contrário do Festim Abundante, em Ceunon, a Âncora Enferrujada era um
lugar escuro e sombrio que cheirava a fumaça, suor, urina velha e desespero. O chão
era uma confusão de tábuas enlameadas, e havia apenas algumas garrafas e copos
na prateleira atrás do balcão do bar. O taverneiro em si estava sentado em um canto,
ao lado de um barril de cerveja, com a cabeça encostada na parede, roncando alto o
suficiente para acordar um dragão (e Murtagh sabia exatamente quão intenso o som
precisava ser para isso).
Os clientes do estabelecimento eram uma mistura de pescadores, trabalhadores e
vários homens que Murtagh imaginou serem espadachins de aluguel ou — quando
não conseguiam um contrato — salteadores à procura da próxima presa.
Ele se sentiu observado enquanto atravessava o salão. O taverneiro acordou no
instante em que ele colocou moedas de cobre no balcão de madeira arranhado.
— Cerveja — disse Murtagh. — A mais barata que você tiver.
— Barata é tudo o que temos — respondeu o homem, levantando-se lentamente.
Ele tinha uma barriga de grávida que deixava o avental tão esticado quanto um
tambor. As moedas de cobre desapareceram nas mãos rechonchudas do homem, que
deu a Murtagh meio cobre como troco. A seguir, pegou uma caneca que não parecia
muito limpa e a encheu do barril.
Murtagh olhou para a cerveja. Estava choca. Ele decidiu não reclamar e levou a
caneca para uma mesa mais próxima da pequena lareira de pedra. O fogo estava
quase extinto, apenas um leito de brasas desanimadas.
Enquanto Murtagh se acomodava em uma cadeira, um dos espadachins de
aluguel — um homem baixo, com peito de pombo e um tique nervoso no olho
esquerdo — pigarreou e disse:
— Você veio com uma das caravanas?
Murtagh concordou com a cabeça.
— Direto de Ilirea. Chegamos duas horas antes de escurecer, mas demorou muito
para tirar tudo dos carroções.
Um homem com barba semelhante à de um anão e uma cicatriz na sobrancelha
esquerda falou:
— Quais são as notícias da estrada?
A cerveja tinha o sabor de água de cevada diluída. Murtagh fez uma careta e
pousou a caneca de volta na mesa.
— A estrada está boa. Empoeirada, com certeza. Como conseguimos vir sem
ninguém nos assaltar, acho que os homens da rainha estão fazendo um bom trabalho
em manter a ordem.
O homem de peito de pombo e o companheiro barbudo trocaram um olhar que
parecia um tanto conspiratório. O peito de pombo disse:
— Você estava trabalhando como segurança dessa tal caravana?
Murtagh assentiu.
— Nem precisei desembainhar minha espada. Não posso reclamar.
— É sempre um bom dia de trabalho quando a pessoa não precisa trabalhar —
disse o barbudo.
— Essa é uma verdade que merece uma cerveja.
Murtagh ergueu a caneca e bebeu um gole. A seguir, olhou para os pescadores
em seus suéteres e gorros de lã (que usavam mesmo entre quatro paredes).
— Ouvi dizer que a pescaria é boa no lago Isenstar.
— É aceitável — disse o pescador mais próximo, mantendo o olhar na caneca.
— Um dos homens com quem fiquei de vigia não fechou a matraca a respeito da
pescaria. Ficou falando sem parar a respeito do lúcio de verão. Dele e das enguias.
Sempre as enguias.
— As enguias são boas o suficiente para comer — admitiu o pescador. —
Contanto que a pessoa não cozinhe demais.
Murtagh assentiu mais uma vez, como se isso confirmasse o que tinha ouvido.
— Visto que é esse o caso, posso tentar a sorte com o anzol enquanto estiver
aqui. Eu costumava pescar bem. — Ele ergueu a caneca como se fosse beber, então
balançou a cabeça e pousou a cerveja novamente. — Só que… É uma bobagem, e
tenho certeza de que esse meu companheiro de guarda estava me provocando, mas,
bem, ele ficou repetindo que era perigoso pescar aqui. Por causa de um peixe
chamado Boca de Lodo. Disse que era o maior e mais malvado peixe de todo o
lago. Achei que ele estava falando bobagem. Com certeza, não?
Os pescadores ficaram tensos. Um deles fez um gesto para afastar o mau-olhado
e se inclinou e cuspiu no chão. A saliva era verde-escura por causa de um pedaço de
erva de cardo alojado na bochecha.
— Bicho maldito.
Murtagh ergueu uma sobrancelha.
— Pelo visto, há verdade no que ele disse...
— Talvez — disse o homem mais próximo, carrancudo.
— Isso soa como uma história que vale a pena ser contada.
Ninguém se manifestou. Os pescadores encaravam a lareira com olhares
taciturnos, enquanto o peito de pombo e o barba de anão sorriam um para o outro
diante da falta de resposta. O homem que havia cuspido empurrou a cadeira para
trás.
— Horvath. Merrik. Vou embora. Anra está esperando.
Murtagh ergueu a mão.
— Taverneiro. Uma rodada para todo mundo. Por minha conta.
O taverneiro obrigou os olhos a se abrirem e pestanejou, turvo de sono. Ele fez
que sim com a cabeça e arrastou os pés em direção ao barril.
Depois de um momento de hesitação, o pescador se recostou na cadeira.
— Creio que ela possa esperar uma caneca a mais — murmurou ele.
Ficaram sentados em silêncio enquanto o taverneiro enchia as canecas e fazia a
ronda pelas mesas. Quando Murtagh entregou a última das moedas de cobre, o peito
de pombo ergueu a caneca dele em um gesto de agradecimento.
— Obrigado, estranho — disse um dos pescadores, dono de uma cicatriz no
antebraço que fez Murtagh se lembrar de Essie. — Muita bondade sua.
— Oreth, filho de Brock — falou Murtagh, que achou sensato começar a usar um
nome diferente de Tornac em Gil’ead.
O mascador de erva de cardo coçou a barba ruiva e curta no queixo.
— Boca de Lodo, hein? Se quer saber mesmo a verdade, é melhor falar com o
velho Haugin, mas ele já está no quinto sono, se bem o conheço.
— Ele vai dormir o inverno inteiro — disse o pescador com cicatrizes.
— É verdade — falou o mascador de erva de cardo, balançando a cabeça. — Mas
não posso culpá-lo. Ele tem setenta e três invernos. Um homem merece dormir um
pouco depois de tanto trabalho.
Murtagh tomou outro gole da cerveja choca.
— E o que ele me diria a respeito de Boca de Lodo? — perguntou, tentando fazê-
los falar o que ele queria ouvir mais depressa.
O mascador de erva de cardo e seus companheiros trocaram olhares expressivos.
— Bem, é curioso. Você pode pensar que estou falando um monte de lorotas, mas
você perguntou e, como pagou a cerveja, receberá a história, se me perdoa a
expressão.
Murtagh sorriu.
— Claro.
— Então. Você tem que entender o que é Boca de Lodo antes de eu começar.
— Diga.
— Ele é um velho desgraçado e malvado, é o que ele é — explodiu o pescador
com cicatrizes. — Está vendo essa marca no meu braço? Foi aqui que ele me
mordeu há quatro verões. Maldito seja. Eu gostaria de estripá-lo e defumá-lo para o
jantar um dia.
— Todos nós gostaríamos — disse o mascador de erva de cardo. Os espadachins
de aluguel ouviam com atenção, os olhos brilhando na luz vermelha opaca dos
carvões. — Veja bem, Oreth, aquele peixe maldito é quase tão comprido quanto um
de nossos veleiros. Uns bons dez passos de ponta a ponta, creio, e mais ou menos
três passos de largura.
Murtagh sentiu que o cenho estava se franzindo enquanto ouvia. O que Carabel
não me contou?
— Isso é… um peixe grande.
Mesmo que eles estivessem exagerando, Boca de Lodo era claramente enorme.
O mascador de erva de cardo bufou.
— Pode-se dizer que sim. O maldito é quase uma pequena baleia. É um esturjão,
veja bem, ou algo parecido com isso. Escamas blindadas do tamanho de um broquel
nas laterais, espinhos afiados nas costas, barbilhões enormes saindo da boca. A boca
foi o que deu nome a ele. Boca de Lodo. Ele a arrasta no fundo do lago, pegando
tudo, comendo. Sempre que sobe, tem lodo e lama saindo da boca como fumaça de
um queimador de carvão. Ele vem espreitando Isenstar pelos últimos sessenta anos.
E é verdade, ele é mau. Embaralha nossas linhas e corta nossas redes sempre que
pode. Nós o vimos pegar garças no ar, furar os costados dos barcos... No ano
passado, ele derrubou o pobre Brennock de seu barco e o espancou quase até a
morte com o rabo.
— O rabo de Boca de Lodo, não de Brennock — esclareceu o pescador com
cicatrizes.
Uma gargalhada escapou do mascador de erva de cardo.
— Sim. Brennock não saberia o que fazer com um rabo, mesmo que tivesse um.
O cenho de Murtagh se franziu mais ainda.
— Ora, vamos. Você está de brincadeira, não está? Não pode esperar que eu
acredite...
— Cada palavra é a pura verdade, juro pelo túmulo de minha mãe — disse o
mascador.
Enquanto falava, Murtagh viu dois garotos entrarem de mansinho na taverna
vindos da copa: os dois moleques de rua de antes. Os irmãos se sentaram ao lado da
lareira, conversando. Ao vê-los, Murtagh notou uma semelhança inegável com o
homem de peito de pombo, e bufou. Eu deveria ter imaginado. Ele se perguntou
que tipo de acordo os irmãos e o pai tinham com o taverneiro.
Tirando isso da mente, Murtagh disse:
— Bem… se as coisas estão nesse pé, por que ninguém pegou ou matou Boca de
Lodo até agora?
O mascador de erva de cardo se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos na
mesa, os olhos com um brilho peculiar.
— A história está na resposta, então ouça com atenção e não duvide de uma
palavra. Há sessenta anos, Haugin tinha cerca de dez verões. Como ele conta, ele e
dois outros meninos estavam pescando na costa, a alguns quilômetros ao norte
daqui. Era ele, Sharg Nariz de Truta e Nolf, o Baixo. Tanto Sharg quanto Nolf estão
mortos e enterrados, mas contavam a mesma história enquanto andavam sobre a
terra.
Ele ajustou o naco de fumo de erva de cardo na bochecha e bebeu um gole de
cerveja.
— De qualquer forma...
O terceiro pescador, um homem magro e de rosto esquálido que até então havia
permanecido calado, disse:
— Conte a ele a respeito do...
— Está bem. Estou chegando lá! — disse o mascador, visivelmente irritado.
Ele revirou os ombros e demorou um pouco mais antes de continuar. O homem
de rosto magro olhou feio para ele.
— Enfim, os meninos estavam pescando e pegaram umas trutas, uns esturjões e
colocaram os peixes na praia. Só que, em vez de dar uma pancada na cabeça deles
para impedi-los de se debater, eles decidiram sentar e assistir para ver quanto tempo
os peixes demoravam para parar de se mexer e qual deles durava mais. Não era
certo, mas, bem, você sabe como são os garotos.
Murtagh sabia. Ele olhou para o fundo da caneca.
— Então lá estão eles, sentados e observando os peixes ofegando nas rochas, e
um homem se aproxima por trás dos meninos. Sem cavalo, sem boi, apenas sai da
selva. Haugin diz que ele era um homem de aparência estranha. O cabelo ruivo, não
ruivo como meus bigodes, mas vermelho de verdade, como um rubi lapidado. E
dentes afiados e pontiagudos como os de um gato.
Um arrepio gelado subiu pela nuca de Murtagh enquanto ele ouvia. Durza. O que
o mago possuído por um espírito estava fazendo em Gil’ead tantos anos atrás?
Cumprindo alguma missão desgraçada e sangrenta para Galbatorix, sem dúvida —
ou pelo menos era o que Murtagh presumia. Grande parte da história de Durza
permanecia um mistério para ele. Galbatorix manteve a existência do Espectro em
segredo da corte, e Murtagh só descobriu a respeito dele durante as viagens com
Eragon. Mais tarde, depois que os Gêmeos o arrastaram de volta para a capital e
Thorn saiu do ovo, Galbatorix lhe contou alguns detalhes sobre o serviço que Durza
realizava para ele, mas apenas alguns.
Pensando bem, Murtagh ficou surpreso com a própria ignorância. E pela
estupidez de seu excesso de confiança. Ele pensou que pudesse derrotar Durza em
Gil’ead, sem magia nem a força e a velocidade aprimoradas adquiridas ao se tornar
um Cavaleiro de Dragão. Idiotice. Durza teria me matado antes de perceber quem
eu era... Pelo menos consegui colocar uma flecha entre seus olhos. Embora não
tivesse sido suficiente para matar o Espectro. Apenas uma lâmina no coração
poderia fazer isso, como Eragon provou mais tarde em Tronjheim.
— Assim que o viram — continuou o mascador de erva —, as crianças pularam e
tentaram ir atrás dos peixes. Eles sabiam que o que estavam fazendo não era certo.
Mas o homem mandou que parassem e perguntou o que estavam fazendo. Aí eles
contaram, envergonhados. E Haugin diz que o homem sorriu e se sentou ao lado
deles com a mão no punho da espada e pediu que observassem e esperassem,
porque ele também estava curioso. Só que não foi um pedido de verdade, se me
entende, e sim uma ordem. Pelo menos, é assim que Haugin conta. Então eles se
sentaram e esperaram, e os peixes continuaram ofegando e se debatendo até que
deram o último suspiro. Todos menos um.
— Deixe-me adivinhar — disse Murtagh. — Um esturjão.
Junto à lareira, os irmãos riam enquanto jogavam uma partida de um jogo com
seixos coloridos.
— Ou algo como um esturjão — disse o mascador de erva de cardo, que assentiu
com uma expressão sábia. — E é aqui que a história fica estranha. O homem pega o
peixe e fala palavras para o animal, só que em uma língua que não fazia sentido.
Haugin jura pelo túmulo da própria mãe, jura que sentiu as palavras em seus ossos,
e Sharg e Nolf contavam a mesma coisa.
— Magia — disse o pescador com cicatrizes.
— Sim, magia. Aí o demônio ruivo disse tudo o que queria e depois jogou o
peixe de volta no lago, e falou para Haugin, Sharg e Nolf que, como eles queriam
saber qual peixe era o mais forte, era justo recompensar o sobrevivente. E falou que,
por serem meninos tão travessos, o peixe os afligiria e atormentaria pelo resto de
seus dias. Depois ele voltou para o meio do mato e, desde aquele dia, o peixe tem
sido um terror para todos nós.
O pescador com cicatrizes cutucou o mascador de erva no ombro.
— Conte o resto para ele.
— Estou chegando lá! Uma história tem que ser contada do jeito certo... Boca de
Lodo cresce e se torna temível. Assim que nos demos conta, tentamos matá-lo,
Oreth. Ah, tentamos. Mas não adiantou. Ganchos não se fixam na boca dele, lanças
raspam as placas blindadas e flechas...
— Flechas ricocheteiam — disse o pescador com cicatrizes.
O mascador de erva de cardo fez uma careta por um segundo.
— Sim. E o maldito peixe é esperto demais para ser pego em redes ou caniçadas.
Antes da guerra, lorde Ulreth ofereceu uma recompensa por ele. Duas moedas de
ouro inteiras. E nosso governante atual, lorde Relgin, aumentou a recompensa para
quatro moedas, acredite se quiser. Quatro! E ainda incluiu uma chance de se juntar à
guarda, se a pessoa quiser. — O mascador de erva balançou a cabeça. — Mas não
vai adiantar. Boca de Lodo é uma maldição em nosso lago, uma punição pelos
maus-tratos sofridos pelos peixes, e essa é a verdade.
Murtagh xingou Carabel em silêncio por não ter lhe contado nada disso. Pegar e
matar Boca de Lodo seria muito mais complicado do que ele pensara.
— Por que não encontraram um conjurador para matar o peixe para vocês? —
perguntou ele.
O pescador com cicatrizes soltou um muxoxo de desdém.
— O quê? Os homens da Du Vrangr Gata? Eles não têm tempo para nossas
preocupações. E Frithva, a bruxa errante que mora lá embaixo, não seria de muita
ajuda. Se você precisa tirar uma verruga ou de uma compressa para um furúnculo,
ela vai te curar. Mas um peixe encantado decidido a te matar? Não, senhor. Para
isso, você precisa de um elfo ou um Cavaleiro.
— E eles estão todos ocupados em outros lugares — disse o mascador de erva de
cardo em tom de tristeza.
— Fique contente por isso — respondeu o amigo dele. — Essa gente só causa
destruição e ruína.
O mascador deu de ombros e bebeu o resto da cerveja.
— E agora você sabe a verdade a respeito de Boca de Lodo. Acredite se quiser,
Oreth, mas juramos que cada palavra é verdade. — Ele empurrou a cadeira para trás
e se levantou. — Agora é melhor eu ir embora. Anra está esperando por mim e não
ficará satisfeita por eu ter demorado tanto.
Murtagh ergueu a mão em um gesto casual e descuidado.
— Meus agradecimentos pela história. Admito que parece improvável, mas já
ouvi coisas mais estranhas na estrada. Se um homem não quiser ser comido por
Boca de Lodo, onde ele não deveria ir pescar?
O pescador com cicatrizes soltou um muxoxo.
— Como se isso fosse possível. O lago inteiro é o campo de caça dele. Aonde
quer que vá, você tem que ficar atento para que ele não te coma.
— Essa não é toda a verdade e você sabe disso, Horvath — disse o mascador. —
Há uma área pantanosa logo a oeste daqui, ao longo da costa, perto de onde os elfos
eliminaram os últimos soldados de Galbatorix. O local tem amentilhos e elódeas, e
há rochas grandes o suficiente para Boca de Lodo espreitar embaixo. Na maioria
das vezes, ele está em algum lugar nos arredores durante a manhã e a noite.
— Muito obrigado — disse Murtagh.
O pescador assentiu.
— Você ainda é jovem. Eu não gostaria de ver o velho Rove tirando medidas para
o seu caixão porque você foi arrumar confusão com Boca de Lodo, se é que me
entende.
E dito isso ele foi embora.

Murtagh terminou a caneca de cerveja. Teria sido estranho se não o fizesse.


Enquanto permaneceu sentado, bebendo e pensando a respeito do que tinha ouvido,
peito de pombo e o amigo barbudo se aproximaram em uma conversa conspiratória.
A seguir, se levantaram das cadeiras e saíram silenciosamente da taverna, se
mantendo atrás dele o tempo todo.
Murtagh fingiu não notar. E esperava que suas suspeitas fossem equivocadas.
Ao lado da lareira, os dois meninos começaram a parecer sonolentos, embora
ainda estivessem rindo e brincando. O mais alto havia vencido as últimas três
partidas do jogo de pedrinhas, e o mais baixo estava discutindo se o irmão tinha
sido honesto ao pegar os seixos.
Murtagh largou a caneca e foi até a lareira. Os meninos lançaram um olhar
furtivo para ele e depois fingiram ignorá-lo. Ele estendeu as mãos, como se fosse
aquecê-las, e depois verificou se o taverneiro havia adormecido novamente.
O homem estava caído inerte, apoiado no barril, com a cabeça pendendo para o
lado.
Bom. Ao se virar para sair, Murtagh usou a capa como cobertura para furtar um
pedaço de pinheiro cortado da caixa de lenha ao lado da lareira. Com a tora
escondida junto à lateral do corpo, ele saiu da taverna.
O ar da noite foi um alívio fresco em comparação ao interior abafado da taverna.
Ele parou por um momento e admirou a vista das estrelas enquanto limpava os
pulmões.
Segurou firme no pedaço de madeira escondido enquanto começava a descer as
docas escuras. Com muito cuidado, permitiu que a mente se abrisse e se espalhasse,
sentindo o toque dos pensamentos de outras pessoas.
Notou os dois homens no momento que eles atacaram: um vindo em sua direção
pela frente e o outro saindo de um beco à direita. Peito de pombo e o amigo
barbudo, com porretes na mão.
Murtagh travou o passo, o que alterou o ritmo de seu avanço, se abaixou de lado
e meteu o ombro no abdômen do barbudo. O salteador ficou sem ar quando
Murtagh o derrubou contra a parede do prédio próximo: uma loja de secos e
molhados com vitrines fechadas.
Sem esperar para ver o que aconteceu com o homem, Murtagh girou e, com o
pedaço de pinheiro, derrubou o porrete de peito de pombo e o atingiu na clavícula.
O homem magro desabou com um gorgolejo, trincando os dentes.
O barbudo ainda se movia. Estava de joelhos, lutando para ficar de pé.
Com um passo rápido, Murtagh o atingiu perto da nuca. Uma cutelada, mas não
forte o suficiente para matar.
— Ahh! — gritou o barbudo, que se encolheu cobrindo a nuca e a cabeça com as
mãos.
Murtagh parou por um momento para verificar se havia mais inimigos. Quando
não viu nenhum, olhou para os dois pobres aspirantes a ladrões.
Os dentes se arreganharam em um rosnado, e o sangue fervia nas veias. Ele
andou de volta até peito de pombo e chutou a lateral do corpo do homem. De novo.
E mais uma vez. Um grito de raiva e frustração irrompeu de Murtagh enquanto dava
pontapés.
Pelo menos uma costela estalou, talvez ou mais.
Ele se ajoelhou e agarrou o homem pelos cabelos. Os olhos de peito de pombo
rolaram, e uma espuma vermelha se acumulava no canto da boca. Os lábios se
mexeram em uma tentativa muda de implorar por misericórdia.
— Seja um pai melhor — rosnou Murtagh. — Ou, da próxima vez, vou te dar
uma surra pior do que essa, seu traste inútil.
O homem gemeu quando Murtagh soltou a cabeça dele.
Uma bolsa no cinto de peito de pombo chamou sua atenção. Ele a pegou, assim
como a adaga do homem. Não era uma arma bonita, mas como a lâmina parecia
confiável o suficiente, e ele a transferiu para a própria bainha vazia.
— Papai!
O grito causou um arrepio em Murtagh. Ele ergueu os olhos e viu os dois
moleques de rua parados na porta da taverna, com raiva e medo nos rostos sujos.
— Fique longe dele! — gritou o menor, atirando um punhado de seixos.
Vários ricochetearam nos ombros de Murtagh. Ele se levantou.
— Seu pai precisa da ajuda de vocês. Cuidem dele. — A seguir, saiu correndo.
No meio do cais, com a taverna bem fora de vista, o estômago de Murtagh se
contraiu, e o coração pareceu perder o ritmo. Ele cambaleou antes de o estômago
relaxar e o pulso retomar o compasso normal. Praguejou.
Quase desejava ter matado o homem. Poderia ter sido melhor para os filhos. Ou
talvez não. Era impossível saber. Murtagh só tinha certeza de que odiava o sujeito e
sua estupidez bestial.
Ele saiu rapidamente da cidade e correu de volta pela terra escura na direção em
que Thorn estava esperando. Assim que parou de se preocupar com alguma mente
que estivesse em vigia, entrou em contato com o dragão e contou o que havia
descoberto.
Você não consegue ir a lugar algum sem se meter em uma briga?, comentou
Thorn.
Parece que não. Não foi culpa minha, no entanto.
E é culpa sua alguma vez?
Às vezes. De qualquer forma, é melhor encontrarmos Boca de Lodo para que eu
possa enfim abrir a porta que está sempre fechada. Se alguém importante estiver
ouvindo os rumores e fofocas pela cidade, pode perceber que algo está errado e
começar a nos procurar.
E quanto ao peixe?
Murtagh pulou uma cerca de ripas de madeira enquanto continuava atravessando
um campo em direção ao esconderijo de Thorn.
Posso quebrar as proteções mágicas que Durza colocou em Boca de Lodo. Isso
não será um problema. Na verdade, tenho certeza que você consegue romper os
feitiços de proteção mordendo o peixe. A ideia pareceu agradar a Thorn. Só temos
que encontrá-lo.
Então vamos fazer isso!
Assim que eu chegar até você... Ao dizer essas palavras, Murtagh sentiu uma
onda de movimento e empolgação em Thorn quando o dragão levantou voo. Não,
espere!
CAPÍTULO V

Boca de Lodo

O grito de Murtagh saiu tarde demais. Adiante, ele viu o brilho fraco da silhueta
de Thorn surgir acima da colina onde os dois pousaram e ouviu o baque surdo das
asas do dragão.
— Maldição — murmurou Murtagh entre os dentes cerrados.
Ele observou a configuração do terreno e depois correu em direção a um trecho
plano de trigo já colhido a algumas dezenas de metros de distância. Chegou quando
Thorn descia do céu. A rajada de vento das asas aveludadas do dragão o fez
cambalear, obrigando-o a abrir os pés e a se segurar contra a pressão do ar.
— Você precisava fazer isso? — disse ele.
Um brilho divertido acendeu os olhos de Thorn. Não, mas eu quis.
— Bah. Vamos sair daqui antes que alguém perceba. — Ele subiu depressa pela
lateral de Thorn e sentiu as escamas do dragão afiadas nas mãos.
Murtagh agarrou o espinho do pescoço na frente da sela e segurou firme — sem
se preocupar em amarrar as pernas — enquanto Thorn decolava.
A lua crescente estava perto do topo do céu quando Thorn passou por cima da
borda sul do lago Isenstar, procurando a área pantanosa que o pescador havia
mencionado. Murtagh considerou conjurar o feitiço que normalmente usava para
esconder Thorn das pessoas no chão, mas desistiu. Não havia barcos na água escura
abaixo, e ele queria poupar sua energia.
Ficou pensando enquanto voavam e, quanto mais pensava, mais inquieto ficava.
O que foi?, perguntou Thorn.
Estou preocupado que Durza possa ter feito algo extremamente inteligente com
Boca de Lodo.
Como assim?
Feitiços consomem energia, certo? E essa energia tem que vir de algum lugar.
Durza não conseguiria sustentar as proteções mágicas que colocou no peixe
quando não estivesse aqui. Então a energia deve vir de Boca de Lodo.
E qual o problema nisso?
Murtagh deu de ombros, sentindo uma comichão entre as omoplatas.
Talvez não haja problema. Só que, quando Boca de Lodo era pequeno, como
poderia ter mantido proteções mágicas fortes o suficiente para desviar de lanças e
espadas e coisas do gênero?
Por um momento, o único som foi a batida das asas de Thorn.
Talvez ninguém tenha tentado matar o peixe até ele ficar maior.
Talvez.
Acha que Durza usou o mesmo feitiço para fazer Boca de Lodo crescer que
Galbatorix usou em mim?
Um súbito cansaço tomou conta de Murtagh. Lembrar o passado sempre o
deixava se sentindo velho e triste.
Não há como saber, mas não me surpreenderia.
Hum.
Os dois voaram em silêncio até que um trecho de juncos de ponta reluzente
apareceu ao longo da costa: os topos dos amentilhos refletindo o luar e a luz das
estrelas.
Thorn desceu batendo as asas em silêncio e pousou em uma larga saliência de
ardósia que pairava sobre a borda da água. Murtagh deslizou até a pedra e olhou
para a água prateada. Em outras circunstâncias, teria achado a visão linda, mas
saber que uma criatura como Boca de Lodo espreitava sob a superfície gerou uma
sensação terrível — a água era um grande e escuro desconhecido.
Sentiu um arrepio e esfregou as mãos. A respiração apareceu na forma de uma
fumaça pálida.
Murtagh tirou dos alforjes o arco que Galbatorix havia lhe dado. Ele enganchou a
ponta com a corda encaixada atrás do tornozelo direito e, com esforço, dobrou o
arco até conseguir enfiar a argola da corda na ponta da outra extremidade.
Ele verificou o alinhamento da corda e então, satisfeito, pendurou a aljava no
ombro.
O arco era feito de teixo escuro encantado por magia. A maioria dos homens, e
talvez até mesmo alguns Urgals, teria considerado o arco forte demais para vergar.
As flechas com penas brancas eram devidamente pesadas e feitas de carvalho
maciço, pois qualquer material mais leve e mais fraco se quebraria quando a corda
fosse solta. E, assim como fizera com a adaga perdida, Murtagh encantou as flechas
para torná-las mais fáceis de encontrar caso ele errasse a mira, com feitiços para
ajudá-las a resistir ao vento e a penetrar profundamente no alvo, não importando
que proteção, arcana ou não, o guardasse.
Também dos alforjes, ele tirou a escama dourada de Glaedr — ainda no invólucro
protetor de tecido —, bem como um novelo de barbante. Com dedos hábeis, deu um
nó quadrado, cujos fios manteve soltos, abertos e estendidos no chão como uma
armadilha de ferro para ursos. Então, calçou as luvas e removeu a escama do pano.
Mesmo sob o luar marmóreo, a escama brilhava com uma chama interna, como
se parte do fogo de Glaedr ainda tremeluzisse nas profundezas facetadas.
Murtagh a colocou no centro do nó quadrado e puxou os fios com força até
prenderem a escama.
Satisfeito por ela estar segura, tirou as luvas.
— Muito bem, vamos encontrar esse peixe — murmurou Murtagh, e caminhou
até o final da saliência de ardósia.
Ele girou a escama por cima da cabeça e deixou um bom pedaço do barbante
deslizar da mão, então jogou a escama na água. Ela aterrissou com um respingo que
ecoou ao longo da costa e esguichou um chafariz de gotas antes de desaparecer
como uma brasa moribunda sendo apagada nas profundezas do abismo.
— Talvez eu devesse ter amarrado uma tora como boia.
Posso pegar uma, disse Thorn, se agachando.
— Vamos esperar um pouco primeiro. Aqui, segure isso.
Thorn obedeceu, levantando a pata dianteira esquerda. Murtagh enrolou a ponta
solta do barbante em volta do dedo médio do dragão, que fechou a pata e segurou o
que restava do novelo.
— Dê um puxão de vez em quando.
Murtagh encaixou uma flecha na corda do arco. Em toda pescaria que fez durante
as viagens, usou magia, e nunca atrás de um peixe maior do que uma truta. Ele se
perguntou se aquela era a melhor forma de atrair a fera.
Encarou a massa escura do lago e expandiu os pensamentos. Tão longe assim de
Gil’ead, não havia a preocupação de ser notado por outro conjurador e, portanto,
usou toda a força da mente.
Fechou os olhos para se concentrar melhor no que sentia.
A escuridão reinava. Mas eis que ele olhou para o lado e Thorn apareceu como
uma chama ardente de calor e vida, uma estrela radiante em meio ao vazio.
Dentro do lago, viu muitas estrelas menores, pontinhos de calor que marcavam a
localização de uma miríade de diferentes criaturas vivas. Peixes flutuando em
fendas seguras e na base de elódeas que balançavam ao sabor da água, descansando
enquanto a noite passava. Enguias se enterravam na lama do leito do lago — as
mentes eram fracas e indistintas, dominadas pelos instintos mais básicos: frio, fome,
fadiga. Mais fracos ainda eram as centenas, se não milhares, de insetos que
apinhavam a água, indo de um lado para outro, descansando sob rochas e gravetos
ou envoltos em conchas. E Murtagh sabia que, se seu olho interior fosse ainda mais
aguçado, continuaria a ver a força vital de criaturas cada vez menores até chegar à
matéria mais ínfima.
Mas, entre os muitos animais que ele sentia, e até mesmo entre o calor quase
imperceptível das elódeas e outras plantas do lago, não havia nenhuma criatura
grande o suficiente para ser Boca de Lodo. Nem de longe.
Frustrado, soltou o fôlego e trocou a visão mental pela física. As cristas das
ondas baixas eram como lascas de metal espalhadas pelo lago.
— Nada — disse a Thorn. — Não há sequer um indício de alguma coisa... Puxe a
escama. Vamos ter que tentar em outro lugar.
Ele se voltou para o dragão, desanimado.
— Maldição. Isso vai levar dias, e não temos...
Olhe! Thorn cutucou Murtagh com o nariz, apontando para o lago.
Murtagh virou-se, erguendo o arco.
A mais ou menos quinze metros da costa, a água ganhou volume, diminuindo à
medida que avançava, como uma onda passando por um casco virado. Uma enorme
massa bulbosa a empurrava para cima e, na sombra abaixo, Murtagh teve um
vislumbre de olhos de contornos brancos que eram tão grandes quanto seu punho e
rolavam nas órbitas.
Então a onda sumiu e deixou apenas um rastro de marolas para trás.
— Juro, não senti nada — disse Murtagh, acompanhando as marolas.
É enorme! A descrição do mascador de erva de cardo não foi capaz de passar a
noção correta do tamanho do peixe. Boca de Lodo era maior que um urso das
cavernas, maior até que um dragão de três meses, ignorando as asas.
Murtagh reuniu os recursos mentais e então o golpeou com o pensamento,
tentando localizar e imobilizar o animal gigantesco, assim como o elfo havia feito
com ele no túmulo.
— Eu ainda não sinto nada — sussurrou ele. — Thorn, você consegue...
Um rosnado fraco escapou do dragão.
É como garras no gelo. Não consigo segurar.
Murtagh xingou baixinho.
— Vou ter uma conversa com aquela mulher-gato — disse ele, examinando o
lago agora plácido.
Durza deve ter escondido a mente de Boca de Lodo, comentou Thorn.
— É um belo truque. Nem eu tenho certeza de como fazer isso... Tente puxar a
escama. Vamos ver se isso chama a atenção dele.
Thorn obedeceu com alguma dificuldade. Os dedos da pata dianteira eram
grandes demais para realizar funções delicadas, mas ele conseguiu enrolar o
barbante em volta da pata o suficiente para encurtar a linha metro a metro.
Uma nova marola, imponente e ampla, surgiu se movendo transversalmente à
corrente predominante, se dirigindo para onde Murtagh imaginou que estivesse a
escama de Glaedr. Ali. Era muito improvável que acertasse, especialmente
disparando contra a água, mas Murtagh decidiu arriscar. Em um único movimento
suave, ele esticou o arco à frente enquanto puxava a corda até sua mandíbula e —
sem hesitação — a soltou.
A flecha zumbiu enquanto voava, e Murtagh enviou com ela uma palavra mortal.
Gotículas espirraram quando a flecha atingiu o lago bem à frente das marolas.
E então...
... as marolas diminuíram, diminuíram, até sumir e, pelo feitiço que conjurou,
Murtagh não sentiu nenhuma energia sendo drenada.
Ele errara. Conteve um palavrão e encaixou outra flecha, o mais rápido que pôde.
— Aqui, peixinho, peixinho — murmurou, varrendo o lago com o olhar.
Ele franziu os olhos. Aquilo era movimento à direita? A água estava escura
demais para ter certeza.
— Brisingr — sussurrou, liberando a energia aos pouquinhos, de modo a criar
uma esfera opaca de fogo vermelho diante de si.
Ela pairou sobre a água como um pequeno sol, brilhante o suficiente para
permitir que Murtagh enxergasse melhor.
Esperava que a luz pudesse ajudar a atrair o peixe para mais perto.
Thorn continuou a puxar o barbante. A escama de Glaedr estava quase junto a
eles. Murtagh conseguiu distinguir um brilho dourado sob as ondas, subindo na
direção da superfície.
Ele abriu a boca para sugerir que Thorn tentasse sacudir a linha.
Uma grande massa irrompeu embaixo da escama, e a escuridão se escancarou ao
redor do resto mortal de Glaedr, que brilhava como uma joia, enquanto mandíbulas
horrivelmente largas se fechavam, fazendo a escama desaparecer.
Thorn puxou o barbante. A linha estalou com um som metálico.
Murtagh puxou e soltou a flecha em um único movimento e, com ela, gritou a
palavra mortal.
Uma linha de bolhas brancas desenhou o rastro descendente da flecha. Foi um
bom disparo. A flecha atingiu algum ponto da cabeça de um metro de largura de
Boca de Lodo. Murtagh viu, sentiu e ouviu o impacto.
A flecha resvalou para o lado e desapareceu na escuridão de Isenstar. Mais uma
vez, Murtagh não sentiu nenhuma diminuição na força por causa do feitiço.
Boca de Lodo sumiu de vista, como um casco abandonado afundando até lugar
de descanso final, e não deixou sinal de si nem da escama de Glaedr.
Murtagh baixou o arco. Não havia sentido em encaixar outra flecha. Ele xingou.
Ao lado de Murtagh, Thorn sacudiu os restos frouxos do barbante para tirá-lo da
pata dianteira.
O peixe é formidável.
— Se perdermos Boca de Lodo, eu juro que vou drenar o maldito lago inteiro...
Marolas em forma de V se formaram à direita, a mais ou menos vinte metros da
costa. Elas traçavam uma curva perto da saliência de ardósia.
Thorn se mexeu ligeiramente, com o olhar concentrado na água agitada.
Ele não fugiu.
— Não.
Está brincando conosco.
— Que grau de inteligência ele pode ter?
As marolas desapareceram.
Os olhos reluzentes de Thorn se voltaram para Murtagh por um momento.
Ele pode ser astuto o suficiente para caçar um homem.
Uma preocupação fria correu a nuca de Murtagh. Thorn estava certo. A maioria
dos animais — a maioria dos peixes — teria fugido após ser atacada. Mas, por outro
lado, Boca de Lodo não era como a maioria dos peixes. Esse era o problema.
Murtagh cerrou os dentes, determinado. Nenhum peixe iria vencê-lo,
independentemente de encantamentos. Ele enfiou o arco na aljava, junto com as
flechas. O momento das armas físicas havia passado.
— Todas as proteções mágicas têm um limite — disse ele. — Vamos encontrar os
limites dessas aqui. Vou precisar de um pouco da sua força.
A mandíbula de Thorn se abriu para mostrar os dentes curvos.
O que é meu é seu.
Murtagh devolveu o sorriso. A seguir, voltou a concentração para a água. O
pescador com cicatrizes estava certo: matar Boca de Lodo era uma tarefa para um
elfo ou um Cavaleiro. Poucos além desses estariam à altura do desafio. E, ao se
livrar do peixe, eles poderiam fazer uma boa ação para o povo de Gil’ead, ao
mesmo tempo que serviam aos próprios interesses. Era uma combinação
gratificante.
Murtagh se agachou e tateou até encontrar um pedaço de ardósia solta. Arqueou
o braço e jogou a pedra a alguns metros nas águas próximas. Longe o suficiente
para que Boca de Lodo pudesse se sentir seguro, mas perto o suficiente para que
Murtagh tivesse uma linha de visão clara.
Uma série de bolhas peroladas apareceu, subindo em direção à superfície.
Murtagh ficou tenso e manteve firme a conexão entre a mente dele e a de Thorn.
Mais uma onda se formou, agora a menos de dez metros de distância.
Murtagh se concentrou em uma área logo abaixo da superfície, apontou e falou a
Palavra, o Nome dos Nomes.
Além da Palavra, ele acrescentou uma frase expressando a intenção de retirar as
magias vinculadas a Boca de Lodo, para quebrar e acabar com os encantamentos
que Durza colocara no peixe mais de meio século atrás. Embora a Palavra
concedesse a ele controle completo sobre a língua antiga, Murtagh ainda achava
útil, e muitas vezes necessário, explicitar o efeito desejado.
Ele liberou o feitiço e, como acontecia com a maioria dos usos da Palavra, sentiu
apenas uma leve diminuição na energia. Mas foi o bastante para saber que o feitiço
havia funcionado. Alterar feitiços através do Nome dos Nomes exigia pouca força
bruta. Era uma arte sutil, mais parecida com ajustar a trama de uma tapeçaria do que
quebrar um pedaço de cerâmica.
— Peguei você — murmurou, e depois: — Kverst!
A palavra dividiu a onda como se fosse um pano cortado por uma navalha. Por
baixo, Murtagh vislumbrou uma crista de espinhos pontiagudos e, espalhado de
cada lado, um dorso largo e corcunda coberto por uma camada de escamas preto-
azuladas que reluziam à luz prateada. Mas o feitiço não produziu outro resultado, e
Boca de Lodo novamente mergulhou e sumiu.
— O quê?!
O espanto de Murtagh se transformou em indignação. Ele disparou uma lança de
pensamento em direção ao peixe... e só atingiu vazio e ausência.
— Como?
O feitiço funcionara. Ele sentira! No entanto, de alguma forma Boca de Lodo
permanecia intacto.
Mais uma vez, falou a Palavra e tentou quebrar a magia vinculada a Boca de
Lodo e, novamente, pareceu que havia conseguido. Mas, quando lançou outro
feitiço mortal na água, ele passou inofensivamente pelo esturjão superdesenvolvido.
Ele tentou mais duas vezes — ficando cada vez mais frustrado — e obteve os
mesmos resultados.
Como isso é possível?, perguntou Thorn. Magia sem palavras?
Murtagh balançou a cabeça.
— Não é possível. O feitiço cumpriu o objetivo. Tenho certeza. Ele só...
Contando com Sarros, era a segunda vez que o Nome dos Nomes lhe falhava.
Estava começando a se dar conta de que ele não era a arma todo-poderosa que
pensara a princípio. E também de que seu conhecimento sobre magia era bem
menor do que esperava.
Murtagh ficou de cócoras e mordeu o interior da bochecha enquanto pensava, e
então soltou uma risada rápida e suave.
— Que desgraçado esperto. — Murtagh olhou para Thorn. — Não sei se esta é a
resposta, mas uma maneira possível de fazer isso seria formular um feitiço de modo
que, se alguma coisa tentar alterá-lo ou removê-lo, ele se substitua. Caso tal coisa
aconteça, então tal coisa ocorre.
Não era muito diferente dos feitiços com que ele andara experimentando durante
a viagem a Gil’ead.
Você pode usar o Nome dos Nomes para impedir que o feitiço retorne?
— Talvez. Provavelmente. Mas preciso pensar.
Então pense.
Uma coceira se formou na palma da sua mão direita.
— Não sei. Pode ser mais rápido...
O seu couro cabeludo formigou, e as narinas dilataram quando o medo o sacudiu.
Minha mão! Ele se virou para Thorn, dizendo:
— Temos que ir. Vamos levantar...
Um respingo soou à direita e...
... ele se virou para ver uma massa enorme e reluzente vindo da água em sua
direção. Murtagh mal teve tempo de registrar uma sensação de descrença antes que
o peixe gigante se chocasse contra ele e os dois caíssem no lago.
CAPÍTULO VI

Luta e labuta

A água fria envolveu Murtagh em um abraço mortal. Ele não conseguia enxergar
nem ouvir, não sabia onde estava.
O impacto arrancou o arco de suas costas. A capa se enrolava em seus braços e
pernas, tornando impossível nadar.
Mesmo através do tumulto da água, ele ouviu o rugido de Thorn, e uma onda de
fogo vermelho de dragão vinda lá de cima iluminou as profundezas do lago, onde
quer que lá de cima estivesse.
Murtagh arrancou o broche que prendia a capa em seu pescoço e tentou se
desvencilhar do tecido pesado com chutes e socos. Colunas de bolhas brancas
passaram perto de seu rosto. Subir!
Com um movimento dos braços, Murtagh endireitou o corpo e nadou em direção
à superfície. A luz mágica havia desaparecido, mas ele viu a silhueta do arco, um
crescente brilhante e ardente, flutuando no topo agitado do lago.
Um instinto de alerta o fez olhar em volta.
Das profundezas do lago surgiu Boca de Lodo, limo incrustado nos cantos de sua
boca em forma de pá: um monstro antigo feito de escamas de pedra, cristas afiadas
e malícia odiosa.
Murtagh ergueu a mão direita, aquela com a gedwëy ignasia, e se preparou para
conjurar um feitiço pensando na palavra. Talvez não pudesse usar magia para afetar
diretamente o peixe, mas poderia se proteger ou então atacar a fera com água,
chamas ou outros meios.
Antes que conseguisse, o peixe monstruoso disparou com uma velocidade
chocante, se deslocando mais rápido do que qualquer criatura já vista — mais
rápido até que Thorn.
A criatura fechou a boca no braço de Murtagh, que sentiu a mandíbula
pressionando sua pele. A seguir, Boca de Lodo começou a se debater e rolar,
arrastando-o pela água.
A cabeça de Murtagh virava de um lado para outro em movimentos bruscos.
Estrelas amarelas brilharam diante de seus olhos, e ele teve que lutar para não soltar
todo o ar.
As proteções mágicas impediram o peixe de arrancar o seu braço, mas não
fizeram muito além disso. Não podiam. Ele nunca teria pensado em restringir os
próprios movimentos.
Então, vislumbrou a cabeça e o pescoço de Thorn enfiadas na água como uma
enorme serpente. E viu uma das patas dianteiras do dragão tentar pegá-lo com as
garras estendidas.
Em reação, Boca de Lodo mergulhou mais fundo, avançando em espiral. Murtagh
sentiu o corpo bater no fundo do lago e uma nuvem grossa de lama se ergueu em
volta dos dois. Ele tentou se concentrar o suficiente para conjurar um feitiço, mas o
peixe não lhe dava chance.
Boca de Lodo o arrastou pelo leito gelado. As costas, o braço esquerdo e as
pernas de Murtagh bateram nas pedras, e os impactos deixaram sua pele dormente.
Seus pulmões ardiam, e ele sentia que as defesas mágicas sugavam sua energia
em um ritmo alarmante.
Tateou em busca da adaga que havia tirado de um dos homens durante a briga do
lado de fora da taverna. Os dedos roçaram o punho da arma, que caiu por causa dos
movimentos bruscos de Boca de Lodo.
Desesperado, Murtagh se debateu, tentando agarrar algo — qualquer coisa — que
pudesse usar para se defender.
Alguns momentos aparentemente intermináveis de gestos tateantes até que… sua
mão se fechou em torno de um objeto comprido e duro, que parecia mais uma barra
de ferro do que um pedaço de madeira.
Murtagh o agarrou, arrancando-o da lama, e deu um golpe na cabeça larga de
Boca de Lodo. Kverst!, gritou na mente.
Um raio de estática pareceu subir pelo braço junto com o impacto, e ele se sentiu
fraco quando o feitiço consumiu o pouco que restava de sua energia. Então Thorn
juntou sua energia à dele, preenchendo-o com uma força nova e o abastecendo
conforme o feitiço exigia mais e mais.
Um breve clarão de luz emanou do ponto onde a barra atingiu a testa de Boca de
Lodo, e Murtagh sentiu o objeto afundar em carne e osso, bem fundo na caixa
craniana blindada do peixe, que convulsionou e soltou o braço de Murtagh. Porém,
antes que ele pudesse se afastar, a enorme cauda de Boca de Lodo o atingiu e tudo
ficou preto.
Murtagh recuperou a consciência com um sobressalto de pânico. Por quanto tempo
esteve inconsciente? Não poderia ter sido mais do que alguns segundos. Boca de
Lodo ainda se contorcia e se debatia a poucos metros de distância.
Fogo tomou conta dos pulmões e das veias de Murtagh. Ele explodiria ou
desmaiaria se não respirasse, mas se recusou a abrir a boca. Se inalasse água, não
chegaria à superfície.
Bateu as pernas e fez um tremendo esforço para nadar até o topo.
Outra onda de fogo vermelho de dragão iluminou o interior do lago e, por um
momento, Murtagh perdeu toda a noção de tempo ou lugar. Grossas elódeas se
erguiam como grandes trepadeiras flutuantes em volta dele, balançando suavemente
na água azul-esverdeada. Boca de Lodo havia cavado no leito do lago, levantando
uma nuvem de lama, e uma rede de sombras tremeluzia e ondulava por toda parte.
Erguendo-se do pântano, como galhos sem casca esbranquiçados pelo sol, havia
uma floresta de ossos: braços, pernas e mãos crispadas em angústia. Braçadeiras,
punhos de mangas e roupas esfarrapadas pendiam de alguns ossos, assim como
pedaços de tendões e músculos decompostos. Centenas de mortos, entregues às
profundezas, consumidos por peixes, insetos e várias plantas semelhantes a musgo.
Um batalhão de escudos, espadas e lanças estava espalhado entre eles, com a
madeira amolecida e podre, e o aço preto consumido pela ferrugem.
Por um momento, o horror tomou conta de Murtagh. Então, o instinto o trouxe de
volta à realidade, e ele avançou, rasgando a água em direção à superfície, até que…
O ar atingiu sua pele. Ele arfou, incapaz de esvaziar e encher os pulmões na
velocidade que precisava. Sua visão periférica ficou vermelha e escura, e Murtagh
voltou a afundar na água.
Então um objeto áspero e pontiagudo roçou suas costas e braços, levantando-o.
Ele rolou e se agarrou à cabeça de Thorn com toda a força.
Peguei você, disse o dragão.
Murtagh arquejou e tossiu, incapaz de responder, mas se segurou em seu dragão
com mais força ainda.
Eles estavam a mais de trinta metros da costa. O dragão boiava na água, deixando
à mostra apenas os espinhos que despontavam ao longo de sua coluna e as pontas
das asas dobradas.
Não consegui chegar mais rápido, disse Thorn.
— Eu sei — respondeu Murtagh, ainda tossindo. — Tudo bem.
Eu teria resgatado você e matado Boca de Lodo.
Ele abraçou Thorn novamente e então se virou para olhar para o lago.
— Não tenho dúvidas disso… Achei que não conseguiria odiar Durza ainda mais.
Que outros males ele deixou na Alagaësia?
A pergunta fez Murtagh hesitar.
— Quem dera eu soubesse.
Uma turbulência na água a menos de dez metros fez com que ambos ficassem
tensos, e Murtagh começou a subir nas costas de Thorn.
Então, Boca de Lodo surgiu na superfície e rolou de barriga para cima, o corpo
inteiro flácido.
Murtagh praguejou e afastou o cabelo molhado dos olhos. O coração ainda batia
forte, e ele se sentia pronto para voltar à batalha.
— Espere. Há uma coisa que preciso verificar.
Ele se impulsionou para longe de Thorn e foi nadando até o enorme cadáver de
Boca de Lodo. Thorn o seguiu em um ritmo lento, deslizando pela água com uma
graça sinuosa.
Murtagh alcançou a cabeça da criatura. No crânio do esturjão superdesenvolvido
havia — como ele imaginava — um pedaço de osso quebrado protuberante. Parecia
ser parte de um fêmur humano.
Ele pensou no cemitério submerso, e uma suspeita perturbadora se formou dentro
dele. Era absurda a ideia de que todas as pessoas mortas lá embaixo fossem vítimas
de Boca de Lodo. Ninguém teria suportado a presença de tamanho monstro. O nível
da matança — mesmo que tivesse ocorrido em intervalos durante os últimos
sessenta anos — teria expulsado o povo do lago e espalhado a notícia da existência
de Boca de Lodo pelo reino inteiro, atraindo mais caçadores destemidos ao peixe
assassino.
Ele olhou para Thorn.
— Eu volto já. Brisingr!
Mais uma vez, Murtagh colocou uma luz mágica ardendo diante de si, só que esta
era azul-esbranquiçada e mais brilhante do que antes.
Então, respirou fundo e mergulhou novamente. A água borbulhava e fumegava
em volta da bola de fogo, mas ela iluminava o suficiente.
Ele nadou até as profundezas geladas, descendo sem parar até que o campo de
esqueletos crostosos apareceu. Na iluminação fervente de luz mágica, os ossos
pareciam trocar de posição e se mexer com uma vida sobrenatural, como marionetes
mal manipuladas e desesperadas para escapar daquele campo de decomposição.
Ele tomou impulso com as pernas até o esqueleto mais próximo e cavou a lama e
o limo que cobriam o torso. O lodo era frio como o desespero. Seus dedos
encontraram um pedaço de couro esfarrapado que Murtagh puxou e ergueu. A
suspeita se transformou em certeza. Como ele temia, estava gravado no couro o
estandarte da infantaria de Galbatorix.
Murtagh deu uma última olhada para aquele cemitério onde jaziam tantos
soldados do Império. A desolação estranha e grotesca fez seu coração doer.
Ele tomou impulso e voltou a subir.
Com uma eclosão de respingos, irrompeu na superfície. Ofegante, agarrou-se a
Thorn com gratidão quando o dragão se juntou a ele.
O que foi?
Murtagh praguejou e bateu várias vezes com a testa nas escamas duras de Thorn.
A água era um cobertor gelado, pesado e restritivo.
— Eles estão lá embaixo — murmurou Murtagh, mantendo a testa pressionada
contra o pescoço de Thorn. — Maldição. Estão todos lá embaixo.
Thorn estava cada vez mais alarmado.
Quem?
Quando Murtagh compartilhou o que tinha visto, Thorn também ficou triste.
— Os elfos devem ter forçado os soldados para a água. Eles nunca tiveram
chance.
Na última vez que vira os batalhões de Galbatorix, as colunas de homens estavam
aglomeradas nas planícies cobertas de fumaça ao redor de Gil’ead, enquanto fileiras
de elfos marchavam sobre eles em uma força inexorável.
É lamentável, mas as mortes deles não são responsabilidade nossa, disse o
dragão em tom gentil.
— São. Se Galbatorix tivesse permitido que nós ficássemos, poderíamos…
Os elfos teriam nos matado. Mesmo com a força de Yngmar à disposição, não
poderíamos resistir ao poder combinado dos elfos.
— Deveríamos ter ao menos tentado!
Preferia que os elfos tivessem perdido e Galbatorix, triunfado?
— Não! Mas deveria haver uma maneira de salvar os homens. De algum modo.
O pescoço de Thorn vibrou quando o dragão rosnou.
Você não pode forçar o mundo a ser como deseja.
— Não posso? — Murtagh encarou o dragão. — Se a pessoa quiser muito
alguma coisa…
Querer nem sempre é suficiente. Thorn esfregou o focinho no topo da cabeça de
Murtagh de um modo reconfortante. É preciso ter os meios também. Você sabe
disso.
Murtagh respirou fundo. A visão ficou turva. Lágrimas ou água do lago pingando
do cabelo, ele não tinha certeza. Embora Galbatorix tivesse sido mau, Murtagh não
pôde deixar de sentir pena dos homens comuns que marcharam sob a bandeira do
Império, muitos dos quais obrigados a servir. Ele tinha participado das campanhas,
dividido o pouco alimento à disposição com aqueles homens. Sabia que eram bons
e leais. Os homens não tiveram escolha a não ser lutar e, em Gil’ead e Ceunon,
enfrentaram um ataque vindo de outras terras e de outra raça.
Não era tão difícil entender por que defendiam o Império. Em circunstâncias
diferentes, Murtagh teria feito o mesmo.
Eles confiaram em nós e não pudemos ajudá-los, pensou. A conclusão o
deprimiu profundamente.
Não, respondeu Thorn com firmeza. Fizemos o que pudemos e ninguém pode
afirmar o contrário. Não se atormente com isso.
Uma pequena onda atingiu a boca de Murtagh, que cuspiu um golinho de água e
balançou a cabeça. Não foi uma luta justa. Murtagh vira o poder dos humanos
falhar diante da velocidade e força dos elfos. Mesmo que estivessem iguais em
número, os conjuradores élficos poderiam ter devastado sozinhos o exército de
Galbatorix.
A magia desequilibra todas as coisas, disse Thorn.
Murtagh pensou a respeito enquanto apagava a luz mágica e nadava na direção
do corpo flutuante de Boca de Lodo.
Você tem razão. Sempre desequilibra. Galbatorix tentou de um jeito. Nasuada
está tentando de outro, por meio da Du Vrangr Gata. Até a própria língua antiga
foi uma tentativa de controle.
É tão impossível controlar o vento ou a chuva quanto controlar a magia.
Então que esperança tem o homem comum em um mundo de mágicos?
A mesma esperança que qualquer criatura tem quando atingida pelas
tempestades do destino.
Murtagh enfiou a mão nas guelras expostas de Boca de Lodo e tentou puxar o
peixe em direção à margem. O bicho mal se moveu. Ele se virou para Thorn, que já
se aproximava.
— Me ajuda.

Com a ajuda do dragão, não demorou muito tempo para levar Boca de Lodo até a
costa — embora não tenha sido fácil. Uma vez lá, Thorn saiu da água e, com uma
das patas, arrastou o peixe para a margem molhada.
Cansado, Murtagh desabou ao lado do peixe morto e olhou para as estrelas
incessantes em lenta rotação. Imagens dos esqueletos submersos continuavam a
invadir sua mente.
Thorn tirou o cadáver de Boca de Lodo do caminho com um chute de uma das
patas traseiras antes de se enrolar próximo de Murtagh e colocar uma asa sobre o
Cavaleiro, formando uma espécie de bolso quente e seguro.
Murtagh fechou os olhos. As proteções mágicas o haviam esgotado mais do que
o esforço da luta, e o seu corpo doía por ter sido arremessado contra o fundo do
lago de forma violenta. Sentia dor no antebraço esquerdo mais do que tudo, onde o
osso sob o antigo corte latejava como se estivesse machucado. Ele precisava de
comida, de uma fogueira quente e de uma boa noite de sono.
Ainda não, pensou. Silna ainda precisava ser resgatada, e Murtagh temia não ter
tempo suficiente para entrar na companhia do capitão Wren antes de que os guardas
partissem com o filhote. Isso se as suspeitas de Carabel estivessem corretas. Ele se
tranquilizou com o raciocínio de que os captores de Silna não deixariam a cidade
antes do amanhecer.
Um tremor percorreu o corpo de Thorn. Ele estava tremendo, como se estivesse
com frio.
— Qual é o problema? — murmurou Murtagh, e acariciou a barriga de Thorn.
O dragão rosnou levemente.
Você está ferido.
Não muito gravemente. Estarei bem em um ou dois dias.
Thorn estremeceu e rosnou de novo.
Eu fui muito lento. Não consegui alcançar você a tempo.
Isso não é…
O peixe poderia ter matado você.
— É preciso muito esforço para me matar — disse Murtagh em voz alta, porque
o som de sua voz tinha um efeito calmante em Thorn. — E para matar você
também.
A princípio, Thorn não respondeu. Então Murtagh ouviu, mais do que viu, os
dentes do dragão estalarem.
Sim. Muito esforço.
— E nada obteve sucesso até agora.
Eu prefiro que continue assim.
Murtagh deu outro tapinha em Thorn e, com um gemido, rolou para ficar de pé.
A asa de Thorn se ergueu quando o Cavaleiro se levantou, revelando novamente o
céu noturno e o corpo de Boca de Lodo.
Murtagh esfregou os braços e espremeu as mangas da camisa para tirar o excesso
de água.
— Este é o dia que nunca acaba.
Já passa da meia-noite. Um novo dia, disse Thorn.
— Não parece.
Murtagh olhou para o lago. Flutuando perto da saliência de ardósia estava o arco.
Ou o que restava dele. A corda estava rompida e a madeira, carbonizada até virar
uma cinza retorcida. Os feitiços que ele lançou na arma poderiam tê-la protegido de
muitas coisas, mas não do fogo intenso de um dragão.
Murtagh suspirou. Em uma noite, perdera duas de suas três armas. Tudo o que
restava era Zar’roc, que era formidável, mas não exatamente útil se ele quisesse
atirar à distância ou cortar um pedaço de bacon.
Falando em cortar... Ele foi até Thorn e desafivelou o alforje mais baixo.
Murtagh ficou satisfeito em ver que o conteúdo ainda estava seco; uma
consequência do feitiço que conjurou após o temporal em que ele e Thorn foram
pegos no início do ano anterior.
Murtagh puxou Zar’roc e andou até o cadáver de Boca de Lodo. Ele ficou
olhando para a massa reluzente de carne por um minuto, avaliando o melhor lugar
para cortar. Quanto do peixe os guardas queriam? Não havia uma distinção clara
entre a cabeça e o pescoço do animal.
— Vamos precisar de alguma coisa para embrulhar a cabeça — disse Murtagh.
— Não quero usar meu cobertor, mas...
Thorn passou por ele e enfiou a cabeça no lago. Com água escorrendo do
focinho, o dragão depositou a capa encharcada de Murtagh a seus pés.
Murtagh pegou a capa com uma das mãos. Buracos e rasgos compridos deixavam
o luar brilhar através da lã de feltro. Ele suspirou mais uma vez.
— Espero que seja grande o suficiente.
Zar’roc não era uma espada de duas mãos — às vezes, Murtagh sentia falta das
proporções de sua antiga espada bastarda. Ele colocou a mão no punho da espada e
a ergueu acima da cabeça, como um carrasco prestes a desferir o golpe definitivo e
fatal. Respirou fundo e então desceu a espada soltando um alto “rá!”.
A lâmina carmesim cortou a pele blindada de Boca de Lodo e a carne escura por
baixo com quase nenhuma resistência. O peixe era tão grande, porém, que Murtagh
só conseguiu cortar um terço do pescoço na primeira incisão.
Ele ergueu Zar’roc novamente e outra vez deu um golpe para baixo.
Repetiu o movimento mais duas vezes para decapitar o peixe. Separada do corpo,
a cabeça de Boca de Lodo era quase tão larga quanto a altura de Murtagh — ele não
conseguiria abraçá-la se tentasse.
Os gigantescos olhos em formato de prato do peixe o encaravam, pálidos e sem
vida, desprovidos de força motriz, mas com o que Murtagh achou que fosse uma
expressão acusatória.
— Para todas as coisas, um fim — murmurou ele, e colocou a mão na testa fria
da besta.
A escama, disse Thorn.
— Ah.
Murtagh pegou Zar’roc novamente e pressionou a ponta na barriga de Boca de
Lodo. Com um som um pouco mais alto do que um sussurro, ele abriu o esturjão
gigante, e um pedaço de entranha cinza, semelhante a um verme, caiu em volta de
suas botas em grandes rolos escorregadios.
Murtagh fez uma careta e prendeu a respiração enquanto tateava as entranhas até
encontrar o estômago. Com outro corte rápido, o estômago se abriu e revelou uma
coleção medonha de peixes menores, sapos, enguias meio digeridas e até alguns
galhos. E, em meio aos resíduos fedorentos, estava a escama dourada de Glaedr,
reluzente como um prato polido.
O Cavaleiro apoiou Zar’roc no lado curvo do corpo do peixe e pegou um pedaço
de pano nos alforjes de Thorn. Ele usou o farrapo para remover a escama da pilha
de imundície antes de recuar rapidamente. Enojado, dobrou o corpo e vomitou,
embora tudo que expeliu foram bile e arrependimento.
Ele derramou um punhado de terra seca sobre a escama, sacudiu e guardou nos
alforjes antes de retornar à cabeça e ao corpo de Boca de Lodo.
Murtagh tinha começado a enrolar a cabeça na capa arruinada quando um par de
vozes ecoou na água em movimento. Ele ergueu os olhos. Dois homens se
aproximavam, remando, em um pequeno barquinho. Pescadores do turno da noite,
atraídos pelo barulho e pela luz.
Uma onda de exaustão percorreu Murtagh. Ele estava sem energia para lidar com
mais problemas. Ainda assim, endireitou a postura e estendeu a mão esquerda por
trás do corpo de Boca de Lodo e agarrou Zar’roc, tomando cuidado para manter a
espada escondida.
— Não faça nenhum movimento brus... — disse, olhando para onde Thorn
estava.
Mas o dragão já havia desaparecido. Murtagh enrijeceu, então expandiu a mente
e percebeu que Thorn estava deitado entre os arbustos que cresciam no topo das
margens, recuado nas sombras.
Para uma criatura tão grande, ele conseguia ser extraordinariamente silencioso.
Murtagh voltou a olhar para o barco.
— Olá, você aí! — berrou um dos homens quando se aproximaram um pouco
mais da costa.
A barba dele era grisalha e os ombros, pesados por conta dos anos remando. O
outro homem recolheu os remos, ergueu um lampião a óleo e o abriu, liberando um
facho de luz amarela que iluminou Murtagh e Boca de Lodo.
Murtagh protegeu os olhos com a mão livre. Conseguiu ver que os homens
estavam boquiabertos. Só podia imaginar sua aparência naquele momento: coberto
de lama, sangue e muco de peixe.
— Que-quem vem lá? — disse o barba grisalha.
— Ouvimos uma comoção que seria capaz de ressuscitar os mortos, mas... —
falou o outro homem.
— Mas se mantiveram afastados até que tudo acabasse — sussurrou Murtagh,
antes de respondê-los: — Ei! Boca de Lodo está morto.
Ele gesticulou para o corpo do peixe.
— A cabeça dele é minha, mas façam o que quiserem com o resto.
Os pescadores não se moveram nem falaram enquanto Murtagh encostava
Zar’roc na barriga aberta de Boca de Lodo, fora da visão deles, e terminava de
enrolar a capa esfarrapada em volta da cabeça decepada do esturjão. O pedaço de
fêmur enterrado na testa do peixe se projetava através de um buraco no pano.
Ele endireitou o corpo e pendurou a ponta da capa no ombro.
— Quem… Quem é você, estranho? — perguntou o barba grisalha, sua voz fraca
contra o ar da noite.
— Apenas um viajante — respondeu Murtagh.
Ele deu as costas para os pescadores, pegou Zar’roc sem deixar que os homens
vissem, depois firmou os pés no chão úmido.
Passo a passo, arrastou a cabeça do peixe gigante para os arbustos no topo da
margem. Ouviu os pescadores murmurando e o barulho deles se movendo pela água
enquanto avançaram para a costa.
No topo da margem, Murtagh conjurou um feitiço rápido: o mesmo que usava
para esconder Thorn quando eles voavam. Não foi perfeito; quem olhasse de perto
veria o ar ondulando como vidro líquido onde os dois estavam, mas seria o
suficiente para escondê-los na escuridão da noite.
Assim que se encontraram, Murtagh largou a ponta da capa, subiu depressa pela
lateral do corpo de Thorn e se sentou na sela.
— Vai, vai, vai — sussurrou.
Thorn pegou a cabeça de Boca de Lodo nas garras enormes e, silencioso como
uma coruja caçando, saltou pelo campo iluminado pelo luar e planou com as asas
semiestendidas. Ele pousou com um solavanco suave e saltou novamente, desta vez
com as asas abertas. Com mais dois saltos, eles estavam tão longe do lago que
Murtagh duvidava que alguém os ouvisse.
Uuush! Thorn bateu as asas duas vezes e os dois partiram, subindo em uma
espiral para o céu estrelado.
CAPÍTULO VII

Em defesa de mentiras

E u queria comer o peixe, reclamou Thorn enquanto circulavam por cima de


Gil’ead.
Eu sei, mas não havia maneira de impedir aqueles homens de fofocarem sobre
você para metade de Gil’ead.
E quem acreditaria neles?
Murtagh riu a contragosto.
É verdade. Mas você queria mesmo comer um peixe que passou pelas mãos de
Durza?
Thorn bufou. Nenhuma magia consegue sobreviver à barriga de um dragão.
Talvez você esteja certo, mas é melhor não botar essa teoria à prova.
Deveríamos avisar aqueles homens?
Se eles forem tolos o bastante para comer Boca de Lodo, e chifres começarem a
brotar de suas cabeças ou alguma coisa assim, a culpa será toda deles. Murtagh
não achava que qualquer dessas coisas fosse provável.
Hum. Bom, vou precisar caçar muito em breve. Minha fome está aumentando.
Depois que sairmos de Gil’ead, você pode comer quantos cervos quiser.
Eles pousaram a vários quilômetros da cidade, à beira de um pequeno riacho. Lá,
Murtagh tentou tirar a sujeira e o lodo das mãos e do rosto. Cada centímetro do
corpo parecia repugnantemente imundo.
Insatisfeito, Murtagh se despiu e se lavou sem poupar nenhuma parte do corpo.
Na margem do riacho, ficou nu como no dia em que nasceu e olhou para Gil’ead.
Colunas de fumaça subiam de velas, lampiões e chaminés dentro da cidade e se
espalhavam pelo ar até se fundirem em uma difusa névoa cinzenta que pairava
acima dos prédios reunidos. As luzes embaixo pintavam a base da neblina de um
laranja taciturno, como se o próprio céu fosse um fogo abafado queimando
lentamente noite adentro.
Murtagh queria ir até lá com a cabeça de Boca de Lodo naquele exato momento,
mas sabia que, se batesse nas portas da guarnição do capitão Wren no meio da noite,
era provável que o expulsassem. Era um risco que ele não queria correr quando um
erro seu poderia custar a vida de Silna.
— Eu odeio esperar — disse ele. — Talvez pudesse...
Não.
Thorn bateu o rabo no chão e, em algum lugar, um corvo sonolento soltou um
grasno ultrajado. Murtagh parou, surpreso, e se virou para encarar o dragão.
Durma. Você precisa dormir. Durma agora.
— E se eles tirarem Silna de lá? Talvez nós nunca...
A caçada do dia acabou. Se você continuar, vai pisar em falso, se machucar…
mais ainda. O descanso o ajudará a caçar melhor.
Murtagh suspirou e deixou a cabeça cair para trás.
— Eu sei. É que odeio perder tempo.
A cabeça dele vibrou quando Thorn zumbiu.
Se ajuda você, não é desperdício.
Um sorriso irônico se formou no rosto de Murtagh.
— Você é mais sábio do que parece, para um grande lagarto.
Thorn cutucou Murtagh com o focinho.
E você é tão teimoso quanto parece.
— Você tem razão. Mas hoje à noite, não. Hoje à noite vou me submeter ao seu
sábio conselho.
Thorn soltou um muxoxo desdenhoso.
O frio da noite fez Murtagh focar na tarefa seguinte. Ele mergulhou as roupas no
riacho e deixou de molho lá, com pedras em cima. A seguir, se enrolou no cobertor
e se sentou encolhido, encostado na barriga quente de Thorn enquanto comia uma
das poucas maçãs secas restantes. Os dentes batiam entre as mordidas.
Quando terminou, os dois disseram seus verdadeiros nomes, seguindo o ritual
noturno. Thorn falou o seu primeiro e sem dificuldade, mas quando Murtagh tentou
fazer o mesmo, se viu incapaz. Algo em seu nome parecia errado e, assim sendo,
Murtagh não conseguiu pronunciá-lo, pois isso seria uma falsidade na língua antiga.
Thorn esperou pacientemente. Não era a primeira vez que isso acontecia. De vez
em quando, um ou outro — ou ambos — havia mudado, e essa mudança se refletia
nos nomes. Se tivesse sido uma pequena diferença, uma nova compreensão muitas
vezes surgia rapidamente. Mas quando uma parte fundamental mudava, como
aconteceu em Urû’baen ao se libertarem de Galbatorix, então a compreensão
poderia ser evasiva e difícil de conquistar.
Cansado, Murtagh tinha pouca paciência para introspecção. Apesar disso,
persistiu. Era importante para os dois que eles mantivessem uma noção completa de
si mesmos.
Sendo assim, ele se pôs a pensar. Tinha uma suspeita quanto à causa da
dificuldade e, quando percebeu a própria relutância em confrontá-la, soube que
estava no caminho certo. A mudança tinha a ver com a morte de Glaedr, a batalha
por Gil’ead e todas as vidas que foram perdidas no combate. Por elas, ele sentia um
grande arrependimento, e por si mesmo, tristeza e vergonha. Essa compreensão o
deixou se sentindo sem valor e muito mais incerto a respeito das escolhas do
passado. Mesmo que ele e Thorn não estivessem no controle de suas ações, na
época — mesmo que fossem marionetes servindo a Galbatorix —, Murtagh se deu
conta de que ainda se sentia culpado pelo que tinham feito. De certa forma, as
razões não importavam. Os feitos permaneciam, assim como suas consequências, e
essa realidade o magoava.
As emoções foram suficientes para alterar a estrutura de sua personalidade,
mesmo que ligeiramente, e, como resultado, seu verdadeiro nome. Murtagh deu voz
ao conhecimento recém-descoberto, e o som que ele produziu foi ainda mais
inflexível e desconcertante do que antes.
No entanto, como sempre, Thorn escutou e aceitou sem julgamento, e Murtagh
ficou profundamente grato por isso. Então se deitou ao lado do dragão, e os dois
descansaram juntos enquanto eram envolvidos pelo frio da noite.

Dedos descarnados tentaram pegá-lo na água bruxuleante. Agarraram os


tornozelos de Murtagh com um toque gelado. Ele lutou para se libertar, mas estava
sem forças e os ossos que o agarravam eram duros como ferro.
Ele não conseguia respirar... Não conseguia escapar...
Os esqueletos dos soldados caídos se ergueram do leito agitado do lago, um
exército de acusadores, apontando para ele, desesperados para tirar o calor, o
fôlego, a vida de Murtagh — para despedaçá-lo e se apoderar do que haviam
perdido e ele ainda possuía.
Murtagh acordou sobressaltado, o coração batendo forte. Estava um breu
embaixo da asa de Thorn. A pele de Murtagh estava coberta de suor, e ele sentia ao
mesmo tempo frio e calor. O fundo da garganta estava irritado e inchado. Não,
agora não, pensou. De todas as ocasiões para ficar doente... Isso sempre acontecia
quando ele voltava a frequentar cidades e convivia com outras pessoas.
Thorn o observava com os olhos entreabertos.
Se ficássemos longe das outras pessoas, você não precisaria se preocupar com
essas coisas.
— Eu tive o mesmo pensamento — disse Murtagh. — Mas que tipo de vida seria
essa?
Uma vida pacata.
— Hum.
Ele ficou imóvel por um momento e tentou decidir se valia a pena fechar os olhos
novamente. A sensação era de que tinha dormido por apenas três ou quatro horas.
Talvez menos.
Murtagh se sentou e esfregou o rosto, consciente de cada machucado e contusão
que havia sofrido no dia anterior.
O sol vai demorar algum tempo para aparecer, disse Thorn.
— Eu sei.
Murtagh saiu de baixo da asa do dragão e olhou para o leste. Um leve toque de
cinza iluminava o horizonte; o primeiro presságio do amanhecer distante.
Ele calculou quanto tempo seria necessário para levar a cabeça de Boca de Lodo
para Gil’ead.
Bem enrolado no cobertor, passou por cima do rabo pontiagudo de Thorn e foi
descalço até o riacho, que corria por um leito de cascalho entre salgueiros-chorões e
moitas de roseiras silvestres. O som da água fluindo suavemente era um murmúrio
reconfortante.
Apesar de ser madrugada, as árvores, a grama e os arbustos já estavam molhados
com orvalho congelante. A respiração de Murtagh embaçava o ar diante dele e,
naquele ambiente frio, ele sentiu a chegada iminente do inverno.
Murtagh segurou o cobertor na altura das coxas e entrou no riacho. A água era
como gelo líquido. Ele fez uma careta ao se abaixar e puxar as roupas debaixo das
pedras que as mantinham no lugar.
Quando voltou para a margem, um chiado agressivo soou do outro lado do
riacho. Lá, entre os salgueiros, estava uma grande lontra com pelagem marrom
espessa, agitando as patas para ele e arreganhando os dentes. A lontra chiou mais
uma vez e guinchou — como se estivesse ofendida com a presença de Murtagh —,
então entrou na água e nadou rio abaixo.
Murtagh balançou a cabeça e mancou com os pés dormentes de volta para Thorn.
— Adurna thrysta — murmurou, e a água escorreu da camisa e da calça de lã,
salpicando as folhas de grama embaixo.
Ele vestiu a roupa seca e repetiu o processo com as botas, que ainda estavam
úmidas do mergulho inesperado do dia anterior.
Ao enfiar os pés nas botas, ele percebeu que o couro havia encolhido um pouco e
se repreendeu por não ter cuidado delas antes. Não era bom deixar passar coisas
assim. Se a pessoa não cuidava das pequenas tarefas, como seria confiável para
cuidar das responsabilidades importantes da vida?
Ele esfregou um pouco de banha de urso na parte externa das botas e depois foi
até os alforjes e desencavou uma maçã desidratada e as duas últimas tiras de carne-
seca que comprara antes da viagem a Ceunon. Um café da manhã quente teria sido
bom, mas Murtagh não queria perder tempo e, em todo caso, havia um par de casas
de fazenda ao alcance da vista ao norte. Uma fogueira poderia atrair muita atenção,
mesmo em uma hora tão desolada.
Murtagh não se importava em cozinhar, mas não gostava do tempo que
demorava. Ele pensou em todas as refeições que fez enquanto crescia, quando
criados traziam o que quisesse, ou quando podia visitar as cozinhas e pegar um
faisão cozido ou um assado de carne maturada e uma jarra de leite fresco para
acompanhar.
A carne-seca estava incomodamente dura. Murtagh a mastigou como uma vaca
ruminando e olhou para o chão. A cada mordida, ele se sentia pior. Só de engolir
sua garganta doía.
Você não deveria ir, disse Thorn. Vai ficar mais doente se for.
Ele tossiu.
— Eu sei, mas não posso desistir de Silna. Não agora. Já perdemos tempo
demais. Eles podem tê-la levado.
E se já fizeram isso?
— Teremos que rastreá-la. Mesmo que eu tenha que arrancar a informação da
mente de alguém. Além disso, se não ajudarmos Carabel, não faço ideia de como
encontraremos Bachel. — Ele fez uma careta enquanto engolia, a comida
arranhando sua garganta irritada.
Por que você não usa magia para se curar?
— Porque não há nada para curar — disse Murtagh, irritado. — Nada está
quebrado. Nada está sangrando. O que eu conserto? O mal no meu sangue?
Por que não tenta?
— Porque... Porque, se eu conjurar um feitiço sem saber o que ele deve fazer, o
feitiço pode consumir todas as minhas forças e me matar. Você sabe disso.
Mas você sabe o que vai tentar fazer. Curar sua febre. Aliviar sua garganta. Isso.
— Eu… — Murtagh olhou impotente para Thorn. — Você nunca ouviu falar que
não há cura para o resfriado?
Não. Um sorriso maroto abriu as mandíbulas de Thorn. Você é um mágico e um
Cavaleiro. Fala o Nome dos Nomes. Os feitiços te obedecem. O que você não
consegue fazer?
— Sua confiança é inspiradora — murmurou Murtagh. Ele não queria fazer
experiências no momento, mas Thorn tinha razão. — Tudo bem. Vou tentar. A
intenção realmente importa quando se trata de conjurar feitiços. Talvez isso resolva
o problema.
Reunindo forças, Murtagh se concentrou em si mesmo, no corpo e no incômodo
crescente. E disse:
— Waíse heill.
Um calor suave passou por seu corpo e ele sentiu uma sensação de leveza, como
se tivesse tirado um colete cota de malha após um longo dia de marcha. A garganta
ardeu e então o calor diminuiu. Ele se sentiu refrescado, mas não gelado.
A garganta estava, se não inteiramente normal, muito melhor do que antes, e a
febre parecia ter desaparecido junto com muitas das contusões e boa parte das
dores.
Murtagh endireitou os ombros, surpreso.
— Não sei se funcionou totalmente, mas... Eu me sinto melhor mesmo.
Viu só?, disse Thorn.
— Sim, você tinha razão. — Com vigor renovado, Murtagh começou a mastigar
o último pedaço duro de comida, que engoliu com um pouco de esforço. — Eu
quero muito um pão decente.
Thorn fungou.
Carne é melhor. Por que mastigar plantas queimadas?
— Porque é gostoso. Você deveria tentar de novo.
Não. Só é gostoso porque você coloca banha e sal.
— Tem razão. Tudo bem, banha e sal são gostosos. Contente?
Os olhos de Thorn brilharam.
Traga-me uma montanha de bacon e ficarei contente.
— Se eu fosse rei, traria — murmurou Murtagh.
Os alforjes estavam vazios, quase todo o dinheiro tinha sido usado. Sentindo uma
pontada desagradável, Murtagh se lembrou da bolsinha que havia tirado do homem
com peito de pombo. Ele a retirou do cinto e analisou seu conteúdo.
Não era muita coisa — o que ele já esperava. Se o homem fosse rico, não teria
tentado assaltá-lo. Ainda assim, a bolsinha continha algumas moedas de cobre e
uma única de prata, o que seria suficiente para reabastecer os suprimentos.
Depois. Silna vinha primeiro. Além disso, que tipo de Cavaleiro ele seria se a
abandonasse?
Murtagh embolsou as moedas e, ao fazê-lo, percebeu que a bainha no cinto
estava — novamente — vazia. Com pesar, ele imaginou sua adaga roubada em
algum lugar do fundo do lago.
— Maldição. Não gosto de ir a lugar nenhum desarmado.
Ele foi até a cabeça de Boca de Lodo, enrolada nos restos lamacentos da capa.
Um fedor intenso quase o fez ter ânsias de vômito.
Murtagh fez uma careta enquanto pegava a barra da capa.
— E acabei de me limpar — murmurou.
Ele agarrou as pontas da capa e começou a puxar. Depois de alguns passos, parou
e praguejou. O embrulho era grande e pesado demais. Se arrastasse a cabeça até
Gil’ead, ficaria exausto pelo resto do dia...
— Reisa — murmurou Murtagh.
Sem emitir som, a cabeça de Boca de Lodo se ergueu do chão e ficou flutuando a
um dedo acima da grama emaranhada. Murtagh esperou um momento para ver
quanto esforço o feitiço lhe custava. Parecia o equivalente a carregar no ombro uma
mochila cheia e pesada: perceptível, mas não tanto que ele não conseguisse
sustentar o esforço por um bom tempo.
— Vai servir.
Thorn se agachou com certa tensão em volta dos olhos — uma expressão que
Murtagh conhecia bem: preocupação.
Como você vai abrir a porta que está fechada?
— Com cuidado, creio eu. Depois da nossa aventura com Boca de Lodo, tenho
uma suspeita desagradável de que essa situação envolve mais do que Carabel
revelou. De tudo o que ela pediu, infelizmente esta talvez seja a parte mais
complicada.
Ainda mais do que Boca de Lodo?
Murtagh balançou a cabeça.
— Boca de Lodo foi difícil, não complicado. Essa parte, no entanto... Eu tenho
que lidar com outras pessoas, e pessoas são difíceis de prever.
Thorn sibilou.
Eu não gosto de ficar para trás. Quero ajudar.
— O que você gostaria que eu fizesse? Não há como mudar essa situação, a
menos que você queira enfrentar todos os soldados da cidade...
Uma pequena labareda de chama vermelha saiu da boca entreaberta de Thorn.
Eu enfrentaria.
Murtagh deu um abraço no pescoço do dragão.
— Tome cuidado. Serei o mais rápido possível. Se tudo correr bem,
conseguiremos escapar sem ser notados.
Bom. E depois podemos voar de novo e não nos preocupar com essas pessoas e
seus olhares curiosos.
— E depois podemos voar de novo.

Enquanto Murtagh corria, o odre batia na lateral do seu corpo. Ele tinha aprendido a
lição do dia anterior e não ficaria sem água novamente.
Nas costas, carregava o saco de dormir e, enrolados no cobertor, alguns itens
básicos, como isqueiro, panela, um pouco de comida e outros equipamentos que um
soldado viajante deveria ter.
Tudo parte do plano.
Atrás dele, a cabeça embrulhada de Boca de Lodo flutuava pelo campo, suave
como seda deslizando sobre a pele. Uma leve camada de suor cobria a testa de
Murtagh. Manter a cabeça do peixe suspensa exigia um preço, mas muito menos do
que se ele tentasse arrastá-la pelo mato.
O céu do leste clareou enquanto Murtagh corria. O cinza se transformou em tons
de rosa e amarelo, e as sombras azuis que cobriam o terreno começaram a ficar
mais finas e quentes. O sol estaria nascendo quando ele chegasse ao quartel do
capitão Wren, como tinha planejado.
As ruas de Gil’ead ainda estavam vazias quando ele alcançou as margens da
cidade, embora o cheiro de pão assando pairasse acima dos prédios, quente e
sedutor.
O estômago de Murtagh roncou.
Com um pensamento, ele encerrou o feitiço que sustentava a cabeça de Boca de
Lodo, que caiu no chão com um respingo molhado. Ele cambaleou com o súbito
puxão do peso e voltou a agarrar a ponta da capa embrulhada.
Inclinando-se para a frente, começou a arrastar a cabeça do peixe.
Como antes, ele evitou as estradas principais e avançou entre campos e
construções anexas até conseguir entrar no centro da cidade sem ser visto.
Um cão vira-lata com pelo avermelhado e emaranhado de lama o seguiu,
farejando o rastro de muco que a cabeça de Boca de Lodo ia deixando.
— Saia — disse Murtagh em voz baixa. — Xô. Vá embora.
O lábio do vira-lata tremeu e as orelhas se achataram.
— Eitha! — disse Murtagh, para o cachorro não latir.
O vira-lata soltou um pequeno ganido e saiu correndo com o rabo entre as pernas
ossudas.
Murtagh balançou a cabeça.
Ele se apropriou de um pequeno carrinho de mão do quintal apertado de uma
casa. Colocou a cabeça de Boca de Lodo ali, se certificou de que o naco de carne de
peixe estava bem coberto pela capa arruinada e depois foi empurrando o carrinho
em direção à fortaleza.
Cada edifício projetava sombras compridas para o oeste conforme o sol se
libertava do horizonte. Em segundos, o ar começou a esquentar e um bando de
pardais disparou pelo céu avermelhado, perseguindo insetos que surgiam à beira do
lago.
A atenção de Murtagh se aguçou quando ele se aproximou da fortaleza; havia um
número incomum de soldados andando pela cidade, e vários elfos estavam no
portão da fortaleza.
A desventura no túmulo de Oromis e Glaedr parecia ter colocado toda a
guarnição em alerta máximo.
Murtagh avistou um criado segurando as rédeas de uma égua branca no jardim da
frente de um casarão. Ele atravessou a rua e disse:
— Com licença, mestre. Poderia me dizer onde encontro o quartel da guarda da
cidade?
O criado olhou para Murtagh e para o carrinho de mão com desdém
indisfarçável. O cabelo do homem estava preso em um rabo de cavalo curto, sua
camisa era feita de linho delicado e alvejado, e ele tinha a graciosidade de um
instrutor de dança.
— Subindo aquela rua, à direita. Mas eu ficaria muito surpreso se eles falassem
com gente da sua laia — respondeu o homem, com ar de desprezo.
Murtagh assentiu.
— Obrigado, mestre.
Ele avançou, sentindo os olhos do criado cravados nele até dobrar a esquina.
O quartel era composto por uma série de prédios com paredes de pedra
construídos na muralha externa da fortaleza e protegidos por uma muralha menor,
bem mais baixa, em volta do perímetro. A entrada era uma guarita estreita com uma
porta de carvalho negro guarnecida por cravos de ferro. Dois piqueiros vigiavam a
porta aberta.
Pela abertura, Murtagh viu homens andando por um pátio pavimentado, lutando,
treinando e disparando flechas em alvos de palha. Todos usavam o uniforme padrão
da guarda: um tabardo vermelho por cima de um gibão acolchoado com o emblema
dos Varden costurado.
Murtagh empinou o queixo e passou a andar com um pouco da firmeza
controlada de um homem em marcha. Lá vou eu, pensou.
Os piqueiros cruzaram as armas enquanto ele empurrava a carroça para a guarita.
Ele notou que os tabardos estavam limpos e em bom estado, um indicativo de que o
comando do capitão Wren era bom.
Os dois homens pareciam mais entediados do que preocupados ou irritados com a
presença de Murtagh. Um bom sinal para o que viria a seguir, ele torceu.
— Ei, você — começou a dizer o homem à direita, e Murtagh arrancou a capa da
cabeça de Boca de Lodo.
Os olhos dos homens se arregalaram. O guarda da direita assobiou. Ele parecia
ser alguns anos mais velho que o colega.
— Bem, macacos me mordam. Isto é o que eu acho que é?
Murtagh soltou o carrinho de mão e ficou ereto.
— É. O próprio Boca de Lodo.
Os guardas se entreolharam. O mais velho empurrou o elmo para trás e se
inclinou sobre o carrinho para ver melhor.
— Filho de um Urgal. É ele mesmo… E suponho que foi você quem o pegou, é
isso?
— Sim, senhor. E eu gostaria de me alistar. Senhor.
Os piqueiros se entreolharam novamente, desta vez mais sérios.
— Não me chame de senhor — disse o mais velho, esfregando o queixo. — Eu
sou da ralé. O fato é que, infelizmente, o capitão Wren não está procurando nenhum
recruta inexperiente. Ordens permanentes. É melhor você procurar uma companhia
diferente. Eles sempre estão atrás de…
O homem mais jovem puxou o braço do companheiro.
— Mas é Boca de Lodo, Sev. Boca de Lodo!
O piqueiro mais velho mordeu o lábio, com uma expressão indecisa.
— Não sei, não. As ordens do capitão foram claras como o dia. Se...
Murtagh se endireitou e bateu os calcanhares.
— Eu não sou inexperiente. E gostaria de servir ao capitão Wren.
O homem franziu a testa, mas então, para alívio de Murtagh, se virou para o pátio
e ergueu a mão.
— Ei! Gert! Chegue aqui!
Um dos guardas interrompeu o treino e foi até eles. Gert tinha ombros largos,
mãos grandes e andava com o tipo de passo determinado que Murtagh tinha visto
em dezenas de mestres de armas veteranos. Ele usava costeletas espessas e curtas,
salpicadas de branco, e a testa parecia permanentemente franzida de exasperação
diante da estupidez de seus soldados.
Quando Gert chegou à guarita, o piqueiro disse:
— Olhe ali. Ele pegou o Boca de Lodo!
As sobrancelhas cerradas de Gert se ergueram quando ele examinou a cabeça
viscosa e de boca aberta.
— Boca de Lodo, hein? — Ele cuspiu nos paralelepípedos. — Já era hora de
alguém acabar com ele. Essa criatura foi uma praga no lago por muito, muito
tempo.
— E nosso amigo aqui quer se alistar — falou o piqueiro mais velho. — Diz que
tem experiência.
Gert voltou a fechar a cara ao examinar Murtagh.
— É mesmo? Você já portou armas antes?
— Sim.
— Usou as armas?
— Sim, senhor.
Gert soltou outro grunhido e alisou as costeletas com a manzorra.
— É contra a política da companhia, mas qualquer homem que consiga matar
uma criatura como Boca de Lodo é o tipo de homem que o capitão quer nas fileiras
dele. Mas antes que eu vá incomodar o capitão a seu respeito, você terá que provar
seu valor para mim, Gert. O capitão é um homem ocupado, sabe? Ele não tem
tempo para bobagens.
Murtagh assentiu.
— Claro. Eu entendo.
— Hum. Tudo bem. Traga essa porcaria de peixe fedorento aqui e veremos do
que você é capaz.
O mestre de armas voltou para o pátio e, após um momento de hesitação,
Murtagh pegou os braços do carrinho de mão e o seguiu.
— Deixe o peixe ali — disse Gert, apontando para um ponto dentro da guarita.
Os outros guardas pararam o que estavam fazendo e observaram Murtagh
depositar o carrinho no lugar indicado. Gert o levou a um dos ringues de luta feitos
de terra batida e tirou duas lanças com pontas acolchoadas de um suporte no muro
interno do pátio.
Jogou uma lança para Murtagh, que pegou a arma com uma das mãos e tirou o
saco de dormir das costas. Ele não tinha muita experiência com lanças — elas eram
a arma principal do soldado de infantaria comum —, mas conhecia o básico.
Esperava que isso fosse o suficiente.
— Muito bem — grunhiu Gert, ficando de prontidão, com a lança estendida. —
Primeira posição. Mostre o que você sabe.
Murtagh obedeceu. Enquanto Gert vociferava ordens, Murtagh o imitava.
Estocada, golpe, bloqueio, apara. Avanço, recuo. A cada movimento, ele sentia os
hematomas causados na briga com Boca de Lodo. Então Gert diminuiu a distância
entre eles e os dois trocaram alguns golpes, lança contra lança. Murtagh foi rápido o
suficiente para não passar muita vergonha, embora tenha sido acertado por Gert
uma vez na parte externa do joelho esquerdo.
Depois da luta, Gert grunhiu.
— Não foi tão ruim. Também não foi tão bom. — Ele estendeu a mão e Murtagh
entregou a lança de treino.
— Sou melhor com uma espada.
Gert ergueu as sobrancelhas cerradas.
— A-hã. — Ele devolveu as lanças ao suporte e pegou um par de espadas de
madeira para treino.
Os outros guardas começaram a torcer e gritar:
— Pega ele, Gert!
— Mostre para ele!
— Deixe ele bem marcado.
— Dê umas pancadas nele! Uma surra para ficar todo roxo!
Gert entregou uma arma de treino para Murtagh.
A espada de madeira era mais leve que Zar’roc, e mais curta também, e a
distribuição do peso não era exatamente igual à de uma espada de verdade, mas o
formato era familiar e, depois de erguê-la algumas vezes, Murtagh se sentiu
confiante de que poderia usá-la de maneira eficaz.
— Sem golpes na cabeça — alertou Gert, erguendo a espada de treino.
— Sem golpes na cabeça — concordou Murtagh.
Nenhum dos dois usava elmo. Ele girou a espada em um floreio rápido.
Gert não lhe deu nenhum aviso. O homem atacou com uma velocidade que não
correspondia ao seu tamanho, tirou a espada de treino de Murtagh do caminho e
estocou o fígado dele.
Se a estocada tivesse acertado, Murtagh sabia que teria caído no chão, incapaz de
se mexer. Mas o golpe não acertou. Ele aparou a estocada e aproveitou a abertura
resultante para cutucar Gert na axila direita.
O homem recuou um passo, com uma expressão de surpresa. Ele se recuperou
rapidamente, mas, antes que pudesse lançar um segundo ataque, Murtagh fintou em
direção ao seu quadril esquerdo.
Gert se moveu para bloquear, e Murtagh girou a espada de treino, mudando de
direção e batendo no braço do oponente, perto do cotovelo.
Os espectadores soltaram uma série de gritos.
Gert fez uma careta e balançou o braço, e Murtagh se permitiu um sorriso feroz.
O golpe não pareceu muito forte, mas ele sabia que doía bastante.
Então Gert também fintou e tentou um corte curto nas costelas de Murtagh,
embora fosse uma tentativa óbvia de atraí-lo para uma posição de desvantagem. O
homem era habilidoso, mas não chegava nem perto do nível a que o Cavaleiro
estava acostumado.
Murtagh deixou que o corte passasse sem bloquear ou desviar e, quando Gert
recuou, na tentativa de recuperar a posição, atingiu a parte chata da espada de treino
do guarda. Com força. Com muito mais força do que a maioria dos homens deveria
ser capaz de bater.
A arma de Gert voou longe e Murtagh ergueu a espada de madeira, mais rápido
do que o olho podia enxergar, de modo que a borda cega tocasse a lateral do
pescoço do adversário.
Os dois ficaram parados assim, Gert respirando com dificuldade, Murtagh com o
peito mal se movendo. Será que fui ousado demais? No entanto, ele também sentia
uma satisfação intensa por uma manobra bem executada, por um duelo bem travado
e vencido.
Ele baixou a espada de treino, e os guardas que assistiam começaram a gritar e
vibrar.
— Eu tive um bom professor — comentou Murtagh, que estendeu a espada com
o cabo virado para o outro homem.
Gert balançou a cabeça com uma expressão irônica.
— Teve mesmo, garoto. — Ele pegou a espada de treino e devolveu as duas
armas de madeira ao suporte, depois olhou para os espectadores e berrou: — O que
vocês estão fazendo, seus vagabundos imprestáveis? Quando vocês conseguirem
derrotar o velho Gert com a espada, aí sim podem perder o dia olhando para o que
não é da conta de vocês. Voltem ao serviço ou terão que trabalhar de noite até de
manhã.
Gert gesticulou para Murtagh.
— É melhor você me seguir. Talvez o capitão receba você, no fim das contas.
CAPÍTULO VIII

Máscaras

M urtagh pegou o saco de dormir e seguiu ao lado de Gert enquanto o sujeito


parrudo se afastava do pátio em direção a um edifício de pedra ligado a um dos
quartéis. Parecia mais uma torre de vigia quadrada do que uma casa, mas Murtagh
imaginou que nela estavam os aposentos dos oficiais.
— Onde você aprendeu a manejar uma espada daquele jeito, garoto? —
perguntou Gert enquanto andavam.
— Havia um homem em nossa aldeia que teve um pouco de experiência como
soldado quando era jovem. Ele me ensinou enquanto eu crescia.
O guarda grunhiu, e Murtagh se perguntou se foi convincente. As habilidades que
havia demonstrado dificilmente se equiparavam às de um soldado de infantaria
comum. Mas Gert teve os bons modos de não fazer mais perguntas.
O interior da torre era frio e escuro, iluminado apenas por seteiras aqui e ali ou
tochas presas às paredes, embora poucas estivessem acesas. As pedras cheiravam a
umidade, e o cheiro lembrava Murtagh do túnel que o levara até Carabel: um odor
de musgo e mofo que parecia existir apenas em cavernas subterrâneas, estalactites
gotejantes e peixes cegos farejando rochas frias.
Gert o conduziu pelo prédio até uma porta fechada em um canto.
— Sou eu, capitão. Posso entrar? — disse ele depois de bater na porta.
— Entre — respondeu um homem no interior, em tom forte e claro.
Gert deu um olhar severo a Murtagh.
— Espere aqui e não se mexa. — A seguir, ele abriu a porta e entrou.
Murtagh olhou o corredor de pedra de uma ponta a outra. Tinha um teto arqueado
semelhante a alguns dos túneis dos anões ao redor de Tronjheim. Havia um banco
baixo de madeira encostado em uma parede, mas achou melhor ficar em pé. Ao
lado do banco havia um vaso cheio de arranjos ornamentais de flores silvestres.
Ele se perguntou quem cuidava das flores.
A espera durou mais de dez minutos. Então, a porta se abriu e o mestre de armas
enfiou a cabeça para fora.
— O capitão vai recebê-lo agora.
Murtagh pegou o saco de dormir e entrou.
O gabinete do capitão era um cômodo modesto, comparado aos demais. Murtagh
tinha visto oficiais encomendarem ou requisitarem câmaras muito mais ostensivas
para exibir a riqueza da família ou melhorar as chances de galgar as fileiras do
poder na corte. Os gostos de Wren eram mais contidos, embora um tanto incomuns.
As paredes eram da mesma pedra nua do lado de fora, mas estavam repletas de
prateleiras de papiros, e sobre elas estavam pendurados mapas de Gil’ead, do
Império e do novo reino de Nasuada, da Espinha e da Alagaësia como um todo.
Uma mesa ampla dominava um dos lados da sala, e outros mapas — presos com
pequenas bandeiras e soldados entalhados — estavam espalhados em cima da mesa,
junto com papiros e pilhas de pergaminhos cheios de escritos.
O capitão estava sentado atrás da mesa, desenhando runas em meia folha de
velino. Ele parecia ter trinta e poucos anos, com um toque grisalho nas têmporas e
algumas rugas finas em volta dos olhos causadas pelos anos treinando ao sol.
Magro, concentrado, com um brilho inteligente e perspicaz no olhar, ele pareceu a
Murtagh o tipo de homem que poderia planejar uma campanha e executá-la, ao
mesmo tempo que conquistava seus comandados.
O cabelo estava arrumado, e o tabardo e o gibão, mais ainda. Até as unhas eram
limpas e aparadas. A única falha na aparência eram as mãos: os nós dos dedos
estavam inchados e os dedos, tortos com distorção artrítica de uma forma que
Murtagh só tinha visto antes entre os extremamente idosos.
Na parede atrás do capitão estava o que mais se destacava na sala: duas linhas de
máscaras de madeira penduradas na pedra. Não eram as máscaras de festa
ornamentadas da aristocracia, que Murtagh conhecia bem. Pelo contrário, eram
criações toscas e de aparência bárbara que evocavam os focinhos de diferentes
animais: urso, lobo, raposa, corvo e assim por diante, incluindo dois animais que
Murtagh não reconheceu. Em estilo e execução, as máscaras não se assemelhavam a
nenhuma tradição que o Cavaleiro conhecesse; se tivesse que adivinhar, teria dito
que foram entalhadas com ferramentas de pedra mais primitivas.
No entanto, tinham um poder fascinante. Murtagh percebeu que elas atraíam seu
olhar como acontecia com magnetita e uma barra de ferro.
Wren largou a pena e, com uma leve careta, flexionou a mão. Então, olhou para
Murtagh.
— Então foi você quem pegou o Boca de Lodo.
Gert saiu e fechou a porta.
Murtagh ficou em posição de sentido e concordou com a cabeça.
— Sim, senhor.
— Como você conseguiu, rapaz?
A corrida para Gil’ead dera a Murtagh muitas oportunidades para pensar em uma
resposta. Como sempre, a melhor mentira era aquela que mais se aproximava da
verdade.
Ele adotou uma expressão um tanto envergonhada.
— Para falar a verdade, eu não estava tentando. Estava pescando enguias, e Boca
de Lodo agarrou minha isca e me puxou para a água. Não tenho vergonha de dizer
que achei que meu momento tinha chegado. Eu vi o peixe vindo na minha direção e
tentei usar minha adaga nele, mas ela apenas resvalou na pele.
Wren concordou com a cabeça, como se isso fosse esperado.
— E depois?
— Bem, ele me derrubou na lama, e tenho certeza que planejava me comer, mas
não facilitei as coisas para ele. Peguei o que pensei ser um pedaço de pau e atingi a
cabeça dele. O senhor pode imaginar minha surpresa quando o bastão entrou direto
e aquilo foi o fim dele. Depois que saí da água, vi que não era um pedaço de pau,
mas um fragmento de osso de alguma pobre alma. O senhor pode ver se quiser, lá
no pátio.
— Então a fraqueza dele era osso — murmurou Wren. — Não é de admirar que
isso não tivesse sido descoberto até agora.
O capitão apontou para as roupas de Murtagh.
— Vejo que você conseguiu se secar desde sua desventura.
Maldição. Murtagh deu de ombros.
— Foi uma longa caminhada de volta a Gil’ead arrastando a cabeça daquele
monstro. É maior que a de um touro.
— Entendo. — Wren tamborilou com os dedos na mesa. — Qual é o seu nome,
rapaz?
Pela segunda vez em dois dias, Murtagh teve que escolher um novo nome. E não
apenas um nome, uma identidade.
— Task — disse ele. — Task, filho de Ivor.
Wren pegou a pena novamente e fez uma anotação.
— Bem, Task, você prestou um grande serviço ao povo de Gil’ead e mais do que
merece a recompensa.
De uma pequena caixa na escrivaninha, ele retirou quatro moedas de ouro e as
colocou na mão de Murtagh, que ficou surpreso ao ver o perfil de Nasuada
estampado na face de cada uma. Era a primeira vez que via o novo dinheiro do
reino, e se permitiu um momento para inspecioná-lo, fingindo a admiração de um
homem que jamais possuíra tanto ouro.
A semelhança era perturbadora. Tão perfeita que Murtagh teve certeza de que a
imagem fora criada com magia. Ver aquele perfil tão familiar de Nasuada —
orgulhoso e perfeito em sua impressão resplandecente, com uma modesta coroa na
cabeça — fez o coração de Murtagh doer de maneira conhecida, e ele tocou a
imagem com dedos hesitantes.
Wren percebeu.
— Imagino que ainda não tivesse visto nossa nova rainha.
— Não desse jeito, não. — Foi uma resposta ambígua, e Murtagh se repreendeu
no momento em que a disse, mas, para seu alívio, o capitão não pediu explicações.
— O tesouro de Sua Majestade distribuiu estas moedas no final do inverno —
disse Wren. — Acredito que todas serão substituídas, com o tempo.
Murtagh fechou os dedos sobre o dinheiro. Fazia sentido. Nasuada não ia querer
imagens de Galbatorix circulando pelo resto de seu reinado. Ele enfiou as moedas
no bolso.
— Bom — disse Wren —, soube que você deseja ingressar na minha companhia,
especificamente. Por quê?
Murtagh se empertigou ainda mais.
— Todo mundo fala que é a melhor da cidade, senhor. E eu gostaria de ser útil
novamente, para além de apenas guardar caravanas.
— Muito louvável da sua parte. Gert pareceu impressionado com a sua esgrima, e
é preciso muito para arrancar um elogio daquele velhote. Ele também contou que
você tem alguma experiência. Então me diga, Task, onde você serviu?
Era uma pergunta com muitos significados, e ambos sabiam disso. Murtagh
notou que o capitão teve o cuidado de não perguntar com quem.
— Na Batalha da Campina Ardente — disse ele calmamente. — E eu também
estava em Ilirea quando ela caiu.
Wren concordou com a cabeça, mantendo o olhar fixo no velino. Como Murtagh
esperava, o capitão não perguntou mais nada. A maioria dos homens do exército de
Galbatorix era composta por recrutas forçados a fazer juramentos de lealdade ao rei
na língua antiga. Desde a morte de Galbatorix, e desde que Eragon usou o Nome
dos Nomes para quebrar esses juramentos, milhares de soldados ficaram livres para
escolher o próprio caminho. A maioria voltou para as próprias casas. Mas uma
parcela significativa optou por continuar como soldado, e o atual regime de
Nasuada não estava tão bem estabelecido assim a ponto de poder se dar ao luxo de
recusar tantos homens treinados.
Além disso, havia muitas pessoas no reino de Nasuada que ainda simpatizavam
com o Império e que encaravam os Varden com má vontade. Era possível que esse
fosse o caso do capitão.
De qualquer maneira, teria sido imprudente da parte de Wren ter insistido para
obter mais detalhes. Sabendo disso, Murtagh evitou mencionar sua presença na
Batalha de Tronjheim, pois as únicas forças humanas notáveis presentes lá
estiveram entre os Varden, enquanto os humanos lutaram em ambos os lados na
Campina Ardente e Ilirea.
— Como você foi treinado? — perguntou o capitão.
— Como soldado de infantaria, mas sou melhor com uma espada do que com
uma lança ou pique, e sou mais do que aceitável com um arco.
O capitão concordou com a cabeça e fez outra anotação.
— E por que deseja servir novamente, Task? Sim, você quer ser útil, mas por que
agora? Imagino que não tenha marchado sob uma bandeira desde Ilirea.
— Não, senhor... Eu queria ver minha família. Sou de uma aldeia chamada
Cantos, no sul. Não sei se o senhor já ouviu falar...
Wren balançou a cabeça.
— Não posso dizer que ouvi.
— Bem, não é um lugar grande, senhor. Ou não era. Não tinha sobrado muito
quando cheguei lá.
Murtagh tinha ouvido falar de Cantos porque recebeu ordens de Galbatorix de
queimar e destruir a vila. Ele fugiu antes de obedecer, mas sabia que o rei devia ter
encontrado alguém para cumprir sua vontade.
— Entendo. Lamento ouvir isso, Task.
Murtagh deu de ombros.
— Foi uma guerra dura, senhor.
Ao ouvir isso, um lampejo de alguma emoção indefinível apareceu nos olhos de
Wren.
— Foi mesmo, Task. Foi mesmo.
O capitão se recostou na cadeira e lançou um olhar pensativo a Murtagh.
— Você tem algum item do seu equipamento antigo?
Murtagh apontou para o saco de dormir.
— Um colete de cota de malha de qualidade, senhor, mas isso é tudo.
— Já é mais do que a maioria, Task. Existem alguns itens obrigatórios que
precisará adquirir por si mesmo, mas com a recompensa por Boca de Lodo, tem
fundos mais do que suficientes para isso. O resto do equipamento pode ser
fornecido, presumindo...
Murtagh inclinou a cabeça.
— Presumindo o quê, senhor?
Wren apoiou os cotovelos na mesa e colocou uma mão retorcida sobre a outra.
— Se você está falando sério a respeito de se juntar à minha companhia, Task,
terá que jurar fidelidade à rainha, ao lorde Relgin e a esta unidade, que tem a mim
como comandante. Você entende?
Uma sensação de enjoo se formou no estômago de Murtagh, e ele sentiu um frio
na espinha. Eu deveria ter imaginado. Algum traço da reação de Murtagh deve ter
transparecido, porque a expressão de Wren endureceu.
— Isso é um problema para você, Task? — Ele pegou a pena novamente.
— Depende, senhor. A rainha exige juramento nesta língua ou... ou...
A expressão de Wren se suavizou.
— Ah, eu entendo o que você quer dizer. Não, a rainha não acredita em lealdade
forçada. Afinal, a palavra de um homem deve ser um vínculo inquebrável, não
importa a língua que ele fale. A honra e a reputação de alguém são mais valiosas do
que a maior das riquezas, como tenho certeza de que você concorda.
— Sim, senhor.
Murtagh não pôde deixar de pensar na própria reputação entre o povo e reprimiu
uma careta.
O canto da boca de Wren se curvou em um sorriso parcial.
— É claro que a realidade nem sempre é tão pura ou brilhante quanto o ideal,
mas devemos confiar na bondade dos nossos semelhantes. E devemos permitir que
cometam os erros que quiserem, sem coagi-los com imposição mágica.
Que jogo é esse?, Murtagh se perguntou. Parecia que Wren estava criticando,
mesmo que indiretamente, os meios e métodos da Du Vrangr Gata. Ou talvez
estivesse tentando sondar as simpatias de Murtagh. O que reforçou a impressão de
que o capitão era um homem cauteloso e inteligente.
— Nesse caso, senhor, farei o juramento com prazer. — Não era verdade, mas
parecia não haver maneira de evitar aquilo.
— Excelente — disse Wren, que começou a remexer as folhas de pergaminho
sobre a mesa. — O pagamento é feito no dia 21 de cada mês. Para receber, você terá
que falar com Gert. A folga está sujeita aos nossos deveres, mas normalmente é
todo quinto dia, e os dias de colheita e as comemorações da rainha são divididos
entre a companhia. Alguém tem que ficar de vigia, mas você tem folga garantida por
pelo menos metade desses dias.
— Sim, senhor.
Mais uma vez, Murtagh sentiu o olhar ser atraído para as máscaras na parede,
como se os olhos vazios guardassem segredos que valessem a pena descobrir. Havia
alguma coisa estranha em relação às máscaras, mas ele não sabia dizer o quê. Olhar
para elas era como observar objetos através de um espelho ligeiramente curvo.
Wren notou o interesse dele.
— Ah, vejo que minha coleção despertou sua curiosidade.
— Nunca vi nada parecido — confessou Murtagh.
O capitão pareceu satisfeito.
— De fato. Elas não são facilmente encontradas na Alagaësia. Levei quase vinte
anos para adquirir esses poucos exemplares. As máscaras são feitas pelos nômades
que frequentam as savanas. Seus artesãos produzem todo tipo de objetos curiosos
que o resto de nós desconhece.
— Elas parecem bastante realistas, de um jeito curioso — disse Murtagh.
Os olhos de Wren brilharam.
— Ah, é mais do que isso, Task. Olhe só.
Ele estendeu a mão e puxou a máscara esculpida na forma de um urso. Colocou a
máscara sobre o rosto e, naquele instante, a aparência do capitão mudou e se
distorceu, e ele pareceu crescer em tamanho — os ombros se alargaram, ficaram
curvos, pesados e peludos —, e a máscara se moveu com o rosto de Wren como se
fosse feita de carne e osso e não madeira, e uma sensação avassaladora de presença
fez Murtagh recuar um passo. Era como se a essência do urso tivesse envolvido o
homem, enterrando-o sob uma capa bestial.
O capitão retirou a máscara e a impressão desapareceu. Mais uma vez, era apenas
um homem sentado em uma cadeira, segurando uma máscara de madeira na mão
retorcida.
— Que... O que é isso, senhor? — perguntou Murtagh.
Wren riu e pendurou a máscara novamente.
— Um encantamento poderoso, Task. Não sei por que as tribos fabricam essas
máscaras, mas posso dizer que não são para caçar. Os animais reagem muito mal se
virem você usando uma delas. Cães e cavalos especialmente. Enlouquecem de
medo.
— Entendo, senhor.
Wren voltou a vasculhar o conteúdo da mesa e, após um momento, retirou uma
folha de pergaminho coberta com linhas de runas.
— Ah, cá estamos nós. — Ele tocou um pequeno sino de latão e depois
mergulhou a pena no tinteiro. — Vejamos. Task, filho de Ivor, certo?
— Sim, senhor.
O capitão já estava escrevendo o nome no pergaminho. Era um formulário.
Murtagh conseguiu ler algumas das palavras de cabeça para baixo, mas fingiu que
não. Um soldado de infantaria comum não seria alfabetizado.
A porta do gabinete se abriu e um jovem guarda entrou. À primeira vista, ele
lembrou a Murtagh um cão de caça amigável e muito entusiasmado: com papada,
bochechas vermelhas, uma mecha de cabelo amarelo-claro e um sorriso colado ao
rosto.
— O senhor me chamou?
— Sim, Esvar. Task aqui está se juntando ao nosso bando alegre, e preciso que
você seja testemunha.
Esvar prestou continência e ficou em posição de sentido ao lado de Murtagh.
— Senhor, sim, senhor!
Wren deu um sorriso tolerante ao rapaz. A seguir, leu o pergaminho. Era um
contrato que resumia as responsabilidades de Murtagh para com a companhia e
vice-versa. Murtagh mal ouviu, porque já conhecia os termos. A parte que o
incomodava ainda estava por vir.
— … e deixe sua marca aqui — disse Wren, entregando a pena e apontando para
um espaço em branco próximo ao pé do pergaminho.
Murtagh desenhou um X.
— Bom. Agora você, Esvar.
Murtagh passou a pena para o jovem guarda que também fez um X no contrato.
— Excelente — disse Wren, que pegou de volta a pena e assinou ele mesmo o
pergaminho.
Só o capitão usou runas. Ele devia ter tido a criação e educação de um nobre,
supôs Murtagh. Ou a criação e educação de um comerciante especialmente
abastado.
A seguir, Wren colocou o punho nodoso sobre o coração, e Murtagh fez o
mesmo. E o capitão disse:
— Repita depois de mim. Eu, Task, filho de Ivor, juro solenemente...
A voz de Murtagh ficou presa na garganta, e foi apenas com um esforço
consciente — e não pequeno — que ele conseguiu obedecer.
— Eu, Task, filho de Ivor, juro solenemente...
— … minha fidelidade à Rainha Nasuada...
— … minha fidelidade à Rainha Nasuada...
— … e ao lorde Relgin...
— … e ao lorde Relgin...
— … e aos guardas da cidade de Gil’ead, sob comando do capitão Wren.
— … e aos guardas da cidade de Gil’ead, sob comando do capitão Wren.
— E eu juro cumprir todas as leis e ordens...
— E eu juro cumprir todas as leis e ordens...
— … às quais estou sujeito como integrante desta força.
— … às quais estou sujeito como integrante desta força.
O capitão sorriu, mostrando os dentes fortes e retos, e estendeu a mão torta.
— Bem-vindo à companhia, Task. Você é um de nós agora.
— Obrigado, senhor — disse Murtagh, forçando as palavras a passarem pelo nó
na garganta.
— Esvar vai acomodá-lo no quartel e depois providenciará para que esteja
devidamente equipado. — Wren deu ao guarda um olhar falsamente severo. —
Certifique-se de que ele esteja equipado, Esvar.
— Sim, senhor!
— Ah, e Task, você sabe se tem alguma proteção mágica? Feitiços contra ataques
mágicos ou uma lança no crânio? Esse tipo de coisas.
— Não que eu saiba, senhor, mas, por outro lado, como eu saberia? — Murtagh
torceu para que a resposta fosse vaga o suficiente para lhe poupar problemas mais
tarde.
Wren fez um gesto despreocupado com a mão.
— Não importa. Vamos arrumar para que seja enfeitiçado amanhã. Não posso
deixar que meus homens andem por aí vulneráveis a qualquer magiazinha.
Assustado, Murtagh disse:
— O senhor tem um conjurador nas fileiras?
— Longe disso — respondeu Wren. — Nós coordenamos com a Du Vrangr Gata.
Os feiticeiros da ordem fornecem proteções mágicas para todos que seguem o
estandarte da rainha.
— Entendo. Obrigado, senhor.
Wren acenou com a mão.
— Isso é tudo, Task. Dispensado.
CAPÍTULO IX

Uniformes

— As— As mãos do capitão, elas sempre foram...


— Não faça perguntas a respeito das mãos do capitão — disse Esvar com
firmeza. — A não ser que queira que Gert arranque o seu couro.
— Bom saber. Obrigado.
Esvar deu um aceno de cabeça amigável e apontou para o alojamento ao longe
quando eles saíram da torre de pedra.
— É para lá que estamos indo.
O pátio tinha se esvaziado durante a entrevista de Murtagh com o capitão Wren, e
as sombras encolheram sob o sol de meio-dia. Alguém havia removido o carrinho
de mão com a cabeça de Boca de Lodo.
Murtagh olhou para o céu azul-escuro. Fazia apenas algumas horas, mas ele já
sentia falta de Thorn. Os dois estavam muito distantes para trocar pensamentos com
facilidade, e Murtagh não queria arriscar gritar com a mente quando havia pessoas
dentro de Gil’ead que poderiam notar. Espero que ele esteja seguro. Murtagh mal
conseguia sentir a conexão entre eles, apenas o suficiente para saber que o dragão
estava vivo e bem.
Esvar apontou para o pátio e para a muralha alta da fortaleza que formava os
fundos do complexo.
— Isso aqui é tudo nosso. O capitão Irven tem o comando da outra metade da
guarda, no terreno do outro lado da fortaleza, mas aqui é o feudo do capitão Wren.
— Os capitães se dão bem? — perguntou Murtagh.
— Longe disso. Mas tudo bem. Lorde Relgin favorece nosso capitão, então você
escolheu a companhia certa, Task.
— Estou feliz por ser um de vocês.
Esvar riu.
— Ora, você matou Boca de Lodo! Ninguém em sã consciência rejeitaria você.
Murtagh fingiu estar envergonhado.
— Eu dei sorte, mas obrigado. Então você faz parte da guarda há muito tempo?
Esvar deu um sorriso radiante de orgulho.
— Dois meses e adorei cada dia, incluindo o treino. Até mesmo ficar de vigia,
embora seja muito sofrido quando está chovendo.
— Entendo.
— E de onde você vem? Seu sotaque não é daqui.
— De muito ao sul — disse Murtagh quando eles entraram no alojamento.
Era um cômodo comprido e semiabobadado com fileiras de catres, cada um com
um baú de madeira ao pé. Vários homens estavam sentados nas camas, jogando
runas, cochilando ou engraxando as botas. Escudos pendiam das paredes e um
suporte de piques e lanças ficava ao lado da porta. Nos fundos do alojamento, como
Carabel havia dito, havia um arco de pedra e, depois dele, uma escada que descia
para a escuridão.
É para lá que preciso ir. Mas encontrar uma oportunidade seria difícil. Ou o
alojamento teria que estar vazio, ou ele teria que esperar até que os homens
estivessem dormindo.
A ansiedade deu um nó nas entranhas de Murtagh. Será que Silna ainda estaria no
complexo até o final do dia? Ele sempre poderia tentar emboscar qualquer grupo
que deixasse a área fechada, mas não tinha como conhecer todas as entradas e
saídas. Um ataque aberto tornaria impossível qualquer outro subterfúgio.
Murtagh ficou tentado a expandir a mente para ver se conseguia detectar a
consciência de Silna embaixo deles, mas resistiu ao impulso. Havia muitas pessoas
em volta, e qualquer uma delas poderia notar o toque de seus pensamentos.
Esvar o conduziu pelo cômodo e apresentou Murtagh aos homens, que variaram
entre amigáveis, levemente inamistosos e totalmente hostis. Mas todos queriam
ouvir a história de como ele havia matado Boca de Lodo, e Murtagh se viu
divertindo os guardas com o mesmo relato que tinha feito para o capitão Wren. Os
homens pareciam impressionados, mas emendaram com muitos comentários
relacionados ao estado das roupas de Murtagh ou então fizeram piadas a respeito de
ele ter sido comida de peixe. Murtagh aceitou as observações de bom grado, pois
sabia quem era. Certa quantidade de implicância e deboche era normal para um
estranho. Até que provasse o próprio valor, os homens não confiariam nele.
Obviamente, Murtagh não ficaria lá o tempo suficiente para isso. Por alguma
razão, o pensamento lhe causou um sentimento obscuro de pesar.
A três quartos do cômodo, Esvar parou ao lado de um catre vazio e disse:
— Você pode dormir aqui, por enquanto. Se Gert ou o capitão gostarem de você,
pode solicitar uma mudança, mas eu não perderia meu tempo, se fosse você. Não é
uma boa ideia ficar muito perto da porta. Alguém está sempre se levantando à noite
para visitar a privada.
Isso pode ser um problema, pensou Murtagh.
Ele olhou em volta enquanto largava o saco de dormir no catre.
— Onde isso vai dar? — perguntou Murtagh, apontando para o arco nos fundos.
— Para as catacumbas — disse Esvar.
— Existem catacumbas? — falou Murtagh, fingindo surpresa.
Esvar balançou a cabeça.
— Ah, sim. Elas têm vários usos. O capitão e os outros oficiais se encontram lá
toda semana, e nós as usamos para armazenar suprimentos e coisas assim.
— Entendo.
Uma expressão triste se formou no rosto de Esvar.
— Não é tão agradável. Elas são escuras e cheias de aranhas, e o capitão faz
questão de que vigiemos os depósitos. Ele diz que nenhuma força de combate está
preparada a menos que saibam que suas armas e seus suprimentos estão garantidos.
— O capitão parece ser um homem prudente.
Por dentro, Murtagh amaldiçoou a natureza cautelosa de Wren. Não seria fácil
descobrir o que havia por trás da porta fechada.
— Ele é mesmo! — disse Esvar. — E, por falar em suprimentos, devo pegar seus
equipamentos. Por aqui!
Murtagh torceu para que o jovem fosse levá-lo para as catacumbas, mas, em vez
disso, eles voltaram para fora do alojamento até um pequeno depósito na muralha
externa da fortaleza.
Esvar ainda estava falando. Parecia não parar nunca.
— As catacumbas foram construídas há muito tempo. Dizem que foram os elfos
que primeiro escavaram aqui embaixo, mas nunca vi nenhum elfo escavando o chão
ou cortando pedra. Mas Gil’ead tem muita história para contar, isso é verdade. Bem
do outro lado dessa muralha fica o lugar onde Morzan e seu dragão foram mortos,
há mais ou menos vinte anos. — Ele deu a Murtagh uma expressão de olhos
arregalados. — Foi antes do meu tempo, mas minha mãe diz que toda a cidade
tremeu, e houve fogo e chamas e raios como uma grande tempestade.
Arrepios percorreram os braços de Murtagh. Bem ali do outro lado, pensou ele,
olhando para a parede. Foi ali que o pai de Murtagh morreu enquanto tentava
rastrear o ovo de dragão — o ovo de Saphira — que os Varden roubaram de
Galbatorix.
Esvar pareceu encorajado pela expressão de Murtagh.
— É verdade! Um mágico veio a Gil’ead e desafiou Morzan para um duelo.
Ninguém sabe o nome dele, só que usava uma capa com capuz e carregava um
cajado de mago, como nas histórias.
— Eu me pergunto quem foi.
Mas Murtagh sabia: Brom. O velho havia perdido seu dragão durante a queda dos
Cavaleiros, mas ainda era um conjurador inteligente. Mas não inteligente o
suficiente para evitar a adaga dos Ra’zac.
Esvar deu de ombros.
— Provavelmente um dos Varden. Ou talvez um feiticeiro das planícies. O
capitão Wren diz que os nômades conhecem todos os tipos de magia.
O jovem de cabelos louros continuou tagarelando enquanto conduzia Murtagh ao
depósito e reunia um conjunto de equipamentos para ele. Não demorou muito para
que Murtagh se visse vestido com um novo conjunto de roupas: um tabardo
vermelho sobre o colete de cota de malha e uma capa quente de lã presa ao pescoço.
Ele gostou do uniforme. Era arrumado e limpo, e havia um apelo no fato de que as
pessoas não o enxergariam mais como um indivíduo à parte, mas apenas como
outro integrante da guarda. Era mais seguro andar em bando, afinal de contas, e
Murtagh nunca antes havia se sentido unido a um grupo maior de pessoas com
ideias semelhantes.
No entanto, ele sabia que a verdade era outra, e a inquietação permaneceu.
Junto com as roupas, Esvar o presenteou com uma lança, uma espada —
completa com cinto e bainha — e um escudo triangular muito bem pintado.
— Você vai ter que conversar com Gert a respeito de receber um pique — disse
Esvar. — Gert não permite que novos recrutas tenham um até que sejam treinados
por ele. — Esvar fez uma careta. — Eu mesmo ainda estou preso com uma lança.
Enquanto Esvar mostrava a Murtagh o restante do complexo — onde ficavam a
latrina, os estábulos, o refeitório, a forja e o pequeno jardim onde cultivavam maçãs
silvestres para cidra —, continuou a enchê-lo de perguntas. Murtagh manteve as
respostas o mais curtas possível, mas quando revelou que havia participado das
batalhas da Campina Ardente e de Ilirea, Esvar ficou visivelmente empolgado e fez
ainda mais questionamentos.
Murtagh se defendeu delas da melhor maneira que pôde enquanto os dois iam ao
refeitório para o almoço da companhia. A comida não era nada de especial — meio
pão preto, uma tigela de ensopado e uma caneca pequena de cerveja —, mas
Murtagh apreciou ter uma refeição feita por outra pessoa. Ainda assim, foi um
prazer comedido. Ele não podia esquecer o motivo de estar ali: Silna. Frustração
ardia dentro dele e entorpecia o apetite. O que Murtagh mais queria era agir, mas até
que o momento certo aparecesse, tudo o que podia fazer era encarar a situação
calado e esperar.
Assim sendo, ele comeu e fingiu interesse ao conversar amenidades.
Esvar estava sentado do outro lado de uma das duas mesas compridas de madeira
que enchiam o refeitório, ainda falando.
— Você viu Eragon, então? E o dragão Saphira?
— Vi os dois — disse Murtagh.
— Você estava próximo a eles? Conseguiu falar com eles?
Ele fez que não com a cabeça.
— Não. Eu só os vi à distância.
— Ah — disse Esvar, desapontado. — Mas ainda assim, você teve muita sorte
em vê-los! Eu adoraria ter essa oportunidade algum dia. Dá para acreditar como
eles foram corajosos para enfrentar o rei e Shruikan? E ainda os mataram!
Não sem minha ajuda. Murtagh conteve o aborrecimento e, em tom ameno, disse:
— Tenho certeza de que eles foram muito corajosos.
Esvar não pareceu notar.
— Supostamente Eragon é apenas um ano mais velho que eu! Isso é tão estranho!
Consegue imaginar como é ser um Cavaleiro de Dragão? Ter um dragão?! Ora, não
sei o que faria. Eu voaria para o topo do céu e lutaria contra todos os bandidos e
traidores que encontrasse.
Murtagh sorriu dentro da caneca e depois a inclinou para Esvar.
— Eu acredito que você faria isso, sim.
Esvar se inclinou na direção dele com o rosto brilhando e as bochechas
vermelhas de empolgação.
— Você lutou com algum Urgal na Campina Ardente ou eles já tinham se juntado
aos Varden?
— Já tinham se juntado.
— Que pena. Sempre quis lutar contra um Urgal. Mas você deve ter visto alguns
de perto, não?
Sentado na outra mesa, Gert desviou os olhos da comida que estava enfiando na
boca com a pressa aprendida na vida de soldado.
— Não incomode Task com tantas perguntas. O homem já deve estar cansado
delas.
Um rubor deixou as pontas das orelhas de Esvar muito vermelhas.
— Sim, senhor. Desculpe, senhor. — E ele se curvou sobre a própria comida.
Murtagh deu ao mestre de armas um aceno agradecido, mas Gert desviou o olhar
sem dar sinal de ter visto.
Na outra ponta das mesas, vários guardas conversavam entre si. Com Esvar
calado, Murtagh aproveitou a oportunidade para escutar algumas coisas.
— … como queira, mas a rainha ainda é jovem — disse um homem.
— Ah. Nunca é cedo demais — disse outro. — Até que ela tenha um herdeiro, o
reino não estará consolidado. É melhor ela se casar com o rei Orrin e...
— Aquele bebê chorão? — interrompeu outro guarda. — Lorde Risthart de Teirm
seria um partido muito melhor. Até nosso lorde Relgin. Pelo menos ele...
— A esposa do velho Relgin talvez tenha algo a dizer a respeito disso — disse o
primeiro homem, seguido por uma sugestão bastante grosseira.
Enquanto os guardas riam, Murtagh olhava para a tigela com o punho fechado
em volta do cabo da colher. A ideia de Nasuada se casando com algum daqueles
homens, quanto mais com um estranho sem rosto, o enchia de uma raiva
inexpressável.
Como a posição dela é difícil. Os homens estavam certos. Se Nasuada não
produzisse um herdeiro nos próximos anos, a coroa repousaria instável sobre sua
cabeça, e a continuidade de sua linhagem e a paz pela qual os Varden lutaram tanto
estaria em perigo.
Murtagh não queria pensar em quem Nasuada teria que escolher como consorte.
As exigências do Estado e da diplomacia não permitiam sentimentos pessoais. Ela
faria o que fosse melhor para o reino, e quanto a ele... se pudesse trabalhar nas
sombras e ajudar a manter a Alagaësia estável, talvez pudesse ganhar mais tempo
para ela consolidar o governo.
Ele se obrigou a continuar comendo, embora tivesse perdido o apetite.
Não demorou muito para que Esvar começasse a falar novamente. Ele não fez
tantas perguntas como antes, mas falou a respeito dos guardas, do capitão Wren e da
própria experiência na companhia (naqueles longos dois meses), bem como da vida
dele em geral. Murtagh ficou contente em ouvir; tinha passado tanto tempo apenas
com Thorn para conversar que o som da voz de outro humano era, em si,
gratificante. Mas também achou interessantes as coisas que Esvar considerava
importantes.
Apenas alguns anos separavam os dois, mas Murtagh se sentia décadas mais
velho. A mente de Esvar estava cheia de sonhos de ousadia, aventura e honra. Ele
quase idolatrava o capitão Wren e outros que considerava exemplos ilustres de
feitos heroicos, incluindo, obviamente, Eragon. E Esvar era dedicado aos guardas
com a convicção febril da juventude ou dos recém-convertidos.
Ao longo da conversa, Esvar revelou que seu pai tinha morrido em uma
tempestade, no lago Isenstar, quando o soldado tinha apenas sete anos. Ao ouvir
isso, Murtagh sentiu uma pontada de solidariedade. Entendeu a necessidade de
Esvar de encontrar orientação e um sentido na vida. Era um desejo quase físico.
Esvar tinha uma motivação a mais para se juntar aos guardas, uma que Murtagh
nunca havia vivenciado: a necessidade de prover.
— Dessa forma, posso dar dinheiro para minha mãe, e ela não precisa passar
tanto tempo no mercado. Posso colocar pão e carne na mesa, e minhas irmãs podem
comprar um vestido novo a cada ano, as duas.
— Isso deve deixá-lo orgulhoso — comentou Murtagh.
Esvar concordou com a cabeça, mas a expressão era séria.
— Mas é uma responsabilidade grande e terrível. Se algo acontecesse comigo
durante o serviço... — Ele balançou a cabeça. — Não vale a pena pensar nisso.
— Não — disse Murtagh.
Nenhum deles tinha qualquer escudo contra os caprichos do destino. Nem mesmo
os Cavaleiros de Dragão estavam a salvo da tragédia.
Depois que comeram, Murtagh tentou retornar ao alojamento enquanto o resto
dos homens ainda estava no refeitório, mas Esvar o impediu, dizendo:
— Para quê? Você tem tudo o que precisa, Task. Além disso, Gert vai querer que
a gente fique no campo.
Murtagh cerrou o punho enquanto forçava um sorriso.
— Claro. Mostre o caminho.
Eles se juntaram a todos os guardas que não estavam de vigília no treino com
lança e pique no pátio. Foi uma experiência estranha. Murtagh sempre treinou
sozinho — ou com um único instrutor, como Tornac — e nunca lutou como
integrante de uma formação de grupo, nem mesmo em Farthen Dûr. Mover-se em
uníssono com os outros homens, gritar quando gritavam, bater os pés no chão
enquanto atacavam e estocavam, avançavam e recuavam... Havia um conforto na
experiência. Murtagh se viu relaxado e sentiu como se pudesse interromper o fluxo
dos pensamentos e apenas existir.
Pela primeira vez, ele percebeu como era atraente seguir em vez de liderar. Os
guardas podiam confiar que Gert e o capitão Wren pensariam por eles. Tudo o que
tinham que fazer, por sua vez, era obedecer. O que, para ser sincero, podia ser mais
fácil falar do que fazer. Mesmo assim, o esforço de treinar ou ficar de vigia era
insignificante em comparação com as responsabilidades do comando.
À medida que o sol descia e as botas dos guardas levantavam uma névoa de
poeira dourada no pátio, Murtagh sentiu um pesar súbito e forte por não poder ficar
e ser como a maioria dos homens. Por ter que quebrar o juramento feito ao capitão
Wren e, mais uma vez, provar ser um mentiroso e traidor.
O deleite de Murtagh com o momento se transformou em cinzas amargas, e seu
humor permaneceu triste e sorumbático durante o resto do treino.
Depois, ele e Esvar recolocaram as armas nos suportes ao longo do pátio.
— Isso cansa um pouco, mas é sempre bom praticar, não acha? — perguntou o
guarda de cabelo louro.
Murtagh grunhiu. Esvar entendeu mal.
— Ah, não deixe que isso te irrite. Com alguns dias de treino você nem notará o
peso de uma lança.
Mais uma vez, Murtagh tentou voltar ao alojamento, mas Gert o lembrou da
desvantagem de pertencer a uma companhia: a falta de liberdade pessoal. O mestre
de armas colocou os guardas para tirar água para a copa, e depois havia cotas de
malha para lubrificar, estábulos para limpar e estoques e provisões para organizar.
Murtagh logo se deu conta de que Wren não acreditava em deixar os comandados
sem fazer nada quando não estavam de guarda.
A frustração de Murtagh aumentou. Nos estábulos, viu evidências do que Carabel
havia mencionado: um carroção pronto para partir, selas separadas, rédeas sendo
consertadas. Um ferreiro estava cuidando das ferraduras de vários cavalos,
incluindo o cavalo de batalha preto do capitão, uma fera grande e assustadora
chamada Beralt.
Quando Murtagh perguntou a respeito dos preparativos, Esvar deu de ombros.
— Não sei dizer. Assunto do capitão.
Murtagh se consolou ao perceber que, não importava o que estivesse planejado,
ainda não tinha acontecido. Independentemente disso, a questão piorou a opinião
dele a respeito de Wren e dos guardas. Se Carabel estivesse certa, pelo menos
alguns deles estavam envolvidos em uma vilania imperdoável.
Enquanto transportavam lenha para os alojamentos dos capitães, bem como para
as cozinhas, Gert apareceu.
— Recebemos notícias da fortaleza — disse ele. — Amanhã, logo cedo, lorde
Relgin quer ver aquele que matou Boca de Lodo. Melhor garantir que suas botas
estejam engraxadas e seu cabelo penteado, Task. Não cai bem ofender sua senhoria.
— Sim, senhor.
Uma porta de ferro pareceu se fechar com força dentro da mente de Murtagh.
Não havia escolha agora. Ele não podia permanecer entre os guardas depois daquela
noite. Uma aparição na corte de Relgin seria a maneira mais segura de estragar o
disfarce.
Uma vez que o sol tivesse se posto e os guardas adormecessem, ele precisava
tentar alcançar Silna. Seria sua única chance. Não desista, pensou. Estou chegando.

A noite caiu sobre Gil’ead, e as ruas se cobriram de sombras roxas. A luz quente de
velas começou a aparecer atrás das janelas fechadas, e lampiões e tochas
balançavam pelos caminhos conforme os viajantes tardios e os primeiros foliões
corriam para seus destinos.
Murtagh andou rápido entre os prédios de madeira, franzindo o nariz com nojo da
fumaça que havia se espalhado pela cidade junto com o frio do fim de tarde. Tinha
terminado suas obrigações do dia com a guarda, mas a companhia de Wren trancava
os portões ao pôr do sol, então ele tinha apenas alguns minutos de liberdade para
gastar.
Será que era um rosto conhecido que via no meio da aglomeração de homens e
mulheres parados na porta de uma casa comunal do outro lado da rua? Não... Não,
ele achava que não. Murtagh abaixou a cabeça e avançou às pressas, confiando que
o tabardo da guarda da cidade seria tudo o que alguém veria quando olhasse para
ele.
No extremo leste de Gil’ead, ele encontrou um choupo solitário na borda de um
campo de cevada. Depois de verificar que não havia mais ninguém nos arredores,
Murtagh se sentou, fechou os olhos e se concentrou no fio de pensamento que o
unia a Thorn.
À medida que a janela entre as duas mentes se escancarava, Murtagh conseguia
sentir na própria pele o alívio do dragão. Durante um tempo, eles apenas
desfrutaram do abraço compartilhado, e então Murtagh disse:
Você está seguro? Alguém te encontrou?
Apenas um coelho errante que ficou muito surpreso.
Posso imaginar. Você comeu o coelho?
Murtagh sentiu o desdém de Thorn.
Para quê? Encontro pedaços maiores de carne presos entre meus dentes. E você?
Como vai a missão?
Ele não fez nenhuma tentativa de esconder a irritação.
Eles me mantiveram ocupado o dia todo. Não tive mais do que cinco minutos
para mim.
Eles farejam algo errado com você?
Acho que não. É assim que operam. Vou tentar chegar à porta assim que todos
estiverem dormindo. Se tudo correr bem, consigo retirar Silna sem ser notado e
depois vou levá-la para Carabel, e podemos nos livrar desta cidade.
Thorn notou a desesperança de Murtagh imediatamente.
Por que você odeia tanto Gil’ead?
Como palavras eram insuficientes, Murtagh compartilhou as imagens e os
sentimentos que dominavam sua mente — os comentários de Esvar a respeito de
Eragon e Saphira; a própria reação conflituosa por estar tão perto do local da morte
do pai; a sensação de união que vivenciou ao treinar junto com os outros homens no
pátio; a aversão por quebrar outro juramento; e, em geral, o incômodo profundo e
crescente que sentia pela situação e seu papel nela.
É por isso que prefiro evitar sua espécie, disse Thorn. Eles são muito difíceis,
muito complicados. As coisas são mais simples quando nos atemos ao céu.
Quem dera pudéssemos.
Então também compartilhou os comentários dos homens a respeito de Nasuada e
sua necessidade de um herdeiro. E não fez nenhuma tentativa de esconder a mágoa
que surgiu com esse pensamento.
Thorn zumbiu na própria mente e, na de Murtagh, ele se viu sendo envolvido
pela cauda do dragão, como se para protegê-lo e confortá-lo.
Talvez você devesse procurá-la, se seus sentimentos sobre ela encontrar um
parceiro são tão fortes, disse Thorn.
Não é tão simples assim.
É tão simples quanto você quiser que seja.
Se eu fosse um dragão, talvez.
A resposta de Thorn tinha um leve tom de diversão: Você é o humano mais
parecido com um dragão que já conheci.
Vindo de Thorn, era um elogio e tanto, e Murtagh sabia disso. Só queria poder
cuspir fogo, como você.
É para isso que serve a magia. Então, mudando de assunto, Thorn falou: O que
você acha das intenções do capitão Wren?
Murtagh abriu os olhos e encarou as primeiras estrelas que apareciam no céu
laranja e rosa.
Não sei. Política? Ambição pessoal? Ele parece inteligente e dedicado aos
comandados, mas tenho um pressentimento…
As máscaras de madeira.
Sim. Quem tem máscaras assim tem interesse em segredos, em se esconder e em
magia. É uma combinação perigosa.
Uma imagem das máscaras passou pela mente de Murtagh — era Thorn
devolvendo a memória e chamando sua atenção para ela.
Qual máscara você escolheria?
Uma risada curta escapou de Murtagh.
Nenhuma. Eu já uso muitas.
Não comigo.
Não, não com você.
Então Thorn desejou boa sorte, os dois se despediram e, com um sentimento
estranho no coração, Murtagh voltou para o quartel.

Quando Murtagh se sentou no catre e começou a desamarrar as botas, Esvar se


aproximou e, com uma voz um tanto baixa, disse:
— Hum, ei, Task, desculpe se te incomodei mais cedo.
— Sem problemas. Não se preocupe com isso — disse Murtagh, tirando a bota
direita.
— Bem, é gentil da sua parte. Fiquei entusiasmado por ter alguém novo em
nossas fileiras, especialmente alguém que lutou com Eragon e Saphira.
— Mais uma vez, sem problemas. — Ele tirou a bota esquerda.
Esvar trocou o apoio do peso nos pés, incomodado.
— Bem… Eu sei que não é fácil se estabelecer dessa maneira. É uma grande
mudança ingressar na guarda. Pelo menos, foi para mim. Mas... de qualquer forma,
eu queria que você soubesse que é bem-vindo, e ficarei contente em ficar de guarda
com você qualquer dia, mesmo que esteja chovendo.
As palavras atingiram Murtagh até os ossos. Ele encarou a bota na mão por um
momento e depois ergueu o olhar para Esvar.
— É muito gentil da sua parte, Esvar.
Esvar assentiu, envergonhado, e estava prestes a sair quando Murtagh disse:
— Você está de guarda hoje à noite?
— Eu? Não, não. Vou conseguir dormir hoje à noite.
Bom. Murtagh observou o outro andar até o próprio catre. A seguir, balançou a
cabeça, abriu o fecho da capa nova e tirou o tabardo vermelho.
Como os outros homens, Murtagh guardou as roupas e pertences no baú ao pé do
catre. Para o desgosto dele, as dobradiças do baú emitiram um guincho irritante e
alto o suficiente para acordar qualquer um.
A noite chegou, e Gert surgiu na frente do alojamento, olhando os guardas com
um lampião meio fechado na mão. Ele deu um grunhido satisfeito.
— Certo. Vão dormir. A primeira chamada ocorre dois sinos antes do amanhecer.
— Depois ele fechou o lampião e saiu pela porta da frente.
O interior do alojamento estava no breu, mesmo depois que os olhos de Murtagh
se ajustaram à ausência de luz. O único indício de iluminação era um feixe tênue —
pálido e indistinto — que entrava por uma fresta nas persianas voltadas para a torre
de pedra dos oficiais.
Murtagh estava deitado de costas com os olhos abertos, ouvindo a respiração dos
outros homens. O interior negro do teto abobadado era entediante, mas ele hesitava
em fechar os olhos, temendo cochilar e perder a oportunidade.
Não tinha muitas chances de isso acontecer — o pensamento de entrar de
mansinho nas catacumbas enchia as veias de Murtagh com uma adrenalina que
tornava dormir algo improvável —, mas era melhor ser cauteloso. Qualquer erro
podia ser fatal. Se não para ele, ao menos para os homens em volta, e Murtagh
preferia evitar lutar contra eles.
Contanto que fizesse tudo certo, ninguém saberia do ocorrido ou para onde ele
havia ido. Murtagh sentiu pena de Esvar — o otimismo e o entusiasmo do jovem
eram um ponto brilhante de positividade naquele dia, mas algumas coisas não
podiam ser evitadas.
O tempo passou com uma lentidão assustadora. Murtagh tentou contar as batidas
do coração, mas isso só fez os minutos parecerem ainda mais longos.
Ele estava determinado a esperar até pelo menos uma hora depois da meia-noite
antes de arriscar uma ida às catacumbas. Isso daria aos guardas bastante tempo para
adormecer, e poderia até ser o suficiente para o homem de guarda no subsolo
cochilar.
Pelo menos torcia para que fosse assim.
Remexeu-se na cama, incomodado. Depois de passar tanto tempo ao ar livre com
Thorn, era estranho estar deitado em qualquer tipo de cama novamente, mesmo em
um catre sem colchão. O forro de lona cedia sob o peso dele, criando uma curva na
coluna que fazia a lombar doer. Murtagh tentou se deitar de lado, mas isso fez seu
pescoço doer.
Ele respirou fundo e soltou o ar lentamente. Seriam horas difíceis.
Para se distrair, decidiu compor outro poema — não um Attenwrack, mas uma
forma de sua própria criação. Sem fazer som, pronunciou:

Cante as mágoas suaves e tristes.


Chore, ó arauto alado, as batalhas vencidas e perdidas.
Quem lamenta os homens caídos, mortos em conflito?
Que lágrimas de conforto caem quando bandos de corvos descem?

As palavras ecoaram na mente enquanto ele estava deitado no escuro.


— Perdão — sussurrou Murtagh, e se a palavra era dirigida para os fantasmas de
seu passado ou para os homens no quartel, ele não tinha certeza, mas, ao fechar os
olhos, um campo de ossos afogados preencheu sua visão.
CAPÍTULO X

Andando de mansinho...

E m algum lugar da cidade adormecida, uma coruja de cara preta piou duas vezes.
Murtagh se sentou no catre. No alojamento inteiro, os guardas permaneciam
imóveis e silenciosos, com a respiração lenta, uniforme, comedida. Um ou dois
roncavam, mas não alto o suficiente para acordar os demais.
Com muito cuidado, Murtagh abriu a mente e expandiu a consciência para tocar
os pensamentos dos outros homens. Eles estavam, como esperava, dormindo
profundamente, perdidos na confusão dos sonhos.
Manteve um contato delicado com essas mentes enquanto descia do catre e
colocava a mão na tampa do baú.
— Maela — sussurrou ele.
Silêncio.
Murtagh prendeu a respiração e levantou a tampa.
Ela abriu quase sem fazer barulho.
Aliviado e agindo com cuidado, ele retirou tudo: o saco de dormir, as botas, a
capa e a espada que havia recebido. Porém, deixou o escudo, que apenas o deixaria
mais lento e dificultaria andar de forma sorrateira. Além disso, ele já tinha um,
embora estivesse com Thorn. Também deixou o tabardo; poderia ajudá-lo a passar
despercebido, mas já não se sentia confortável em usar o uniforme da guarda.
Murtagh enrolou a capa em volta do cinturão da espada para que a fivela não fizesse
barulho, depois se levantou lentamente e andou de mansinho com os pés calçados
com meias em direção ao fundo do cômodo.
No último catre da fila — que estava vazio —, ele tropeçou.
Murtagh xingou em silêncio enquanto recuperava o equilíbrio, o rosto congelado
em um rosnado.
Do outro lado do alojamento, um dos guardas se mexeu, e Murtagh sentiu uma
pontada de consciência abafada na mente do homem.
Permaneceu encurvado, meio agachado, com medo de se mover.
Depois de vários minutos, quando o homem parecia estar novamente em um sono
profundo, Murtagh endireitou o corpo muito lentamente e continuou até o arco
escuro como breu nos fundos do alojamento.
Ele colocou a mão na parede de pedra fria e desceu tateando vários degraus. Em
seguida, se sentou e calçou as botas, amarrou bem, desembrulhou a espada,
prendeu-a na cintura e atou o fecho da capa no pescoço. A capa era uma aposta;
poderia facilmente ficar presa entre as pernas em um momento inoportuno, mas
também serviria para silenciar seus movimentos. Por fim, pendurou o saco de
dormir nos ombros. Ele não estava pensando em voltar para o quartel — não para
dormir, pelo menos —, e havia uma chance de que tivesse que sair às pressas, e não
queria perder mais nenhum pertence. Quando a pessoa tinha apenas uns poucos
pertences, eles se tornavam ainda mais preciosos.
Ele se levantou e voltou a descer a escada, tateando. Queria conjurar uma luz
mágica, mas achou que seria muito arriscado e, além disso...
... um brilho alaranjado opaco apareceu diante dele, dourando a superfície da
parede de pedra de modo que cada buraco, cavidade e imperfeição lascada se
destacasse.
No final da escada havia outro arco, este bastante fácil de enxergar na luz
bruxuleante.
Murtagh encostou o corpo na curva externa da escada enquanto descia até o arco
e enfiou a cabeça pelo arcabouço de pedra revestida de argamassa.
Um túnel comprido e escuro se estendia para a esquerda e para a direita. Apesar
do que Esvar havia dito, aquilo não parecia ser trabalho élfico aos olhos de
Murtagh, mas sim artesanato humano comum. A passagem à direita se estendia por
baixo da fortaleza, enquanto aquela à esquerda se estendia em direção à cidade.
Túneis demais, pensou ele. Teria sido útil saber a respeito deles quando estava
tentando resgatar Eragon da fortaleza. Ele não fazia ideia de que a cidade estava
assentada em passagens subterrâneas que lembravam tocas de coelho.
Era o lado esquerdo do túnel que mais o interessava. Havia nas paredes várias
portas de madeira, reforçadas com tiras de ferro forjado, e arandelas com velas altas
presas entre as portas. Duas arandelas estavam acesas e projetavam um campo de
sombras dançantes sobre as pedras.
Um guarda estava ao lado da porta do meio, apoiado no pique, com a cabeça
caída para a frente e os olhos semicerrados.
Murtagh parou um momento para pensar. Pelo que o capitão Wren havia dito, ele
sabia que os guardas tinham proteções mágicas. E sabia que algumas delas eram
destinadas contra ataques mágicos. Mas o que exatamente constituía um ataque
estava aberto a interpretações.
Ele não queria machucar o homem. O guarda estava cumprindo seu dever sem
maldade óbvia. Mas tinha que passar por ali.
Murtagh franziu a testa. Se lançasse um feitiço no guarda e a magia acionasse
qualquer uma das proteções, o homem saberia. A perda de energia o alertaria, no
mínimo. O que deixava apenas duas opções para Murtagh: poderia subjugar
fisicamente o homem, ou usar o Nome dos Nomes para retirar as defesas do guarda
e a seguir incapacitá-lo com magia.
Ele apertou a mão no punho da espada. O Nome dos Nomes era a escolha óbvia,
mas Murtagh detestava usá-lo. A Palavra era um segredo poderoso — um dos
segredos mais poderosos —, e toda vez que a pronunciava, ele se arriscava a
ensiná-la a algum ouvinte desconhecido, mesmo juntando um feitiço à Palavra a fim
de escondê-la, como havia feito no Festim Abundante. Não importava a qualidade
da construção de uma magia; sempre havia uma chance de não ter o efeito
pretendido.
Já era bastante ruim que ele, Eragon e Arya conhecessem a Palavra. Três era
demais para manter um segredo, e cada pessoa a mais era uma chance para alguém
causar danos incalculáveis.
Se Murtagh soubesse mais a respeito da língua antiga e seus usos — se tivesse
sido devidamente treinado como Cavaleiro e mágico, como Eragon —, teria se
sentido mais confiante para ignorar as proteções mágicas do guarda sem o Nome
dos Nomes. Mas isso não tinha acontecido, e ele estava consciente da inadequação
da educação que recebeu e se ressentia disso.
Os argumentos a favor e contra o uso da Palavra passaram por sua cabeça, mas
ele sabia que já havia tomado a decisão. Tinha que evitar fazer barulho e, como não
mataria o guarda...
Mantendo a voz o mais baixa possível, pronunciou o Nome dos Nomes.
— Slytha — disse em seguida. Durma.
Ao mesmo tempo em que falava, ele disparou para dentro do túnel e correu em
direção ao guarda.
O homem se contorceu e caiu para a frente, com braços e pernas moles, o pique
escorregando dos dedos frouxos.
Murtagh pegou o guarda antes que ele batesse a cabeça no chão, mas o pique caiu
fazendo barulho nas pedras e o elmo ricocheteou, enviando ecos de um lado a outro
pelo túnel.
— Ah! — disse Murtagh.
Ele pousou o homem no chão e depois fugiu pelo túnel, fora do alcance da luz
das velas e para as sombras. Lá ele esperou, ofegante, apurando os ouvidos para
escutar se alguém no alojamento vinha investigar.
Longos momentos se passaram. Uma lufada de vento fez cócegas na nuca de
Murtagh, que observou uma grande aranha marrom rastejar ao longo do canto da
parede, com um saco de ovos brancos preso às costas, numa teia. Seu lábio se
contraiu.
Ele afrouxou o aperto no punho da espada. Eles ainda estão dormindo. Mas isso
não o fez se sentir seguro. Bastaria um dos guardas acordar para usar a latrina e sua
ausência poderia ser notada.
Andando silenciosamente, Murtagh voltou até o guarda que havia colocado para
dormir e colocou um dedo no pescoço com a barba por fazer do homem. O pulso
estava forte e constante, e o peito continuava a se mover.
Convencido de que o guarda dormia profundamente, Murtagh passou por cima
do pique no chão e foi até a porta do meio. Era ela que o homem estivera vigiando,
então ele imaginou que era a que queria.
Ele puxou a argola de ferro presa à madeira. A porta não se moveu. Claro. Em
vez disso, ele empurrou. A porta continuou imóvel.
Murtagh estreitou os olhos enquanto procurava nas tábuas de madeira um buraco
de fechadura. Na penumbra, levou alguns segundos para encontrar: um buraquinho
redondo em um canto da placa de ferro que sustentava a argola.
Ele ergueu um dedo e tocou o buraco da fechadura, preparado para usar magia,
mas um pensamento o deteve.
Murtagh se ajoelhou ao lado do guarda adormecido e procurou no cinto de couro.
O homem cheirava a fumaça, carneiro, erva de cardo e muitas horas treinando ao
sol. Murtagh torceu o nariz. Ele não entendia por que as pessoas não tomavam
banho regularmente. Água fria não era desculpa para andar por aí fedendo como um
curtume.
Metal tilintou quando os dedos de Murtagh encontraram algo duro pendurado no
cinto do guarda. Olhou e viu uma chave.
Encaixou-a na fechadura e girou até ouvir um som desagradavelmente alto. Com
um último olhar para os dois lados do túnel, ele abriu a porta.
CAPÍTULO XI

A porta de pedra

A câmara estava no escuro. Até mesmo os olhos de Murtagh — aguçados como


eram pelo vínculo com Thorn — não conseguiam captar um único detalhe.
Ele voltou ao túnel e pegou uma vela. Com a mão livre, agarrou o tornozelo do
guarda e o arrastou pela porta para o interior...
... de uma espécie de sala de guerra. Uma mesa comprida de madeira ocupava o
centro da câmara e, em cima dela, havia um mapa da Alagaësia, semelhante ao do
gabinete do capitão Wren. Bancos cercavam a mesa, e havia uma estante de
pergaminhos encostada em uma parede lateral. Vários candelabros altos de ferro
estavam espalhados pela sala, e havia manchas de fuligem no teto baixo e
abobadado, coberto de tijolos.
Do lado oposto à porta pela qual ele entrou, havia outra — menor, mais escura,
feita de madeira encerada — que levava às profundezas das catacumbas.
Murtagh deixou o guarda ao lado da mesa e voltou ao túnel para buscar o pique e
o elmo caídos do homem. Com as mãos, fechou a porta após entrar, trancou e
colocou o pique e o elmo em cima da mesa.
Olhou em volta, curioso. Parte dele queria se demorar ali, ler o que estava escrito
nos pergaminhos, ver se conseguia descobrir em que tipo de esquemas o capitão
Wren estava trabalhando. Mas o tempo era limitado, e Murtagh não tinha intenção
de ser pego.
Ele verificou o guarda mais uma vez. Ainda dormindo. O feitiço era poderoso.
Salvo interferência externa, o homem deveria dormir por meio dia ou mais.
Murtagh acendeu várias velas nos candelabros antes de seguir para a próxima
porta.
Ergueu as sobrancelhas.
— Interessante.
Linhas de runas haviam sido esculpidas na madeira reluzente, que parecia velha e
desgastada, antiga até. Ele tocou a superfície riscada, que parecia mais densa que
carvalho, dura como metal.
— Môgren — murmurou.
Os pinheiros de agulhas negras que cresciam nas Montanhas Beor, lar dos anões.
Era raro encontrar alguma coisa feita daquela madeira na parte ocidental da
Alagaësia. Ele examinou mais de perto. As próprias runas tinham um desenho
arcaico e, enquanto tentava lê-las, percebeu que eram de fato as runas usadas pelos
anões, não pelos humanos.
Murtagh balançou a cabeça. Sabia ler muitos tipos de escrita, mas a dos anões
não era uma delas. O que os anões estavam fazendo aqui, e há tanto tempo?,
perguntou-se. Ou será que a porta tinha sido feita em outro lugar e depois trazida
para Gil’ead?
Perguntas para as quais ele duvidava que algum dia teria respostas. Talvez os
Eldunarí pudessem ter contado a ele.
Ao contrário da primeira porta, não havia buraco de fechadura no môgren, mas
sim uma depressão de formato estranho, tão larga quanto a mão dele, no centro. Por
causa das sombras inconstantes da luz das velas, Murtagh levou um minuto para
perceber o que estava vendo: uma impressão reversa da máscara de urso do
escritório do capitão Wren. Um cadeado, então. Talvez mágico, mas não
necessariamente.
— O que você está aprontando? — murmurou ele.
Murtagh pensou na alternativa: voltar sorrateiramente ao alojamento e ir até o
gabinete de Wren para pegar a máscara. Então descartou a ideia por ser muito
arriscada.
Não, o que ele precisava era... Murtagh vasculhou a sala com os olhos. Madeira,
ele precisava de madeira.
Murtagh foi até a estante de pergaminhos e, após examiná-la, puxou uma das
prateleiras. Colocou uma ponta da prateleira na depressão na porta e sussurrou:
— Thrysta.
Em vez de liberar o poder de uma tacada só, Murtagh o restringiu a um empurrão
suave, porém inexorável. A prateleira foi sendo amassada como se estivesse sendo
esmagada por uma pedra invisível, e a madeira se encaixou nas linhas e contornos
do molde da máscara.
Um sorrisinho tenso se formou no rosto de Murtagh enquanto guiava o feitiço. Só
mais um pouquinho...
A porta quebrou com um estalo alto e se partiu ao meio.
— Filho de um Urgal — disse Murtagh, os dentes cerrados.
Ele encerrou o feitiço.
Não havia como evitar: os guardas saberiam que alguém havia quebrado as
defesas. Literalmente.
Irritado consigo mesmo, Murtagh começou a puxar e retirar os pedaços de
madeira. Assim que a abertura ficou larga o suficiente, ele pegou uma vela e
atravessou.
Uma luz brilhava de cima.
Ele se retraiu e ergueu a mão para proteger os olhos. Depois de um segundo,
conseguiu enxergar.
A luz vinha de um pedaço de quartzo branco embutido no teto, que emitia um
brilho constante, semelhante ao dos lampiões sem chama dos anões, que ele tinha
visto por toda a cidade-montanha de Tronjheim.
A câmara era mais comprida e estreita do que a sala de guerra. As paredes se
curvavam para dentro e eram sustentadas por grossas vigas brancas. Vigas não;
costelas. Os ossos de um dragão.
Murtagh passou a suspeitar que estava olhando para as costelas do dragão de
Morzan, enterrado sob a cidade por quem quer que tivesse construído aquele
espaço.
Havia prateleiras ancoradas entre as costelas. Em cima delas, e sobre uma mesa
com tampo de pedra no centro da sala, Murtagh viu dezenas de frascos, alambiques,
béqueres, queimadores, garrafas, tonéis e vários braseiros. Alquimia. Ou algo
parecido.
Ele andou lentamente pela sala, parando às vezes para examinar isto ou aquilo. O
lugar era um tesouro para qualquer mágico. Ele pegou um dos vários livros, abriu e
se viu olhando para uma lista de palavras.
Palavras na língua antiga.
Palavras com suas definições.
Uma onda de empolgação o percorreu quando ele se deu conta do que segurava.
Um dicionário! Seus lábios se moveram, pronunciando as palavras enquanto lia.
— Flauga, flautja, flautr…
De todos os tesouros na sala, um compêndio da língua antiga era de longe o mais
precioso.
O livro soltou uma pequena nuvem de poeira ao ser fechado. Mal acreditando na
própria sorte, ele o enfiou cuidadosamente na bolsa pendurada no cinto e seguiu em
frente.
Dois passos adiante, Murtagh encontrou uma caixinha ornamentada cheia de
gemas facetadas. Pegou um diamante amarelo em forma de lágrima quase tão
grande quanto a unha do polegar e teve a intuição de tentar tocá-lo com a mente.
Uma torrente de energia espiralada se contorceu e girou diante do olho interior de
Murtagh, contida pela substância da gema.
Ele recolheu a mente e deu um sorriso irônico enquanto quicava a gema na palma
da mão. Depois de pensar um momento, enfiou o diamante na bainha da capa, onde
ninguém o encontraria. Carregar equipamento extra sempre era uma boa ideia, fosse
uma arma, armadura ou, como naquele caso, energia para alimentar os feitiços.
Quanto mais olhava, mais perguntas tinha. A sala parecia dedicada ao estudo de
tudo que fosse mágico. Em uma prateleira havia uma fileira de líquidos
engarrafados rotulados com palavras como Saúde, Força, Fogo e assim por diante.
Poções, ele supôs, encantadas para alcançar determinados efeitos.
Murtagh sentiu uma grande inquietação por dentro. Será que Wren era o mágico
que usava a sala? Ou havia outro? Algum conjurador desconhecido que se escondia
em Gil’ead enquanto se dedicava ao estudo arcano? E por que essa pessoa teria a
necessidade odiosa de filhotes do povo-gato?
Ele tocou uma das costelas na parede. O osso estava frio e liso, e Murtagh sentiu
uma pontada ao imaginar que era de Thorn. Mas não tinha certeza de quanta tristeza
sentia pelo dragão de Morzan. A criatura havia escolhido servir Galbatorix tanto
quanto o próprio Morzan — ambos eram culpados por seus pecados. Assim como
todos nós, pensou.
Ele andou depressa pelo resto da sala. Não poderia estar longe de Silna, embora
temesse o que encontraria quando a achasse. Se ela estivesse ali.
Na outra extremidade, Murtagh encontrou mais uma porta que também diferia
das anteriores. A estrutura em forma de arco era feita de um único pedaço de osso
amarelado de dragão. Talvez uma omoplata ou uma seção de um crânio enorme.
Uma argola de ferro pendia do centro da porta. Embutido acima da argola havia um
desenho decorativo feito de gemas de todas as cores: rubis, esmeraldas e diamantes
de várias cores. Turmalina, safiras e crisoberilo raiado.
Cauteloso, Murtagh tocou uma das pedras. Como suspeitava, ela continha uma
quantidade notável de energia.
Abaixou a mão. Tinha uma armadilha na porta. Isso parecia óbvio. E se ele
acionasse a armadilha, havia uma boa chance de alertar o mágico que tinha
encantado a passagem. Pelo menos, era assim que Murtagh teria feito.
Ou será que não? E se o mágico estivesse do outro lado da Alagaësia? Alertá-lo
talvez exigisse uma quantidade proibitiva de energia.
Murtagh coçou o queixo, pensando. Ele poderia acionar a armadilha e confiar nas
proteções mágicas para se defender, mas… esse estava longe de ser o caminho mais
inteligente a seguir. A questão era: como poderia superar a engenhosidade do
mágico que encantara a porta? Se o conjurador fosse esperto o suficiente, fazer
qualquer coisa para interferir na porta ou nos arredores dispararia um alarme. Nem
mesmo o Nome dos Nomes era garantia de que Murtagh conseguiria subverter os
feitiços de outra pessoa, como a experiência com Boca de Lobo havia ensinado.
Maldição. Não posso perder tempo.
Murtagh andou de um lado para outro, pensando na questão. E se abrisse um
túnel ao lado da porta? Isso exigiria muita energia; ele estaria exausto quando
entrasse na sala do outro lado. E havia uma boa chance de que as paredes ao redor
também estivessem encantadas com algum tipo de feitiço de alerta. Mais uma vez,
era o que ele faria.
Murtagh ficou de cócoras e apoiou a cabeça nas mãos. Para subverter uma
proteção mágica, era preciso pensar de maneira indireta. O que era difícil, muito
difícil, mas essa era a questão. A dificuldade de imaginar uma nova abordagem era
o que protegia a pessoa ou a coisa por trás da proteção mágica.
Ele imaginou inverter uma esfera sem quebrá-la. Ele se imaginou andando em
linha reta em um ângulo reto. Pensou em cada ação impossível que a mente podia
conceber.
Um sorrisinho se formou nos lábios dele. Talvez… Eragon derrotara Galbatorix
não tentando feri-lo, mas sim tentando ajudá-lo a entender as consequências de suas
ações — uma abordagem em que nem o rei nem seus muitos inimigos no decorrer
dos anos haviam pensado. Era possível que uma abordagem indireta semelhante
funcionasse na porta.
As joias continham a energia necessária para alimentar quaisquer encantamentos
que estivessem imbuídos naquela porta. E se essa energia fosse consumida,
precisaria ser substituída. Portanto, deveria ser possível tanto colocar quanto
remover energia das gemas sem ativar uma armadilha adicional.
Mais uma vez, isso dependia do nível de esperteza do mágico misterioso.
Ele decidiu arriscar. O que poderia acontecer de pior? Murtagh deu uma risada
sinistra. A maioria das pessoas diria a morte, mas isso estava longe de ser o destino
mais terrível. Ele e Thorn já haviam passado pelo vale mais escuro. Nada que as
proteções mágicas pudessem fazer se aproximaria das profundezas de dor, medo e
humilhação que já haviam enfrentado.
Antes de tudo, Murtagh precisava de um lugar para canalizar a energia. Era
demais para conter dentro do corpo. Ele queimaria se tentasse. Normalmente,
armazenaria energia dentro do pomo de rubi de Zar’roc, mas sem a espada...
Ele retirou o diamante amarelo em forma de lágrima da capa. Ao que parecia, a
pedra se mostraria útil mais cedo do que o esperado.
Segurando o diamante com a mão esquerda, ele pressionou a direita na porta. As
facetas da joia eram afiadas contra a palma da mão. Murtagh fechou os olhos,
respirou fundo e lentamente, com cautela, começou a sugar a energia das gemas
para o diamante amarelo.
Nos primeiros segundos, o fluxo de energia foi suave e tranquilo. Mas então ele
sentiu uma resistência crescente, e o diamante se aquecendo. O calor chegou em um
nível insuportável. A pele começou a queimar.
Em um instante, Murtagh percebeu que a pedra estava prestes a explodir.
Ele deixou cair o diamante e falou, ofegante:
— Brisingr!
Uma luz mágica azul brilhante surgiu à direita: uma bola de fogo ardente
pairando na altura dos olhos, com chamas ondulantes que faziam o ar tremeluzir e
se agitar como água cristalina.
Ele desviou a energia para a luz mágica, que ficou cada vez mais brilhante, até
que era doloroso olhar para ela, e ondas de calor começaram a emanar das chamas
do tamanho de um punho. Murtagh abaixou a cabeça e se afastou, mas manteve a
mão nas gemas e continuou sugando a energia delas.
Ele diminuiu o fluxo de energia quando o calor voltou a ficar insuportável. Se
fosse além disso, suas próprias defesas mágicas teriam disparado.
Minutos se passaram enquanto o sol em miniatura brilhava ao lado dele, uma
fornalha em miniatura suspensa por forças invisíveis, alimentada pelo potencial
armazenado dentro das joias.
Finalmente, ele sentiu o fluxo diminuindo, e a luz mágica esmaeceu e esfriou.
Murtagh drenou até o último pingo de energia das gemas; ele as esvaziou e as
deixou como cálices delicados prontos para serem novamente enchidos até a borda.
Então, encerrou o feitiço e foi envolvido por asas sombrias quando a luz mágica
desapareceu.
Enxugou o suor da testa. O coração batia dolorosamente rápido, e Murtagh sentiu
uma tremedeira. Sabia que o feitiço quase o matara. Se o diamante tivesse
explodido, ele duvidava que as proteções mágicas fossem fortes o suficiente para
defendê-lo.
Ele pegou a gema. Ainda estava incomodamente quente. Murtagh nunca teve
dificuldade em armazenar energia em uma gema antes. Só que, como se dava conta
agora, ele tinha usado apenas o rubi no pomo de Zar’roc, que era uma pedra muito
maior, de melhor qualidade também, e imbuída de encantamentos élficos. O
diamante não tinha nenhuma dessas vantagens. Já deveria ter sido preenchido até o
limite. Isso ou havia muito mais energia armazenada na porta do que Murtagh
imaginava.
Ele enfiou cuidadosamente o diamante de volta na bainha da capa. Era um
assunto que precisava de mais atenção; pensaria nele quando tivesse tempo.
Endireitou os ombros. A parte mais perigosa era a seguinte.
Ele empurrou a porta.
Ela não se mexeu.
Ele puxou, e mesmo assim... continuou fechada.
— Ládrin — disse Murtagh, irritado. Abra.
Ele colocou toda a força de vontade por trás da palavra arcana.
Com um rangido alarmante, a porta se abriu para dentro em dobradiças ocultas.
Murtagh esperou um momento para ver se havia acionado uma armadilha, mas,
como nada aconteceu, pegou a vela e cruzou a soleira.

Outra luz surgiu de um pedaço de quartzo colocado no teto da terceira sala. À luz
calma e inabalável, Murtagh viu um jardim subterrâneo. Havia canteiros elevados
de terra, com bordas de tijolos, à direita e à esquerda de um caminho estreito, e
nesses canteiros cresciam árvores, flores, trepadeiras, arbustos e todo tipo de
pequenas ervas lenhosas. O ar era quente, aromatizado por um perfume inebriante, e
também úmido, como se uma nuvem de névoa tivesse se espalhado pelo chão. O
zumbido agradável de abelhas soava entre as folhas.
Murtagh reconheceu algumas das plantas: umas eram curativas, outras
venenosas, e havia também aquelas que induziam visões ou causavam sono. Mas
muitas ele desconhecia. Havia um lírio cuja folha e caule pareciam feitos de ouro e
cujas pétalas eram de um metal esbranquiçado. Uma árvore chorona com bagas que
brilhavam como berilos. Cogumelos que tinham chapéus roxos e lamelas em tom
intenso de azul.
Murtagh viu também uma planta diferente de qualquer outra que já havia
encontrado. Tinha uma única haste e, no topo, um cálice carnudo em forma de saco
com talvez dois palmos de altura. E desse cálice saíam pequenos tentáculos
alaranjados, que ondulavam suavemente no ar.
Enquanto ele observava, um sapo passou pulando pela planta. Dois dos
tentáculos se estenderam, rápidos como cobras, agarraram o sapo, puxaram para a
boca do cálice e o prenderam lá. A rã soltou o menor e mais triste coaxar que
Murtagh já tinha ouvido na vida. Depois, não emitiu mais som.
O rosto de Murtagh se contraiu, e ele agarrou o punho da espada, quase decidido
a cortar a planta com tentáculos em duas. Então pensou melhor, mas manteve a mão
na espada enquanto prosseguia. Que bruxaria é essa?
Murtagh estava tão concentrado nas curiosidades ao redor que se esqueceu de
olhar por onde andava e topou com o tornozelo no canto de um tijolo que se
projetava. Cambaleou um passo à frente. Ao se recuperar, viu um estojo de cristal
entre dois arbustos, quase escondido pelos galhos frondosos. E no interior do estojo
havia um objeto oval preto-azulado com quinze centímetros de largura e quinze de
altura. Um ovo. Um ovo de aparência maligna.
Ele o encarou, inquieto. Que tipo de criatura nasce de uma coisa dessas? Não
um dragão, isso parecia garantido, nem qualquer outro ser que ele conhecesse. Pela
primeira vez em suas viagens, Murtagh desejou que Eragon ou Arya estivessem ali
com ele. Qualquer que fosse o propósito das câmaras embaixo de Gil’ead, elas
haviam sido construídas e mobiliadas com planos sérios, e ele tinha uma sensação
arrepiante de que a pessoa que usava aqueles aposentos era perigosa.
O olhar de Murtagh se voltou para a porta nos fundos do jardim; a última porta
que precisava ser aberta, ou assim ele esperava.
Com passos silenciosos, andou até ela.
A porta não era feita de madeira nem de osso, mas de granito cinza, tão dura e
inflexível quanto um juramento de vingança. A superfície tinha uma aparência seca
e texturizada, e era toda coberta por veios de cobre oxidado. Havia um puxador,
também feito de granito, instalado no lado esquerdo.
Murtagh parou diante da porta, cauteloso. Ele sondou com a mente e sentiu...
nada. Nenhuma gema, nenhuma energia armazenada, nenhuma consciência oculta
observando, apenas pedra fria e morta, carregada com o peso das eras.
Ele projetou os pensamentos para além da porta, para a câmara do outro lado.
Mesmo lá, não encontrou nada além de um vazio absoluto.
Preocupação e raiva tomaram conta dele. Será que Carabel contara a verdade a
respeito de Silna? De repente, ele teve dúvidas. E se tudo isso foi um estratagema
para me enganar e me fazer vir para cá? Mas por qual motivo? Coletar
informações para Carabel? Confrontar o conjurador usando as câmaras? Será que
Carabel estava trabalhando sob ordens de Relgin?
Mas Murtagh não estava disposto a desistir da ideia de Silna. Ele precisava
descobrir se ela estava ou não presa embaixo do quartel.
Ele agarrou o puxador.
O jardim permaneceu como antes, com as abelhas zumbindo ao fundo.
Ele puxou.
A porta se abriu em perfeito silêncio.

O cômodo depois do jardim era uma cela de pedra nua. As paredes eram de pedra
bruta — também granito — sem janelas, com um único suporte de ferro preso à
parede ao lado da porta. Sobre ele havia um toco de vela.
Um pequeno cobertor azul-celeste estava amarrotado no chão, e isso era tudo.
A visão provocou angústia em Murtagh. Por um momento, foi como se ele — e
Thorn — estivesse de volta a Urû’baen, nas masmorras sob a cidadela, ouvindo os
gritos de outros prisioneiros enquanto o peso avassalador da mente do rei exercia
toda a sua força sobre ele. As paredes pareceram se fechar em torno de Murtagh,
que teve a sensação repentina de estar nas profundezas do subsolo, sozinho e
isolado, preso na escuridão abafada.
Ele pegou o cobertor. Era pouco maior que um lenço e cheirava a… cheirava a
medo. Silna, ou alguma outra criança, fora mantida em cativeiro ali. Isso parecia
certo.
Lágrimas brotaram nos olhos dele, mas não caíram.
Ele piscou e examinou melhor a parede do fundo. Havia algo no... Sim. Uma
linha tênue de giz branco. Murtagh acompanhou a linha com os olhos e descobriu
que ela desenhava um arco do chão à altura da cabeça.
Um arco ou uma porta. A ideia de uma porta. Um anseio por liberdade.
Ele tocou a parede do fundo. Era dura, sem sinal de movimento, e, quando bateu
na pedra, pareceu sólida.
A respiração ficou presa na garganta e uma sensação opressiva de tristeza
desabou sobre Murtagh. Então uma raiva terrível começou a superar a dor, as mãos
se fecharam em punhos, e ele cerrou os dentes e a mandíbula.
Eles pagariam. Todos eles pagariam pelo que haviam feito com a filhote de povo-
gato, e Murtagh os ensinaria a temê-lo como temeram seu pai.
— Malditos sejam — murmurou, e então se virou para sair.
Um borrão de pelo malhado saltou na direção dele vindo de um canto nos fundos
da cela. O peso atingiu Murtagh no pescoço e nos ombros, e sibilos e uivos ecoaram
no ouvido quando um frenesi de garras brancas rasgou sua garganta.
CAPÍTULO XII

Caminhos escuridão adentro

A s proteções mágicas de Murtagh o defenderam da criatura que tentava matá-lo,


mas a surpresa do ataque fez com que ele tropeçasse para trás na beirada da porta. O
impacto o deixou de joelhos.
Apesar das proteções, o instinto o levou a manter os olhos bem fechados. Ele
tateou para o alto até que as mãos se fecharam no pelo quente e arrancaram do
pescoço a criatura que chutava, arranhava e cuspia.
Só então Murtagh deu uma boa olhada nela.
Silna!
O filhote era uma gata malhada com grandes olhos verdes franzidos de raiva,
orelhas achatadas com tufos de pelos, rabo estufado e patas pesadas que arranhavam
o ar. A menina-gato era quase do tamanho de um gato doméstico, e a cabeça tinha a
aparência distinta e muito grande de um gatinho.
— Shh, shh — Murtagh tentou dizer de uma maneira calma, mas a menina-gato
continuou se contorcendo e mordendo em uma tentativa desesperada de se libertar.
— Silna! — disse ele. — Eka fricai. Eka fricai. — Eu sou um amigo.
A menina-gato parou de arranhá-lo e o encarou com um olhar frio e hostil.
Ele hesitou, mas então a colocou no chão e a soltou.
A crista de pelo ao longo da coluna de Silna permaneceu eriçada, mas ela não
correu. Murtagh ficou aliviado ao ver que parecia ilesa, embora estivesse muito
magra.
Estendeu as mãos com as palmas levantadas.
— Você consegue me entender? Carabel me enviou para encontrar você.
Os lábios de Silna se retraíram e arreganharam os dentes brancos e afiados.
— Sou um amigo — insistiu Murtagh.
Ele expandiu os pensamentos para a mente da menina-gato, mas no instante em
que tocou a consciência dela, Silna sibilou, e Murtagh não sentiu nada além de
medo da parte dela.
Recuou da mente de Silna.
— Desculpe. Desculpe. Você entende?
Os olhos franzidos da menina-gato dispararam entre ele e a porta aberta, e
Murtagh percebeu que ainda estava bloqueando o caminho. Ele não se mexeu.
— Posso ajudar você a sair daqui, mas tem que confiar em mim.
Murtagh estendeu a mão para ela, como faria com um cavalo arisco.
Silna soltou um pequeno silvo, mas não recuou.
É um começo.
— Você sabe mudar de forma? — perguntou. — Aí poderíamos conversar. Se
você souber falar...
Murtagh se perguntou com que idade o povo-gato ganhava aquela habilidade.
Será que nasciam com ela?
Ele se moveu até um dos lados da porta e abriu um espaço para Silna passar.
— Vamos — falou em um tom persuasivo. — Venha comigo.
Os olhos da menina-gato se estreitaram novamente, e então ela disparou para a
frente e passou por Murtagh antes que ele pudesse reagir.
— Maldição!
Murtagh se levantou com dificuldade enquanto Silna corria atravessando o
jardim arcano.
Pouco antes de a menina-gato chegar à porta da oficina de alquimia, uma voz
soou à frente deles. A voz de Esvar.
— … e eu jurava que tinha ouvido alguma coisa, então fui buscá-lo diretamente.
Olhe!
Silna parou e disparou de volta pelo caminho que tinha vindo.
Dentro da oficina, Murtagh viu Esvar, três outros guardas e o mágico de cabelos
quase brancos da Du Vrangr Gata. Esvar ficou boquiaberto ao ver Silna. Se de
surpresa por ela ter escapado ou por ver uma menina-gato, Murtagh não sabia.
Ele também não esperou para descobrir.
Murtagh abriu a boca para pronunciar a Palavra e quebrar qualquer feitiço que
protegesse os homens ou que fosse dirigido a ele ou a Silna. Mas antes que pudesse
emitir um som, os homens o viram, e uma lâmina de pensamento apunhalou a
mente dele. O mago estava atacando a própria essência de Murtagh.
Parada! Murtagh lançou a palavra para a consciência de Silna e a seguir se
recolheu e blindou a mente com uma concentração limitadora.
— Você não me possuirá. Você não me possuirá.
Ele não ousava deixar que o mágico visse seus pensamentos e, por causa disso,
não ousava afrouxar as defesas o suficiente para falar a Palavra e conjurar a própria
magia. Não até que ganhasse o controle da mente do inimigo.
A menina-gato se encolheu atrás do pé de Murtagh e sibilou.
Os três guardas atacaram: um na frente, dois atrás.
Murtagh varreu o campo de visão deles com a capa — fazendo-os recuar — e
aproveitou-se da cobertura momentânea para desembainhar a espada.
A distração permitiu que atacasse primeiro. Murtagh estocou o líder no quadril
direito e... a ponta da lâmina derrapou em uma barreira invisível a um dedo de
distância da pele do guarda.
Maldição!
O guarda golpeou Murtagh com a própria espada e fez com que ele se desviasse.
Primor técnico não sairia vitorioso naquela situação. Ele tinha que descobrir uma
maneira de contornar as defesas mágicas do guarda.
A desventura com Boca de Lodo lhe saltou à mente.
Está bem. Murtagh se preparou, bateu com o ombro no peito do guarda e jogou o
homem do outro lado da sala. As proteções mágicas impediram que ele sofresse
arranhões ou coisa pior ao colidir com um par de arbustos, mas não fizeram nada
para evitar que a cabeça virasse de lado e batesse no estojo de cristal que continha o
ovo preto-azulado, o que deixou o pobre homem atordoado.
Rachaduras se espalharam pelo estojo.
O soldado seguinte berrou e estocou uma lança na direção do rosto de Murtagh.
Ele deixou as próprias proteções mágicas desviarem o golpe enquanto avançava e,
ainda segurando a espada, bateu as mãos contra as laterais do elmo do guarda. O
homem gritou, largou a lança e desabou.
Como Murtagh havia suspeitado. Nenhuma proteção mágica contra som.
O terceiro guarda cutucou Murtagh com uma bisarma. Ele se esquivou e bateu o
pomo da espada na crista do elmo do homem. O golpe tonteou o guarda, e Murtagh
deu outro tapa em cada lado da cabeça do oponente, que caiu em um canteiro de
lírios.
Durante todo o tempo, Murtagh sentia o mágico tentando penetrar em sua mente.
O pescoço do homem estava contraído pela tensão, os lábios franzidos e brancos
contra os dentes arreganhados, e as mãos se mexiam agitadas dentro das mangas do
manto.
Murtagh partiu para cima dele, mas Esvar se colocou na frente do mágico e
ergueu a espada.
— Afaste-se — disse Murtagh entre os dentes cerrados.
Esvar não saiu do lugar. O rosto dele estava vermelho de raiva, mas também
possuía uma expressão de inocência magoada que Murtagh mal suportava olhar.
— Você jurou — disse Esvar. — Jurou. Eu estava lá. E você nos traiu!
— Eu não quero machucar você — falou Murtagh. — Abaixe a arma.
Um abelhão passou voando pelo rosto dele. O corpo do inseto era azul-
iridescente.
Esvar fez que não com a cabeça, com uma expressão de determinação fixa no
rosto, e deu meio passo à frente.
— Nunca! Você atacou a guarda. Eu vou morrer antes de deixar você passar.
Traidor.
Murtagh já havia sido chamado de coisa pior. Ele lançou um olhar para os
homens caídos gemendo no chão; eles não seriam um problema. Silna ainda estava
agachada atrás dele, segura no momento.
— Mate-o — disse o mágico com a voz cheia de tensão.
— Você não é páreo para mim — falou Murtagh, que parecia mais calmo do que
se sentia.
O lábio superior de Esvar se curvou.
— Não importa. É o meu dever. — E ele investiu, estendendo o braço em uma
longa estocada tentando atingir o pescoço de Murtagh.
Murtagh aparou, diminuiu a distância entre eles e bateu o punho da espada no
elmo de Esvar. O jovem caiu sobre um joelho, e Murtagh estava prestes a passar
quando Esvar deu uma ombrada em seus joelhos, que travaram.
Choques rápidos de dor irradiaram das articulações. Murtagh cambaleou para trás
e observou com certo espanto Esvar se levantar e balançar a cabeça. Um fio de
sangue escorria da orelha esquerda do jovem soldado.
— Minha mãe sempre disse que eu tinha cabeça dura — disse ele, sério, e ergueu
a espada novamente. — Você pode me deixar surdo, Task, mas terá que me matar
antes de passar.
A frustração de Murtagh ferveu e virou raiva, e ele lançou vários golpes rápidos
nos ombros e quadris de Esvar, torcendo que, se um deles acertasse o alvo, o
ferimento não fosse fatal ou o aleijasse. Mas nenhum deles acertou. As proteções
mágicas continuaram a defender o soldado, e o impacto da lâmina contra o feitiço
soltava faíscas. Murtagh viu que a ponta da espada estava dobrada e quebrada.
Desejou estar com Zar’roc. Mesmo que a espada encantada não conseguisse
varar as proteções mágicas de Esvar, o aço de luz não quebraria.
Esvar recuou diante dos golpes. Ele se recompôs e respondeu com outro ataque,
tentando cortar Murtagh no pescoço e na cintura.
— Por que... você... não... DESISTE?! — gritou Murtagh, com a fúria
aumentando como uma tempestade.
Ele desferiu uma série de cortes pesados em Esvar, quebrou a guarda do jovem e
o deixou de joelhos. Não houve sutileza nesse ataque, nem arte, graça ou
inteligência, como Tornac havia ensinado, apenas pura força bruta. E, no entanto, as
proteções mágicas de Esvar aguentaram. A espada de Murtagh resvalou nas roupas
e na pele do jovem como se fosse desviada por gelo oleoso.
Murtagh notou que os feitiços estavam deixando o jovem esgotado, mas não mais
rápido do que seus próprios ataques o cansavam.
Esvar investiu com um golpe cego na direção das pernas de Murtagh, que deixou
o golpe quicar na coxa e atacou o ombro do guarda com tudo que tinha, como se
estivesse tentando partir a própria terra.
Ting!
A espada quebrou, e metade dela voou girando pela sala e se cravou em um
pedaço de osso de dragão.
Murtagh estocou com o fragmento pontiagudo que permanecia preso ao guarda-
mão e... o pedaço de metal irregular varou a parte superior do peito de Esvar, entre
o pescoço e o ombro, perto da clavícula.
Os olhos do guarda se arregalaram, e ele caiu de costas, atordoado. Esvar colocou
a mão no peito e a boca mexeu várias vezes, mas nenhum som saiu.
Em um instante, a raiva de Murtagh se transformou em arrependimento, tristeza e
repulsa pelo que havia feito. A distração foi suficiente para o mágico mergulhar
mais fundo na mente dele, agarrando e rasgando na tentativa de controlar os
pensamentos de Murtagh.
— Ah, não, você não vai conseguir! — rosnou ele, finalmente dando ao
conjurador toda a sua atenção.
Murtagh atacou a consciência do homem de manto, sem se conter, apenas
procurando subjugar, esmagar e suprimir.
As defesas mentais do conjurador desmoronaram diante do ataque, e Murtagh
recebeu um breve lampejo de imagens vindo do homem — seu nome era Arven, e
ele estava assustado com, com… —, e então os olhos do mágico reviraram, e ele
desabou.
Murtagh o pegou e o depositou no chão. Nunca vira alguém desmaiar durante
uma batalha mental antes.
— Por quê? — perguntou Esvar com uma voz inocente e lágrimas brilhando nos
olhos. — Por que você faria isso? Eu achei... achei que você queria fazer parte da
guarda. Por quê, por quê, por quê?
— Bem que eu queria — respondeu Murtagh, que apontou para a forma
agachada de Silna. — Mas algumas coisas são mais importantes do que juramentos.
A confusão tomou os olhos de Esvar.
— O que um gato tem a ver com isso? Eu não entendo.
— Ainda bem que não — disse Murtagh.
Ele hesitou e a seguir agarrou o punho da espada cravada no corpo de Esvar. O
jovem enrijeceu e ergueu a mão como se fosse detê-lo.
— Morda sua manga. Isto vai doer.
Depois de um segundo, Esvar obedeceu.
Murtagh concentrou sua determinação e, enquanto tirava a lâmina do peito de
Esvar, disse:
— Waíse heill.
O jovem arqueou as costas, os músculos ficaram salientes no pescoço, enquanto
as mãos em garras arranhavam o chão. O sangue jorrou em volta da lâmina
quebrada quando ela se soltou, e a seguir músculo e pele se juntaram novamente,
deixando para trás a carne imaculada.
Esvar caiu no chão, o corpo mole, e Murtagh desmoronou com uma exaustão
repentina.
— Por quê? — sussurrou Esvar. — Você fez um juramento, Task.
Murtagh ficou abrindo e fechando as mãos.
— Desculpe. A guarda não é tudo isso que você pensa.
Ao se virar para sair, avistou algo no pescoço de Arven. Com uma intuição
repentina, Murtagh se curvou, enfiou o dedo sob a gola do mágico e puxou...
Um amuleto de caveira de pássaro, idêntico ao que Sarros usava em Ceunon.
Murtagh encarou o amuleto por um segundo e então o envolveu na mão e o
arrancou do pescoço de Arven. Enfiou o talismã na bolsa pendurada no cinto —
junto com o que viera de Ceunon — enquanto se levantava.
— Venha — disse Murtagh, olhando de volta para Silna.
A menina-gato trotou atrás dele enquanto Murtagh saía do jardim e cruzava as
câmaras seguintes.

Ao entrar no túnel da catacumba, Murtagh ouviu vozes e o barulho de armaduras


ecoando pela escada que levava ao alojamento.
Por que demoraram tanto?, perguntou-se.
À esquerda, o túnel corria sob a fortaleza. Por aquele caminho, havia mais
inimigos e fuga incerta.
À direita, a passagem o levaria para a parte principal de Gil’ead. Era a melhor
chance de escapar sem outra luta.
Silna tentou passar por ele, mas Murtagh a pegou pela barriga.
— Ah, não, nada disso — murmurou ele, erguendo-a do chão.
Ela tentou se desvencilhar, mas ele apertou a menina-gato contra a lateral do
corpo enquanto virava à direita e disparava rumo ao desconhecido. Para alívio de
Murtagh, Silna não mordeu ou arranhou.
O som de seus passos fortes avançava mais rápido do que eles na escuridão.
O túnel fez uma curva. Assim que a escada sumiu de vista, Murtagh sussurrou
“Brisingr” e formou uma pequena chama vermelha acima da cabeça, para que
pudesse enxergar o caminho.
Silna rosnou para a luz, e as pupilas se contraíram e ficaram fininhas.
— Quieta.
Algumas dezenas de metros depois, ele chegou a uma grade de ferro que
bloqueava o túnel. Murtagh agarrou as barras e puxou. Uma chuva de flocos de
ferrugem caiu em cima dele, mas o metal resistiu.
— Jierda!
O metal se rompeu como madeira podre, e Murtagh empurrou a grade contra uma
parede e avançou correndo.
Ele pisou em poças, espirrando água. Um riacho fino corria pelo centro do túnel,
e umidade pingava das paredes. Um rato do tamanho de um cachorro pequeno
guinchou ao ver Murtagh e a menina-gato e correu para um buraco nas paredes de
pedra.
Dava para ouvir gritos, xingamentos e lanças batendo em escudos no túnel atrás
deles. Murtagh acelerou o passo o máximo que pôde sem perder o equilíbrio na
rocha molhada.
Silna se contorceu, e ele apertou ainda mais o braço.
O túnel se dividiu em quatro direções. Sem saber para onde ir, Murtagh pegou o
caminho próximo à esquerda. Não muito mais longe, o túnel se dividiu novamente,
e depois outra vez, e Murtagh percebeu que não tinha a menor ideia de que direção
estava tomando. Mas não se desesperou. Tornac havia lhe ensinado um truque para
superar o labirinto de sebes na propriedade de lorde Varis, que consistia em virar em
apenas uma direção — esquerda ou direita, não importava, desde que a pessoa
mantivesse essa constância. Resolver um labirinto dessa maneira podia demorar um
pouco, mas se houvesse um caminho para o outro lado, ele sempre seria encontrado
utilizando-se dessa tática.
Assim sendo, Murtagh virou à esquerda em todas as oportunidades. Mais duas
vezes ele teve que atravessar grades de ferro, mas, ao contrário da ocasião anterior,
ele se deu ao trabalho — durante alguns segundos preciosos — de recolocar as
grades, tanto para atrasar os perseguidores quanto para esconder seu rastro. Só
torcia que as catacumbas tivessem mais de uma saída e que não desse de cara com
metade da guarnição da cidade esperando por ele.
Mesmo com a luz mágica, a escuridão era opressiva e a proximidade das paredes,
incômoda. Murtagh sentia como se não fosse mais do que um inseto rastejando
pelas entranhas da terra. Ele odiava a escuridão, a umidade e as lembranças de ter
sido aprisionado sob Urû’baen.
Tentou não se lembrar, mas os pensamentos a respeito de Esvar e da cela
escondida atrás da porta de pedra estavam longe de serem mais agradáveis. Um
violador de juramentos, é isso que eu sou. E Murtagh sabia que era verdade, pois
violador de juramentos fazia parte de seu verdadeiro nome.
— Tudo bem. Você quer descer? — perguntou, porque a menina-gato continuava
a lutar e reclamar. — Aqui.
Ele a colocou de qualquer jeito nas pedras molhadas.
Silna sibilou, o pelo ainda eriçado, se agachou e olhou de uma ponta a outra do
túnel escuro, incerta.
Murtagh a avaliou. Gatos não confiavam tanto nas pessoas quanto os cães, e o
povo-gato era um enigma ainda maior do que os gatos comuns, mas estava
começando a imaginar o que mais teria que fazer para se provar para ela.
— Está tudo bem — disse Murtagh em uma voz suave. E quando não obteve
resposta, gesticulou ao redor. — O que vai ser? Hum? Não sei quanto a você, mas
eu gostaria de escapar daqui com minha pele intacta. Venha comigo e farei o
possível para mantê-la segura.
A ponta da cauda de Silna tremeu rapidamente.
Murtagh deu um passo no túnel. Olhou para trás.
A menina-gato não se mexeu.
Ele deu mais alguns passos. Silna ainda se recusava a andar. Na escuridão, a
pelagem malhada quase desaparecia, era apenas mais uma sombra em meio à
escuridão maior.
Murtagh continuou andando e, quando o brilho da luz mágica desapareceu da
posição de Silna, ouviu o som baixinho de patas seguindo-o.
Quando Murtagh se virou para olhar, Silna se sentou e lambeu uma pata, como se
nada tivesse acontecido.
Ele bufou e continuou andando. Tinha certeza de que ela ficaria por perto, mas,
por segurança, abriu a mente e deixou escapar um sensor diminuto: apenas o
suficiente para detectar a presença da menina-gato.
Então continuaram.
Os dois andaram pelo que pareceram horas. Eles deveriam ter deixado Gil’ead
para trás há muito tempo, mas os túneis eram um ninho emaranhado de aberturas
que se cruzavam e se sobrepunham. Quem cavou isso?, perguntou-se Murtagh. Às
vezes parecia que os túneis eram formações naturais. Ele até bateu a cabeça em uma
estalactite em um canto escuro. O labirinto não fazia sentido. Aquilo lembrava as
linhas escavadas por besouros sob a casca das árvores.
Eles continuaram a correr, e Murtagh fez o possível para evitar qualquer
passagem que conduzisse mais ainda para as profundezas na terra, mesmo que isso
significasse evitar outra curva à esquerda. Se os dois acabassem chegando a níveis
mais baixos, ele duvidava que algum dia encontrassem a saída, a não ser que
utilizasse um feitiço para escavar e voltar à superfície.
Às vezes, Murtagh pensava ouvir vozes atrás de si, à frente, nas laterais, mas
eram sempre fantasmas. Quem falava nunca se materializava, e ele começou a se
perguntar se estava imaginando coisas.
Durante todo o tempo, não ousou tentar entrar em contato com Thorn. Se Arven
ou qualquer outro mágico da Du Vrangr Gata — ou mesmo um elfo — estivesse
procurando por ele, notaria sua mente se expandindo. Assim sendo, Murtagh
limitou os pensamentos a si mesmo, e ele e Silna trotaram em silêncio.

Finalmente!
Um leve brilho prateado iluminou o túnel à frente deles, e Murtagh ouviu o
borbulhar constante de água corrente.
— Fique perto — sussurrou para Silna.
Ele apagou a luz mágica, recolheu a capa em volta da cintura para não emaranhar
nas pernas e foi de mansinho à frente.
A passagem se estreitou até ele ficar meio curvado, e a luz aumentou até... ele ver
o fim do túnel. Uma extremidade coberta por uma grade de ferro, que dava para um
pequeno riacho com margens baixas e lamacentas. Acima da grade e do riacho
havia uma ponte de madeira. Numerosos passos ecoavam na ponte.
Aliviado, Murtagh se apoiou na parede curva de pedra. Pelas estrelas no céu e
pelo luar na água, Murtagh sabia que ele e Silna haviam passado a maior parte da
noite nos túneis. Parecia ter sido muito mais tempo.
Ainda estavam em Gil’ead: prédios eram visíveis de ambos os lados da ponte, e
homens da guarda marchavam pelas margens do riacho, gritando instruções uns
para os outros. Parecia que todos os soldados da cidade haviam sido despertados, o
que era de esperar.
Silna chegou de mansinho ao lado dele. As orelhas estavam erguidas e giravam
para acompanhar os passos indo e vindo.
— Espere — sussurrou Murtagh.
Ela sacudiu uma orelha e, depois de um momento, deitou-se e enrolou o rabo em
volta de si. Foi o mais próximo que Silna chegou dele desde que Murtagh a botara
no chão, e ele sentiu o cheiro almiscarado do pelo molhado, e os pelos ao longo da
cauda faziam cócegas nas costas da mão esquerda dele.
Convencido de que a menina-gato não iria fugir, Murtagh arriscou enviar um
pensamento exploratório para onde acreditava que Thorn estava escondido.
Encontrou a mente do dragão quase imediatamente, e muito mais perto do que
esperava: a mais ou menos um quilômetro fora dos muros da cidade, em meio a um
canteiro de rosas silvestres.
Uma onda turbulenta de alegria, alívio e raiva veio de Thorn.
Aí está você!, rosnou o dragão.
Aqui estou eu.
Achei que teria que destruir Gil’ead pedra por pedra para encontrar você.
A situação quase chegou a esse ponto, disse Murtagh.
Como foi? Você resgatou a…
Sim. Mas não é seguro falar dessa forma. E você? Está em perigo?
Há soldados vasculhando os campos, mas nenhum deles me avistou ou farejou.
Apesar das palavras do dragão, Murtagh sentiu Thorn se aninhar mais fundo nas
roseiras e a dor quando os espinhos rasgaram as asas delicadas.
Tudo bem. Fique onde está e irei até você assim que puder.
Um zumbido grave veio da mente de Thorn.
Tome cuidado.
Sempre.
Eles separaram os pensamentos, e Murtagh enrolou a capa em volta dos braços e
se acomodou em uma posição mais confortável. De alguma forma, ele tinha que
levar Silna para Carabel. Havia gente demais na ponte e nas ruas para arriscar sair,
mas, se esperassem demais, o sol ia nascer e Murtagh perderia sua chance, e ele
realmente não queria esperar mais uma noite. Em algum momento, alguém da
guarda poderia pensar em verificar a grade onde eles estavam escondidos.
Ele olhou para Silna. A gatinha piscou e devolveu o olhar.
— Por que eles queriam você? — perguntou ele. — O que fizeram com você?
O pelo da menina-gato se eriçou, e ela desviou o olhar.
Murtagh não sabia por que tinha esperado outra coisa.
Ele fechou os olhos por um segundo e depois pensou melhor. Não dormiria até
que Silna estivesse em segurança com a própria espécie e ele estivesse bem longe
de Gil’ead. Além disso, não achava que conseguiria relaxar o suficiente para
dormir.
Ele ficava relembrando Esvar perguntar por quê, por quê, por quê. Murtagh
apertou a palma da mão contra a têmpora, tentando expulsar a voz da cabeça. Não
conseguiu, e temia que não fosse conseguir por vários dias.
Para se distrair, puxou o compêndio do qual se apropriara. Que palavra elegante
para “roubar”. Então criou uma luz mágica vermelha minúscula acima das páginas
e começou a memorizar as palavras da língua antiga. Já havia encontrado dezenas
que poderiam ser úteis. Essa percepção o deixou ainda mais determinado. Só aquele
compêndio já valia as desventuras dos últimos dois dias. Com ele, poderia começar
a cobrir as lacunas de sua educação arcana, uma oportunidade que recebia de muito
bom grado.
Silna cheirou o canto do livro e contraiu o nariz.
A dor fraca, mas constante, voltou ao antebraço esquerdo de Murtagh enquanto
ele lia e, por causa disso, ele demorou a notar uma cócega na parte de trás do pulso
e da mão. Por fim, a coceira se tornou forte o suficiente para que Murtagh olhasse
para baixo.
Uma grande aranha negra havia subido nele. Murtagh se forçou a não reagir,
embora isso tenha exigido toda sua força de vontade. Se não conseguisse se
controlar, seria prisioneiro das circunstâncias, e ele se recusava a aceitar tal
desamparo.
No entanto, veio uma ânsia de vômito, e a repulsa o fez querer jogar a aranha
longe.
Com passos minúsculos, a aranha cruzou pela mão dele e passou para as páginas
do livro. As patas em forma de gancho fizeram um leve som arranhado no papel.
Ele virou o livro na parede e deixou a aranha correr para a pedra. Ela parou a
alguns centímetros de distância. Era um punho de pernas amontoadas. Silna olhou
para a aranha, aparentemente sem interesse.
Por um instante, Murtagh sentiu novamente o peso de dezenas de aranhas gordas
rastejando por sua pele. Suas picadas ardiam como fogo e, se não fossem cuidadas,
infeccionavam e se tornavam feridas esverdeadas que levavam semanas para se
curar. As criaturas o atormentaram todas as noites naquele subterrâneo gelado,
tornando impossível dormir, e tudo que ele podia fazer era se sacudir em uma
tentativa inútil de afastá-las...
Murtagh estendeu a mão, colocou o polegar sobre a aranha e pressionou. Linfa
amarela brotou do abdômen do bicho quando este se partiu como uma uva madura.
As orelhas da menina-gato viraram para trás. Ela esticou o pescoço e farejou a
aranha morta.
Murtagh voltou a ler.
Ele ficou escutando a multidão enquanto examinava as colunas de runas. Quando
as ruas se acalmaram por um tempo, e ele não ouvia nenhum som além do
borbulhar da água e das asas dos bacuraus perseguindo as refeições matinais,
apagou a luz mágica e guardou o livro.
— Fique de prontidão — sussurrou ele para Silna e avançou.
As barras de metal da grade não eram diferentes das que Murtagh havia
encontrado antes.
— Kverst — disse ele em voz baixa, e passou um dedo pelo metal frio e
esburacado.
As barras se separaram com sons metálicos tilintantes, e ele tirou a grade do lugar
e a colocou de lado. Murtagh voltou a observar em busca de espectadores e
transeuntes — não ousou usar a mente para sondar a área —, saiu do túnel e desceu
poucos metros na margem lamacenta abaixo. Ele se virou e estendeu a mão para
Silna.
A gata encarou Murtagh sem expressão.
— Vamos — sussurrou ele e mexeu os dedos.
Por fim, a menina-gato andou até a borda do túnel e se permitiu ser pega por ele e
depositada no chão.
— Pior que um dragão — murmurou ele, colocando a grade de volta na posição.
— Thrysta.
Murtagh usou o feitiço para forçar o metal a voltar ao lugar. Seria preciso um
martelo e um cinzel para arrancar a grade novamente.
Ele enrolou a capa vermelha da guarda em torno de um braço enquanto conduzia
Silna para fora da ponte. Olhou de um lado a outro nas margens do riacho e, sem
notar sinais de perigo, subiu para a rua.
Murtagh se virou para ter certeza de que Silna o seguia.
No instante que a menina-gato passou pelo topo da margem, ela disparou entre os
prédios, correndo mais rápido do que qualquer humano, com o rabo rígido traçando
círculos atrás dela.
Ele praguejou e tentou alcançá-la, mas Silna já havia desaparecido na cidade, e
Murtagh viu as pessoas olhando fixamente para ele do outro lado da rua. Arriscou
abrir sua mente, mas... era como se a menina-gato tivesse deixado de existir. Tudo o
que ele conseguiu sentir foram humanos, cachorros e os pensamentos satisfeitos de
um gato de orelhas crenadas sentado em cima de uma cerca de madeira.
Murtagh praguejou duas vezes.
Não tinha jeito. Silna sumira, e ele não tinha certeza de que poderia reencontrá-
la, mesmo que procurasse por dias. Tudo o que podia fazer era torcer para que os
guardas não a encontrassem e que ela fosse capaz de voltar para a própria espécie.
Ele praguejou pela terceira vez. Resgatara Silna. Mas será que Carabel ainda lhe
daria as respostas que procurava se não pudesse entregar a filhote nas mãos dela?
Ponderou a questão por um tempo, o que deixou um gosto amargo em sua boca.
Caso a mulher-gato se recusasse... Ele insistiria. Isso era certo. Depois de tudo
que fizera por Carabel, ela lhe devia respostas. E se, ao insistir, ele e Thorn
acabassem se tornando inimigos do povo-gato... Bom, era o preço a ser pago.
Só havia uma maneira de descobrir.
Murtagh puxou o capuz sobre a cabeça e correu para o interior de Gil’ead.
CAPÍTULO XIII

Confronto com uma gata

A inda era madrugada e tudo estava cinzento e silencioso, exceto pelo tropel
ocasional dos soldados e o grito de um guarda.
Como uma aproximação direta da fortaleza teria sido suicida, Murtagh contornou
o centro da cidade e se manteve em becos e ruas secundárias sempre que possível.
As poucas pessoas que encontrou o olharam com suspeita, mas não mais do que a
situação justificava. Gil’ead inteira estava tensa, alerta, como se a violência pudesse
irromper a qualquer momento. As persianas das casas se fechavam aparentemente
por conta própria quando ele erguia o olhar, e Murtagh viu integrantes da guarda
postados ao longo das principais vias.
Não pôde deixar de se preocupar com Silna enquanto avançava pela cidade.
Mesmo que a menina-gato tivesse sido difícil e retraída, torcia para que estivesse
segura e que os guardas não a pegassem. Silna era tão pequena e jovem… Eu
deveria ter tomado mais conta dela.
Ao se aproximar da fortaleza, diminuiu a velocidade para um passo controlado,
sem querer se precipitar em uma situação perigosa.
Sem muita dificuldade, encontrou a casa a que tinha sido levado por Bertolf, o
criado de Carabel. Imaginou se Carabel era a proprietária do edifício elegante ou se
tinha um acordo com o dono. Parecia arriscado entrar e sair de um túnel secreto em
uma propriedade onde não se sabia quem poderia estar observando.
Com passos rápidos, ele desceu os degraus de pedra até o poço situado a mais ou
menos três metros abaixo da superfície. Lá, tocou a mesma flor esculpida que
Bertolf havia apertado, e a porta oculta se abriu.
Murtagh não estava ansioso para entrar novamente em um túnel, mas pelo menos
conhecia aquele ali, e era muito, muito mais curto do que o labirinto pelo qual ele e
Silna passaram a maior parte da noite vagando. O pensamento o lembrou do sono
perdido, e ele conteve um forte bocejo. Duas noites ruins seguidas cobravam seu
preço.
Ele se abaixou sob o lintel e entrou. A porta se fechou com um baque mortal por
trás de Murtagh, que foi engolido pela escuridão.
Em algum lugar à frente, soaram os passos leves de um camundongo.
— Ótimo — disse ele, começando a avançar com uma mão na parede para se
equilibrar. — Simplesmente ótimo.

Murtagh rosnou quando bateu a canela na borda de um degrau ao entrar no depósito


no fim do túnel. Depois de fechar a outra entrada, ele prestou atenção para tentar
ouvir alguém no corredor do lado de fora. Desta vez, também usou a mente e
enviou pensamentos em busca de seres próximos. O único que encontrou foi um
rato bastante assustado situado em uma fenda na parede.
Agora! Murtagh saiu do depósito e correu pelas mesmas passagens laterais por
onde foi conduzido por Bertolf durante a última visita. Ele estava grato pelo fato de
o caminho ter sido fácil de lembrar e por ainda ser cedo o suficiente para que a
maioria dos habitantes da fortaleza não estivesse acordada. Muitos criados já
estariam cumprindo seus deveres, mas Murtagh não achava que precisava se
preocupar em esbarrar no padeiro do castelo tão longe assim das cozinhas.
Mesmo assim, ficou feliz em chegar, e sem incidentes, à porta decorada com
painéis que guardava o gabinete da mulher-gato.
Murtagh não se deu ao trabalho de bater. Apenas levantou o trinco da porta e
empurrou. Ela não estava trancada ou barricada e abriu quase sem fazer barulho.

Carabel estava sentada na almofada de veludo atrás da escrivaninha. Estava na


forma de um gato com pelos nas orelhas, e uma grande juba em volta do pescoço
que descia pela coluna em uma linda pelagem branca que brilhava como cetim. Em
termos de tamanho, Carabel era talvez três vezes maior que um gato normal, e
músculos magros ondulavam sob a pele de uma forma que transmitia força
selvagem.
Ela estava ronronando e lambendo com a língua rosa a cabeça de pelos
emaranhados de um filhote enroscado a seu lado. Era ninguém menos que Silna,
com os olhos fechados em aparente êxtase.
Murtagh parou na entrada do gabinete, surpreso e um tanto desequilibrado, mas,
por muitos motivos, aliviado por ver o filhote a salvo. Ele fechou a porta.
— Vejo que ela encontrou você. — Ele largou seu saco de dormir no chão.
Carabel olhou para ele, e o ronronar aumentou. Murtagh sentiu o toque da mente
da mulher-gato, como se ela estivesse tentando se comunicar com os pensamentos,
como Thorn.
Ele blindou a consciência contra Carabel e fez que não com a cabeça.
— Ah, não. Assim não. Falamos com palavras ou não falamos.
As orelhas da mulher-gato se achataram contra o crânio estreito. A forma de
Carabel ficou borrada e mudou, como se vista através de ondas na água. Depois de
alguns segundos, ela se parecia com uma humana baixa e magra.
Só que estava sem roupa.
Murtagh não se importou. Em outras circunstâncias, a forma física de Carabel
poderia ter sido uma distração, mas, naquele momento, não teve nenhum efeito
sobre ele. Murtagh manteve o olhar na mulher-gato enquanto ela pegava o vestido
na escrivaninha e vestia.
— Que inconveniente — disse Carabel, mostrando as pequenas presas
pontiagudas.
Silna soltou um miado de protesto por ter sido abandonada, e Carabel se virou e
começou a passar suavemente as unhas afiadas no topo da cabeça da gata, que se
aproximou e se aninhou, e Murtagh teria jurado que havia um sorriso nos lábios
minúsculos.
Ele ficou plantado no centro do tapete grosso, bem diante da escrivaninha. Uma
suspeita incômoda azedava sua boca.
— Vocês duas são muito parecidas.
— Claro — disse Carabel, dirigindo um olhar afetuoso para Silna. — Ela é
minha filha.
— Sua filha.
— Uma de muitos, sim. Minha mais nova.
— Por que você não me contou?
A mulher-gato olhou para ele com olhos solenes.
— Porque nomes são poderosos. Se você soubesse, era possível que nossos
inimigos descobrissem a verdade por você, e então eles poderiam tê-la usado contra
mim. — Ela inclinou a cabeça. — Você, mais do que qualquer um, deveria entender
o perigo do próprio nome, Murtagh, filho de Morzan.
— Não me chame assim.
— É quem você é, humano.
Murtagh lutou para manter a calma.
— Então eles não sabiam que Silna era sua?
Carabel fez que não com a cabeça.
— Não.
— Foi por acaso que eles a pegaram?
— Até onde sei.
Ele rosnou e andou de um lado para o outro sobre o tapete.
— Por que o sequestro, então? Perdão, a gatunagem? E os outros filhotes. Ela
contou?
Silna começou a ronronar — um ronco suave e constante — enquanto Carabel
coçava a bochecha da filha.
— Só contou que o mágico estava envolvido... — disse a mulher-gato.
— Arven.
— Sim, esse era o nome dele. E o capitão Wren também. Falaram em mandá-la
para algum lugar mais ao sul.
A irritação de Murtagh com a mulher-gato ficou em segundo plano enquanto ele
percorria o gabinete de um lado a outro, tentando decifrar a situação.
— Lorde Relgin tem que ser informado. — Ele parou e lançou um olhar
penetrante para Carabel. — Ou isso foi feito por ordem dele?
A expressão dela ficou séria e severa.
— Eu não sei — respondeu com uma voz suave. — E não arrisco um palpite.
Nesse assunto, a segurança só será encontrada na certeza e, até agora, a certeza nos
escapa... Presumo que você não encontrou nenhum dos outros filhotes?
— Não havia sinal deles — disse Murtagh, e a expressão dela se tornou
angustiada. — Silna sabe o que aconteceu com eles?
Carabel deu um abraço protetor na filha. A imagem causou em Murtagh uma
pontada de dor.
— Infelizmente, não — respondeu Carabel. — Ela não viu nada. Diga-me, se
puder, como a resgatou. Eu gostaria de ouvir tudo, com todos os detalhes.
— Você me deve respostas, gata — disse ele em tom severo.
— E respostas você terá. Mas primeiro conte, por obséquio.
Murtagh respirou fundo e fez o possível para deixar de lado a impaciência. Ele
não podia culpar a mulher-gato por perguntar.
Então descreveu o tempo que passou no túmulo de Glaedr e como extraiu a
escama dourada do dragão do interior da tumba de terra. E explicou os passos que
havia seguido para encontrar o local onde Boca de Lodo se alimentava e como
havia lutado e matado o grande peixe.
A mulher-gato ouviu atentamente e, no momento da morte de Boca de Lodo,
falou:
— Sss. Bom. Que os ratos comam o rabo dele e os ossos virem pó. — Ao lado,
Silna se mexeu e olhou para a mãe, que voltou a acariciá-la. — O peixe comeu
muitos de nós do povo-gato ao longo dos anos, humano. Ainda bem que ele se foi.
— E você me fez matá-lo para você.
Carabel inclinou a cabeça.
— Você teria conseguido entrar na guarda de outra forma?
— Não. Provavelmente não.
Com uma expressão presunçosa, a gata tomou um gole de um cálice sobre a
mesa.
— Viu só? Havia uma razão. — Ela fez um gesto elegante. — Continue.
O maxilar de Murtagh se contraiu, mas ele obedeceu e descreveu como havia
caído nas graças da companhia do capitão Wren e como havia avançado para as
catacumbas embaixo do quartel.
A mulher-gato abriu os dedos da mão livre e os cravou no tampo da mesa.
— Ssss. E o que você viu depois disso, humano?
Murtagh gesticulou para Silna.
— Certamente sua filha pode lhe dizer.
— Seus olhos veem de forma diferente dos dela.
Ele grunhiu e descreveu as duas câmaras que encontrou depois da sala de guerra:
a oficina mágica e o jardim de plantas raras e desconhecidas. Quando mencionou o
estranho ovo no jardim, Carabel se enrijeceu e seu cabelo espetado se eriçou, como
se ela estivesse com medo.
— O que é o ovo? — perguntou Murtagh.
— Um erro antigo que precisará ser consertado — contou Carabel, examinando
as pontas das unhas. — Fique tranquilo, Cavaleiro, cuidarei para que o problema
seja resolvido.
— E você não vai me dizer que erro é esse?
Os lábios da mulher-gato se abriram em um sorrisinho malicioso.
— Toda informação tem um preço, humano. O que você estaria disposto a pagar
por um conhecimento tão adorável?
— Eu pensei que já tinha feito por merecê-lo.
Ela riu, e a voz soou como moedas de prata caindo.
— Não, não. Cada rato que você deseja pegar é diferente. Cada rato é novo. Isso
é um assunto à parte.
Conversar com a gata, concluiu Murtagh, era como jogar um jogo de azar em que
as regras mudavam a cada mão. Muito bem, se eu tiver que ser traiçoeiro, serei
traiçoeiro.
— Um segredo por outro segredo. Satisfeita?
Carabel lambeu as presas enquanto pensava.
— É um bom segredo, humano?
— Tão bom quanto qualquer outro que eu conheço.
— Hum. Uma afirmação forte, essa. — Ela mexeu em um arranhão no tampo da
escrivaninha. — Muito bem. Um segredo por um segredo. O ovo pertence às
criaturas conhecidas nesta língua como Ra’zac.
Carabel acrescentou uma vibração ao r no início do nome, e o som causou um
arrepio na coluna de Murtagh. Ele praguejou em tom explosivo e andou em círculo
antes de voltar e encarar a escrivaninha.
— Eles? Criaturas horríveis! Como?
A mulher-gato arqueou uma sobrancelha delicada.
— Você devia saber que Galbatorix escondeu alguns dos ovos dos Ra’zac pela
terra.
— Ele nunca falou a respeito disso. — Murtagh fez uma careta, irritado consigo
mesmo. — Eu deveria ter adivinhado. Ele sempre foi desonesto. Mas o que o ovo
está fazendo aqui?
Um som baixo, meio ronronado, meio rosnado, retumbou no peito de Carabel.
— Essa é a questão, humano.
— Se eu soubesse o que era o ovo...
Murtagh balançou a cabeça. Ele o teria derretido com uma rajada de fogo capaz
de rivalizar até com as chamas produzidas por Thorn. Como Carabel havia dito, os
Ra’zac eram um erro. Eram os caçadores de humanos, pesadelos que se
alimentavam da carne das pessoas. Murtagh se lembrou do momento em que os viu
agachados ao redor da fogueira do acampamento onde haviam capturado e
amarrado Eragon, Saphira e Brom: figuras curvadas com capuzes escuros que
escondiam os bicos de abutre e os olhos redondos e salientes, sem pupilas e
desprovidos de branco. Ele disparou nos Ra’zac com o arco e os expulsou, mas não
antes de terem conseguido ferir Brom fatalmente...
Ele se sacudiu para se livrar das sombras do passado.
— Se eu soubesse disso antes, teria contado para você — disse Carabel. —
Agora seu segredo, por favor, humano.
Uma batida bruta soou.
Murtagh se assustou, e a porta do gabinete se abriu e mostrou o rosto largo de
Bertolf. Ele olhou para Murtagh com desconfiança.
— Precisa de mim, senhora? Está quase na hora do café da manhã, mas as
cozinhas estão atrasadas hoje.
Carabel acenou com a mão.
— Deixe-nos por enquanto, Bertolf. Eu toco a sineta se quiser chamá-lo.
— Sim, senhora. — O homem fez uma reverência e se retirou.
A mulher-gato se concentrou em Murtagh mais uma vez, intensa e séria.
— Agora o seu segredo.
Do cinto, Murtagh removeu o segundo amuleto de caveira de pássaro e o colocou
sobre a escrivaninha. Silna sibilou, arqueou as costas e jogou o amuleto no chão.
Murtagh se curvou e apanhou o objeto. Lentamente, ele colocou o amuleto no
canto da mesa mais distante de Silna.
A gatinha sibilou para o amuleto, pulou até o chão e foi se sentar encolhida na
lareira do gabinete.
Com uma expressão de desgosto, Carabel enganchou o amuleto em uma unha e
ergueu para examiná-lo.
— Não consigo entender. Você já me mostrou esta bugiganga desagradável.
Mas...
Carabel torceu o nariz.
— Ela tem um cheiro diferente agora.
— Peguei esse amuleto aí do feiticeiro — contou Murtagh, que mostrou a ela o
amuleto original na bolsa pendurada no cinto.
As pontas das orelhas peludas de Carabel se achataram nas laterais da cabeça. Ela
rosnou uma emanação profunda e gutural que fez a frente do vestido vibrar. Ouvir
um som tão primitivo e animalesco vindo de uma criatura de aparência tão humana
fez os cabelos da nuca de Murtagh se arrepiarem.
— Arven. Da Du Vrangr Gata — disse a mulher-gato.
— Isso mesmo.
— Sss. A situação é pior do que eu temia, Cavaleiro.
Cavaleiro, agora? Ela deve estar mesmo preocupada. Murtagh se sentou
novamente, e ele e a mulher-gato trocaram um olhar longo e sério. Pela primeira
vez, ele sentiu como se os dois se entendessem.
— Eu acho que é melhor você me contar exatamente o que sabe — disse ele com
cuidado deliberado.
Carabel franziu a testa enquanto olhava para o amuleto.
— Acho que você está certo. — Ela se recostou na almofada. — Por onde devo
começar?

Um estalo fraco veio das brasas na lareira, e Silna sacudiu as orelhas, aborrecida.
Do lado de fora, no pátio da fortaleza, soavam vozes altas. Murtagh manteve o olhar
fixo em Carabel.
— Comece com a bruxa Bachel — disse ele.
A mulher-gato sibilou.
— Sim. Ela. Muito bem. Já faz alguns anos que ouvimos rumores, não mais do
que sussurros, de pessoas estranhas se deslocando pela terra. Elas se
autodenominam Sonhadores, e os poucos que foram interrogados afirmam servir a
essa Bachel. Quem ela é e o que deseja permanecem... incertezas, mas sabe-se que
ela é capaz de estranhas magias. — A mulher-gato indicou o amuleto. — Buscamos
esse segredo, humano, do nosso próprio jeito cuidadoso. Somos curiosos por
natureza e perguntas sem respostas nos atraem como mariposas são atraídas pela
chama. Cinco de nossa espécie se aventuraram na natureza selvagem em busca de
Bachel e nenhum voltou.
Murtagh ouviu com incômodo crescente.
— Para onde eles foram?
— Aqui e ali — disse Carabel com um sorriso desagradável. — Mas eu
suspeito... Bem, você vai ouvir. Saiba que os Sonhadores se tornaram mais comuns.
Quando capturados e interrogados, eles se matam sem hesitar, mas uma coisa
parece certa: a influência deles se espalha por toda a Alagaësia como raízes
rastejando pelo solo. A espécie foi vista lidando com todas as raças, incluindo elfos
e Urgals, e farejamos a intromissão dos Sonhadores em muitos negócios escusos.
Mas, novamente, não sabemos nada de seus objetivos ou causas. Apenas que as
pegadas aparecem com cada vez mais frequência e raramente sem sangue ou morte.
Outro estalo soou na lareira.
— O amuleto que você encontrou em Arven prova isso — continuou a mulher-
gato. — Quanto a onde Bachel possa estar... De poucas em poucas semanas, navios
partem de Ceunon e navegam para o norte na Baía do Fundor. Mesmo no inverno,
quando o gelo cobre a baía e as ondas crescem e ficam perigosas, é possível
encontrar navios fazendo essa jornada. Eles nunca se ausentam por muito tempo.
Algumas semanas, no máximo, e aí retornam com a tripulação de cara e boca
fechadas. Os passageiros desses navios variam. Geralmente eles escondem os rostos
e as mentes, mas vimos muitos mercadores notáveis e muitos descendentes de
famílias nobres se aventurarem na baía e, quando retornam a Ceunon, muitas vezes
estão associados aos Sonhadores ou então agem de maneiras que parecem ajudá-los.
Carabel empurrou o amuleto para mais longe e lambeu o dedo como se fosse
limpá-lo.
— No ano passado, conversamos com um dos marinheiros que fizeram a viagem.
— E então? — perguntou Murtagh com uma voz que soou surpreendentemente
alta na sala.
A mulher-gato ergueu o queixo.
— Ele nos contou a respeito de um vilarejo na Espinha. Uma vila onde o chão
cheira a ovo podre e a fumaça sobe de respiradouros enegrecidos. Ele nos contou
essas coisas... e aí morreu. Se já tomou a decisão de encontrar a bruxa Bachel,
procure-a lá, ó Murtagh, filho de Morzan.
Ovos podres. Enxofre. Exatamente as coisas sobre as quais Umaroth o alertara. A
confirmação, por um lado, o deixou contente, mas também bastante inquieto.
Porém, pedira respostas, e aquilo era um começo.
— Então a pedra que Sarros me trouxe vem do mesmo lugar que Bachel?
Carabel deu de ombros.
— Parece provável, mas não posso afirmar com certeza.
— E o que você acha que esses Sonhadores querem com os filhotes do povo-
gato?
Os olhos de Carabel cintilaram e ela mostrou as presas, sibilando.
— Sss. Não sei. Talvez nada. Talvez isso tenha sido apenas obra da Du Vrangr
Gata. Talvez alguma vilania particular de Arven. Ou do capitão Wren. Não sei, mas
prometo a você, Cavaleiro: não vou descansar até descobrir a verdade e resgatar
todas as nossas crianças.
— Ótimo — respondeu Murtagh em tom objetivo.
E falava a verdade. O responsável por aquilo merecia a pior punição possível. Se
tivesse sido obra apenas de Arven, então a justiça já fora feita, mas ele duvidava
disso.
Quanto mais pensava a respeito da situação, pior ele se sentia. Se os Sonhadores
haviam se infiltrado na Du Vrangr Gata — ou recrutado simpatizantes para lá —
sem levantar suspeitas, isso já seria bastante preocupante. Mas se o que a gata disse
era verdade, eles estavam operando em uma escala mais ampla e com um objetivo
maior em mente, e já haviam acumulado uma quantidade inquietante de influência.
A compreensão provocou um arrepio. Como os Sonhadores poderiam ter passado
despercebidos por tanto tempo? Que poder detinham sobre aqueles que se
alistavam?
Os Sonhadores têm que ser detidos, pensou ele.
— Você informou Nasuada a respeito disso?
— Ainda não.
— Eragon ou Arya?
Ela balançou a cabeça.
— Por que não?
Carabel lançou um olhar fulminante para Murtagh.
— Sussurros e suspeitas não são suficientes para reunir uma força, instigar uma
rainha ou chamar de volta o líder dos Cavaleiros. Devemos ter uma compreensão
clara da ameaça primeiro.
— Você quer dizer que alguém precisa ir à aldeia.
— Ir. E voltar.
— Talvez, mas eu diria que isso — ele cutucou o amuleto — é prova suficiente
de que a preocupação é justificada. Isso e o sequestro de seus filhotes.
A expressão de Carabel azedou.
— Já disse que não sabemos se os Sonhadores são os responsáveis. Mesmo
assim... Talvez você tenha razão e esse objeto infeliz seja prova suficiente. Se fosse
você a levá-lo até Nasuada, junto com um relato do que descobrimos, certamente
seria.
Murtagh olhou para a lareira, incomodado.
— Você sabe que eu não posso.
— Não pode? Dizem que a rainha gosta especialmente de você e...
A raiva atraiu a atenção dele de volta para o rosto malicioso de Carabel.
— Dizem? Quem diz? É melhor você tomar cuidado com suas palavras, gata.
Carabel deu de ombros, aparentemente imune ao tom de voz dele.
— Aqueles com ouvidos para ouvir e olhos para ver.
— Bem, eles não sabem o que dizem, e eu gostaria que você não insultasse a
rainha ou a mim com tal calúnia.
Depois de um momento, Carabel inclinou o rosto anguloso.
— É claro, Cavaleiro. Muito bem, vou escrever pessoalmente uma mensagem
para Nasuada, mas confesso que não sei qual será sua resposta. Seria melhor que
você também escrevesse algumas palavras, para corroborar. Concorda?
— Está bem — grunhiu ele.
Enquanto a gata reunia os instrumentos, Murtagh se recostou na cadeira,
ruminando. A insubordinação do capitão Wren, a possível corrupção da Du Vrangr
Gata, as atividades dos Sonhadores e o maldito ovo de Ra’zac... todos eram
assuntos importantes. Reunidos, podiam representar uma ameaça à coroa de
Nasuada.
E se... Por um momento, ele considerou voar para Ilirea, mas tirou a ideia da
cabeça. Por mais tentador que fosse, fazer isso seria um erro para todos os
envolvidos, incluindo Nasuada. Seus súditos não ficariam contentes de ver a rainha
mantendo relações públicas com o Murtagh, o traidor.
Além disso, quem ela mandaria para investigar o vilarejo? Quem poderia enviar?
A Du Vrangr Gata não era confiável e, mesmo que fosse, nenhum dos conjuradores
da ordem era habilidoso ou forte o suficiente para lidar com o tipo de magia sem
palavras que ele havia encontrado. Poucos eram. Eragon conseguiria, mas estava
ocupado protegendo os Eldunarí e os ovos de dragão. Não os abandonaria. Arya e
os magos élficos mais experientes eram capazes, mas Murtagh sabia que Nasuada
relutaria em pedir ajuda a mágicos — muito menos a um Cavaleiro — que não eram
seus súditos nem humanos.
Sobrava ele. Ele e Thorn.
A conclusão não desagradou a Murtagh, ainda que o desconhecido fosse, como
sempre, inquietante. Ter uma causa clara e honrada a seguir era um tesouro raro. E
poderiam ter a chance de causar algum bem, não apenas de maneira geral, mas para
Nasuada, especificamente. A quem já fizera tanto mal.
Ele afastou todos esses pensamentos quando Carabel lhe passou uma folha de
pergaminho, tinta e uma pena de ganso recém-cortada. Murtagh hesitou, sem saber
como começar, pois sentiu um peso de expectativas, experiências passadas e
sentimentos não ditos. Ele se recompôs e se concentrou no que precisava ser dito.
Desejos teriam que esperar.
Por alguns minutos, o arranhão da pena foi o único som além da lareira. Ele
encerrou com:

Thorn e eu partiremos para encontrar essa aldeia. O que encontraremos,


não posso dizer, mas, se for um perigo para você, seu reino ou a Alagaësia
como um todo, lidaremos com a questão conforme necessário. Quanto a isso,
você tem minha palavra. De qualquer forma, pode esperar notícias nossas
quando retornarmos.

Murtagh franziu a testa enquanto encarava as últimas frases. Ele estava


comprometendo a si mesmo e a Thorn àquela causa sem perguntar ao dragão.
Esperava que não fosse um problema.
Além disso, havia outra questão. Nasuada não conhecia a caligrafia dele, então
como se certificaria de que a carta era genuína? Ele poderia encantar o pergaminho,
mas para quê? Nasuada não confiaria em um feitiço de fonte desconhecida. E
Murtagh não tinha um anel de sinete ou outro símbolo consigo que ela pudesse
reconhecer. O que o deixava apenas com as próprias palavras.
Ele mergulhou a pena de novo no pote de tinta. Então, com cuidado especial,
escreveu:

Se duvidar da mão que escreve essas runas, se suspeitar do meu motivo e se


perguntar por quê, então só posso responder dizendo: você sabe por quê.
Murtagh

A frase final era uma temeridade. Murtagh sabia disso. Mas não conseguiu
pensar em mais nada para escrever que fizesse Nasuada ter certeza de que era ele.
Murtagh pronunciara aquelas quatro últimas palavras para ela — somente para ela
—, na escuridão sombria do Salão da Profetisa. Foi o mais perto que chegou de
confessar seus sentimentos por ela, e mesmo que parecesse errado mencioná-los
agora, quando a situação havia mudado tanto, não via outra opção.
Ele se sentiu mais velho do que era enquanto passava o mata-borrão na carta e
enxugava a pena. Dobrou a folha e depois derreteu algumas gotas do lacre vermelho
de Carabel na dobra do pergaminho.
— Pronto — disse ele, sentindo-se determinado.
— Meus agradecimentos — disse Carabel. — Estou em dívida com você,
humano, assim como todo o povo-gato.
Murtagh inclinou a cabeça.
— Não precisa agradecer.
Um sorrisinho apareceu no rosto de Carabel.
— Talvez não, mas ainda é um gesto educado. O que planeja fazer?
Murtagh esfregou o cotovelo direito enquanto pensava. A articulação ainda doía
da surra que levara de Boca de Lodo.
— Eu sei que esta é outra pergunta, gata, mas talvez você atenda ao meu pedido e
responda.
A expressão de Carabel se tornou perversa.
— Talvez.
— Como você acha que devo proceder?
A gata se remexeu na almofada, e as orelhas com tufos se empertigaram. A ponta
do vestido deslizou, deixando o ombro dela descoberto.
— Sssah. Muito bem, mas darei um alerta, humano. Conselhos servem tanto ou
mais para quem dá quanto para quem recebe.
— Vou correr esse risco.
— Então digo o seguinte: é melhor abrir portas do que esperar que se abram. E é
melhor saber o que há do outro lado de uma porta antes que ela se abra.
Murtagh entendeu. Ele se levantou e deu a ela uma pequena reverência e um
sorriso ainda menor.
— Obrigado pelo conselho, mulher-gato Carabel.
Ela cheirou e examinou as unhas novamente.
— De nada, humano.
Lá fora, na muralha externa da fortaleza, soaram gritos: capitães convocando os
soldados. Aos ouvidos de Murtagh, parecia que toda a guarnição da cidade estava
sendo reunida no pátio.
Carabel notou isso também. Ela virou a cabeça, e a luz tênue da manhã que
entrava pela janela fez os tufos das orelhas brilharem.
— Acho melhor você ir embora, humano, antes que lorde Relgin tenha a ideia de
revistar a fortaleza. Às vezes, ele demonstra uma imaginação irritante.
— Então me despeço aqui e peço sua licença, C... — Murtagh ouviu um leve som
de movimento vindo de trás, similar ao de um pano caindo.
Ele se virou e viu Silna apoiada em dois pés ao lado da lareira, com um pequeno
cobertor de lã enrolado no corpo magro. Ela não era mais alta do que o atiçador e as
pinças ali perto. A pele era pálida como a neve, as veias azuladas sob a superfície, e
havia uma translucidez nela, como se fosse levemente intangível. As pálpebras
eram como conchas luzidias, os cabelos ainda eram malhados e estavam em mechas
desordenadas, e havia um ar de prontidão selvagem, como se ela tivesse saído de
uma clareira dentro da floresta mais profunda e escura.
Silna andou até Murtagh e parou diante dele, que encarou os enormes olhos
esmeralda, luminosos e inocentes, e não soube o que dizer.
Ele se ajoelhou diante de Silna, como teria se ajoelhado diante de uma rainha.
Com um braço nu, Silna o abraçou pelo pescoço. A pele dela era fria contra a
dele. Em uma voz baixa e suave, ela disse:
— Obrigada.
Ela deu um beijo na testa de Murtagh, e o toque dos lábios ardeu muito depois de
eles se afastarem.
Silna o deixou piscando para conter as lágrimas. Quando se controlou o
suficiente para erguer o olhar, Murtagh a viu deitada perto da lareira, novamente na
forma felina, de olhos fechados e rabo enrolado nas patas e no focinho.
Suas pernas estavam instáveis quando ele se levantou. Murtagh olhou para
Carabel e tentou falar, mas não conseguiu.
Pela primeira vez, a expressão de Carabel se suavizou e a voz soou rouca de
emoção.
— Eu fui sincera, Cavaleiro. Estou em dívida com você, assim como todo o
povo-gato. Você pode se considerar um amigo de nossa espécie e, se precisar de
ajuda, pode nos procurar.
Ele concordou com a cabeça e engoliu o nó na garganta.
— Fico feliz em ter podido ajudar. — Murtagh se empertigou e fez uma
reverência cortês. — Meus agradecimentos por suas respostas, Carabel. Que suas
garras permaneçam afiadas, ó mais estimável dos gatos.
Ela mostrou os dentes em um sorriso apreciativo.
— Cuidado onde pisa, Cavaleiro. Esta bruxa é como uma aranha à espreita no
centro de uma grande teia, e sua mordida é venenosa.
— Que bom que eu não tenho medo de aranhas.

Murtagh endireitou o corpo ao sair do túnel que passava por baixo da muralha da
fortaleza. Ele virou o pescoço e verificou a posição do sol: continuava baixo no céu.
Ainda deveria ser capaz de sair de Gil’ead antes que a maior parte da cidade
estivesse de pé.
Murtagh esfregou a testa. Parecia que havia sido marcado. A memória dos olhos
de Silna permaneceu na sua mente, e ele sentia como se ela tivesse enxergado seu
interior, cada defeito exposto diante do olhar inocente da menina-gato. Era uma
intimidade que só havia compartilhado com Thorn, e o deixara com uma estranha
sensação de vulnerabilidade. Ainda assim, ser visto pelo que era, e aceito... havia
maior bênção que essa?
Preocupado, Murtagh começou a se afastar da fortaleza. Estou a caminho,
pensou, enviando a mensagem para onde Thorn estava esperando. Uma tênue
sensação de compreensão foi a resposta.
Enquanto andava silenciosamente entre os prédios, repassava tudo que Carabel
havia dito. Bachel, Wren, os Ra’zac... O mundo estava bagunçado, e de maneiras
que ele não compreendia. Esse fato o deixava tenso, como se estivesse prestes a
receber um golpe.
Os olhos de Silna voltaram a preencher a cabeça de Murtagh, calmos e cheios de
promessas. E de novo ele sentiu seu beijo na testa.
Parou em uma calçada, toda a pele formigando. Com pensamentos acelerados,
ele tentou solucionar o quebra-cabeça diante de si, encontrar um caminho seguro
por um labirinto perigoso. Será que se enganara? Era preciso cuidar de Bachel, sim,
mas Nasuada corria perigo e sua carta não bastaria para protegê-la.
Ele abriu a bolsa de cinto e remexeu ali dentro até tocar o metal frio: as moedas
que recebera do Capitão Wren. Pegou uma delas e encarou o perfil entalhado de
Nasuada.
Por mais precisa que fosse a semelhança, ele não conseguia decifrar sua
expressão. Ela usava a própria máscara, a impassividade régia que a tradição — e a
necessidade — exigia. Murtagh não encontrou encorajamento naqueles traços
dourados, mas mesmo assim a familiaridade ajudou a acalmá-lo.
Tomou uma decisão. Iria a Ilirea. Apesar de tudo que pensara e dissera, ainda era
a coisa certa a fazer. Explicaria suas ações para Nasuada e enfrentaria qualquer
desafio vindo de seus súditos. Por mais difícil que fosse, ele teria a satisfação de
saber que Nasuada estava em segurança. Depois disso, ele e Thorn sairiam à caça
de Bachel.
A decisão lhe trouxe um senso de alívio. Tanto que Murtagh se questionou por
que levara tanto tempo para chegar àquela conclusão. Assentiu, guardou a moeda e
estufou o peito, sentindo-se pronto para encarar os desafios do futuro incerto.
Será que Thorn concordaria? Murtagh tinha certeza de que sim, quando
compartilhasse seus pensamentos com o dragão. A menos, claro...
Um corpo colidiu com ele, que empurrou a pessoa para longe, pronto para chutar,
socar e lutar.
— Murtagh! — exclamou uma voz baixa e urgente.
A consternação tomou conta dele ao ver o mesmo rosto desagradável e familiar
que vislumbrara perto da cidadela, menos de dois dias atrás: o pálido Lyreth em
seus trajes sem graça. E cercando os dois estavam os guardas de Lyreth: seis
homens corpulentos com pescoços de touro e um leve cheiro de carne podre. Ex-
soldados do Império, enfeitiçados para não sentir dor.
— Murtagh, é você — disse Lyreth com a voz pouco mais alta que um sussurro.
Murtagh cerrou os dentes. O sobressalto de Thorn era uma nota crescente de
ansiedade no fundo da mente. Ele pensou em sair correndo, mas havia outras
pessoas na rua, e ele viu um esquadrão de soldados a duas casas de distância,
marchando em direção a eles.
Lyreth se aproximou com os olhos se movendo rapidamente, o branco
aparecendo com uma combinação de medo e preocupação.
— Pensei ter visto você alguns dias atrás, mas não tinha certeza. O que está
fazendo aqui? Não sabe o que eles farão com você se o pegarem?
— Eu preciso ir — disse Murtagh, e começou a se afastar.
Lyreth o segurou pela manga com uma força surpreendente. O hálito cheirava a
lavanda e licor de pêssego, mas não o suficiente para esconder o cheiro forte de
suor nervoso debaixo dos braços.
— Você não pode ficar aqui fora. Os mágicos da Du Vrangr Gata estão por toda
parte e há elfos na cidade. Elfos! Venha, venha, rápido. Você estará seguro em
minha casa. Rápido!
Murtagh!, rosnou Thorn.
Eu sei!
Os guardas cercaram Murtagh, impedindo que se afastasse enquanto Lyreth o
puxava rua acima. Ele não teve escolha a não ser seguir os companheiros
inesperados e indesejados.
CAPÍTULO XIV

Duelo de inteligências

M urtagh prestou muita atenção às ruas enquanto Lyreth o conduzia às pressas


pela cidade. Se tivesse que correr, queria saber exatamente onde estava.
O homem o levou a uma pequena casa de pedra — uma das poucas estruturas
totalmente desse tipo em Gil’ead — escondida no canto de uma praça cercada por
habitações estreitas de madeira, construídas coladas umas às outras. A praça era de
terra e na parte central havia um bebedouro para cavalos. O lugar inteiro parecia
escuro, abrigado e um tanto decrépito, e a única outra criatura viva visível era um
galo enlameado bicando a lama seca em frente ao que parecia ser a loja de um
fabricante de velas.
Lyreth usou uma chave de ferro para destrancar a porta da frente e acenou para
que Murtagh entrasse.
— Rápido, rápido.
Cauteloso — e um tanto curioso —, Murtagh entrou. Por mais perigosa que fosse
a situação, o desejo de saber era mais forte do que o senso de autopreservação.
Como estavam sobrevivendo os ex-integrantes da nobreza de Galbatorix? Em
circunstâncias diferentes, Murtagh sabia que seria ele se escondendo como um
coelho tentando escapar de um falcão faminto.
O interior do edifício não correspondia à aparência externa miserável. Luxuosos
tapetes feitos por anões cobriam o chão de ladrilhos. Uma escada de mármore com
balaustradas entalhadas conduzia ao segundo andar. Havia retratos com iluminação
dramática pendurados nas paredes — todos detalhados e realistas demais para terem
sido criados sem a ajuda de magia. Um candelabro de ouro e prata pendia do teto
com vigas de madeira, e pedras preciosas pendiam do lustre em um arco-íris de
lágrimas.
— Por aqui — disse Lyreth, que conduziu Murtagh pela entrada até uma sala de
jantar de tamanho modesto, mas lindamente decorada.
Tapeçarias de seda retratando batalhas entre dragões, elfos e humanos decoravam
as paredes, e os castiçais na longa mesa central eram feitos de ouro maciço.
— Por favor, fique à vontade. — Lyreth apontou para a cadeira de espaldar de
veludo em uma das extremidades da mesa.
Murtagh contou treze cadeiras ao redor da mesa, incluindo a própria. O número
gerou um calafrio de compreensão. Ele apoiou o saco de dormir sobre a mesa, ao
alcance. Então recolheu a capa e se sentou.
— Que lugar é este? — perguntou, embora suspeitasse da resposta.
— Um lugar seguro — respondeu Lyreth, sentando-se.
Ele gesticulou para os guardas, e dois deles se posicionaram na entrada enquanto
os outros saíram da sala em fila.
— Formora mandou construí-lo como um santuário de Galbatorix, caso surgisse
a necessidade. Além disso... — ele indicou as cadeiras — … como um local onde
os Renegados pudessem se encontrar em particular, longe dos olhares curiosos do
rei.
Formora. Ela fora uma elfa e uma das favoritas de Galbatorix entre os
Renegados. Segundo diziam, era astuta, cruel e caprichosa ao extremo, mesmo para
os padrões de seus companheiros traidores. Murtagh se lembrou de lorde Varis
contando que, quando provocada, o hábito dela era despedaçar os inimigos com
magia, parte por parte... mantendo-os vivos pelo maior tempo possível. Isso, e que
ela adorava frutas cristalizadas.
Ele deu uma olhada na sala. Já tinha ouvido falar de lugares assim antes.
Esconderijos secretos onde os Renegados poderiam se proteger, se não do rei, pelo
menos dos seus outros servos. Os seguidores de Galbatorix — querendo ou não —
não eram conhecidos pela natureza cooperativa, e o rei havia encorajado suas
traições e maquinações sangrentas com uma alegria muitas vezes indisfarçável. As
paredes da casa deviam estar repletas de proteções mágicas poderosas, e mais do
que isso: armadilhas que excederiam em muito a força e a complexidade das
encontradas nas catacumbas. Toda a estrutura devia estar crivada de gemas
carregadas.
— E alguma vez eles estiveram livres do olhar de Galbatorix? — perguntou
Murtagh.
Lyreth deu de ombros.
— Algum de nós esteve?
Ele estalou os dedos e um criado em um casaco de lã elegante entrou correndo na
sala, com os saltos engraxados batendo em um ritmo preciso no chão duro. O
homem colocou uma bandeja de prata sobre a mesa e descarregou uma garrafa de
cristal lapidado, uma garrafa de vinho, duas taças de ouro e uma bandeja com
iguarias variadas: doces, gelatina de carne com frutas cristalizadas, tortinhas de
amoras e, ao que pareceu a Murtagh, bolinhos com cobertura de mel.
Ele salivou. Fazia quase dois anos que não provava nada que parecesse comida
boa de verdade, e de repente se sentiu nostálgico pelos sabores da infância.
O criado serviu o vinho e levou até Murtagh uma das taças, bem como a bandeja
de iguarias para que ele pudesse fazer a própria seleção.
Murtagh pegou um pouco da gelatina de carne, uma torta de amora e dois
bolinhos com cobertura de mel. Em seguida, o criado atendeu Lyreth, que
selecionou um doce e nada mais.
— Pode ir — disse Lyreth, e o criado fez uma reverência e saiu da sala.
O bolinho com cobertura de mel estava a meio caminho da boca de Murtagh
quando pensamentos a respeito de veneno e feitiços detiveram sua mão. Lyreth
notou e, em tom casual, disse:
— A comida é segura, se está se perguntando. O vinho também. — E deu a
Murtagh um sorriso torto antes de tomar um gole da própria taça.
Murtagh refletiu por um momento e depois enfiou na boca o bolinho, que
derreteu com um deleite doce e amanteigado. Ele lutou para que seu prazer não
transparecesse.
— Minha família adquiriu este lugar há alguns anos — contou Lyreth,
mordiscando o doce no prato. — Nós o mantivemos como uma salvaguarda contra
exatamente esse tipo de eventualidade.
— Hum.
Murtagh provou o vinho e reconheceu a safra. Um tinto cultivado nas vinhas do
sul, perto de Aroughs, engarrafado há cerca de cinquenta anos. Ele duvidava que
restassem mais do que algumas dezenas de garrafas no reino.
— Você me honra — disse ele, levantando a taça.
Lyreth deu de ombros.
— De que adianta acumular bons vinhos nestes tempos difíceis? Podemos estar
todos mortos amanhã.
— Tem razão.
Murtagh tomou outro gole controlado enquanto estudava Lyreth. O homem
parecia estar sob estresse considerável (o que era compreensível). Estava mais
magro do que Murtagh se lembrava, e a pele tinha a palidez doentia de um inválido
confinado à cama. Vê-lo em tal estado gerou um pouco de satisfação em Murtagh,
embora, apesar de tudo, simpatizasse com Lyreth e com as dificuldades que devia
ter enfrentado desde a queda de Galbatorix. Não devia ser fácil viver todos os dias
com medo de ser pego.
— Você cheira a peixe — disse Lyreth abruptamente.
— É difícil tomar banho na estrada.
— Você foi responsável por matar Boca de Lodo? Meus guardas só falam disso
desde ontem. Achei que poderia ter sido você.
Murtagh brincou com a haste da taça enquanto pensava em como responder. A
conversa era um duelo por informações, e ambos sabiam disso, mas a realidade
implícita era que Lyreth não tinha poder sobre ele. Se Murtagh quisesse sair ou
atacar, havia pouca coisa que o outro homem pudesse fazer a respeito.
— Talvez eu tenha desempenhado um papel na questão.
Lyreth emitiu um som de indiferença.
— Conseguiu agitar o campesinato local. Eles parecem pensar que o próprio
Eragon está vagando pela terra, curando seus males.
— Quem dera.
Diante disso, Lyreth fez uma careta e tomou um grande gole do vinho.
— Cavaleiro maldito.
Murtagh sentiu a preocupação constante de Thorn. Calma, disse ele ao dragão.
Sei como lidar com ele.
E era verdade. Murtagh tivera muitas oportunidades de estudar Lyreth e o grupo
de filhos mais velhos com quem ele andava na corte. Até o fim, eles foram
arrogantes, cruéis, excessivamente confiantes e, ainda assim, inseguros. Não havia
segurança em volta de Galbatorix, e os pais desses garotos todos nasceram com
poder e influência, ou então os adquiriram por meio de astúcia e selvageria. Nada
disso gerou bondade em suas proles. Murtagh sempre tinha sido o pária da geração
deles, o único filho conhecido dos Renegados, ignorado por Galbatorix durante a
infância e, ainda assim, conhecido por ser favorecido pelo rei; preparado para o
poder e impotente, vendo a propriedade de seu pai sob controle do rei até que
Murtagh atingisse a maioridade. Acrescentando a isso a própria desconfiança e
inexperiência quando se tratava de navegar pelas correntes traiçoeiras do poder, ele
havia sido tanto um objeto de medo quanto uma figura de escárnio que os meninos
maltratavam da maneira que conseguissem. Somente quando Tornac o colocou sob
sua proteção foi que Murtagh começou a aprender como se defender, de várias
maneiras.
Ele comeu uma colher de gelatina de carne. De Lyreth, não tinha boas
lembranças. Duas experiências permaneciam na mente de Murtagh como
emblemáticas. A primeira foi quando Lyreth e vários outros garotos partiram para
roubar cerejas do jardim particular de lorde Barst na cidadela de Urû’baen. Murtagh
foi junto, desejando fazer parte do grupo. Eles mal tinham começado a colher as
cerejas quando um dos homens de Barst os encontrou e os deteve na ponta de uma
lança. Todos, exceto Lyreth, que conseguiu escapar, apenas para retornar alguns
minutos depois, conduzindo lorde Barst e denunciando em voz alta o mau
comportamento dos outros meninos.
Apesar da linhagem nobre dos garotos, Barst começou a espancá-los. Mas
poupou Lyreth, o que rendeu ao jovem nobre o ódio sem fim dos outros meninos,
apesar de a maioria deles ser astuta o suficiente para esconder os verdadeiros
sentimentos, pois a família de Lyreth era muito rica e bem relacionada para que os
garotos se opusessem a ele.
O segundo incidente ocorreu no aniversário de quinze anos de Murtagh.
Ninguém, exceto Tornac, pareceu notar a importância do dia, mas a notícia devia ter
se espalhado na corte, provavelmente através dos pajens, refletiu ele. Como explicar
que, naquele exato dia, quando Murtagh subia a estreita escada em espiral que
levava a seus aposentos, um grupo de garotos o tenha emboscado e espancado,
deixando-o machucado e sangrando nos degraus de pedra pontiaguda?
Os agressores usavam máscaras de festa comuns na corte, mas Murtagh os
reconheceu mesmo assim. E, enquanto levava chutes e socos, ouviu uma voz meio
familiar gritar “É isso aí! Pega! Derruba!”. Era a voz de Lyreth.
Nenhum dos garotos jamais admitiu ter participado. Continuaram a tratá-lo da
mesma forma na cidadela, e o único indício de reconhecimento foram vários
comentários sarcásticos feitos quando Murtagh surgiu mancando no dia seguinte.
— Ah! O que aconteceu? Um cavalo pisou no seu pé? Murtagh Manco! Rá!
Murtagh nunca esqueceu. Nem perdoou.
Ele olhou ao redor da sala de jantar bem decorada. Apesar dos ricos detalhes da
casa, imaginou que Lyreth achava o lugar confinado e desconfortável. Para alguém
que crescera na cidadela de Urû’baen e nas grandes propriedades de lorde Thaven,
morar em uma casa tão pequena seria como estar trancado em um armário.
Ele deve estar enlouquecendo preso aqui, pensou Murtagh.
— Como está seu pai? — perguntou. O que ele não disse foi “Thaven ainda está
vivo?”.
O rosto de Lyreth permaneceu inexpressivo.
— Tão bem quanto se poderia esperar.
— Claro. Tempos difíceis.
Lyreth demonstrou aborrecimento através de uma contração. Bom. Quanto mais o
homem fosse provocado, mais deixaria escapar algo que não deveria.
— O Império não poderia durar para sempre — comentou Murtagh. — Em
algum momento, Galbatorix estava fadado a cair. Era inevitável.
— Talvez — disse Lyreth com amargura indisfarçável. — Mas não precisava
acontecer durante nossas vidas.
— Não, mas não cabe a nós decidir isso, não é?
Lyreth abriu a boca, fechou, depois tornou a abrir.
— Você estava lá? No final? Quando... ele morreu?
— Estava — respondeu Murtagh.
O olhar do homem se voltou para ele por baixo das pálpebras pálidas. Os olhos
eram azul-acinzentados, como nuvens tempestuosas distantes.
— Como foi? Já ouvi relatos conflitantes.
— Com bondade.
— Você está zombando de mim.
— De jeito nenhum.
A testa de Lyreth se franziu levemente.
— Ele? Bondade? Isso é ridí...
— Você nunca foi o mais inteligente — disse Murtagh em tom desinteressado. —
Astuto, tenho que admitir. Determinado, até. Mas não muito inteligente.
Lyreth inalou pelas narinas franzidas.
— Guarde seus segredos, então. Descobrirei a verdade de qualquer maneira.
Tenha a bondade de me dizer uma coisa, pelo menos. Como você e aquele seu
dragão escaparam de Urû’baen? Tanto Eragon quanto Arya estavam lá, eu sei. Eles
devem ter tentado impedi-lo.
— Espera mesmo que eu explique? — perguntou Murtagh. — Ajudaria saber os
feitiços que usei? Ou os perigos que enfrentamos? Isso importa? Basta dizer que
escapamos e não foi sem risco.
A verdade, claro, não era nada tão dramática. Ele e Thorn simplesmente... foram
embora. Os dois haviam desempenhado um papel na derrubada de Galbatorix —
Eragon nunca teria sido capaz de usar magia contra o rei se Murtagh não tivesse
usado o Nome dos Nomes para quebrar os feitiços de Galbatorix — e, depois disso,
nem Eragon nem Murtagh tiveram estômago para continuar lutando.
Não pela primeira vez, Murtagh refletiu a respeito do fato de que, se estivesse no
lugar de Eragon, não teria pensado em usar empatia contra Galbatorix. Não era de
sua natureza. Talvez isso fosse uma falha — Murtagh estava disposto a admitir que
era —, mas não achava que a falta de caridade em relação a Galbatorix fosse errada,
não considerando o que o rei havia feito com ele e com Thorn.
Colocou a tortinha na boca e mastigou, apreciando os sabores de mirtilos e
amoras-pretas misturados.
Lyreth se remexeu na cadeira, como se estivesse sendo picado por carrapichos
nas pernas.
— E desde então? O que tem feito, Murtagh? Histórias malucas chegaram aos
meus ouvidos. Contos de um dragão vermelho visto aqui ou ali. Sussurros de magia
que apenas um Cavaleiro ou um elfo seriam capazes de conjurar.
Com o guardanapo elegante de linho que estava ao lado do prato, Murtagh
limpou os cantos da boca e tirou migalhas da barba por fazer. Precisava se barbear
novamente.
— Thorn e eu viajamos pelo reino, vendo o que há para ver. E você e sua família,
Lyreth? Como têm passado desde a queda de Galbatorix?
— Muito bem — murmurou Lyreth.
— Sem dúvida. Mas por quanto tempo consegue continuar vivendo escondido?
Alguém vai acabar percebendo quem você é. Seria melhor se render agora e se
entregar à misericórdia da rainha. Ela mostra misericórdia de vez em quando, ou
pelo menos foi o que me disseram.
— Não me fale daquela impostora arrogante. Ela é uma plebeia, sem uma gota de
sangue nobre nas veias, não vem de nenhuma das famílias convencionais nem das
antigas linhagens dos Broddrings.
— Aqueles que conquistam, governam — disse Murtagh calmamente. — Sempre
foi assim. Você se esqueceu da história, se pensa o contrário.
— Não me esqueci de nada. — Um brilho febril apareceu nos olhos até então
insípidos de Lyreth. — Mas você está certo, Murtagh. O estado atual das coisas não
pode continuar. Minha família não é a única que está se escondendo. Vários dos
nobres mais poderosos, homens e mulheres cujos nomes você reconheceria, estão
aguardando o momento certo, consolidando suas posições para quando chegar a
hora.
— Chegar a hora de quê?
Lyreth se inclinou para a frente, repentinamente animado.
— O que você está fazendo aqui, Murtagh? Boca de Lodo está morto. Toda
Gil’ead está em comoção. O que é? Está reunindo soldados? Matando os tenentes
de Nasuada? O quê?
— Você se tornou óbvio, Lyreth — disse Murtagh em um tom preguiçoso. —
Não teria durado uma semana na corte desse jeito.
— Rá. — Lyreth acenou com a mão e afundou na cadeira. — Os eventos estão
acontecendo e a franqueza é necessária, mas se você for cauteloso demais para agir,
o prêmio passará para outra pessoa... Você poderia assumir o trono, Murtagh. Sabe
disso, não é? E todas as grandes famílias se uniriam ao seu estandarte. Quer dizer,
aqueles de nós que ainda têm algum prestígio. Hamlin e Tharos eram tolos. Eles
não conseguiram esperar, não conseguiram reunir o exército de que precisavam...
Suas rebeliões fracassaram e Hamlin acabou com a cabeça em uma estaca fora
dessas mesmas muralhas. Tharos passará o resto da vida nas masmorras de
Nasuada. A menos que...
Murtagh inclinou a cabeça. Nada daquilo o surpreendia, embora as implicações
estivessem longe de ser agradáveis.
— Você está mesmo ansioso para voltar aos dias de Galbatorix, Lyreth? Gostaria
de me ver superior a você, para governar eternamente, imortal e imutável? Esse é o
seu desejo?
— Seria melhor do que o que temos agora!
Quer dizer, isso o livraria de se esconder e mais uma vez colocaria sua família
em uma posição de poder.
Uma expressão astuta se formou no rosto de Lyreth.
— Além disso, pense nas vantagens para você, Murtagh. Sei que sempre se
irritou com as restrições de Galbatorix. Se a coroa fosse sua, poderia governar como
bem entendesse, com nossos homens e ouro como seu baluarte. E seria bom para a
nossa espécie. Nasuada não conseguiria se defender contra Arya. Uma Cavaleira de
Dragão como rainha dos elfos... Quem já ouviu tal absurdo? Eragon também é uma
ameaça. Ele está montando uma força de Cavaleiros no leste. Assim que crescerem
e estiverem treinados, quem poderá oferecer resistência a Eragon? Só você,
Murtagh. E eu sei que vocês dois não se toleram.
A presunção de intimidade irritou Murtagh.
— Ah, você sabe, não é?
— Eu sei que é verdade. Ora, Murtagh. O que me diz? Todo o Império pode ser
seu. E muito mais. Galbatorix nunca deveria ter tolerado a existência de Surda.
Você poderia destruí-los e unir esta terra de uma forma que nunca foi feita antes.
Toda a humanidade reunida sob um único estandarte. Aí os elfos podem nos temer,
e os anões também.
O vinho e as iguarias já não caíam tão bem no estômago de Murtagh. O futuro
que Lyreth descrevia era mais tentador do que Murtagh queria admitir. Se ele
reivindicasse o trono, poucos conseguiriam desafiá-lo ou a Thorn, e nem Eragon
nem Arya estariam dispostos a mergulhar o reino novamente na guerra. Eles
tolerariam a existência de Murtagh e, com o tempo, talvez passassem a respeitar sua
autoridade. De uma tacada só, Murtagh poderia restaurar a glória do nome de sua
família e garantir poder para proteger Thorn e a si mesmo contra todos, exceto os
inimigos mais perigosos.
Mas, para progredir assim, ele teria que depor Nasuada, e o destino dela a partir
de então só poderia ser o exílio, a prisão ou a morte. E isso Murtagh não toleraria.
Então eu seria mesmo conhecido como um traidor, pensou. Não apenas para o
povo, mas para a única pessoa, além de Thorn, que confiava nele. Nasuada foi a
razão pela qual ele conseguiu se libertar da dominação e ajudar na queda de
Galbatorix. Para então agir contra ela... Não. Era impensável.
Ele deixou a ideia de lado e não sentiu nenhum arrependimento.
Lyreth se remexeu, aparentemente nervoso enquanto esperava.
Em vez de responder diretamente, Murtagh decidiu desequilibrá-lo, dar um passo
para o lado quando Lyreth esperava um passo à frente. Da bolsa pendurada ao cinto,
ele tirou o amuleto de caveira de pássaro que encontrou em Ceunon. Colocou o
objeto sobre a mesa e empurrou para a outra ponta.
— Você já viu um desses antes?
Lyreth pegou o amuleto com o dedo indicador e o polegar e o segurou
balançando diante de si, assim como Carabel havia feito. Ele não demonstrou
nenhuma reação além de uma leve curiosidade, mas Murtagh se perguntou se,
talvez, não havia o lampejo de alguma emoção nos olhos do homem. Por um
momento, pensou em tocar a mente de Lyreth, mas não havia como essa ação ser
interpretada como outra coisa senão um ataque. Em todo caso, como acontecia com
todos os filhos da nobreza, Lyreth fora criado com treinamento extensivo para
proteger os pensamentos de bisbilhoteiros ou intrusos. Murtagh não tinha sucesso
garantido, a menos que estivesse disposto a quebrar a mente de Lyreth.
Pode valer a pena, pensou. Lyreth e a família dele representavam uma grande
ameaça para Nasuada e para a estabilidade do reino dela. Se Murtagh pudesse fazer
algo a respeito...
Ele umedeceu os lábios, e os músculos se contraíram em antecipação à ação.
Com algumas palavras rápidas e uma enxurrada de violência mental, Murtagh teria
controle total sobre todos na casa.
Ele sabe disso. Murtagh fez uma pausa repentina diante do pensamento. Por que
Lyreth estava disposto a correr um risco tão grande?
O nobre deixou o amuleto cair sobre a mesa.
— Que coisa mais bárbara. Não posso dizer que já vi, o que me deixa feliz... Mas
você ainda não me respondeu, Murtagh. Ora, vamos, o que vai ser? A coroa ou uma
vida inteira se escondendo nas sombras até que os mágicos de estimação da rainha
cacem e capturem você como um cão raivoso?
Murtagh deu um sorrisinho enquanto rolava o vinho na taça, estudando o próprio
reflexo distorcido.
— Nenhum dos dois — respondeu, enquanto se concentrava para atacar.
Murtagh ergueu o olhar para encontrar os olhos tempestuosos de Lyreth.
— Eu ando sozinho hoje em dia, Lyreth. Thorn e eu não nos explicamos a
nenhum homem e não vamos dever nada a ninguém, muito menos à sua família.
Mas vou descobrir a verdade a respeito do que você está planejando.
A expressão de Lyreth não mudou, como se Murtagh tivesse feito apenas um
comentário trivial a respeito do tempo.
— Você nunca soube o seu lugar — retrucou ele.
Uma coceira forte ardeu na palma da mão de Murtagh.
Ele abriu a boca...
O dedo de Lyreth pressionou a borda da mesa.
Clank! O chão caiu abaixo de Murtagh, a sala girou como um cata-vento, e o
estômago dele revirou enquanto ele despencava em uma escuridão ofuscante.
CAPÍTULO XV

A caixa de confusão

U m instante de vazio, escuro e disforme, um barulho metálico e…


… uma colisão estrondosa quando os calcanhares bateram no metal e os joelhos
se dobraram.
Murtagh teria caído de quatro. Ele estava caindo, mas um aríete pareceu atingi-lo
de frente para trás e de um lado para o outro, prendendo-o no lugar e o mantendo de
pé.
O impacto expulsou o ar dos pulmões, e ele sentiu um súbito esgotamento
causado pelas proteções mágicas. Tentou inspirar, mas o peso esmagador que o
pressionava por todos os lados tornava isso impossível.
Aí o ar ao redor dele desapareceu, e os últimos resquícios de fôlego que sobraram
em seus pulmões subiram pela garganta e saíram pela boca e pelo nariz.
Ele ficou boquiaberto como um peixe atordoado.
Um lamento alto — capaz de provocar lágrimas e fazer os dentes tremerem —
soou dentro do crânio de Murtagh, tão alto e penetrante que dificultava até o
pensamento.

O tempo pareceu desacelerar.


Os pulmões de Murtagh queimavam. As veias latejavam. A pele estava inchada,
como uma bexiga cheia demais. Estrelas carmesins manchavam a visão periférica.
E o som estridente sempre presente perturbava a capacidade de concentração.
Ele tinha segundos para agir, se tanto. Não conseguia falar, e manter a língua
antiga na mente era impossível.
Então, ele fez a única coisa que podia.
Murtagh conjurou um feitiço sem uma palavra para guiar a magia. Apenas a
intenção compelia a descarga de energia, e essa intenção continha e incorporava um
único sentimento: Pare!
A energia para o feitiço foi gasta em um instante. O som estridente parou e reinou
um silêncio abençoado. Mas nenhum ar retornou. Seus pulmões ainda estavam
vazios, e as veias continuavam queimando. Murtagh estava prestes a desmaiar.
Só conseguia enxergar escuridão, mas sabia onde estava: dentro de uma caixa de
confusão. Uma armadilha para mágicos, projetada para impedi-los de falar ou
pensar, projetada para sufocá-los de modo que que pudessem ser eliminados com
segurança.
Ele tentou reunir forças para um segundo feitiço. Se conseguisse quebrar as
paredes da caixa de confusão, poderia deixar entrar o ar, o ar precioso, e, se
respirasse, teria uma chance.
Mas Murtagh não conseguia se concentrar o suficiente para conjurar magia
novamente. A barreira de painéis de vidro dentro da mente era forte demais para ele
alcançar o fluxo de energia do outro lado, e o túnel carmesim que estreitava a visão
quase se fechou.
É assim que vou morrer? ASSIM? O pensamento era enfurecedor, mas, ao mesmo
tempo, havia uma sensação de aceitação quando a consciência o abandonou...

Uma colisão estrondosa soou acima. Uma vibração semelhante a um terremoto


sacudiu o metal sob os pés de Murtagh, e o tremor passou subindo por suas pernas e
seu peito, fez seus dentes baterem e o despertou de volta à consciência.
Pedra se rachou, metal se rasgou, e uma rajada de vento frio tocou o rosto de
Murtagh.
Os pulmões se encheram de ar fresco, e ele se engasgou como um homem se
afogando.
A luz intensa do dia apareceu no céu e dissipou a escuridão. Ele olhou para cima,
tossindo, piscando, com lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos.
Através de pétalas de aço rasgado, Murtagh viu Thorn se abaixando em sua
direção, com as escamas cobertas por pó de giz e as mandíbulas longas e pesadas
abertas, mostrando fileiras de dentes ensanguentados.
Acima do dragão, o céu era azul-claro e sem nuvens. Vigas quebradas do teto se
intrometiam na vastidão brilhante.
Thorn estendeu uma das patas e tirou Murtagh da pilha de cascalho lamacento
que o havia imobilizado. Seixos caíram como granizo quando o dragão o ergueu de
volta à sala de jantar.
O peito de Murtagh arfava enquanto ele lutava para respirar. A mente de Thorn
abraçava a dele, os pensamentos do dragão afiados com raiva, medo, preocupação e
um pânico mal contido. Ainda assim, sua presença era reconfortante, e, apesar da
situação, Murtagh começou a achar que ia sobreviver.
O dragão abriu a pata e depositou Murtagh no chão coberto de escombros, antes
de cutucá-lo nas costelas. Está machucado? Me fale. Me fale! Tente respirar!
— Estou... — Murtagh arfou. — Estou... tentando.
Seus pulmões ainda ardiam enquanto se esforçava para ficar de joelhos, ainda
esperando um ataque.
Não havia sinal de Lyreth na sala. A bela mesa de madeira estava despedaçada
sob o peso de Thorn, e as tapeçarias de seda pendiam em farrapos. Junto à porta da
sala jaziam três dos guardas com pescoço de touro, caídos e manchados de sangue,
com braços e pernas retorcidos em ângulos anormais.
Thorn voltou a cutucá-lo, seus olhos arregalados e transtornados, e ele estava
ofegante, não apenas pelo esforço. Murtagh quase sentia o gosto de sua agitação
nervosa.
Olhando ao redor, se deu conta de como a casa era pequena por dentro. As asas
de Thorn raspavam as paredes, que pareciam se inclinar de modo ameaçador, e
vigas despontavam acima, como galhos partidos contra um céu morto.
Uma nova onda de susto o fez ficar de pé. Acariciou de leve o focinho de Thorn e
procurou ao redor pelo saco de dormir. Parte dele despontava de baixo da mesa
arruinada. Ele o pegou e começou a avançar para o flanco do dragão, querendo
montar em suas costas.
Do lado de fora da casa destruída, ouviam gritos, trompas soando alto e o barulho
metálico de armas e armaduras conforme os soldados entravam correndo.
Maldição!
— Temos que...
Uma parte do telhado caiu para dentro e desabou nas costas de Thorn com um
barulho empoeirado e ensurdecedor.
Thorn rugiu, e Murtagh tanto ouviu quanto sentiu o surto de pânico irracional do
dragão.
— Não, espere! Está tudo...
O dragão carmesim empinou e tentou abrir as asas, mas foi bloqueado pelas
paredes da casa. E com isso ele perdeu o controle. Thorn se debateu como uma
grande cobra, e a estrutura do prédio balançou e estremeceu, vigas caíram, paredes
desabaram e uma nuvem espessa de poeira escureceu o ar.
Murtagh se agachou e cobriu a cabeça com o saco de dormir enquanto a casa
desabava em volta dos dois. Ele tentou se unir à mente de Thorn, mas o dragão
tinha mergulhado demais no próprio medo. Murtagh não conseguia alcançá-lo, não
conseguia acalmá-lo ou argumentar com ele.
As proteções mágicas de Murtagh desviaram um bloco de madeira que o teria
esmagado, e ele arfou com a perda repentina de energia. Zar’roc. Precisava da
espada, da energia armazenada no rubi incrustado no pomo.
Seguiu-se um momento de silêncio. Diante dele, Murtagh viu montes de vigas e
escombros cobertos com uma camada grossa de poeira cinzenta. A casa não existia
mais e, fora do limite da construção, silhuetas sombrias de homens se moviam por
trás das cortinas de névoa obscura.
FLAP.
Uma batida das asas de Thorn soprou nuvens de poeira espiralantes e limpou a
área ao redor de Murtagh. Ele ergueu a cabeça.
Um grupo de soldados em movimento cercava a praça, os rostos brancos de
medo, ódio e poeira. Suas lanças estavam apontadas para Thorn — como se suas
armas servissem de alguma coisa contra um dragão —, e os homens amaldiçoavam
os dois e gritavam insultos e provocações. Saraivadas de flechas passaram entre os
prédios, desenhando um arco no céu e assobiando sua canção mortal.
— Thrysta! — gritou Murtagh, e as flechas se despedaçaram no ar e caíram
inofensivas nas ruas.
Thorn rugiu novamente, e os homens recuaram. Desesperado, Murtagh tentou
penetrar na mente do dragão, mas foi como bater a cabeça em uma parede de pedra
bruta. O medo o governava, e nenhuma outra emoção era forte o suficiente para se
intrometer ou anulá-lo. Naquele momento, Thorn era uma fera irracional, e Murtagh
não sabia como ajudá-lo.
Thorn girou e balançou o rabo no ar, atingindo as casas próximas. O peso da
cauda e a força do movimento quebraram os prédios, romperam o madeiramento
como gravetos secos e derrubaram portas, persianas, telhas e paredes inteiras.
Murtagh correu até Thorn.
— Pa...
O dragão se virou e colocou uma pata sobre Murtagh. O peso empurrou o
Cavaleiro na direção do chão, e as garras de Thorn se fecharam ao redor dele. Um
puxão forte fez o pescoço de Murtagh ir para a frente e para trás quando Thorn
soltou um urro sobrenatural e saltou no ar.
Murtagh lutou para se mover e para enxergar, mas a jaula formada pelas garras de
Thorn era imóvel, inquebrável.
Thorn rugiu novamente. Embaixo deles, Murtagh vislumbrou os soldados
fugindo pelas ruas e pensou ter visto o rosto de Esvar no meio da multidão, a
expressão do jovem de cabelos louros cheia de medo e acusação. Mais perto da
fortaleza, ele avistou duas figuras vestidas com os mantos escuros da Du Vrangr
Gata e também um trio de elfos parados na esquina de um prédio, com o ar
brilhando entre as mãos enquanto entoavam o que ele sabia ser a língua antiga.
Não!
Mais flechas voaram na direção dos dois, e um enorme jato de chamas saiu da
boca de Thorn. Mesmo dentro da pata do dragão, Murtagh conseguiu sentir ondas
de calor escaldante emanando da torrente flamejante.
As flechas ficaram incandescentes em tons de branco-avermelhado e amarelo,
então desapareceram como faíscas em uma fogueira.
Com outro rugido, Thorn banhou os edifícios lá embaixo em uma corrente de
fogo líquido. Labaredas amarelas cresciam nos telhados, e o rugido do fogo abafava
um coro de gritos e berros.
Murtagh também gritava, mas Thorn não prestava atenção.
Eles cruzaram a cidade voando, e Thorn deixou um rastro de destruição ardente.
Algum tipo de feitiço fez com que o ar em volta dos dois ficasse frio e rarefeito,
mas qualquer que tivesse sido o resultado pretendido do encantamento, os efeitos
logo desapareceram e Thorn seguiu em frente.
Eles passaram pelos limites de Gil’ead, e Thorn subiu para o céu com uma
velocidade desesperada, e os únicos sons eram a lufada de ar e as batidas pesadas de
suas asas.
CAPÍTULO XVI

Consequências

T horn voou por horas.


Murtagh continuou tentando falar com ele, mas a mente do dragão permaneceu
fechada, blindada por um medo irracional. Impotente para fazer mais, Murtagh se
esforçou para transmitir uma sensação de calma e segurança a Thorn, apesar do
próprio aborrecimento. Ele queria se enfurecer, xingar e chorar, mas como sabia que
isso só pioraria o estado do dragão, abafou os próprios sentimentos e se concentrou
em manter um estado de espírito equilibrado. Thorn precisava saber que não estava
sozinho e que os dois estavam seguros. Só então o dragão recuperaria o juízo.
Cada batida de asas provocava um solavanco doloroso conforme as escamas nos
dedos nodosos de Thorn faziam cortes na pele de Murtagh. O sopro de ar frio era
alto, distrativo e lhe roubava o calor do corpo. Logo, ele começou a tremer.
Murtagh tentou se localizar, mas só conseguia enxergar um pequeno trecho do
chão. Sabia apenas que estavam indo para o norte e para o leste.
A visão dos prédios em chamas se repetia na mente de Murtagh, e ele a afastava,
sem querer que a própria angústia piorasse a de Thorn. Mas não pôde deixar de ter
uma sensação desagradável de inevitabilidade com o que eles fizeram.

O sol estava bem acima deles quando Thorn se virou em um ângulo descendente e
sobrevoou até parar em uma pequena colina na borda das vastas planícies orientais.
Os dois aterrissaram com um solavanco, e Thorn abriu a pata. Murtagh caiu na
grama seca com força suficiente a ponto de perder o fôlego.
Ele afrouxou a pegada no saco de dormir e se pôs de pé devagar.
Thorn estava agachado, as asas curvadas — como se para evitar um golpe — e
olhos semicerrados, com o corpo inteiro sendo sacudido por pequenos tremores.
Murtagh abraçou a cabeça dele.
— Shh. Está tudo bem — disse, tanto em voz alta quanto mentalmente. —
Estamos a salvo. Fique calmo.
Murtagh repetiu as palavras até sentir que os tremores do dragão começaram a
diminuir.
Não está tudo bem. Thorn pestanejou e se encolheu mais. Nunca vai ficar tudo
bem.
— Os elfos devem ter apagado os incêndios. É bastante fácil com uma palavra ou
duas.
Thorn deitou a cabeça no chão e soltou um grande suspiro. As escamas pareciam
extraordinariamente frias para Murtagh; normalmente o dragão era mais quente do
que um humano. Quantos você acha que eu matei?
— Não sei. Talvez ninguém. — Mas ambos sabiam que isso era improvável.
Eu odeio essa fraqueza em mim. Eu não deveria ser assim. É inapropriado para
um dragão, ainda mais para o de um Cavaleiro. Eu desonro você e minha espécie.
— Não, não, não. — As palavras de Murtagh saíram rapidamente. — Não é
culpa sua. Nunca foi.
Thorn voltou os olhos tristes para ele.
Galbatorix está morto. Minhas ações são minhas. O que ele fez comigo...
— O que ele fez conosco.
Podemos não ser culpados por isso, mas agora a culpa é minha.
Uma vontade estranha de chorar tomou conta de Murtagh. Ele se lembrou de
Thorn como um filhote, puro e inocente, sem qualquer má ação, e, apesar de tudo o
que haviam feito, ainda enxergava aquele filhote.
— Você não está desamparado — disse Murtagh com uma convicção intensa. —
Vai conseguir superar esse medo. Nada neste mundo é mais poderoso do que um
dragão.
Thorn cheirou o chão diante de si.
Nada a não ser a mente do próprio dragão.
Para isso, Murtagh não tinha resposta, e a sua impotência se transformou em
frustração contida. Thorn notou.
Mas vou tentar, da maneira que puder.
— Eu sei que vai. Amanhã. Vamos encontrar algumas árvores e trabalharemos
nisso juntos.
Juntos.
Com a mão direita, Murtagh acariciou as escamas ao longo da mandíbula de
Thorn. Elas ainda estavam frias.
— Obrigado por me buscar. Eu não teria sobrevivido se você não tivesse ido.
Eu voei… muito rápido. Thorn estremeceu novamente, e as pálpebras caíram
ainda mais, embora as asas permanecessem curvadas.
— Você precisa comer — comentou Murtagh. — Fique aqui. Eu volto em breve.
Não, não vá...
Mas Murtagh já estava correndo colina abaixo.

A aproximação de Thorn havia afugentado qualquer caça nas redondezas, e


Murtagh teve que explorar mais terreno e por mais tempo do que queria até avistar
uma manada de cervos-nobres pastando ao longo das margens de um riacho
estreito.
Ele parou um pouco afastado. Um par de corças olhou na sua direção antes de
voltar a se alimentar. Pareciam sem medo. Murtagh estava distante demais para ser
uma ameaça e não viu assentamentos na área. Os animais não estavam acostumados
a serem caçados por humanos.
Ele vasculhou o solo, procurando uma rocha, mas, ao contrário da terra perto da
Espinha, o solo das planícies era rico, preto e sem pedras. Em vez da rocha, o que
ele encontrou foi um pedaço de osso raspado pelo vento: um fragmento da coxa ou
da pata dianteira de uma corça.
Aquilo serviria.
Ele se concentrou no maior dos animais e ergueu o osso na palma da mão
estendida.
— Thrysta!
O fragmento voou mais rápido do que os olhos de Murtagh puderam acompanhar.
Com um baque, o osso atingiu a corça bem entre os olhos. A cabeça foi jogada para
trás e o animal desabou, com as patas traseiras chutando.
O resto do rebanho fugiu.
Murtagh caminhou até o animal caído. Quando chegou, a corça estava mole e
imóvel.
Ele olhou para o animal, contemplando o seu feito. Seus olhos ainda estavam
abertos e eram lindos, redondos, vidrados e dóceis.
— Desculpe — murmurou.
Murtagh agarrou a corça pelas patas, jogou em cima dos ombros e iniciou o
longo caminho até o topo da colina.
Enquanto caminhava pela planície gramada, com o animal quente fazendo peso
sobre os ombros, Murtagh pensou na cela de pedra onde Galbatorix mantivera
Thorn aprisionado. A câmara era comprida, mas estreita, com balestreiros abertos
no teto. Um lugar muito grande, frio e hostil para um filhote, mas mesmo assim
Galbatorix colocou Thorn ali e o prendeu ao chão com correntes de ferro. Pequenas
no início, para se equiparar ao tamanho de Thorn, foram ficando cada vez maiores,
até que os elos ficaram tão grossos quanto o torso de um homem e tão pesados na
corrente como um todo que até um dragão adulto não levantaria. Cada vez que ele
se movia, as correntes faziam um som dissonante e horrível. Murtagh ficou
acordado na própria cela muitas noites, ouvindo aquele tilintar.
A princípio, ele ficava angustiado com o isolamento de Thorn. Era uma
crueldade colocar uma criaturinha em um lugar tão hostil, e não conseguia confortar
o dragão com pensamentos, pois o rei e seus servos mantinham os dois sob
vigilância mental constante (e, muitas vezes, ataque direto). Mas o espaço não foi
grande por muito tempo. O crescimento de Thorn, acelerado por magia, deixou a
cela apertada bem rápido, as paredes o impediam de abrir as asas, e os nós ossudos
que se estendiam pelas membranas de voo raspavam e ficavam em carne viva nas
pedras ásperas.
Murtagh passou a sentir mais pelo confinamento de Thorn do que pelo
isolamento. Muitas vezes, ouviu o dragão se jogar contra as paredes e correntes em
uma tentativa inútil de escapar, debatendo-se em pânico, com rugidos e rosnados
que se transformavam em gemidos de dor quando os guardas vinham e lhe
enfiavam lanças através dos balestreiros ou despejavam baldes de lavagem, que ele
era forçado a lamber das escamas.
Não era maneira de manter um dragão adulto, muito menos um filhote. Um ser
em desenvolvimento. Passar os primeiros meses da vida daquela maneira...
Murtagh cerrou os dentes e apressou o passo enquanto uma raiva conhecida ardia
dentro dele. Às vezes, imaginava encontrar um feitiço que o permitisse trazer
Galbatorix de volta à vida para que pudesse matá-lo novamente. Mas não com
compreensão. Com o gume afiado da espada, para que o homem pudesse sentir toda
a força agonizante de sua fúria.
Mas não seria o suficiente. Pois a vingança não poderia consertar o que o rei
havia corrompido.
À medida que crescia, Thorn se tornou cada vez mais relutante em regressar à
cela sempre que Galbatorix decidia libertá-lo. Tanto que o dragão tinha ataques
frenéticos e desvairados ao ver os guardas. Ele chicoteava o rabo, mordia, arranhava
e fazia de tudo para escapar. A princípio, a visão era inspiradora, e então se tornava
lamentável, porque o rei, com poucas palavras, o reduzia a um corpo encolhido que
chorava de dor.
No entanto, a punição não foi suficiente para superar o medo de Thorn de
espaços fechados e, dia após dia, a aversão se tornou cada vez mais profunda até
que virou uma reação instintiva.
Murtagh só percebeu a extensão do problema depois que Galbatorix postou os
dois em Dras-Leona durante a guerra e Thorn ficou assustado enquanto caminhava
pelas ruas estreitas da cidade. O dragão destruiu quatro casas e feriu vários soldados
no esforço súbito para se libertar.
Murtagh esperava que as viagens pudessem ajudar, que evitando cidades e vilas e
ficando em locais abertos o medo de Thorn diminuiria. E talvez eventualmente
diminuísse, mas seria um processo lento. Se ainda fosse possível.
Ele estremeceu e olhou para o céu em busca de força. Desejou que as coisas
tivessem sido diferentes. Mas o passado não poderia ser mudado, e as mágoas que
ambos sofreram fariam parte deles para sempre.

Thorn ergueu a cabeça quando Murtagh subiu a colina e largou a corça no chão à
frente dele.
O dragão cheirou a carcaça. Obrigado.
— De nada. Coma.
Murtagh foi até os alforjes e pegou um odre. Ele bebeu e observou Thorn
agarrando o animal, rasgando e engolindo cada parte quase sem mastigar.
Visitar Nasuada em Ilirea agora estava fora de questão. Admitir era doloroso,
mas depois de arrasarem Gil’ead, não imaginava como Nasuada poderia recebê-los
em sua corte. A opinião pública a forçaria a tratá-los com dureza, e embora
Murtagh estivesse disposto a aceitar qualquer punição que ela considerasse correta,
não queria sujeitar Thorn a um possível confinamento. Ou coisa pior.
Não. Sua carta para Nasuada teria que bastar, e ele precisava acreditar que ela
teria os meios para navegar os perigos que a rodeavam. Reconfortou-se com o
conhecimento de que ela era mais sagaz e habilidosa que a maioria das pessoas.
Ainda assim, era difícil aceitar a mudança na situação deles. Por um momento
brilhante, tinha pensado que havia outro caminho à sua frente. Agora Murtagh
percebia que fora um sonho impossível. Ele e Thorn nunca seriam capazes de
limpar seus nomes e alcançar uma boa reputação entre o povo daquela terra. Aquela
chance estava encerrada.
Será que Nasuada pensaria que os dois tinham se voltado contra ela? Murtagh
odiou imaginar a decepção e a raiva da rainha. Os relatos públicos da fuga de
Gil’ead confirmariam os piores aspectos da reputação deles. Murtagh só podia
torcer para que a carta que havia confiado à mulher-gato ajudasse Nasuada a
entender que havia mais coisas em jogo do que parecia à primeira vista.
Murtagh tomou outro gole.
Perguntou-se se talvez não fosse melhor levar Thorn mais para o leste, para o
Monte Arngor, onde Eragon e Saphira haviam decidido estabelecer o novo lar dos
Cavaleiros de Dragão.Lá, ele poderia viver com outros de sua espécie, longe de
qualquer lugar onde pudesse causar mais danos. E poderia receber instruções de
elfos e dos Eldunarí, como era tradicional para os dragões da ordem — algo que
Galbatorix havia lhe negado.
Mas Murtagh não queria desistir. Era preciso lidar com Bachel. E também não
queria dar a Eragon a satisfação de vê-lo reconhecer sua autoridade. Acima de tudo,
não queria admitir ao mundo que ele ou Thorn precisavam de ajuda. A postura dele
era de puro orgulho teimoso, mas Murtagh não conseguia mostrar a fraqueza deles
para o mundo. A fraqueza era um perigo, permitia que outros machucassem e
explorassem uma pessoa. A fraqueza era o primeiro passo no caminho da morte.
Thorn percebeu o que ele estava pensando.
Irei aonde você quiser ir. Desde que estejamos juntos, estou contente.
Murtagh assentiu e tampou o odre.
— Isso é bom, porque não há chance de ficarmos pelo reino de Nasuada.
Sinto muito.
Murtagh evitou o olhar de Thorn e fez o possível para esconder seu incômodo.
— As coisas são como são. — Ele guardou o odre na bolsa. — Ainda assim,
somos párias agora, ainda mais do que antes. Exilados. Teremos que ficar na
natureza, manter distância dos espaços habitados.
Podemos voar juntos a partir de agora? Só nós? Chega de cidades formigueiros?
— Sim, podemos voar juntos. E chega de cidades.
Thorn engoliu a cabeça do cervo e lambeu os beiços. Depois de comer, ele
parecia mais calmo, mais alerta.
E você? Conte-me a respeito de Gil’ead. Como foram as coisas com Silna e
Carabel? E como acabou preso em uma caixa de confusão?
— Fui descuidado — confessou Murtagh.
Ele começou a tirar dos alforjes o que precisava para o próprio jantar. Teria que
caçar para si se quisesse comer alguma coisa no dia seguinte.
Enquanto trabalhava, compartilhou as memórias com Thorn, começando com a
forma como foi admitido na companhia do capitão Wren. Quando explicou sobre o
ovo de Ra’zac, Thorn bufou com força suficiente para chamuscar o chão com uma
labareda fina de cada narina.
Vermes! Eu esperava nunca mais vê-los.
— Eu sei — disse Murtagh, e soprou a chama recém-iniciada da fogueira que
estava armando. — Eragon fez um favor ao reino quando nos livrou deles.
Os sacerdotes de Helgrind vão tentar restaurar os Ra’zac à sua antiga glória.
Diante disso, Murtagh soltou uma risadinha.
— Não vejo como seriam capazes. Em breve haverá dragões por toda a
Alagaësia. Nenhum Lethrblaka conseguiria sobreviver aqui.
Os Lethrblaka eram a forma adulta dos Ra’zac: monstros voadores horríveis,
mais parecidos com morcegos do que com dragões.
Um Ra’zac é capaz de aprontar muito antes de se tornar adulto. Especialmente
se um mágico forçá-lo a servir seus desejos.
Por um momento, considerou retornar a Gil’ead apenas para destruir o ovo de
Ra’zac, mas depois se repreendeu pela estupidez da ideia. Além do perigo, o
capitão Wren ou Arven teriam retirado tudo de valor das câmaras embaixo do
quartel.
Ele deu um tapinha na bolsa presa no cinto. O compêndio ainda estava lá e,
quando tateou mais fundo, viu que o diamante amarelo também continuava
escondido no bolso da capa.
A fogueira ardeu mais, e ele continuou com as memórias. Não demorou muito
para que chegasse ao confronto com Arven, Esvar e os guardas. Thorn sentiu o
arrependimento de Murtagh pelo resultado do combate.
Grama seca e caules de cardos murchos estalaram sob as patas de Thorn quando
ele se aproximou e acariciou o ombro de Murtagh com o focinho.
Você fez o que tinha que fazer. Ninguém morreu. Atormentar-se não vai ajudar.
Nada na vida é fácil, disse Murtagh com os pensamentos, pois o som da própria
voz parecia insuportavelmente irritante.
Por que deveria ser? A vida é uma luta do começo ao fim.
Um sorriso triste surgiu no rosto de Murtagh, e ele deu um tapinha em Thorn.
E é melhor ganhar do que perder.
O fogo carmesim nos olhos de Thorn se intensificou. Eles se entendiam.
Murtagh prosseguiu repassando os fatos, e ao fim, disse:
— Quero encontrar essa bruxa, Bachel, ainda mais do que antes. E quero saber o
que são esses Sonhadores. — Ele cortou mais dois nabos com a pedra que estava
segurando e desejou ter conseguido encontrar uma adaga antes de deixar Gil’ead.
— Não sei o que estão planejando, só que é mais terrível do que eu temia.
Thorn sibilou, e a língua surgiu entre as mandíbulas escamosas.
E ainda acha melhor não avisar Eragon ou Arya?
Murtagh jogou os nabos despedaçados na panela pendurada sobre a fogueira. A
ideia de implorar pela ajuda de Eragon o fazia querer cuspir. Ainda mais porque
sabia que Eragon ajudaria. Essa era a pior parte.
— Se Nasuada quiser informá-los da situação, a prerrogativa é dela. Porém,
demoraria demais para que algum deles se juntasse a nós, e, de todo modo... Quero
que a gente lide com isso sozinho. Se pudermos. Maldição, nem sabemos o que está
acontecendo! Até descobrirmos, vamos manter o curso.
Thorn emanou uma sensação de concordância. Uma tosse baixa soou em seu
peito, e a língua pendeu entre as mandíbulas.
— O que foi? — perguntou Murtagh.
O dragão mostrou as duas fileiras de dentes.
Um pensamento me ocorreu. Carabel lhe fez um favor maior do que você
imagina.
— Como assim?
Ela te poupou de ter que tratar com Ilenna. Um grande benefício, esse.
Murtagh encarou o dragão por um segundo e então começou a rir.
— Você pode ter razão... — comentou, virando a cabeça com ironia.
Então voltou a ficar sério enquanto encarava as chamas tremulantes.
O que houve?
Murtagh deu de ombros, os olhos ainda no fogo.
— Gostaria de ter incluído Lyreth e sua laia na minha carta. Com certeza
Nasuada já desconfia que estão armando contra ela, mas é bom saber e se preparar.
Você não pode usar um feitiço para avisá-la?
Ele esfregou a terra com a bota, pensativo.
— Provavelmente não. Urû’b... Ilirea está longe demais para magia, magia fácil,
quero dizer, e Nasuada com certeza tem proteções mágicas que a defendem contra
intrusões do gênero. Eu poderia contratar um mensageiro, mas não confiaria a um
estranho essa informação.
Thorn voltou a tocar seu ombro e Murtagh forçou um sorrisinho. Coçou a
bochecha do dragão, que bufou.
Vamos para o norte, então?
Murtagh assentiu.
— De volta à Baía do Fundor. Vamos seguir a Espinha subindo a costa até
encontrarmos a aldeia de que Carabel falou.
E aí?
Murtagh despedaçou outro nabo com a pedra.
— E aí veremos que explicações Bachel tem para dar.

Apesar da exaustão extrema, Murtagh teve dificuldade para dormir naquela noite. A
mente continuava remoendo os acontecimentos dos últimos dias. Ele reviveu sem
parar a fuga de Gil’ead e questionou o que poderia ter feito para evitar um resultado
tão desastroso. Imagens de Esvar e do campo de soldados no fundo do lago
continuaram a atormentá-lo, e os rostos de Silna e dos dois irmãos da Âncora
Enferrujada surgiam diante dele. O meio da testa ardia, e ele pensou também em
Essie, na sala de pedra sob o quartel e no cheiro fétido de medo.
Quando finalmente caiu no sono, Murtagh sonhou com castelos vazios, portas
trancadas e passos o perseguindo por corredores sem fim. Ouviu a voz de seu pai
ecoar de cima com uma intenção terrível, seguida pela lembrança de um toque na
bochecha, suave e amoroso, e sua mãe dizendo “Lindo menino. Meu menino lindo”.
Então, visões de batalha encheram a sua mente adormecida: Glaedr e Oromis
voando acima de Gil’ead, espadas se chocando na Campina Ardente, soldados
morrendo sob seu comando, estandartes e flâmulas chicoteando ao vento, o cheiro
de sangue e fogo, água no nariz e na garganta sufocando Murtagh enquanto lutava
com Boca de Lodo.
Obrigada, sussurrou Silna, mas ele não sentiu alívio nem absolvição, e os
pesadelos o arrastaram cada vez mais para baixo, até as celas sob Urû’baen, onde
Galbatorix subjugou e destruiu o seu espírito. Durante todo o tempo, ele ouviu os
rosnados e gritos de Thorn, seu dragão, seu lindo dragão recém-nascido, sofrendo
na câmara perto dele.

Com a manhã veio a geada. Murtagh levou mais ou menos uma hora até se aquecer
o suficiente para enfrentar o dia. Estava dolorido e cansado, e as fibras de seu ser
estavam puídas pelo uso.
Depois de uma xícara de chá de sabugueiro, ele treinou com Zar’roc, e o
exercício ajudou a esvaziar a mente e concentrar os pensamentos. E não só os dele,
os de Thorn também. A forma como um dos dois se sentia influenciava o outro.
Murtagh estava determinado a fazer tudo o que pudesse para fortalecer a coragem
de Thorn.
Quando terminou a série, ele e o dragão deixaram os pertences no acampamento
e desceram da colina até um bosque de bétulas ao longo de um riacho.
Murtagh entrou no bosque, andando de costas, tateando com os calcanhares para
evitar tropeçar, e manteve os olhos em Thorn o tempo todo. Assim que deu uns
trinta passos arvoredo adentro, estendeu as mãos.
— Vem cá.
Thorn mexeu as asas e emitiu um ruído seco. Então se sacudiu, e as escamas se
agitaram ao longo do comprimento reluzente do corpo. O dragão deu um passo
hesitante à frente, de modo que a cabeça ficou bem abaixo do topo das árvores sem
folhas. Os galhos gemeram sob a influência de uma brisa passageira.
Thorn enrijeceu, e Murtagh disse novamente, em voz baixa:
— Vem cá. — Ele sorriu para o dragão. — Você consegue.
O peso da pata dianteira esmagou as folhas murchas pela geada quando Thorn
deu mais um passo à frente. E outro.
— Isso aí — murmurou Murtagh.
Se Thorn conseguisse romper o medo apenas uma vez, Murtagh sabia que
poderia desenvolver esse triunfo, e o medo diminuiria com cada sucesso.
Conforme as asas curvadas de Thorn se deslocavam entre os troncos claros, o
dragão ficou ainda mais tenso. Ele se agachou e cravou as garras na terra, e a ponta
da cauda balançou no ar, soltando um assobio.
— Não pare.
Thorn não sustentou o olhar de Murtagh, que sentiu a onda crescente de pânico
engolindo a mente do dragão e lutou contra ela com pensamentos calmantes, mas
era o mesmo que tentar repelir o mar.
— Tente! — ordenou Murtagh, com o tom repentinamente ríspido. Quando o
estímulo não funcionava, a ferocidade às vezes servia. — Agora! Não pense muito!
Um rugido angustiado escapou de Thorn, que avançou com as patas rígidas,
como um animal ferido, e, na pressa, a cabeça roçou em um galho baixo. Um medo
cegante varreu a mente do dragão com tanta força que disparou um raio nas
têmporas de Murtagh. Ele gritou e caiu, apoiado em um dos joelhos, enquanto
Thorn se debatia e se contorcia para sair do bosque.
Thorn foi se sentar em campo aberto, tremendo e piscando. As mandíbulas
estavam abertas, e ele ofegava como se tivesse acabado de correr
desesperadamente. O dragão ergueu o focinho e soltou um uivo triste que soou tão
solitário e lúgubre que a pele inteira de Murtagh formigou.
Não consigo, disse Thorn. Minhas patas travam e não consigo me mexer. É como
se um feitiço me agarrasse, e sinto como se fosse morrer.
Com esforço, Murtagh se levantou e foi até o dragão com passos lentos.
— São apenas emoções. Emoções não são você. — Ele deu um tapinha na pata
dianteira de Thorn. — Você pode senti-las, pode deixá-las passar por você, mas
quem você é não muda. Lembre-se disso. Lembre-se das partes do seu verdadeiro
nome que descrevem os melhores elementos de você e se apegue a elas.
Thorn baixou a cabeça em reconhecimento.
Fazer isso é difícil.
— Sempre é. — Murtagh apontou para o grupo de bétulas. — De novo. Agora.
O medo e a incerteza cintilaram no fundo do olhar de Thorn enquanto ele fitava
Murtagh, mas então ele se aprumou, o pescoço fez um arco altivo e uma baforada
de fumaça subiu das narinas.
Por você.
Como antes, Murtagh recuou para o bosque e, como antes, Thorn tentou segui-lo.
O dragão vermelho conseguiu se obrigar a avançar uns passos a mais do que na
primeira tentativa, mas então perdeu a coragem e recuou. As memórias que Thorn
tinha do aprisionamento eram tão fortes que atordoaram a mente de Murtagh por
um momento, fazendo-o ver os porões de Urû’baen pelos olhos de Thorn. Isso e a
aversão visceral do dragão foram suficientes para expulsar o próprio Murtagh do
arvoredo.
Eles levaram alguns momentos para se recuperar. O coração de Murtagh batia
desconfortavelmente rápido.
Então tentaram outra vez, com resultados semelhantes.
— Chega — disse Murtagh, tocando o pescoço de Thorn.
O dragão estava enrolado em um nó sobre a grama emaranhada, ofegando e
tremendo como se estivesse com febre. Ainda era de manhã e eles já estavam
exaustos.
Ambos ficaram estranhamente calados ao voltar ao acampamento e se preparar
para partir.
Somente depois que Murtagh arrumou os pertences e estava realizando uma
verificação final no cordame da sela de Thorn foi que o dragão falou: Amanhã,
encontrarei outro arvoredo.
Murtagh estava fechando uma fivela e se deteve por um instante.
— Vou te ajudar. — Por um instante de silêncio, eles compartilharam um senso
de determinação.
Antes de subir na sela, ele molhou um pedaço de pano e enxugou o suor do rosto
e das axilas. Murtagh teria preferido um banho de verdade, mas o riacho próximo
era tão pequeno que ele não cabia.
— Vamos? — perguntou ele, enxaguando e torcendo o pano.
Thorn esticou as asas e as sacudiu, como se quisesse se livrar da agitação.
Os ventos estão mudando. Vamos ter que dançar com as nuvens.
Murtagh escalou a lateral do corpo de Thorn e subiu na sela. Enquanto prendia as
tiras em volta das pernas, deu uma última olhada na vastidão plácida das pastagens.
Assentiu.
— Vamos dançar. Não, vamos caçar.
E Thorn soltou um grunhido de aprovação.
CAPÍTULO XVII

Exílio

E nquanto Thorn voava e a terra passava abaixo, Murtagh deixou a mente vagar.
Sua tendência natural era pensar — remoer infinitamente tudo o que era, tinha sido
e poderia ser —, mas ele lutou contra esse impulso. Sem lembranças! Em vez disso,
encontrou consolo na existência sem contemplação. Era um prazer simples, talvez o
mais simples de todos, e, no entanto, não menos profundo.
Lá no alto, o ar estava frio, e os cílios congelavam se piscasse mais devagar do
que o normal. Murtagh usou um feitiço para amortecer o vento e evitar que seu
corpo perdesse calor. Thorn não precisava dessa proteção, por causa de suas
escamas, que eram defesa suficiente.
Saindo das pastagens a nordeste de Gil’ead, o dragão sobrevoou o lago Isenstar
outra vez e começou a seguir o rio Ninor a noroeste, em direção à Espinha.
Eles fizeram a viagem depressa, mas Murtagh temia ter perdido o momento certo
de agir e se preocupava de estarem sendo caçados pelos mágicos da Du Vrangr
Gata, ou mesmo pelos elfos. A menos que Carabel tivesse habilidades ocultas,
levaria alguns dias para sua carta alcançar Nasuada. Até lá, ela, Arya e Eragon —
que certamente já teriam ouvido as notícias da luta em Gil’ead — pensariam o pior.
Eragon e Arya talvez até ficassem alarmados o bastante para ir atrás dele. Parte de
Murtagh esperava que um deles o contatasse, e toda vez que sentia um toque na
mente, lutava contra o impulso de se encolher. Mas sempre era Thorn, dizendo:
Você está tão nervoso quanto um puma mordido por muitas pulgas.
Não me fale de gatos.
A terra abaixo deles era linda, e Murtagh se viu desejando ignorar as
preocupações de rainhas e reis e viver de acordo com os próprios planos, como
Thorn queria. Isso poderia significar se estabelecer em um lugar — com a magia
como ferramenta, Murtagh poderia erguer uma cabana ou um palácio (o que lhe
agradasse) —, ou vasculhar os céus como um albatroz pronto para vagar todos os
dias.
Mas, no fundo do coração, ele sabia que nenhuma das duas opções funcionaria.
Ninguém vive isolado. Estamos todos conectados. E ignorar as responsabilidades
deles, as responsabilidades dele, só levaria ao arrependimento.
Naquela noite, eles acamparam ao lado de choupos próximos às margens do rio.
Murtagh foi caçar com um seixo e um feitiço e logo pegou duas lebres e um grande
pato de patas azuis que foi tolo o suficiente de passar nadando.
Antes de acender a fogueira e preparar o jantar, Thorn e ele foram até o bosque
de choupos, e o dragão novamente tentou entrar no arvoredo.
Dessa vez, ele teve mais sucesso do que antes, pois os choupos eram esparsos e
Thorn tinha mais espaço em volta da cabeça e das laterais do corpo. Mas, no final, o
mesmo medo fez o dragão ficar paralisado e recuar. Murtagh não considerou a
empreitada como um grande avanço.
O exercício aumentou o cansaço do fim do dia, e os dois falaram pouco durante o
resto da noite.
Depois de comer, Murtagh apagou a fogueira e se sentou com as costas apoiadas
em Thorn. Por um tempo, encarou mal-humorado uma das coroas de ouro que
recebera de Wren. Então pegou o dicionário que roubara e leu enquanto o sol se
punha e nuvens de mosquitos saíam das copas das árvores.

Na manhã do segundo dia, enquanto esperava que o pato terminasse de fritar,


Murtagh voltou ao compêndio. As palavras que continha e o potencial que elas
representavam ficavam enchendo sua mente com ideias para feitiços.
Daquela vez, diferente de começar de onde parara, ele abriu o livro ao acaso,
lendo uma palavra aqui, outra acolá. Seu olhar pousou em um termo em particular.
— Deyja — murmurou ele, e olhou a definição. Então arregalou os olhos. —
Morrer. Parar de viver.
Thorn bufou. Uma palavra perigosa.
— É mesmo — disse Murtagh baixinho.
Estava impressionado com a palavra. Tão simples, mas tão profunda. Galbatorix
nunca teria ousado ensiná-la a ele. Na verdade, deyja não devia ser muito útil.
Imaginava que a maioria dos mágicos tivesse alguma proteção para bloquear seus
efeitos. No entanto, vê-la, conhecê-la, parecia importante, como se tivesse
construído uma torre sobre um vazio imensurável.
Perguntou-se qual seria a palavra para vida.
Continuou lendo, esperando encontrá-la. Em vez disso, deparou-se com a palavra
naina.
— Tornar brilhante. Luz sem fogo. Veja também líjothsa. — Ele folheou até esse
verbete e o leu. — Leve como a coisa em si. Veja também naina.
Murtagh franziu a testa ao analisar aquela diferença. Os pensamentos se voltaram
para o quartzo emissor de luz que ele havia encontrado dentro das catacumbas e
também para a dificuldade que enfrentou ao iluminar o fundo do lago Isenstar. O
fogo era uma péssima escolha para iluminação embaixo d’água, porque criava
muitas bolhas e muito vapor.
Murtagh ergueu os olhos. O céu da manhã estava claro e reluzente, repleto de
uma vastidão aparentemente interminável de brilho solar. E se... O feitiço que ele
usava para esconder Thorn de observadores funcionava tornando o ar sob o corpo
do dragão espesso, de modo que refletisse a luz ao redor dele, como faria uma lente
de vidro polido — essa era a melhor forma que Murtagh havia encontrado para
tentar explicar aquela magia.
Talvez ele pudesse modificar o feitiço para reunir a luz de uma grande área ao
redor deles e concentrá-la em um único ponto, com a intenção de ser usada no lugar
de um lampião ou guardada para uma necessidade posterior.
Em um impulso, ele derramou um pouco de água no velho prato de lata, clareou a
mente, escolheu as palavras necessárias da língua antiga — o feitiço era estranho,
mas Murtagh achou que conseguiria expressar o que queria — e disse “Vindr
thrysta un líjothsa athaerum”, com a intenção de concentrar a luz no prato.
BAM!
Um clarão tão brilhante quanto o sol explodiu na frente dele, um trovão ecoou
pela planície, e uma nuvem de cinzas e vapor superaquecido espirrou. Murtagh
sentiu o calor no rosto antes de cair para trás, as proteções mágicas ativadas para ele
não se queimar.
Thorn soltou um rugido assustado e se empinou, abrindo as asas. Uma labareda
de chama vermelha cintilou na boca dele.
Um pouco consternado, Murtagh viu que a fogueira tinha explodido. Havia
pedaços de brasas fumegantes espalhados em todas as direções, o solo estava
enegrecido e uma fumaça subia em trechos de grama seca. A panela com o bacon
estava dobrada ao meio, e o próprio bacon havia se perdido em algum lugar na
terra.
Praguejando, Murtagh correu e pisoteou as brasas antes que iniciassem um
incêndio florestal.
O que você fez?, perguntou Thorn com as asas ainda ligeiramente levantadas.
— Eu não tenho certeza. Foi só luz!
Murtagh explicou o que estava tentando realizar e balançou a cabeça.
— Não vou usar esse feitiço de novo, a menos que seja à distância.
Uma longa distância.
— Concordo.
Os dois continuaram a seguir o rio Ninor até ele começar a se curvar mais para o
sudoeste, ponto em que eles abandonaram suas margens e atravessaram as planícies
sem trilhas.
Não pela primeira vez, Murtagh percebeu como a Alagaësia era vazia. Apesar de
todos os esforços de humanos, anões e elfos, áreas enormes da terra permaneciam
desabitadas, rudimentares e selvagens. Parte dele preferia assim. Se o mundo inteiro
fosse tão povoado quanto Ilirea ou Dras-Leona, não haveria lugar para quem não se
encaixava.
No início da tarde, Murtagh compôs uma estrofe de que gostou muito:

No topo da torre um homem oco,


Não mais que sombra, vazio por dentro,
Preso por palavras, por um vilão foi usado.
Com medo do destino, um nome desonrado.
Quebre o vínculo, mude o rumo,
Ainda não mais que um espectro assombrado.

Ao entardecer, a Espinha sumiu de vista e virou uma serra de pontas roxas


apoiada no céu avermelhado.
O acampamento naquela noite pareceu muito solitário. A terra era plana, com
poucos cumes ou charcos e, portanto, nenhum lugar para se esconder. Apesar da
falta de cobertura, ambos compartilharam uma sensação de alívio na ausência de
árvores, cavernas ou outros tipos de locais fechados. Thorn ainda mais do que
Murtagh, porém os dois ficaram contentes com o descanso, mesmo que por um dia,
do pavor do dragão de espaços fechados.
Murtagh se abrigou sob a asa de Thorn e o divertiu cantando canções da corte.
Até dançou um passo ou dois para ele.
E esse foi o segundo dia.

Antes do nascer do sol do terceiro dia, uivos sinistros de uma alcateia


interromperam o sono deles. Os lobos estavam correndo pelas pastagens a alguns
quilômetros ao sul, e os latidos ecoavam com volume e clareza surpreendentes
através do ar silencioso da manhã. Mesmo àquela distância, Murtagh conseguiu ver
o tamanho dos animais: deviam ter o dobro do tamanho de um mastim, com
pelagem fulva e caudas longas e grossas.
Devo responder?, perguntou Thorn.
— Se você quiser — disse Murtagh, achando graça.
Thorn ergueu a cabeça e fez uma imitação passível de um uivo de lobo, só que
muito mais alto e muito mais ameaçador.
O bando ganiu de medo e depois disso correu em silêncio.
Murtagh riu e parabenizou Thorn.
É bom para eles saberem que não são os únicos caçadores por aí, disse Thorn,
satisfeito.
Apesar de um vento lateral irritante, eles chegaram à beira das planícies no final
da manhã, e a terra se elevou, virou contrafortes e depois subiu para as alturas
íngremes da Espinha. Uma camada de neve descia até a metade das encostas das
montanhas, e os pinheiros reluziam como se estivessem salpicados de diamantes.
Uma faixa de água prateada cruzou o caminho deles, e Murtagh a reconheceu
como o rio Anora, que corria até a Baía do Fundor, na direção norte. Ele instruiu
Thorn a seguir rio acima, no interior das montanhas.
O dragão obedeceu sem questionar, porque estava tão curioso quanto Murtagh.
O Anora os conduziu por uma faixa estreita até um vale bem no interior. No topo
da montanha, à esquerda da faixa, havia uma torre de vigia construída no estilo
élfico e em ruínas, sem nenhum caminho ou estrada que levasse às paredes escuras
da construção. Murtagh conhecia aquela torre e pronunciou seu nome na língua
antiga: “Ristvak’baen”, ou “Lugar de Tristeza”. Ele sentia tanto tristeza quanto
repulsa, pois foi ali, naquela torre, que Galbatorix matou Vrael, líder dos
Cavaleiros, após a grande batalha na ilha de Vroengard. Foi esse evento, mais do
que qualquer outro, que marcou a queda dos Cavaleiros.
Galbatorix havia se gabado daquele combate várias vezes. Murtagh ainda se
lembrava dele esparramado na cadeira forrada de pele do salão de jantar — as
feições severas e aquilinas iluminadas pela grande fogueira de banquete embutida
em uma parede —, com os olhos ardendo de deleite enquanto relatava como havia
derrubado Vrael com um chute entre as pernas.
Um desejo tomou conta de Murtagh naquele momento e, antes que pudesse falar,
Thorn reagiu, inclinando-se para a esquerda e descendo em espiral até um telhado
plano do lado da torre em ruínas.
Murtagh achou muito conveniente aquele telhado ainda estar lá e logo se sentiu
tolo. A torre foi construída por e para os Cavaleiros de Dragão. Claro que haveria
um lugar para um dragão pousar.
As garras de Thorn rasparam a pedra quando ele pousou em Ristvak’baen.
Murtagh torceu para que a estrutura ainda estivesse firme. Ela durara mais de cem
anos, então certamente poderia aguentar mais alguns minutos.
Murtagh desmontou, e a dupla ergueu o olhar para a torre em ruínas. Havia um
arco de tamanho humano na parede externa do edifício que conduzia a um pequeno
pátio aberto.
Murtagh atravessou o arco.
Musgos e liquens salpicavam as pedras do pátio enquanto tufos de grama morta
apareciam entre as juntas. Um zimbro atrofiado crescia de uma rachadura na parede
mais acima, com o tronco fissurado, murcho e retorcido. Um vento desolador
sacudia os galhos. A neve se acumulava nos cantos mais escuros do quintal onde a
luz direta não alcançava. Havia uma única porta escancarada na lateral da torre,
com as dobradiças empenadas, quebradas e pretas de tão enferrujadas.
Um círculo de doze soquetes de latão jazia embutido nas pedras no centro do
pátio. Cada um tinha o tamanho de um punho, e eram tão sem olhos e vazios quanto
uma caveira. Uma camada de cera verdete coloria os soquetes de verde. O que eles
haviam contido, Murtagh não sabia dizer.
Atrás dele, Thorn hesitou. Soltando um rosnado suave, o dragão se agachou no
telhado plano e enfiou a cabeça e o pescoço no pátio. O corpo inteiro estava tenso
com o esforço — lábios franzidos para mostrar os dentes —, mas ele não recuou.
Murtagh considerou isso um pequeno avanço.
Ele continuou a estudar o pátio. Não havia evidência alguma da luta entre
Galbatorix e Vrael. O lugar era frio, vazio, desprovido de qualquer conforto, e o
barulho de galhos secos lembrava o barulho de ossos.
Thorn cheirou o ar.
É estranho pensar em tudo o que aconteceu com o encontro deles aqui.
Calor percorreu os braços e as pernas de Murtagh como uma torrente de cera
derretida. Ele cerrou a mandíbula e os punhos, lágrimas escorrendo dos olhos que
não piscavam. A onda de emoção foi tão repentina, tão forte, tão inesperada que ele
gritou de surpresa, e depois gritou de novo de raiva pura e cega.
Thorn se encolheu, mas Murtagh não se importou.
Ele uivou para o céu vazio. Uivou e gritou até a voz ceder e sua garganta
começar a sangrar. Os paralelepípedos ralaram seus joelhos quando ele caiu para a
frente e baixou a cabeça como um cachorro chicoteado.
Ele socou tantas vezes o chão do pátio com seu punho enluvado que dores agudas
chegaram até o osso na base da palma da mão. Grandes estrondos ocos ecoaram
pela torre, como se seu punho fosse uma marreta de ferro.
Um grunhido irrompeu de sua garganta, e dessa vez, ao bater nos
paralelepípedos, espalmou a mão.
— Jierda!
Com um estrondo ensurdecedor, rachaduras saíram de sua mão e se espalharam,
partindo paralelepípedos por todo o pátio. Nuvens de poeira se ergueram das faces
expostas das rochas, e um dos soquetes de latão se soltou do encaixe.
Cansado, Murtagh desabou no chão e enterrou o rosto em uma dobra da capa.
O vento fustigava as laterais da torre.
A mente de Thorn era uma presença afetuosa na de Murtagh, mas o dragão não
disse nada, apenas observou e esperou.
Depois de um longo tempo, o Cavaleiro ergueu a cabeça e voltou a ficar de
joelhos. A capa estava espalhada em volta dele em ondulações de lã escura, e as
bordas afiadas dos paralelepípedos rachados cortavam suas canelas.
Ele enxugou os olhos com as costas da mão enluvada.
— Tudo isso... — disse Murtagh, com a voz rouca e desolada no ar rarefeito, e
tossiu antes de continuar — … porque os Cavaleiros não conseguiram matar
Galbatorix quando tiveram a chance. Se tivessem...
Você não teria nascido.
— Então talvez outra pessoa tivesse uma chance melhor na vida.
Thorn rosnou e se inclinou para a frente, como se fosse se juntar a Murtagh no
pátio, mas tremeu e ficou de cócoras novamente.
Não diga isso. Nunca diga isso! Você não quer estar unido a mim?
A pergunta cortou a introspecção mórbida de Murtagh como uma navalha em
seda.
— Claro que sim. Não foi isso o que eu quis dizer.
Então, diga o que você quer dizer. Eu escolhi sair do ovo para você, Murtagh.
Não desejo outro.
A seriedade intensa do dragão o acalmou.
— Desculpe. Você tem razão. Falei sem pensar. Estava apenas me lamentando. É
um hábito desgraçado.
Muito.
— Por que você saiu do ovo para mim?
Em todo o tempo que passaram juntos, Murtagh nunca havia pensado em
perguntar. Thorn fez uma pausa.
Estava cansado de esperar e senti que combinávamos. Isso e que você não tinha
nada da loucura de Galbatorix.
— Desculpe por não ter protegido você melhor.
Você está se lamentando de novo. Você me protegeu tão bem quanto qualquer um
poderia ter feito e melhor do que a maioria.
— Humm. — Murtagh se levantou lentamente e foi esfregar o focinho de Thorn.
Thorn zumbiu e pressionou o focinho na mão de Murtagh.
Nós sobrevivemos. Isso é o que importa.
— Ainda gostaria que pudéssemos voltar no tempo voando e ajudar Vrael.
Então todo mundo em todos os lugares faria o mesmo com seus próprios
arrependimentos, e o mundo seria desfeito.
— Acho que isso é verdade.
Murtagh olhou para os paralelepípedos rachados com alguma tristeza. Ele torceu
para a torre continuar de pé.
— Vou dar uma olhada lá dentro. Serei rápido.
Cuidado com armadilhas. Thorn retirou a cabeça e o pescoço do pátio e se virou
para olhar o vale.
Murtagh passou cautelosamente pela porta na base da torre. Um corredor curto e
escuro se estendia diante dele. O chão de pedra estava incrustado com lama seca, e
havia gravetos, folhas e grama morta emaranhados nos cantos.
Ele chegou no interior da torre, ou pelo menos ao ponto que conseguiu ter acesso.
Pedras caídas bloqueavam várias portas. Todos os cômodos estavam secos, mortos e
desertos. Alguns móveis permaneciam: cadeiras de madeira quebradiças ao toque;
um atiçador de ferro encostado na lareira da cozinha; os restos apodrecidos de uma
cama de solteiro estreita.
No chão do que ele imaginou ser um depósito, Murtagh encontrou um cálice de
latão amassado decorado com os entalhes elegantes que só poderiam ter sido obra
de um artesão élfico. O metal estava gelado contra os dedos enluvados de Murtagh.
Ele virou o cálice e o examinou, imaginando a quem teria pertencido e o que havia
testemunhado no decorrer dos anos.
Num impulso, ele guardou a taça enquanto subia a escada estreita de volta ao
pátio.
A cauda de Thorn chicoteou de um lado para o outro quando Murtagh se juntou a
ele no telhado plano.
— Uma relíquia de outra era — disse Murtagh enquanto segurava o cálice para
Thorn cheirar. — Acho que vou ficar com ela. Essa taça pode ser o primeiro tesouro
da Casa Murtagh. O que acha?
Thorn lhe lançou um olhar duvidoso.
E Zar’roc?
— Uma maldição, não um tesouro. — Murtagh balançou a taça na mão, foi até os
alforjes e começou a desafivelar um.
Talvez você possa forjar uma nova história para a espada, disse Thorn.
Murtagh enfiou a taça debaixo do saco de dormir e fechou o alforje.
— Levaria uma era e meia para compensar todos os crimes cometidos com
Zar’roc.
Ele se virou para encarar Thorn.
Então terei que garantir que você viva por muito, muito tempo.
Os olhos de rubi de Thorn brilharam.
— Tem certeza? Isso soa como uma tarefa muito difícil.
Thorn bufou e o brilho aumentou.
Muita certeza.
— Humm — disse Murtagh.
Comovido, ele se virou para olhar o vale.
— Então foi daqui que eles vieram.
Vale Palancar: lar de Eragon... e da mãe deles. O lugar para onde ela retornara
para dar à luz Eragon, longe de Morzan e do Império.
Parece um bom lugar para caçar.
A alguma distância de Ristvak’baen, uma pequena cidade era visível ao lado do
rio Anora. Therinsford, supôs Murtagh, se as lembranças do que Eragon havia lhe
contado a respeito do vale fossem precisas.
Ele subiu de volta em Thorn e prendeu as pernas.
— Pronto.
Segure-se firme!
Com um salto poderoso, Thorn se lançou no ar. Ele subiu várias dezenas de
metros e chegou acima dos picos das montanhas. O ar era rarefeito ali, e parecia
improvável que alguém lá embaixo ouvisse o bater de suas asas.
Murtagh observou o vale se desdobrando embaixo deles sem piscar. Era uma
questão de história de família e de geografia. Se os eventos tivessem ocorrido de
maneira um pouco diferente, o vale Palancar teria sido o lar dele, como tinha sido o
de Eragon. Murtagh se perguntou como seria crescer em um lugar tão isolado.
Isso fez com que desejasse poder conversar com a mãe, perguntar a respeito da
infância dela e as razões para abandonar o vale Palancar a fim de seguir Morzan
pelo mundo afora. E também por quê, por que ela tinha escolhido salvar Eragon de
Morzan, mas não ele, seu primogênito? Será que foi uma questão de habilidade e
oportunidade, ou de preferência? A pergunta o atormentava desde o momento em
que soube do parentesco com Eragon. Como uma mãe era capaz de sacrificar um
filho por outro?
Como? Era verdade que Eragon estivera em perigo mortal. Ele não era filho de
Morzan e se o homem descobrisse a verdade... Murtagh estremeceu só de imaginar
sua ira. Então havia essa questão. No entanto, Murtagh não pôde deixar de se
perguntar se não teria sido uma escolha e não uma necessidade que impediu a mãe
de trazê-lo para o vale Palancar.
Vê-lo sendo aclamado como o herói da era piorou tudo, pois fez Murtagh temer
que ela tivesse escolhido o filho certo, que houvesse algo irreparável ou uma
inadequação em relação a ele que ela havia identificado.
Talvez fosse a cicatriz nas costas. Ele foi marcado pelas trevas de Morzan de uma
maneira que Eragon nunca havia sido.
Você não sabe os motivos ou a situação dela. E, independentemente disso, eu
escolhi você.
As palavras gentis de Thorn foram suficientes para suavizar o humor de Murtagh
e dissipar um pouco de sua amargura, apesar de ela permanecer como uma poça
venenosa no fundo da mente. Ele coçou as escamas na coluna de Thorn e se
inclinou para lhe dar um abraço rápido.
Então se empertigou na sela e se esforçou para enterrar as contemplações
lúgubres.
Na metade do vale, Murtagh viu o que procurava: os restos queimados de uma
casa de fazenda perto do rio, talvez a um dia de caminhada de Therinsford. Um
arrepio percorreu seu corpo, pois ele sabia que estava olhando para a casa onde
Eragon havia morado, queimada pelos Ra’zac depois de interrogarem — ou melhor,
torturarem — o tio dele, Garrow.
Tanto de tão pouco, disse Thorn.
Verdade.
Murtagh ficou surpreso ao ver a fazenda ainda abandonada. Ele achou que Roran
ou um dos outros aldeões de Carvahall a teriam recuperado.
Ele ergueu o olhar e viu Carvahall em si, aninhado entre o rio e o sopé da
extremidade norte do vale Palancar. Não era o que Murtagh esperava. Uma grossa
paliçada de madeira cercava um grupo de casas de palha rústicas e recentes, que
brotavam do que Murtagh percebeu que deviam ser as bases originais do vilarejo,
antes de ter sido destruído pelas forças de Galbatorix. O pensamento foi um
lembrete incômodo das ações dele e de Thorn em Gil’ead. O flanco ocidental de
Carvahall despontava contra o Anora, e uma ponte robusta atravessava a água
agitada. Do outro lado, uma trilha bem traçada levava a uma colina com vista para o
resto do vale, e no topo da colina havia fundações de pedra e paredes parcialmente
construídas do que parecia ser um pequeno castelo.
Com a mente, Murtagh chamou a atenção de Thorn para o castelo inacabado.
Parece que o primo de Eragon anda ocupado. Ele aprendeu da maneira mais
difícil que a única forma de se manter seguro é se proteger com a força das armas.
Roran também é seu primo, retrucou Thorn.
Hum. Será que somos muito parecidos?
Thorn se inclinou um pouco para baixo.
Você deseja pousar?
Ele quase respondeu que sim.
Queria conversar com Roran e conhecer sua família — tinha ouvido falar que ele
tinha uma filhinha —, uma vez que eram seus últimos parentes, além de Eragon.
Porém, se pousassem, haveria gritos e armas apontadas e todo tipo de emoções
difíceis. Até imaginar a cena era cansativo.
Você poderia ir sozinho, disse Thorn.
Murtagh sabia quanto custava ao dragão sugerir tal coisa depois dos eventos em
Ceunon e Gil’ead.
Não... não, acho que não. Mas obrigado.
No mínimo, ele não queria perder tempo. Visitar Carvahall custaria pelo menos
um dia, talvez mais, e Murtagh ainda sentia uma urgência crescente em encontrar a
bruxa Bachel.
— Outro dia, quem sabe? — murmurou enquanto Carvahall e o castelo
inacabado passavam por baixo dos dois.
Algum dia, Roran e ele acertariam contas. Mesmo que nunca tivessem se
conhecido, os laços de sangue nunca poderiam ser ignorados.
Murtagh deu uma última olhada em toda a extensão do vale, fazendo o possível
para se lembrar de cada detalhe do lugar onde a mãe e Eragon tinham crescido.
Uma dor solitária se formou em seu coração, e então ele virou as costas para a vista
e se segurou em Thorn com mais força ainda.

O Palancar foi o último grande vale no caminho deles. A partir dali, as montanhas
se aproximaram e só permitiam pequenas fendas e lacunas entre os flancos
arborizados: vales estreitos, que não recebiam o mínimo de luz do sol durante os
meses de inverno.
Enquanto voavam, Murtagh teve a sensação de que estavam deixando para trás os
últimos vestígios de civilização. Por mais rústico e isolado que Carvahall fosse,
pelo menos compartilhava alguma conexão com o resto do reino de Nasuada.
Depois do vilarejo, estavam entrando em terras que não pertenciam a nenhum reino
ou raça.
No final da tarde, a Baía do Fundor surgiu à direita, encostada na borda da
Espinha. As montanhas mergulhavam até a beira da água, quase sem algum campo
aberto, e o ar adquiriu um gosto de sal, e os gritos de gaivotas e andorinhas-do-mar
seguiram os dois pela cordilheira irregular.
Procure um cais ou um quebra-mar. Qualquer tipo de construção, sugeriu
Murtagh, embora fosse provável que ainda estivessem a vários dias do vilarejo que
procuravam.
Thorn grunhiu em concordância.
Em pouco tempo, um vento forte surgiu do norte, e o voo de Thorn diminuiu até
que os dois mal se moviam em relação ao solo.
Está bom por aqui, disse Murtagh, e Thorn desceu até uma pequena ilha — com
não mais de trinta metros de largura — perto da costa. Lá eles acamparam, e o
vento caiu sobre os dois com força implacável enquanto rajadas de neve
obscureciam as montanhas.
Pela manhã, as nuvens haviam desaparecido.
Devemos nos apressar, disse Thorn. Esse clima não vai durar.

Água revolta à direita, montanhas abaixo e à esquerda. Um grande domo de céu à


frente. A paisagem era igualmente bela e ameaçadora, e Murtagh podia sentir em
seu corpo a solidão do local.
Ele ficou de olho na baía, mas nenhum navio apareceu. Se alguém estava
viajando para visitar Bachel, estava se mantendo bem longe da costa oeste da baía.
Naquele dia, eles viram muitos animais selvagens ao longo da orla da baía.
Rebanhos enormes de cervos-nobres bramindo, animais muito maiores do que
aqueles que Murtagh havia caçado nas planícies de Gil’ead. Ursos-pardos gigantes
que percorriam a floresta solitários e sem pressa. Alcateias de lobos cinzentos bem
peludos. Falcões que gritavam, corvos e gralhas que crocitavam e abutres que
giravam sobre as águas rasas e de vez em quando mergulhavam para pegar o
bergenhed prateado que disparava na água plácida.
Mesmo lá no alto do céu, Murtagh sentiu a necessidade de ficar alerta. As
montanhas eram severas e selvagens, e o menor erro poderia custar a vida dos dois,
apesar de toda a força, feitiços e experiência deles. Murtagh e Thorn não se
esqueciam de que o primeiro dragão de Galbatorix, Jarnunvösk, havia morrido nas
regiões congeladas da Espinha.
Eu entendo agora por que os Cavaleiros advertiram Galbatorix contra se
aventurar tão longe, disse Murtagh.
Ele e Jarnunvösk não estavam sozinhos, estavam?
Não, outros dois foram com eles. Ambos Cavaleiros, todos da mesma idade.
Galbatorix era o líder. Ele sempre desejou poder, e isso sempre foi sua ruína.
Uma batida lenta das asas de Thorn pontuou a conversa.
Galbatorix alguma vez contou por que voaram para o norte?
Pela ousadia do ato, creio eu. Para provar que conseguiriam, apesar da
desaprovação dos mais velhos.
Uma mortalha de pesar escureceu a mente de Thorn.
E assim eles pagaram o preço de sua loucura.
Todos nós pagamos.
Foram os Urgals que os atacaram no gelo, não foram?
Murtagh coçou o queixo.
Foi o que ele disse. Mas devem ter sido Urgals habilidosos e poderosos para
derrotar um dragão e dois Cavaleiros. Na verdade, sempre me perguntei a respeito
disso, mas Galbatorix nunca esteve disposto a responder.
Murtagh voltou o olhar para baixo, para os picos escarpados. Por um instante, a
solidariedade tremeluziu dentro dele.
Deve ter sido horrível viajar tudo isso a pé, sozinho, e depois de perder o
dragão, comentou Murtagh. Teria enlouquecido qualquer um, humano ou dragão.
Pouco antes do meio-dia, eles avistaram fios de fumaça subindo de um vale
estreito bem no interior da cordilheira. Thorn desviou para investigar, e eles viram
algumas cabanas — que pareciam cascos de navios virados — em um prado
próximo ao riacho. Estandartes altos e multicoloridos pendiam do lado de fora de
cada cabana.
— Aquilo é... — Murtagh começou a dizer.
Mas não eram os Sonhadores. Enquanto ele falava, uma figura emergiu de uma
das cabanas. Uma figura incrivelmente alta com pele cinza e chifres que
espiralavam da cabeça enorme.
Urgals, disse Thorn com um grunhido mental.
E um Kull, ainda por cima.
Nenhum outro tipo de Urgal era tão alto. Nenhum deles tinha menos de dois
metros e meio, e muitos eram ainda maiores. Murtagh ainda achava impressionante
que os anões tivessem conseguido resistir contra as criaturas gigantes na Batalha de
Farthen Dûr.
Murtagh observou com grande interesse enquanto Thorn circundava a aldeia,
confiando que seu feitiço de disfarce os manteria escondidos. Ele viu o que pensou
serem Urgals fêmeas — uma novidade para ele — lavando roupas no riacho, e
crianças Urgals seminuas — outra novidade — correndo pela campina, atirando
umas nas outras com arcos e flechas com pontas forradas. Vários Urgals machos
cortavam lenha, e outros lutavam com bastões, lanças e clavas.
Tanto Galbatorix quanto os Varden se aliaram aos Urgals no decorrer da guerra,
mas nunca durante o tempo que Murtagh serviu a ambas as facções. Antes disso, a
única vez que interagiu com eles foi quando saiu para patrulhar com os homens de
lorde Varis. Um bando de Urgals estava invadindo as fazendas da propriedade de
Varis, e pensaram que uma demonstração de força poderia assustá-los. Se isso
falhasse, o objetivo era caçar e matar os Urgals, e mais especificamente o chefe
deles, que era — de acordo com os relatos dos sobreviventes — violento,
implacável e dado a acessos de insanidade.
Com dezessete anos na época, Murtagh estava ganhando força muscular e queria
provar seu valor e usar as habilidades que tinha aprendido com Tornac. (Se não
estivesse em Urû’baen, Tornac teria argumentado contra a patrulha.) Assim sendo,
Murtagh convenceu Varis a deixá-lo ir junto.
Quando estavam próximos de algum vilarejo com pinheiros nas terras de Varis,
os patrulheiros foram emboscados. A luta foi curta, barulhenta e confusa. No meio
do combate, um Urgal derrubou Murtagh da sela, e ele mal conseguiu se levantar
antes de o brutamontes estar em cima dele, brandindo um cutelo pesado — era mais
uma maça afiada do que uma espada.
O escudo de Murtagh se partiu, e ele percebeu que tinha apenas alguns segundos
de vida. Todo o seu treinamento com a espada não serviria muito contra a pura força
e violência de um ataque Urgal.
Mas então outro Urgal surgiu e afastou o que atacava Murtagh. Era o líder do
bando, com um estandarte carmesim com um estranho símbolo preto costurado
estampado no ombro.
O líder deu um sorriso horrível: os dentes eram afiados e amarelos, e o hálito
fedia a carne podre. O restante dos Urgals largou as presas e formou um círculo ao
redor deles, gritando, berrando e batendo no peito enquanto os dois se
aproximavam.
Murtagh sabia o que esperavam dele. E tentou cumprir a expectativa. Mas o líder
Urgal empunhava um machado de cabo longo e Murtagh não sabia como se
defender daquela arma. O machado era como a combinação das piores partes de
uma lança e um pique, e o Urgal rapidamente atacou, cortando o ombro esquerdo e
a coxa direita de Murtagh e quebrando uma de suas costelas. Murtagh caiu e teria
morrido se não fosse por Varis.
O conde havia cavalgado com um grupo maior de soldados. Eles expulsaram os
Urgals e mataram muitos, mas não, para a tristeza de Murtagh, o líder.
E tinha sido o mesmo Urgal de estandarte carmesim que liderara os Kull que
perseguiram ele e Eragon nas profundezas das montanhas Beor...
Murtagh estremeceu e voltou a atenção para a aldeia abaixo. Aparentemente, um
tratado foi assinado entre Urgals, humanos e elfos. De fato, Eragon até os havia
acrescentado ao pacto que unia Cavaleiros e dragões (embora a ideia de um
Cavaleiro Urgal ainda fizesse Murtagh hesitar), mas se a notícia do tratado havia
chegado ou não a esta aldeia isolada era uma pergunta sem resposta.
Como você acha que eles reagiriam se nos revelássemos?, perguntou a Thorn.
Os pensamentos do dragão ficaram alegres.
Todos eles iriam querer lutar com você, para provar que conseguiriam.
É provável.
Parte de Murtagh ficou tentada. Ele não nutria nenhum amor pelos Urgals —
ainda tinha pesadelos com o líder e com a luta durante a Batalha de Farthen Dûr —,
mas estava curioso. Se havia uma coisa que os últimos anos lhe ensinaram, foi a
importância de conhecer e compreender tanto a si mesmo quanto ao mundo ao
redor. Murtagh achava não ter uma boa compreensão a respeito dos Urgals.
Reconhecer a própria curiosidade o surpreendeu. Ele realmente estaria disposto a
sentar e conversar com um Urgal, apesar das atrocidades que eles cometeram no
reino inteiro. Afinal de contas, Murtagh também tinha a própria parcela de
violência.
Diante dessa compreensão, seus músculos ficaram menos tensos, e ele afrouxou a
pegada na frente da sela. Os Urgals eram bastante perigosos, mas ele e Thorn
também eram. Isso não significava que não eram dignos de investigação.
Um fio de fumaça acre saiu das narinas de Thorn e passou por cima dele.
Eu assaria os Urgals com fogo e os comeria se nos atacassem, comentou o
dragão.
Comer um Urgal? Sério? Eu não consigo imaginar que o gosto deles seja bom.
Além disso, eles não são animais.
Thorn bufou com desdém e deu a volta para a baía.
Eles são carne. Carne é bom.
Mais uma vez, Murtagh se lembrou das diferenças entre os dois e não fez
nenhuma tentativa de esconder sua repulsa.
Você comeria um humano também?
Indiferença foi a resposta de Thorn.
Se eu não gostasse do humano. Por que não?
Porque é errado. Você não seria diferente de um Ra’zac!
Thorn soltou um sibilo agudo.
Não me compare com aquelas criaturas imundas. Eu sou um dragão, não um
carniceiro.
Então não aja como um. Prometa que não vai comer nenhum humano, elfo ou
Urgal no futuro. Pelo meu bem.
Hmmpf. Está bem.
Não foi sem motivo, refletiu Murtagh, que os elfos forjaram o vínculo inicial
entre eles e os dragões. Ele franziu a testa ao pensar em todos os ovos de dragão
que Eragon havia levado para o monte Arngor. Alguns deles foram encantados para
que os filhotes em seu interior pudessem se unir aos Cavaleiros, mas os demais
eram ovos de dragões selvagens, sem vínculos e livres para agir como quisessem.
Como esses dragões selvagens se encaixariam na Alagaësia quando tivessem idade
suficiente para retornar?

À medida que o dia avançava, formou-se uma espessa camada de nuvens baixas o
suficiente para arranhar os picos das montanhas. Isso forçou Thorn a voar mais
perto do chão do que ele preferia, a fim de não perderem de vista o vilarejo dos
Sonhadores.
Antes que a noite caísse, eles avistaram mais três assentamentos de Urgals
escondidos entre as dobras das montanhas. Murtagh sempre pensara que os Urgals
vivessem em cavernas. Foi o que lhe disseram enquanto crescia. Foi estranho saber
que eles tinham cidades, semelhantes a humanos.
Quantos deles existem?, questionou Murtagh.
O suficiente para o exército que ele formou, disse Thorn.
Murtagh assentiu. Era verdade. A horda que atacou Tronjheim era igual a
qualquer exército do reino. O que significava que os Urgals eram muito mais
numerosos do que se acreditava.
Eles têm prosperado desde a queda dos Cavaleiros, observou Murtagh.
Teremos que expulsá-los?
Só se eles se tornarem um incômodo novamente. Eragon acha que consegue
mantê-los como aliados, mas...
Você não concorda?
Não sei. Às vezes, Eragon tem um bom pressentimento para essas coisas, mas
também é bastante ingênuo quando se trata da realidade da guerra e da política.
Pelo menos, costumava ser.
Eles pousaram para passar a noite próximo a um pequeno riacho da montanha
que desaguava na Baía do Fundor. Enquanto Murtagh montava acampamento, um
rugido incomum o assustou.
Ele se virou e viu um grande urso-pardo sobre as patas traseiras a menos de seis
metros de distância. A fera era alta como um Kull e muito mais parruda e
musculosa.
A pulsação de Murtagh disparou por um segundo, mas ele se controlou. O urso
não era uma ameaça. Uma única palavra seria mais do que suficiente para matá-lo,
mas Murtagh não queria fazer aquilo. Thorn e ele eram os intrusos, não o urso.
Thorn serpenteou a cabeça em volta de Murtagh e rosnou em resposta, fazendo o
urso parecer insignificante em comparação.
O animal não pareceu se assustar. Rugiu novamente, ficou de quatro e se
levantou de novo, com patas e garras estendidas.
— Qual é o seu problema? — gritou Murtagh. — Você é estúpido? Não percebe
que não pode vencer?
O urso rosnou para Murtagh, olhou para Thorn e soltou um berro longo e
indignado. Murtagh teve a intuição de vasculhar os arredores com a mente,
procurando por filhotes ou outros ursos. Nada.
— Acho que ele só quer lutar.
Os olhos do dragão brilharam.
Então lutaremos.
— Não, por favor. Agora não. Foi um dia longo.
Thorn bufou, desapontado.
Está bem. Como quiser.
O dragão soltou um jato comprido de fogo vermelho e laranja diretamente sobre
a cabeça do urso, chamuscando o pelo nas pontas das orelhas.
O urso uivou, deu meia-volta e desceu até a costa mais rápido do que um homem
seria capaz de correr.
— Obrigado — disse Murtagh enquanto observava o animal partir. — Aposto
que ele nunca encontrou nada que não conseguisse intimidar antes.
Bem, isso mudou, respondeu Thorn, parecendo satisfeito.
Murtagh olhou para as montanhas cobertas de neve e torceu que ninguém tivesse
ouvido a comoção.
— Devemos ter cuidado de agora em diante — disse, voltando à fogueira que
estava armando. — Nunca se sabe quem pode estar ouvindo. Especialmente aqui
fora.

Naquela noite, tanto Murtagh quanto Thorn tiveram sonhos terríveis, e os pesadelos
se espalharam de uma mente para a outra, até ser impossível dizer de qual delas se
originaram. Urgals apareceram em muitos dos sonhos: um grande exército deles
marchando pela Espinha, com um rei à frente e as cabeças dos inimigos cravadas
nas lanças. Uma batalha sangrenta sob os pinheiros escuros, com Urgals berrando
como ursos e humanos gritando. Murtagh e Thorn agachados perto das raízes
reviradas de uma árvore caída, tentando se esconder. Eles choravam, choravam,
choravam, e as lágrimas caíam na terra junto com as gotas de sangue negro...
Naquela noite, o sono agitado não lhes permitiu descansar. Quando acordaram, os
dois ainda estavam exaustos.
Aqueles sonhos não foram normais, disse Thorn.
Não. Há algo estranho nessa terra… Não podemos estar longe, creio eu.
As palavras de Murtagh se provaram proféticas. No meio da tarde, quando Thorn
contornou o flanco de um pico bem alto, um rio de correnteza rápida ficou à vista,
saindo de uma fenda na Espinha e desaguando na Baía do Fundor. Uma manta de
nuvens baixas cobria a fenda, e o interior era profundo, escuro e densamente
arborizado. No entanto, as sombras e as árvores não escondiam a mortalha de
fumaça azulada que se acumulava no fundo do vale estreito.
Conforme o vento soprava, carregava junto um fedor sulfuroso que fez a garganta
de Murtagh arder e os olhos lacrimejarem.
Ele se endireitou na sela, sentindo uma estranha empolgação.
Eles haviam chegado.
CAPÍTULO I

O vilarejo

T horn entrou pela fenda, planando com as asas imóveis. O teto macio de nuvens
abafava o ar, e o silêncio apenas aumentou a expectativa de Murtagh, que estava
inclinado para a frente na sela, espiando por cima do pescoço de Thorn para
enxergar o que estava por vir.
As encostas das montanhas formavam muralhas branco-azuladas em ambos os
lados, interrompidas por penhascos de granito cinza e sem vegetação que se
projetavam das fileiras de árvores cobertas de neve. Lá embaixo, o rio corria rápido
em seu curso estreito, a água tão limpa que Murtagh era capaz de contar as rochas
arredondadas sob a superfície ondulada.
À medida que se aproximavam do fundo do vale, o cheiro de ovos podres ficou
mais forte e, para surpresa de Murtagh, o ar pareceu ficar mais quente também,
como se os dedos gelados do inverno ainda não tivessem tocado as regiões ao norte.
Sob a cortina de fumaça que se estendia sobre os contrafortes acumulados diante
dos dois, Murtagh viu estruturas de pedra cinza-escuro construídas uma ao lado da
outra, com telhados abobadados. Não era o estilo de construção visto pela
Alagaësia. Ele achou que fossem casas, mas havia também algo parecido com uma
torre estreita que não estaria deslocada em Urû’baen e o que parecia ser um palácio
ou templo situado na base da colina mais próxima, com um grande pátio aberto e
um telhado escalonado.
Figuras eram visíveis nas ruas, mas estavam obscurecidas pela distância e pela
fumaça.
A terra ao redor do vilarejo estava carbonizada, tão preta quanto um tronco
queimado, rachada e quebradiça, com filetes de fumaça que subiam de bolsões ocos
onde a superfície do solo havia desabado. Da terra arrasada se erguiam algumas
árvores sem vida, os galhos nus e acinzentados, e a casca dos troncos caindo aos
pedaços.
A cautela abafou a expectativa que Murtagh estava sentindo. Apesar de todos os
poderes que detinham, Thorn e ele estavam sozinhos. Como aconteceu com
Galbatorix e Jarnunvösk. Se as coisas dessem errado, eles não teriam ajuda. Lorde
Varis não viria a cavalo para resgatá-los, Tornac não apararia um golpe direcionado
ao pescoço de Murtagh, e Eragon e Arya estavam muito longe para chegar a tempo.
Um grunhido curto ressoou nas laterais do corpo de Thorn, e Murtagh pôde senti-
lo da sela.
Galbatorix e Jarnunvösk foram impetuosos e tolos. Não repetiremos os erros
deles.
— Vamos torcer para que não. Dê meia-volta por enquanto. Prefiro não me
apressar em nada.
Thorn se inclinou e, sem uma batida de asas ou movimento de cauda que pudesse
ter revelado a presença deles, planou de volta para a boca da fenda. Havia um
caminho ao longo do rio, e Murtagh pensou ter visto redes e diques construídos na
água cristalina.
Por um acordo tácito, Thorn desceu na encosta de uma colina, a uma montanha
de distância da fenda, onde uma crista aguda escondia os dois do vale estreito.
Murtagh afrouxou as tiras em volta das pernas e escorregou até o chão. Ele
alongou os braços e olhou para a Baía do Fundor antes de se voltar para Thorn.
— O que você acha?
As escamas do pescoço de Thorn se agitaram.
Nenhum vilarejo tem meios para construir tais carapaças.
— As casas? Concordo. Não sem muita ajuda. Ou então usaram magia.
Ele coçou o queixo. Não conseguiria se barbear hoje. Sem uma adaga ou faca de
acampamento, Murtagh seria obrigado a usar um feitiço para remover a barba, e
isso o deixava mais nervoso do que uma boa lâmina confiável.
Thorn se aproximou e colocou a cabeça apoiada no ombro de Murtagh.
Quanto tempo você acha que vai ficar ausente?
— Não vou me ausentar. — Murtagh sorriu. — Desta vez, acho que devemos
fazer as coisas de maneira diferente. Desta vez, a situação exige alguns trovões e
relâmpagos.
A língua vermelha e comprida do dragão serpenteou para fora da boca e lambeu
os lábios de um jeito voraz.
Isso me parece muito apropriado.
— Imaginei.
Você pretende matar Bachel?
— Pretendo conversar com ela. Se tivermos que lutar, lutaremos, mas... —
Murtagh franziu a testa. — Precisamos descobrir o que ela e os Sonhadores querem.
Qualquer que seja seu objetivo, eles o perseguem com determinação.
E você quer farejar quantos deles estão no reino de Nasuada.
— Isso também, embora eu duvide que Bachel vá nos contar. Pelo menos não
voluntariamente. — Ele coçou o focinho de Thorn. — De todo modo, teremos que
ter cuidado.
Nossas proteções devem nos manter a salvo de magia sem palavras, assim como
mantém do resto.
Ele lançou um olhar significativo ao dragão.
— Talvez, difícil dizer. Se as coisas derem errado, talvez seja melhor fugir.
Fugir ou lutar, estarei pronto para os dois.
— Então vamos.
Murtagh percorreu a lateral do corpo reluzente de Thorn até onde os alforjes
estavam pendurados. Abriu e removeu, em ordem: Zar’roc, touca de proteção e
capacete, braçadeiras e grevas, escudo triangular com borda de ferro — do qual
raspara o emblema do Império —, camisa acolchoada e peitoral. Quando não estava
marchando para uma batalha campal, Murtagh preferia usar uma cota de malha, por
ser mais fácil de se mover nela, mas não era mobilidade nem mesmo proteção que
ele buscava. Era intimidação.
Assim, pela primeira vez desde a morte de Galbatorix e a queda do Império,
Murtagh decidiu substituir o subterfúgio pelo espetáculo.
Enquanto colocava a armadura, o peso conhecido do equipamento se acomodou
no corpo com um confinamento frio e ameaçador. Peça por peça, ele montou a si
mesmo — ou melhor, uma versão de si mesmo que estava tentando abandonar:
Murtagh, filho de Morzan. Murtagh, o terrível servo de Galbatorix.
Murtagh, o traidor.
Havia um diadema de ouro no elmo que parecia uma pequena coroa. O conceito
de humor de Galbatorix. Ele apresentou Murtagh como seu braço direito no
Império. Um novo Cavaleiro, descendente dos Renegados, que jurou lealdade ao rei
e se devotou à causa de Galbatorix. Diante das multidões, o rei o tratava quase
como filho, mas, longe dos olhares do povo, onde a verdade não podia ser
escondida, Murtagh era apenas um escravo.
Ele colocou o elmo na cabeça, andou até um lago pantanoso cercado de
amentilhos e estudou o próprio reflexo. Parecia um jovem príncipe enviado para a
guerra. Com a austeridade que o semblante havia adquirido durante o ano anterior,
ele se viu pensando que não gostaria de lutar contra si mesmo.
Murtagh assentiu.
— Vai servir. — Ele olhou para Thorn. — Pena que não temos nenhuma
armadura para você.
Thorn fungou.
Eu não preciso. Além disso, a armadura teria que ser refeita a cada meio ano.
Era verdade. Como todos os dragões, Thorn continuaria a crescer durante a vida
inteira. A taxa de crescimento diminuía proporcionalmente à massa total, mas nunca
cessava. Alguns dos dragões antigos, como o selvagem Belgabad, eram enormes.
Murtagh prendeu Zar’roc ao cinto, fechou os alforjes e voltou a subir nas costas
de Thorn.
— Letta — disse, e com isso o feitiço que escondia Thorn foi lançado. — Muito
bem. Vamos conhecer a bruxa Bachel.
Thorn emitiu um ronco para mostrar que concordava, levantou as asas bem alto,
como velas carmesim viradas para o vento, e as desceu. Murtagh agarrou uma das
escamas do pescoço do dragão quando este saltou para o céu e o vento frio soprou
com uma promessa de enxofre.

Terra à frente, disse Murtagh a Thorn enquanto voavam para a fenda. Abra bastante
espaço. Se tivermos que lutar, não quero que você seja imobilizado ou encurralado.
Por um momento, o entusiasmo de Thorn diminuiu.
Não se preocupe. Não vou deixar que aconteça aqui o que aconteceu em Gil’ead.
Eu sei. Murtagh deu um tapinha no pescoço do dragão. Mas não vamos arriscar.
Thorn desceu do teto de nuvens, com redemoinhos de névoa girando nas pontas
das asas de morcego. Ele circulou por cima do vilarejo, visível para os que estavam
abaixo. Gritos ecoaram entre as construções e um sino começou a soar com alarme
urgente. O dragão desceu mais uma vez e varou o véu de fumaça.
Os olhos de Murtagh arderam e um gosto pungente se formou no fundo da boca.
Com um rugido ameaçador, Thorn pousou na terra devastada em frente ao
vilarejo. A crosta de terra rachou sob as patas, e ele afundou centímetros no solo
coberto de cinzas. A visão lembrou Murtagh da Campina Ardente, mas percebeu
com uma olhada rápida que o chão não parecia conter turfa ou carvão que pudesse
alimentar um incêndio contínuo.
Murtagh ouvia o soar dos sinos e viu homens e mulheres vestidos de robes cinza
correndo pelas ruas enquanto procuravam desesperadamente abrigo nas construções
próximas. Elas não serviriam de muita proteção contra um dragão.
Murtagh sacou Zar’roc e segurou a espada acima da cabeça. A lâmina carmim
brilhou na luz opaca do inverno, combinando com as escamas de Thorn.
— Ouçam! — gritou, erguendo a voz como se estivesse se dirigindo a uma tropa
reunida. — Meu nome é Murtagh e vim falar com a bruxa Bachel! Venha, Bachel,
para que possamos conversar!
Os sinos pararam de dobrar e um silêncio sinistro tomou conta do vale e do
vilarejo. Na quietude, Murtagh percebeu um leve assobio vindo dos respiradouros
que descarregavam vapor perto das patas de Thorn.
Um por um, vários indivíduos vestidos com robes — tanto homens quanto
mulheres — emergiram das construções e se reuniram na estrada principal. Eles
formavam um grupo heterogêneo: alguns eram do tipo pálido do norte, outros
tinham a pele tão marrom quanto os surdanos, e alguns compartilhavam o tom
negro retinto de Nasuada. Os indivíduos espiaram por baixo de seus capuzes, com
expressões de raiva e preocupação, mas não tão amedrontados quanto ele esperava.
Era de imaginar que sentissem mais medo de um dragão e um Cavaleiro, disse a
Thorn.
O dragão correu a língua pelos dentes.
Eu posso corrigir esse erro.
Murtagh escondeu um sorriso.
Talvez mais tarde.
— Bachel! — gritou ele. — Apareça!
O grupo de pessoas se abriu quando um homem alto de cavanhaque veio à frente
e, com um olhar frio, inspecionou Murtagh e Thorn. Tinha duas mechas brancas de
cada lado da barba e entradas pronunciadas no cabelo, enquanto as bochechas
raspadas eram encovadas e esburacadas por causa da varíola. Em termos físicos, foi
impossível para Murtagh localizar a ascendência do homem. A testa era baixa, as
maçãs do rosto, salientes, e ele tinha uma aparência feroz e rústica, como se fosse
uma forma anterior de ser humano. Ao contrário dos outros, o robe tinha listras
roxas costuradas nos punhos das mangas.
Para a surpresa de Murtagh, o homem fez uma mesura formal e disse:
— Bem-vindo, Dragão. Bem-vindo, Cavaleiro. — Seu sotaque lembrou a
Murtagh mais a fala de um Urgal do que qualquer língua humana. — Venham
comigo. Bachel os aguarda
O homem ossudo se virou e entrou no vilarejo, subindo a estrada principal. Como
diante de um sinal invisível, o resto do grupo se dispersou entre as construções.
— Maldição — murmurou Murtagh.
Ele não era um cachorrinho para ser chamado ao bel-prazer de Bachel. Porém,
ele e Thorn eram intrusos ali. Ou, sendo generoso, visitantes. Esperar que Bachel
fosse até eles talvez seria muito atrevimento, dependendo dos costumes daquele
povo.
E ele não queria ser muito atrevido. Ainda não.
Mesmo assim, odiou entrar na vila. Seria o lugar perfeito para uma armadilha, se
os Sonhadores assim quisessem. E ainda tinha Thorn: os prédios pareciam muito
próximos para Murtagh.
Eu vou ficar bem, disse Thorn. Não se preocupe comigo.
Como não? Talvez eu devesse ir sozinho.
Thorn rosnou. Não! Preferia arrancar meu próprio rabo. Vamos ficar juntos.
Tem certeza? Absoluta?
Tenho!
Está bem. Mas se precisar partir, nós partimos, não importa o que aconteça. Não
quero esperar até que seja tarde demais.
Eu prometo, respondeu Thorn, vibrando em aprovação.
Murtagh bateu com a lâmina de Zar’roc na coxa, enquanto observava a vila por
mais um momento. A bruxa jogaria seus joguinhos, e isso não importava. Murtagh
se recusava a esperar como se fosse um camponês suplicante em busca de um favor.
Ela poderia vê-lo entrar em seu domínio, altivo e destemido.
— Vamos atrás dele, então.
Thorn apertou as asas contra os flancos e avançou. As garras estalaram
ruidosamente nas lajotas cobertas de musgo que pavimentavam a estrada conforme
entraram na vila.
Conforme temia, havia pouco espaço entre as construções, e Thorn começou a
ficar tenso. Murtagh sentia a apreensão do dragão como se fosse dele. Mesmo
assim, por enquanto, ele se manteve sob controle.
Murtagh nunca tinha visto construções como aquelas. A alvenaria era de
qualidade anã, mas com uma elegância élfica, e havia estranhas runas — nem anãs
nem élficas — gravadas nas molduras e padieiras das portas em arco. As cornijas
eram decoradas com esculturas de feras parecidas com dragões rugindo, cujos
semblantes davam a Murtagh uma sensação incômoda de estar sendo observado,
como se toda a aldeia fosse uma criatura viva agachada rente ao chão, esperando
pela presa.
A característica mais incomum eram os padrões entalhados nas paredes,
dispostos em mosaicos e pintados nas persianas — padrões cristalinos em
redemoinhos que se ramificavam e pareciam se repetir à medida que diminuíam:
variações de um mesmo tema. Eles exerciam um fascínio perigoso. Murtagh achou
que seria capaz de olhá-los pelo resto da vida e ainda encontrar coisas novas para
ver, por causa da quantidade obsessiva e aparentemente impossível de detalhes.
Quanto mais Murtagh olhava, mais a visão começava a girar e oscilar. As
decorações o lembraram das profundezas complexas de um Eldunarí... ou de formas
que apareciam apenas nos sonhos mais profundos.
Com esforço, ele se concentrou em outra coisa.
O curioso artesanato o perturbava. Encontrar criações tão perfeitas e bem-feitas
em um lugar tão isolado não fazia sentido. Deveria haver uma longa linhagem de
obras semelhantes em outros lugares, mas não era o caso. Não na Alagaësia, pelo
menos, e se a tradição veio do outro lado do oceano, bem, isso não era menos
explicável.
Murtagh se remexeu na sela, sentindo como se o chão tivesse se inclinado um
pouco. Havia um mistério mais complexo do que o previsto.
Cuidado, disse ele.
Uma sensação de confirmação sucinta veio de Thorn.
O homem de cavanhaque estava esperando pelos dois no meio do vilarejo. Ao
vê-los, ele se virou e continuou andando em um ritmo constante, com os braços
compridos balançando, as mãos enormes quase na altura dos joelhos. A cada passo,
ele apoiava o pé inteiro nas lajotas — uma pisada firme e inabalável, com o
calcanhar e dedos pisando ao mesmo tempo —, e então erguia o pé da mesma
maneira. Pisar, levantar. Pisar, levantar.
A rua subia por uma ladeira íngreme à medida que avançava para o outro lado do
vilarejo. Conforme prosseguiam, Murtagh mantinha um olho atento nos telhados,
nos becos, nas esquinas: qualquer lugar onde inimigos poderiam estar esperando.
Mas ninguém apareceu e ele não queria arriscar abrir a mente para vasculhar a área.
Essa era uma boa maneira de se deixar à mercê de um ataque mental.
Quanto mais Murtagh via do povoado, mais tinha a impressão de que era muito
antigo. As esculturas estavam desgastadas, os degraus, limados. As paredes se
curvaram por séculos de peso, e várias estruturas desabaram sobre si mesmas e
permaneciam como ruínas cobertas de líquen.
Não gosto deste lugar, disse Thorn.
Também não.
Murtagh voltou a segurar firme a espada e o escudo. Talvez devesse ter contatado
Eragon. Havia muitos segredos no mundo, e alguns deles eram mais antigos que os
Cavaleiros. Nasuada tem que ser informada disso, pensou.
O homem os conduziu a uma praça modesta diante de uma construção
semelhante a um templo. Uma fonte ficava no centro do pátio, mas estava seca,
cheia de poeira e coberta de musgo, e o remate estriado no topo havia rachado e
partido de lado, deixando uma ponta de cinzel de pedra apontando para o céu
sombrio.
O templo — Murtagh tinha decidido que era um templo — tinha um telhado de
duas camadas, sendo o mais alto uma cúpula com reforços igual às outras
construções da aldeia. Uma fileira dupla de colunas guardava a entrada sob
sombras, enquanto uma fileira de esculturas de dragões surgia entre as janelas
estreitas. Envolvendo as colunas, os pedestais e as estátuas com escamas estavam os
mesmos padrões cristalinos vistos em outros lugares: uma membrana de veios
erodidos, podres, desfiados e marcados pelo tempo.
Mesmo quando novo, o templo teria possuído uma presença sombria e
desagradável. No estado de decadência em que se encontrava, a massa sombria do
edifício era ainda mais assustadora, projetando uma sensação de força antiga e
duradoura — dura como ferro, obstinada e implacável.
O homem de cavanhaque parou e se posicionou ao lado de um dos pilares que
ladeavam uma entrada recuada. Ele uniu as mãos pesadas diante do corpo.
Uma trompa soou dentro do templo, emitindo uma nota longa e oscilante em um
tom sinistro, e o som ecoou com efeito terrível nas paredes das construções e nos
flancos das montanhas. Murtagh sentiu um arrepio e ergueu Zar’roc em prontidão.
Lembre-se de quem você é, disse a si mesmo.
Passos pesados se aproximaram vindos do interior do templo, botas marchando
em ritmo sincronizado. Sob as sombras da entrada, emergiu uma fileira dupla de
quatorze homens de armadura, com escudos e lanças erguidos. Os capacetes e
peitorais estavam amassados e manchados, e tinham um estilo desconhecido. Mas
as lâminas das lanças eram afiadas e livres de ferrugem, e eles portavam espadas
nas cinturas.
A formação se partiu ao meio, e os guerreiros se posicionaram de cada lado da
entrada. Eles demonstravam uma disciplina admirável, se moviam com uma
precisão que deixava claro que não se tratavam de guardas cerimoniais, e sim de
guerreiros com experiência real em combate.
Atrás deles vieram outras catorze figuras: vestidas de branco, com capuzes
cobrindo os rostos, de modo que nada se visse de seus traços. Homens e mulheres,
todos segurando um conjunto de metal com hastes de ferro das quais pendiam sinos
largos. Eles os sacudiam a cada passo, com os sinos repicando um coro dissonante.
Havia um ar de ritual ancestral naquela procissão, como se aquilo viesse sendo
feito por mil anos ou mais.
Os tocadores de sinos pararam atrás dos guerreiros, onde continuaram sua
cadência.
Por fim, apareceram quatro homens usando uma armadura negra laqueada. Nos
ombros, carregavam uma liteira coberta, envolta em véus brancos diáfanos.
Uma figura era visível através dos véus.
Sem palavra ou sinal, os carregadores pararam na beira da praça e não se
mexeram. Eles olhavam para a frente sem pestanejar e aparentemente não se
assustaram ao ver Thorn.
Os sinos silenciaram.
Com um farfalhar de tecido deslizando, os véus se separaram.
Uma mulher se levantou para ficar de pé ainda na liteira. Ela, como tudo naquele
lugar, era singular. O cabelo era preto e reluzente como obsidiana e arrumado em
um intrincado amontoado no alto da cabeça, as mechas presas e organizadas em um
padrão desconcertante. Pulseiras de marfim adornavam os antebraços cor de mel, e
ela usava um vestido feito de faixas amarradas com nós, que desenhavam linhas
compridas das runas desconhecidas, como se a protegessem. Uma pequena adaga
pendia de um cinto dourado na cintura dela.
Ela era alta — mais alta do que a maioria dos homens —, com braços e pernas
fortes, um rosto anguloso e uma boca cruelmente vermelha-escura e torta. Os olhos
amendoados estavam cobertos de fuligem, o que lhes dava a aparência de
hematomas da cor do fruto do abrunheiro. Ela não parecia jovem nem velha; havia
uma indefinição em seus traços que tornava impossível determinar sua idade.
A mulher era tão impressionante que o primeiro pensamento de Murtagh ao vê-la
foi: uma elfa! Mas então ele observou com atenção e percebeu que as feições dela
não eram exatamente élficas. No entanto, também não eram inteiramente humanas,
e ele sentiu uma imensa inquietação.
Então a mulher sorriu para ele e para Thorn com tamanha cordialidade que
Murtagh ficou chocado.
— Bem-vindo a Nal Gorgoth, ó grandioso dragão — disse ela, com uma voz
baixa e melódica que vibrava com poder e convicção. — E seja bem-vindo também,
Cavaleiro. Estava esperando por você, meu filho.
CAPÍTULO II

Bachel

M urtagh se agarrou à sela de Thorn, a mente confusa. A mulher diante dele não
podia ser sua mãe. Cada parte sensata dele sabia disso. E mesmo assim... Sentia
como se tivesse dado um passo em falso e o caminho diante de si houvesse
desaparecido.
— Você é a bruxa que chamam de Bachel? — perguntou, tentando fingir
confiança.
Com um gesto elegante, a mulher inclinou a cabeça.
— Sou, meu filho.
Ele começou a ver aquela cena com mais clareza.
— Por que me chama assim?
Bachel indicou o pátio e todas as pessoas ali.
— Porque você é meu filho, assim como todos os seguidores do Grande Sonho.
— Não sou seguidor de nada nem ninguém.
Um brilho de diversão surgiu em seus olhos semicerrados.
— Duvido muito disso, Regicida.
Murtagh ficou ainda mais tenso.
— Você ouviu falar de mim.
— De você e de Thorn. As notícias de seus feitos viajaram muito, Regicida, e
chegaram aqui, no nosso reduto sagrado.
Murtagh percebeu uma característica arcaica no jeito dela de se expressar e se
lembrou de como o mais velho dos Eldunarí havia falado: um resquício de eras
passadas.
— E o que é isto aqui?
Murtagh gesticulou com Zar’roc para o templo e o vilarejo.
— Um lugar de muitos sonhos. — Bachel sorriu outra vez, aparentemente sem
malícia. — Você veio a Nal Gorgoth, Regicida, como eu previ. Há tempos espero
por você e por Thorn, e chegaram em boa hora.
Murtagh voltou a se sentir perdido.
— Espera por nós? Por quê?
O sorriso da bruxa aumentou, e ela ergueu os braços como se quisesse abraçar
toda a existência.
— Porque vocês são os salvadores do mundo.

Um silêncio profundo reinou no pátio.


Thorn estava tão confuso quanto Murtagh, mas antes que qualquer um deles
pudesse exigir uma explicação, Bachel riu, um som baixo e gutural, e então disse:
— Você não acredita em mim. Vejo em seus olhos. Isso não importa. Logo vai
entender a verdade. Responderei às suas perguntas, às que você já pensou e às que
ainda nem passaram pela sua cabeça. Mas não aqui nem agora. Faz eras que um
Cavaleiro e um dragão agraciaram nossa corte com sua presença. Teremos um
banquete para comemorar sua chegada, e vocês serão meus convidados de honra,
tanto você quanto o reluzente Thorn!
Ela se sentou e estalou os dedos. Os liteireiros cruzaram o pátio marchando até
uma plataforma de pedra no lado norte da praça. Os guerreiros seguiram e se
colocaram de cada lado da plataforma. Os liteireiros continuaram de pé, com a
liteira apoiada nos ombros, enquanto Bachel se reclinava no assento esculpido em
forma de trono.
— Grieve, cuide dos preparativos. Teremos comida, vinho e música. Que o Vale
dos Sonhos ecoe em uma alegre folia, neste mais fatídico dia.
O homem de cavanhaque fez uma reverência.
— Seu desejo é nossa ordem, Oradora.
O homem bateu palmas, e as pessoas de robes brancos com os sinos voltaram
para o templo enquanto homens e mulheres emergiam dos prédios ao redor. Eles
pareciam não precisar de ordens: quase sem dizer uma palavra, os aldeões
trouxeram mesas pesadas de madeira, braseiros de cobre cheios de carvão em brasa,
castiçais de ferro com velas de sebo gorduroso e peles de cervo e cabra para cobrir
as lajotas musgosas. Murtagh viu gente de todos os tipos, e aparentemente eles não
compartilhavam uma origem. Nem eram somente humanos. Ele viu duas anãs e o
que pensou que poderia ser um jovem Urgal — apesar de ter visto apenas um
vislumbre do rosto. As anãs não passaram nenhum sinal de hostilidade, mas a
presença delas aumentou a cautela de Murtagh.
Nal Gorgoth. Ele franziu a testa. O nome soava de origem anã, ao menos em
parte. Como aprendera durante seu tempo em Farthen Dûr, goroth significava lugar
na língua anã. Será que o nome da vila estava relacionado àquela palavra? Ou teria
outro significado completamente diferente? Também se lembrou de Du Fells
Nángoröth, que era como os elfos chamavam as montanhas ao centro do deserto de
Hadarac — onde os dragões selvagens costumavam viver —, e que foi traduzido
como as Montanhas Malditas. Como fells significava montanhas, então nángoröth
significava maldito.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo retorno de vários dos tocadores de
sinos carregando uma pesada e entalhada cadeira, que posicionaram diante do
tablado.
— Venha se sentar comigo, Regicida — disse Bachel. — E você também, dragão.
Juntem-se a mim.
Ela estendeu a mão e uma jovem vestida em um robe branco, com cabelos claros
e uma expressão devotada se aproximou rapidamente, lhe entregou um cálice de
pedra e o encheu com vinho de uma jarra de barro.
— Obrigada, milha filha — murmurou Bachel.
A jovem fez uma mesura e se retirou.
Murtagh avaliou a situação por um momento. Então desceu de sua sela, com
Zar’roc e o escudo ainda nas mãos.
Tem certeza?, perguntou Thorn.
Não, mas não vejo escolha. Fique por perto.
Não é possível que ela acredite no que falou.
O quê? Sobre nós salvarmos o mundo?
Sim.
Murtagh concordava; entretanto, o tom de Bachel tinha uma confiança objetiva
que o deixara com uma dúvida persistente. Estava acostumado a todo tipo de
mentiras, depois de viver na corte, mas não identificara falsidade no discurso ou na
postura da bruxa. Ela parecia por completo convencida da exatidão de suas
palavras, e era isso que mais o deixava hesitante.
Murtagh se aproximou lentamente da plataforma. Thorn se manteve atrás dele, as
garras batendo nas lajotas. Os quatorze guerreiros que acompanhavam Bachel se
empertigaram. Murtagh os ignorou.
Com um gesto gracioso, Bachel estendeu a mão para a cadeira entalhada.
Murtagh odiava se colocar em desvantagem, mas seria bom não quebrar todas as
regras da hospitalidade, então embainhou Zar’roc — embora mantivesse a mão no
punho — antes de se sentar diante da bruxa. As grevas e braçadeiras estalaram, e a
ponta do escudo bateu no piso pavimentado do pátio. A armadura o fez se sentir
desajeitado e grosseiro. Ele nunca a teria usado em um evento importante na corte,
mas havia um limite de quanta segurança sacrificaria por boas maneiras.
Assim que se sentou, dois aldeões se aproximaram para servi-lo. Puseram uma
pequena mesa diante dele, e nela depositaram pratos cheios de queijos, carnes e
mirtilos frescos, além de uma taça de vinho e uma tigela de água fria onde lavar as
mãos. Os mirtilos o intrigaram. Não era a estação daquelas frutas, o que significava
magia ou alguma forma de preservação que ele desconhecia.
Um dos homens fez uma reverência e se afastou, enquanto o outro permaneceu
por perto, a postos para suas necessidades.
Havia uma familiaridade reconfortante em ter um servo ao seu dispor novamente.
Era um dos benefícios de viver em Urû’baen que Murtagh não tinha valorizado até
ir embora. Ter que fazer tudo por conta própria — inclusive cozinhar — gastava
mais tempo do que ele gostaria.
Um leve sorriso curvou os lábios de Bachel, e ela bebeu um gole do cálice.
— Vejo que não está completamente à vontade entre nós, mas não tem nada a
temer aqui em Nal Gorgoth, Regicida.
— É mesmo?
Ela inclinou a cabeça.
— Pode deixar de lado suas armas e armadura, se quiser. Ninguém lhe fará mal.
— Minha senhora... — Murtagh fez uma pausa enquanto buscava as palavras
certas. — Gostaria de acreditar, mas como poderia, quando sei tão pouco de você?
Para sua irritação, Bachel respondeu sua pergunta com outra.
— Diga-me, meu filho, como encontrou este vale? Poucos sabem a respeito de
Nal Gorgoth, ou onde fica.
Murtagh girou a haste do cálice entre os dedos enquanto ponderava a melhor
resposta. Então provou o vinho. Para sua surpresa, reconheceu-o como sendo de
fabricação das Ilhas do Sul. Como veio parar aqui?
— Conheci vários homens que usavam amuletos de proteção que diziam ter sido
encantados por você — disse ele, e a encarou com um olhar firme. — Eles tentaram
me matar, mas falharam, e depois me contaram o que sabiam.
Uma linha tênue se formou entre as sobrancelhas de Bachel.
— Entendi. Foi você que conheceu alguns dos meus Olhos. Peço perdão pelo
comportamento deles. Eles não teriam atacado se soubessem quem você era. Eles
não sabiam, não é?
Murtagh balançou a cabeça.
— Não.
— Que bom. Mas devo perguntar: meus Olhos, meus filhos. Você os matou?
— Esses eu precisei matar. Mas não tornarei a fazer isso.
O olhar sombrio de Bachel o encarou por bastante tempo, e Murtagh se sentiu
compelido a acrescentar:
— Dou-lhe minha palavra.
— Então agradeço sua misericórdia. E, por acaso, os Olhos que você encontrou
estavam em Ceunon?
— Alguns. Não todos.
Por um instante, Murtagh pensou ter visto uma centelha de preocupação na
expressão de Bachel. Ele decidiu aproveitar a vantagem.
— Você tem muitos Olhos? — perguntou em um tom desinteressado.
Bachel voltou a atenção para a pequena ceia diante deles.
— Mais do que você acreditaria, Regicida.
Exatamente a resposta que Murtagh temia.
— Para que propósito, eu me pergunto?
— Tudo será revelado no seu devido tempo, meu filho. Não se preocupe. Mas
seja paciente. Os segredos do círculo sagrado não são compartilhados levianamente.
Ela falava em um tom tão agradável, e ao mesmo tempo tão firme, que Murtagh
achou difícil argumentar. A sensação é de que ele estaria errado em insistir, apesar
de tudo que sabia sobre os Sonhadores e seus feitos. No entanto, sua inquietação e
sua vontade de saber mais continuaram a perturbá-lo. Salvadores do mundo... mas
como? De quê? Ou ela está apenas tentando nos despistar?
Ela então voltou o olhar preguiçoso para Thorn.
— Ó grandioso dragão, quero lhe fazer uma pergunta, embora talvez soe
impertinente. Mas é a seguinte: você é maior do que a idade que aparenta. Sua
estatura é obra da natureza ou teve outra origem?
Thorn demorou a responder, mas quando falou foi se dirigindo tanto a Murtagh
quanto a Bachel.
Eu cresci mais rápido que a maioria dos filhotes, pois foi preciso. Então o fiz.
Não era inteiramente verdade, mas Murtagh sabia que Thorn odiava falar do que
Galbatorix fizera a ele, e não ia compartilhar detalhes tão dolorosos com uma
desconhecida. Ainda mais uma tão potencialmente perigosa quanto Bachel.
A bruxa assentiu como se entendesse.
— Claro. Essa é a natureza dos dragões.
E o que você sabe a respeito de dragões?, perguntou-se Murtagh. Ele gesticulou
para as fileiras de estátuas na frente do templo.
— Vocês adoram dragões?
Uma baforada de fumaça veio de Thorn. Que ideia excelente. Todos deviam
adorar nossa espécie.
Murtagh quase sorriu a contragosto.
Uma nota fria e aguda ecoou quando Bachel tamborilou a borda de seu cálice de
pedra.
— Não exatamente. Mas os reverenciamos, pois ainda nos lembramos do que
muitos já esqueceram. E consideramos algo sagrado estar ligado tão intimamente a
um dragão, como você está, Regicida.
Antes que Murtagh pudesse fazer mais perguntas, a bruxa desviou os olhos,
deixando claro que o assunto estava encerrado por enquanto.
Para Thorn, e apenas para ele, Murtagh perguntou: Como é a mente dela?
Não queria arriscar tocar pessoalmente a consciência de Bachel. Não até que
soubesse quais eram suas intenções.
O dragão sacudiu o toco da cauda. Diferente de todas que já senti.
Como assim?
Os pensamentos dela são como ferro, mas também são estranhos. É difícil
descrever. Aqui. E Thorn enviou a ele uma impressão, uma impressão de distância e
desolação e distorção, como se o mundo estivesse sendo visto através de um cristal
polido que mudava os formatos de cada ângulo.
Intrigado, Murtagh olhou de volta para Bachel e tentou conciliar sua aparência
com a estranheza de seu interior. Ela não é o que parece, disse.
Não, concordou Thorn.
Espalhados pela praça, os aldeões continuaram a organizar o festim. Cabras e
ovelhas foram abatidas, e belos pedaços de carne foram colocados sobre fogueiras
construídas nas lajotas. Enquanto os aldeões trabalhavam, Murtagh notou como
olhavam furtivamente para Thorn. Era como se o dragão fosse uma pedra-ímã
vermelha que os atraía. Seus corpos pareciam traçar linhas de força, como limalhas
de ferro. Alguns até foram corajosos o suficiente para estender mãos trêmulas,
embora nenhum ousasse tocá-lo. Na opinião de Murtagh, o comportamento deles
revelava não exatamente reverência, como Bachel havia dito, mas algo mais
próximo da idolatria.
Bachel o notou observando e pareceu adivinhar sua linha de raciocínio.
— Eles estão apaixonados pela beleza de seu dragão. Poucos em Nal Gorgoth se
lembram de tamanha visão.
Thorn zumbiu, satisfeito com as palavras dela.
— Alguns ainda lembram? — perguntou Murtagh.
— Sim.
— Você se incluiria entre eles?
Mais uma vez, o rosto anguloso da bruxa expressou diversão.
— Suas perguntas não têm fim, meu filho. Mas é melhor comer e depois falar do
que falar e depois comer.
— Claro. Perdão. A sabedoria das eras flui de sua língua.
Sua intenção fora ser sarcástico, mas acabou, sem querer, soando sincero.
Vários homens começaram a tocar liras entre as colunas do templo. A música era
em tom menor e tinha uma sensibilidade intensa e selvagem que aumentava a
estranheza do cenário.
Bachel levantou um dedo.
— Alín, me atenda — disse ela.
A mesma jovem vestida de branco que servira vinho à bruxa veio correndo e fez
uma profunda reverência.
— Sim, Oradora? — A voz dela era alta e agradável.
— O que você acha de nosso convidado, o grande dragão Thorn? — perguntou
Bachel.
Os olhos de Alín ficaram muito redondos, e ela se curvou novamente.
— Ele é esplêndido, Oradora. Temos sorte de a senhora ter permitido que ele nos
visitasse.
Permitido?, disse Thorn a Murtagh, meio confuso.
Uma coisa vou dizer: Bachel não parece preocupada com a nossa presença.
Ela não parece se preocupar com muita coisa.
Bachel pareceu satisfeita com a resposta de Alín.
— É, sim. Aproveite a presença dele enquanto pode, minha filha. Esses
momentos são raros ao longo do passar dos anos. Você tem sorte de viver em
tempos tão importantes.
— Sim, Oradora.
As liras soaram mais alto.
— Dance para nós agora, minha filha — disse Bachel, dando um tapinha no
ombro de um dos liteireiros. — Vocês também. Ponham-me no chão e juntem-se a
Alín. Compartilhem conosco sua alegria.
Os homens de armadura baixaram a liteira até a plataforma e desceram com Alín
para ficar entre as mesas colocadas diante deles. Os cinco começaram a se mexer ao
ritmo da música, girando e balançando com graça sinuosa.
A armadura dos homens não fazia ruído, notou Murtagh, como se fosse feita de
lã e não de madeira ou metal ou qualquer que fosse aquele material laqueado.
Em algum lugar entre as colunas, um tambor começou a bater, e então uma
trompa soou. Embora o rosto de Bachel permanecesse impassível, um fogo parecia
acender os olhos dela, que tamborilava o dedo médio da mão direita contra a
cadeira, no mesmo ritmo da música, com uma precisão inabalável.
Murtagh a observava pelo canto do olho. Não sabia o que pensar dela. Mesmo
sentada ali, a bruxa era uma figura imponente, alta e escultural, como um guerreiro
diante de um exército, e não havia ninguém no pátio que pudesse igualar a presença
dela. Nesse quesito, lembrava a ele a força inesperada de Nasuada.
Thorn cutucou o cotovelo de Murtagh, que pestanejou e apertou o cabo de
Zar’roc com a mão.
Depois de um minuto, Bachel disse:
— Você dança, Regicida?
Ele inclinou a cabeça.
— Muito bem, dizem.
— Dance para mim, então, por favor. Deixe meus filhos verem os estilos ilustres
do reino.
— Seu pedido é justo, senhora, mas minha armadura não é adequada para tal
folguedo, e não vou removê-la.
Ele pensou que sua recusa a chatearia, mas Bachel sorriu e pegou o cálice
novamente.
— Não importa. Você vai dançar para mim em outro momento, Regicida.
— Vou?
— Foi previsto, predito e, portanto, predestinado.
E ela voltou a observar Alín e os liteireiros.
Mais servos de robes cinza chegaram trazendo bandejas de comida: pão, leite,
manteiga e carnes salgadas. Grieve se juntou a eles na plataforma e fez uma enorme
reverência a Bachel.
— Dragão Thorn, temos cabras, ovelhas e vacas para você. De qual gostaria? —
quis saber o homem.
Eu comi antes de virmos para o norte e não estou com fome no momento, mas
agradeço a oferta.
Grieve se curvou novamente.
— Claro. Como desejar. Se mudar de ideia, é só pedir, e nossos rebanhos serão
seus para escolher como quiser.
Os olhos de Thorn cintilaram em resposta. Isso é muito gentil da sua parte.
Os dançarinos continuaram sem parar, e, em pouco tempo, os aldeões começaram
a trazer carnes assadas para a plataforma e o banquete começou de verdade.
Murtagh estava com fome, mas comeu pouco de cada prato, apenas o bastante
para ser educado, e bebeu com moderação. A bruxa, em comparação, foi voraz: ela
devorava um prato depois do outro, demonstrando o tipo de apetite que ele só vira
em soldados após dias de marcha forçada. Seus gestos eram delicados, porém —
para a surpresa dele — ela abriu mão de talheres para comer com as mãos. Era uma
mistura estranha de refinamento e barbárie. Junto com a comida, ela bebeu um
cálice após o outro, mas permaneceu alerta o tempo todo, e Murtagh não identificou
traços de embriaguez em sua fala.
Ou ela tem a estrutura física de um Kull ou é protegida por feitiços, disse ele a
Thorn.
Ou uma combinação das duas coisas.
Quando ela estendeu o cálice pela sétima vez, Murtagh deixou escapar uma
risadinha e balançou a cabeça.
— Está entretido, meu filho? — perguntou Bachel.
— É só que... Bom, nunca vi homem ou anão que pudessem se equiparar a você
em termos de bebida. Talvez um Urgal conseguisse, ou um elfo, mas nunca tive a
chance de beber com nenhuma dessas raças.
Bachel assentiu, sem se abalar.
— É porque minha mãe era de fato uma elfa. É por isso que meu sangue é quente
e tenho a força e a velocidade que tenho. Não há ninguém como eu em todo o
mundo.
A mente de Murtagh disparou. Ele cresceu ouvindo histórias de meio-elfos, mas
eles sempre foram mencionados como algo saído de mitos e lendas. Nunca havia
lhe ocorrido que poderia existir tal criatura... embora, considerando a questão,
Murtagh supôs que não era tão surpreendente assim. Elfos e humanos eram mais
aparentados do que, digamos, humanos e anões — que, como Urgals, tinham sete
dedos em cada pé —, e, com tanto tempo vivendo na mesma terra, era inevitável
que ocorresse alguma mistura.
Ela pode estar mentindo, disse Thorn.
Mas então como explicar... ela?
O dragão não soube responder.
Murtagh olhou de volta para Bachel.
— Sua mãe ainda...
— Ela morreu há muito tempo — disse Bachel em tom neutro. — Ela veio para
cá quando estava prenha de mim e morreu. Era isso que você queria saber, meu
filho?
Ele umedeceu os lábios.
— E seu pai? Ele era humano, imagino?
A bruxa fez um gesto lânguido com uma das mãos.
— Um lenhador, segundo me disseram. Ele também morreu há muito tempo.
— Entendo... Meus pêsames.
Bachel o encarou com seu olhar brilhante, como se tivesse crescido um chifre na
testa dele.
— Por que seus pêsames? Eles não estão sofrendo. Meus pais dormem o sono
longo e, caso estivessem aqui, meu filho, ficariam honrados em saber que eu, mais
do que ninguém, fui ungida como Oradora. Que eu fui escolhida pelo destino para
ler, interpretar e compartilhar a verdade das eras. Não chore por mim, Murtagh,
filho de Morzan. Não tenho pêsames aqui, apenas triunfo, glorioso e inevitável.
Então ela ergueu o cálice e voltou a observar aqueles que se mexiam ao som da
música.
À distância, um corvo soltou um grito agudo.

O festim se arrastou. Um fluxo constante de comida chegava à plataforma, os


aldeões não paravam de empilhar pedaços de carne nas grelhas colocadas sobre as
brasas, e a música continuava a elaborar sua melodia selvagem. Foi uma celebração
estranha: nenhum dos aldeões falou com Thorn ou Murtagh, nem mesmo quando o
serviram. Apenas Bachel conversava com os dois, e ela parecia mais interessada em
se fartar de comer e beber do que em conversar.
Murtagh não se importou. Os vários meses que passou viajando sozinho com
Thorn o acostumaram a ficar sentado, observando e pensando. E havia certo deleite
em ser servido, como fora durante o tempo que passara na corte de Galbatorix.
Sentia uma superioridade se instalando, e quando se dirigia ao criado que o servia,
uma autoridade indiferente tomava sua voz.
Combinava com a sua armadura.
Mesmo assim, estava consciente dos próprios sentimentos, e sabia que eram uma
armadilha, seduzindo-o à distração. Então, enquanto aproveitava o tratamento,
devido à sua posição, também fez um esforço para observar os aldeões e tentar
deduzir algo a respeito da natureza deles.
Um ponto em especial o impressionou: quando Bachel dava uma ordem, os
aldeões corriam como camundongos diante de um gato, quase desesperados para
agradá-la. E, no entanto, não pareciam temê-la. Ou, se temiam, era um medo
estranho. Murtagh enxergava consideração e respeito em suas ações. Ele sentia que
se conseguisse entender o porquê daquilo, compreenderia o mistério no coração de
Nal Gorgoth.
A sombra encheu o vale e as estrelas viraram faíscas frias no céu noturno quando
Bachel finalmente afastou seu prato, limpou a boca e se reclinou no trono. Sua pele
brilhava da gordura escorrida, e todo seu ser, tanto rosto quanto corpo, parecia
inchado pela grande quantidade de comida que ingerira.
— Um generoso baquete — disse Murtagh. — Seus cozinheiros devem ser
parabenizados.
Bachel inclinou a cabeça.
— Agradeço a gentileza. Você e Thorn são os maiores heróis da Alagaësia. Um
banquete como este, e mais ainda, é sua recompensa por direito. Se estivesse em
meu poder, decretaria mil dias de celebração em sua honra. É o que vocês merecem.
Murtagh a encarou, ponderando sobre o elogio. Seria possível que os rumores
sobre os Sonhadores, sobre a própria Bachel, fossem falsos? Ou enganosos? Talvez
Bachel não fosse o que ele pensara. Afinal, se as pessoas fossem julgá-lo a partir
dos rumores, elas o considerariam um vilão digno de apavorar mesmo o mais
valente dos corações.
— Minha senhora, comemos e comemos bem. Podemos agora conversar? —
perguntou ele então.
— É claro, meu filho. Sobre o que deseja falar?
Murtagh tinha tantas questões que mal soube por onde começar.
— Ouvi chamarem seu povo de Sonhadores. Isso é correto?
A expressão de Bachel ficou plácida, e com um só gole ela esvaziou o cálice e o
apoiou ao lado da liteira.
— É correto.
— E com o que sonham?
— Com transformar a face da terra, meu filho. — Bachel voltou seus olhos
contornados de preto para ele. — Como está predestinado desde o início dos
tempos. E você e Thorn estão destinados a ajudar.
A certeza com que a bruxa falava lhe causou um calafrio. Em parte, porque o
lembrava muito da convicção ferrenha de Galbatorix — uma convicção nascida das
ilusões do rei e de seu poder desenfreado. E em parte porque ele se perguntava se
ela dizia a verdade.
— Você fala com muita confiança sobre o futuro.
— É claro, pois sou uma vidente. Uma profetisa. Uma adivinha, se preferir.
Possuo o dom de prever o futuro e, diante de mim, todos os caminhos se
desenrolam.
Murtagh sentiu um frio na espinha. Profecias existiam, mas eram raras, muito
raras e, até onde ele sabia, limitadas ao futuro próximo. Se a bruxa enxergava além
disso, então talvez fosse a criatura mais poderosa de toda a Alagaësia.
Eu não acredito em destino, disse Thorn a ele. Nós fazemos nosso próprio
caminho no mundo.
Sim, mas se ela pode prever qual escolheremos, como poderemos competir? E o
que exatamente ela vê no nosso futuro? Um desejo voraz de descobrir o queimava
por dentro.
— É por isso que seu povo a chama de Oradora? — perguntou ele. — Porque
você fala do futuro com eles?
Bachel abriu um leve sorriso.
— Não, não exatamente. Sou a voz escolhida pelo Sonhador dos Sonhos, de
quem flui toda a sabedoria. Falo pelo Sonhador, por isso sou a Oradora.
— E quem é... — começou Murtagh quando a bruxa não se estendeu na
explicação.
— Alguns segredos não devem ser compartilhados com forasteiros. — Ela o
encarou demoradamente, seu olhar duro e crítico. — Embora talvez você seja uma
rara exceção, meu filho.
Murtagh franziu o cenho. Só porque estava acostumado às evasivas das intrigas
da corte não significava que as considerava divertidas.
— Minha senhora... Se é mesmo um oráculo, pode nos dar uma demonstração de
seus poderes, para que nos maravilhemos com seu dom?
Pela primeira vez, Bachel pareceu ofendida.
— As visões que recebo são para um propósito sagrado, e estaria arriscando a ira
do Sonhador se tivesse a presunção de exigi-las apenas para satisfazer meus
próprios desejos egoístas. Seria uma profanação do meu papel de Oradora.
Que conveniente, pensou Murtagh. Porém, antes que pudesse expressar sua
dúvida, Bachel prosseguiu:
— No entanto, lhe direi uma coisa, Cavaleiro, e falo a verdade, pois conheço o
que está por vir. Em breve, você e Thorn levantarão voo e mancharão lâminas e
garras de vermelho a serviço da causa dele. Isso eu prometo.
Thorn rugiu baixo e Murtagh sentiu um calafrio.
— E o que mais viu do nosso futuro? Por que nos chama de salvadores da terra?
A boca de Bachel se entortou ainda mais em um sorriso enigmático.
— Falaremos disso em breve, e de muito mais. Também prometo. Mas está tarde
e vocês devem estar cansados da viagem. Por enquanto, devem descansar. Meu
povo providenciará para que sejam bem cuidados. Se precisarem de alguma coisa,
basta pedir. Grieve!
O homem de cavanhaque se aproximou.
— Sim, Oradora?
— Escolte nosso convidado até os aposentos com vista para a Torre de
Pederneira. Durma bem, Regicida, e que seus sonhos lhe tragam compreensão.
Amanhã conversaremos a respeito da nova era que está surgindo.
Então Bachel deu uma ordem aos servos de armadura, que levantaram a liteira e a
carregaram do pátio de volta ao templo. Depois que ela se foi, os músicos pararam
de dedilhar as liras, e os tambores também silenciaram. Em pouco tempo, o crepitar
das fogueiras se tornou o som mais alto da praça.
Grieve se aproximou de Murtagh e fez uma reverência.
— Por aqui, Cavaleiro — disse ele, seu tom condescendente.
Murtagh, com os pensamentos em profusão, se levantou trôpego e com o corpo
dolorido. Não queria dormir entre quatro paredes, sozinho e isolado de Thorn, mas
temia ser imprudente recusar a hospitalidade de Bachel.
Vá, disse Thorn, sentindo os pensamentos dele.
Murtagh pôs a mão no pescoço do dragão.
Vou sair de mansinho assim que eles me deixarem sozinho. E então, talvez, a
gente consiga dar uma olhada por aí e ver o que descobrimos.
Thorn zumbiu, concordando, mas Murtagh pressentia que o dragão não estava de
todo contente com o plano. Conversariam melhor depois, quando houvesse menos
chances de seus pensamentos serem entreouvidos.
— Depois de você — disse Murtagh, apontando para Grieve.
O homem de cavanhaque se virou e — com passos pesados e resolutos — o
conduziu por baixo da arcada de colunas facetadas e por uma portinha lateral na ala
norte do templo. O corredor lá dentro era frio e escuro. Não havia tochas ou
lampiões acesos, mas Grieve se deslocou com segurança, e Murtagh seguiu os sons
dos passos dele enquanto sondava com a mente para ver se alguém poderia estar à
espreita para atacar.
Os dois subiram um lance de escada até um patamar onde as janelas estreitas do
templo deixavam entrar luar suficiente para enxergar nas paredes entalhes em
baixo-relevo de... de alguma coisa que Murtagh não conhecia. Os olhos se
recusaram a se fixar na confusão de figuras que decorava a pedra. Corpos, de
humanos ou feras, estruturas distorcidas, estranhos padrões de favo de mel que se
fundiam uns nos outros... Parecia que a escultura era uma tentativa de retratar
fisicamente a loucura. As formas frenéticas e incompletas o lembraram das
memórias distorcidas dos Eldunarí que Galbatorix havia escravizado, bem como da
lógica desconexa dos pesadelos. A parede emanava grandes ondas de malevolência.
A sensação era tão tangível que o fez recuar. A escultura era grotesca — uma
zombaria da virtude, da arte e de todas as coisas belas. Ele sentiu um forte desejo de
quebrá-la. Se olhasse para os entalhes por muito tempo, Murtagh temia que elas o
infectassem com a insanidade que tinha inspirado uma criação tão malformada.
— Quem fez isso? — perguntou ele.
No ar da noite, a voz de Murtagh soou como um coaxo desagradável.
Grieve não parou enquanto descia o patamar com passos pesados.
— Os Primeiros fizeram quando descobriram o poço sagrado.
— Você quer dizer o Povo Pardo? — perguntou Murtagh.
A raça há muito tempo extinta foi a primeira a vincular linguagem antiga e
magia. Ele poderia facilmente imaginá-los construindo Nal Gorgoth, embora nunca
tivesse ouvido falar que o Povo Pardo havia pisado na Alagaësia. Mas, por outro
lado, existia tanta coisa que Murtagh não sabia, e muitas outras que estavam
escondidas pela passagem dos anos.
Grieve soltou um muxoxo de desdém.
— Quero dizer os Primeiros. Os primeiros Sonhadores a encontrarem este lugar.
Eles eram de muitas raças, mas todos tinham um único pensamento.
— Entendo. E o poço que você mencionou? O que o torna sagrado?
— Isso não cabe a mim dizer, Cavaleiro.
— O que cabe a você dizer?
Com um passo duro, Grieve parou, ombros e pescoço encurvados, como um urso
se preparando para atacar.
— Não espere que eu lhe forneça ajuda. Você é um forasteiro, um infiel, e sua
laia não é necessária nem desejada em Nal Gorgoth.
Ele se virou para Murtagh. Os olhos iluminados pelo luar eram lascas de gelo
prateado, severos e cheios de ódio, e Murtagh — apesar de todas as proteções
mágicas e habilidade com armas — se sentiu ameaçado o suficiente para colocar a
mão no punho de Zar’roc.
— Mas — continuou Grieve —, em sua sabedoria, Bachel decidiu tolerar sua
presença. É um direito dela.
— Ela tolera minha presença? — disse Murtagh, a voz calma. — Que outra
escolha ela tem, servo?
A boca de Grieve se abriu para mostrar as estacas amarelas dos dentes.
— Isso você descobrirá, Cavaleiro, e desejará não ter descoberto. Seu poder não
tem influência aqui. Se Bachel quiser, ela usará o Sopro em você, e então veremos
quem é o servo e quem é o senhor.
— Acho que não gosto de você, Grieve.
— As palavras dos infiéis são como terra sob meus pés.
— Fico contente que tenhamos nos entendido. Vá em frente. Estou ficando
cansado e gostaria de descansar em meus aposentos.
A maldade nos olhos de Grieve se intensificou, mas ele se virou e continuou a
andar. Murtagh esperou até que vários passos ficassem entre eles antes de segui-lo.
Ele manteve a mão em Zar’roc e se certificou de que a espada estava solta na
bainha. Inveja ou superproteção?, ele se perguntou. Ou seria fanatismo que causava
aquela hostilidade do braço direito de Bachel?
No final de um corredor, chegaram a um conjunto de portas de madeira fechadas.
— Aqui — disse Grieve, então, sem dar outra palavra, se virou e partiu.
Murtagh esperou até ter certeza de que estava sozinho e abriu as portas.
CAPÍTULO III

A Torre de Pederneira

O s aposentos oferecidos a Murtagh teriam sido considerados acomodações


pobres em Urû’baen. Mas, para os padrões de uma aldeia rústica e afastada, eram
suntuosos. O interior do templo estava em melhor estado do que o exterior: as
paredes de pedra não tinham musgos ou líquens, o chão estava bem varrido e não
havia teias de aranha grudando em seu cabelo.
Uma lareira de pedra tinha sido construída em uma das paredes. Em frente, havia
uma cama de dossel feita de nogueira preta, com cobertores que pareciam limpos e
uma pele de carneiro, que tinha apenas um leve cheiro do animal do qual havia sido
arrancada, colocada por cima. Um candelabro de ferro com uma vela apagada
estava ao lado da cama, junto com uma mesinha de canto vazia e, a uma pequena
distância, um guarda-roupa simples. Uma pele de urso com a cabeça ainda acoplada
jazia no meio do chão, como um tapete.
Adjacente ao espaço, Murtagh viu um pequeno lavatório com uma bacia de
pedra, um penico de porcelana e um balde de água fresca para as abluções. Não
havia entalhes ou estandartes nas paredes desses cômodos, mas o chão do lavatório
era enfeitado com um mosaico feito de lascas de vidro colorido, contendo os
mesmos padrões ramificados que decoravam o resto do vilarejo.
As várias janelas nas paredes do canto externo do quarto estavam fechadas.
Murtagh verificou se não havia ninguém escondido nos aposentos, depois foi até as
janelas e as abriu.
A fileira de esculturas de dragões na parte superior da construção se estendia
além dos lados de cada janela, com as formas exageradas dos focinhos apontando
para baixo como modilhões enormes.
A leste, as janelas davam para o pátio do templo. Os aldeões já tinham — com
velocidade e eficiência inesperadas — retirado mesas, braseiros, comida e peles que
estiveram em volta da fonte em ruínas.
Thorn estava agachado nas lajotas, de olhos abertos e alerta. Ele viu Murtagh e
colocou a ponta da língua para fora, a fim de provar o ar.
Aí está você.
Aqui estou eu.
Na entrada do pátio, Murtagh avistou dois aldeões de aparência entediada
sentados ao lado de um braseiro incandescente. Eles seguravam lanças e estavam
com as espadas embainhadas na cintura. Murtagh não acreditava que Bachel
esperasse que aqueles homens detivessem Thorn e ele se ambos decidissem partir.
Ele chegou à conclusão de que o único propósito dos dois guerreiros era vigiar e
informar a bruxa a respeito das atividades dos hóspedes.
Hóspedes. Murtagh torceu o lábio.
Os guardas ergueram os olhos para ele e então voltaram a conversar entre si.
Um momento, Murtagh disse a Thorn, e foi até as janelas voltadas para o norte.
Não muito longe do templo, viu uma estrutura estreita que Bachel tinha chamado
de Torre de Pederneira. Ela passava uma imagem altiva e severa ao luar: uma lança
de pedra rústica de tom cinza aveludado, com aberturas semelhantes a campanários
sob o teto abobadado. Da torre, ele pensou ter ouvido um leve murmúrio de
pássaros dormindo, mas o som poderia ter sido facilmente um truque da
imaginação.
Depois da torre, havia várias casas, e ele também foi capaz de identificar,
vagamente visível ao luar, um terreno bem cuidado que se estendia atrás da torre e
do templo. Aquele campo o intrigava. Havia um caminho marcado na grama bem
aparada, ladeado por uma fileira dupla de arbustos baixos, indo em direção ao
arvoredo nos contrafortes…
Ele voltou a olhar os guardas lá embaixo. Aprendeu a ser cauteloso ao longo do
tempo, com as experiências que teve, mas também entendeu a importância de tomar
ações decisivas. Não importava quais fossem os verdadeiros objetivos e os recursos
de Bachel, Murtagh não estava confortável em esperar que ela os revelasse. Queria
descobrir por si mesmo os segredos espreitando no coração de Nal Gorgoth. Desse
modo, pelo menos poderia tentar descobrir se Bachel estava mentindo para eles.
Tudo isso justificava ações mais ousadas.
Murtagh coçou o queixo. Os guardas não pareciam usar amuletos como os que
ele encontrou em Ceunon e Gil’ead. No entanto, Bachel ainda podia ter presenteado
os dois com algum tipo de proteção mágica. Não havia como saber de antemão, e a
natureza da magia sem palavras da bruxa significava que o Nome dos Nomes não
ajudaria. E embora fosse possível que Bachel desconhecesse a magia formal, ele
não via como poderia usar esse fato em seu favor. Ainda assim... Tal como
aconteceu com Galbatorix, era possível que qualquer magia que protegesse os
guardas não agisse contra feitiços destinados a ajudar, não a prejudicar.
Murtagh resolveu arriscar. Como em toda magia, a intenção importava, então ele
se concentrou no fato de que ambos os guerreiros pareciam cansados. Já era tarde,
eles deviam estar dormindo. Seria melhor que dormissem, para o bem deles.
Com isso em mente, Murtagh lançou o mesmo feitiço que havia usado no guarda
nas catacumbas sob Gil’ead.
— Slytha. — Durmam.
Ele liberou a energia para o feitiço aos pouquinhos, controlando o fluxo
cuidadosamente por meio minuto ou mais. Era uma magia gentil, sutil o suficiente
para que os guerreiros não a percebessem, caso uma proteção mágica a bloqueasse.
Os guardas desmoronaram, e um deles deixou cair a lança. A arma bateu nas
lajotas com um barulho surpreendente, e então o vilarejo ficou novamente em
silêncio.
Quando ninguém apareceu para investigar, Murtagh se permitiu uma risada
satisfeita. Por mais que odiasse admitir, a forma como Eragon havia usado magia
em Galbatorix tinha sido um lance de inspiração. Ninguém parecia pensar em se
resguardar de atos bons, apenas dos maus.
Isso não duraria, claro. Com o passar dos anos, a notícia se espalharia de mágico
para mágico e, consequentemente, nenhum conjurador que se prezasse se deixaria
vulnerável a ataques bem-intencionados. Que contradição! Mas uma realidade do
mesmo jeito. Independentemente disso, Murtagh não iria lamentar a ignorância de
Bachel. Enquanto a técnica continuasse funcionando, ele a usaria e também ficaria
grato por ela.
Murtagh ainda não sabia se os guardas tinham alguma proteção mágica, mas
ficaria chocado se não tivessem.
Por quanto tempo eles vão dormir?, perguntou Thorn.
O tempo que for necessário. Ajude-me a descer, disse Murtagh enquanto saía
pela janela para o telhado abaixo.
Thorn bufou, ergueu a cabeça para que Murtagh pudesse pisar nela, com cuidado
para não acertar o olho do dragão, e o desceu até as lajotas. O Cavaleiro endireitou
o cinturão da espada e olhou ao redor.
— Obrigado — murmurou ele, subitamente alegre, como uma raposa que invadiu
um galinheiro enquanto os cães estavam fora.
Acho que Bachel é muito perigosa, disse Thorn.
— Concordo.
Talvez devêssemos partir. Agora sabemos onde fica este lugar. Deixe Nasuada ou
Arya ou mesmo Eragon lidar com isso. Esta não é nossa responsabilidade.
— Você não quer descobrir a verdade por trás de Bachel e desse tal Sonhador dos
Sonhos? Sem falar na suposta profecia a respeito de nós dois. Não está curioso?
Thorn farejou o ar e demorou a responder. Estou... mas também estou
preocupado. Sinto como se estivéssemos botando a pata em uma toca escura. Não
sabemos o que vamos encontrar. Podemos acabar levando uma mordida.
— E se levarmos? — questionou Murtagh, sério. — Não é melhor descobrir se
tiver algo esperando para nos morder?
A questão nem é essa. A questão é: quão grande será a mordida?
Murtagh arqueou a sobrancelha.
— Até agora, Bachel e seu povo foram muito hospitaleiros conosco. Mesmo com
o mau humor do infeliz do Grieve.
E ainda assim você não confia na face que eles nos mostraram, ou não
estaríamos tendo essa discussão.
— Não. Você tem razão.
Thorn emitiu um suspiro que soou bastante humano.
Você não vai dormir sem antes sair para investigar, não é?
Murtagh sorriu.
— Você me conhece bem demais.
Depois de um momento, o dragão abaixou a cabeça, e o calor suave de sua
respiração envolveu Murtagh.
Muito bem. Mas se você for capturado de novo, vou agarrá-lo e sair voando
daqui, como fiz em Gil’ead.
— Se a situação chegar a esse ponto, ficarei feliz de você me agarrar.
Ele fez carinho atrás de uma das escamas do pescoço do dragão, e as laterais do
corpo de Thorn vibraram com um zumbido baixo de satisfação.
Onde você quer investigar?
Murtagh olhou para o templo em camadas. As montanhas se erguiam altas atrás
dele, com os picos brancos como a pérola mais delicada sob as estrelas cintilantes.
Ali, mas acho que seria muito arriscado. Muitas pessoas no prédio.
Então onde?
Murtagh apontou para a Torre de Pederneira.
Deve ser importante, para os Sonhadores terem batizado o lugar. E quero ver o
terreno atrás do templo. Ele lançou um olhar crítico sobre Thorn. Alguns dos
aldeões ainda podem estar acordados e você é um pouco grande para se esgueirar
por aí hoje em dia.
Thorn fechou as mandíbulas com um clique suave, mas decisivo.
Então esperamos até que durmam. Aonde você for eu vou.
Murtagh percebeu que não adiantava discutir.
— Você é teimoso como uma mula — murmurou.
Tudo bem. Mas você terá que ficar para trás onde não couber, comentou
Murtagh.
O dragão concordou com a cabeça.
Isso é aceitável.
Murtagh se aninhou na lateral do corpo de Thorn, e o dragão o cobriu com uma
asa para que ele ficasse escondido de qualquer um que pudesse passar. Sabendo que
Thorn estava vigiando, Murtagh fechou os olhos e aproveitou a oportunidade para
tirar uma soneca rápida. Mesmo em meio a inimigos, ele ainda conseguia dormir —
uma habilidade útil, embora um tanto lamentável, adquirida ao longo de uma vida
perigosa.

A ponta afiada do focinho de Thorn cutucando as costelas acordou Murtagh, que


abriu os olhos com relutância.
Acordei, acordei, disse ele enquanto Thorn continuava a cutucá-lo.
O dragão bufou e retirou a cabeça debaixo da asa.
Murtagh bocejou. Com o que ele estava sonhando? A memória arranhava o limite
da mente, e ele teve uma sensação obscura de que tinha sido importante...
E aí?, perguntou Thorn, e arranhou levemente as lajotas.
Espere um minuto. Deixe-me ter certeza de que ninguém está olhando.
Com cuidado, cautela e uma lentidão quase paranoica, Murtagh expandiu a mente
e verificou a área ao redor. Ele sentiu algumas pessoas por perto, dormindo
profundamente, sonhando com o que quer que os Sonhadores sonhassem.
Tudo limpo, disse ele ao sair debaixo da asa.
A lua estava no ponto mais alto do céu naquele momento. A nuvem de fumaça
havia se dissipado, e o ar adquiriu a claridade perfeita encontrada apenas nas noites
de inverno intenso. No entanto, o vilarejo retinha um calor fora de estação, como se
o verão ainda habitasse entre as construções de pedra, enquanto a geada e o gelo se
acumulavam nas colinas e picos em volta. Talvez o calor viesse do próprio solo,
pensou Murtagh. Isso explicaria por que os campos na fronteira de Nal Gorgoth
estavam pretos de tão carbonizados.
Ele aspirou o ar e não conseguiu mais sentir o cheiro de enxofre. Seria porque o
odor havia sumido junto com a fumaça ou ele simplesmente se acostumara com o
cheiro?
A segunda explicação o incomodava mais do que Murtagh queria admitir.
— Cuidado com a cauda — murmurou ele para Thorn. — Não vá fazer nenhum
dos prédios desmoronarem.
Thorn bufou com desdém.
Eu sou mais cuidadoso do que isso.
— Sei — disse Murtagh, não convencido.
Saindo do pátio, ele explorou as ruas adjacentes antes de virar a esquina do
templo em direção à Torre de Pederneira. Thorn o seguiu tão quieto quanto um gato
à espreita. Ele ergueu as pontas das garras para não tocar nas pedras e andou sobre
as almofadas das patas com uma delicadeza impressionante. A cauda permaneceu
erguida do chão, pendendo atrás do corpo como uma grande cobra carmesim sem
cabeça.
Bem ao lado do templo havia um poço coberto com um pequeno guincho para
erguer o balde. O poço era bastante simples, desprovido até mesmo das decorações
mais básicas. Murtagh duvidava que fosse o poço sagrado que Grieve havia
mencionado.
Na chance improvável de estar enganado, ele espiou por cima da borda. As
profundezas negras ecoavam com a batida das ondulações contra as pedras
encaixadas. Nada a respeito do poço parecia incomum.
Se tivesse uma moeda, Murtagh teria jogado para dar sorte. Ele e Thorn
precisavam de um bocado.
— Nada — disse ele a Thorn. — Você sente o cheiro de alguma coisa?
O dragão farejou, e a língua saiu. Apenas água, madeira e suor.
Murtagh seguiu em frente.
Uma mureta de pedra sem argamassa da altura do quadril circundava a Torre de
Pederneira, e havia um portãozinho de ferro forjado bloqueando o caminho. As
barras do portão traçavam o contorno da cabeça de um dragão visto de cima.
— Parece que eles gostam mesmo de dragões — disse Murtagh enquanto
destrancava e abria o portão.
As dobradiças rangeram alto o suficiente para fazê-lo parar, mas ninguém estava
por perto para notar.
Por que não gostariam?, perguntou Thorn. Não há outra criatura ou ser que
possa igualar a beleza de nossa forma.
— Talvez não, mas você não precisa se gabar disso.
Falar a verdade não é se gabar.
Murtagh deu um sorrisinho. Os dragões tinham muitas virtudes, mas a modéstia
não era uma delas.
— Espere aqui. Não vou demorar.
Ele deixou Thorn no portãozinho e se dirigiu até a porta da torre. Era feita de
madeira, com uma tranca pesada de ferro embutida nas tábuas.
Murtagh abriu a tranca com uma aplicação sutil da palavra thrysta e uma leve
onda de energia. A tranca emitiu um clique, e ele empurrou a porta.
O fedor pungente de excrementos de pássaros o atingiu, fazendo a sua respiração
falhar e seus olhos lacrimejarem. Ele franziu o rosto e entrou de mansinho no
interior escuro.
Levou um minuto até que sua visão se ajustasse bem o suficiente a ponto de
distinguir até mesmo formas básicas. Ele estava parado no fundo de um grande
cilindro, que começava na base da torre e subia até o topo. Revestindo as paredes
havia centenas de minúsculas gaiolas de madeira, cada uma com um galho que se
projetava da frente para servir de poleiro. De dentro das gaiolas, ele ouviu mil
pequenos murmúrios — os sons de corvos adormecidos — e o sussurro sedoso de
asas emplumadas se mexendo e se reajustando. O chão era macio devido à uma
camada espessa de fezes, e havia caixotes, barris e outros objetos empilhados no pé
das paredes.
Ele parou e observou. A torre era o espaço mais curioso que ele já tinha visto,
incluindo até mesmo as catacumbas sob Gil’ead. Era uma versão enlouquecida e
enorme dos pombais que Yarek, o espião-mestre, havia construído em Urû’baen
para abrigar seus pombos-correios. Mas que pássaros eram aqueles? Suspeitava que
não fossem pombos.
Percorreu o chão imundo, procurando por penas que o ajudassem a identificá-los.
Em vez disso, pisou em algo duro que se quebrou sob seu pé. Prendendo a
respiração, Murtagh se agachou para olhar.
Semienterrado nas fezes estava um crânio com um bico. O crânio de um corvo.
Claro. Os Sonhadores deviam criar naquela torre os pássaros que Bachel usava para
fazer seus amuletos. Murtagh se empertigou. O mero número de corvos no local o
fez pensar em quantos amuletos Bachel havia encantado.
Como eles são alimentados?, perguntou-se. Não seria simples cuidar de tantos
pássaros.
Mantendo uma mão esticada para se equilibrar, Murtagh foi tateando pela parede
da torre, pretendendo dar a volta completa e ir embora. O que estava procurando?
Não sabia. Corvos não eram usados para levar mensagens. Não haveria nenhuma
escrivaninha com recados secretos rabiscados em pedaços de pergaminho. Nenhum
mapa ou item mágico para encantamentos, supondo que estivesse correto sobre a
magia de Bachel. Mas sentia a obrigação de ser minucioso.
Ele tinha percorrido três quartos da torre quando pisou em um trecho de
excrementos mais escorregadio e o pé derrapou. Murtagh se debateu e se apoiou
com uma das mãos no chão. O joelho direito bateu na quina de um caixote, o que
provocou uma dor intensa e aguda, e a ponta da bainha de Zar’roc esbarrou em um
barril.
Um coro abafado de inquietação passou pela torre conforme os corvos se
remexiam no sono, as mentes perturbadas por um momento.
Murtagh cerrou os dentes, prendeu a respiração e não se mexeu. O joelho
latejava. Um pico de alarme veio de Thorn, e Murtagh rapidamente tranquilizou o
dragão.
Estou bem. Não se preocupe.
— Maela — sussurrou ele em seguida.
Dizia-se que a língua antiga era a língua materna que todas as criaturas falavam
no início dos tempos. Murtagh não sabia se acreditava inteiramente nisso — ele
tinha as próprias ideias a respeito de a língua talvez ter sido enfeitiçada para
influenciar os seres vivos —, mas era verdade que os animais reagiam a ela de
maneiras que não reagiam a outras línguas.
Como esperado, os pássaros começaram a se acalmar e, logo depois, voltaram a
ficar quietos.
Murtagh fez uma careta ao se levantar, com as fezes formando uma massa
pastosa entre seus dedos. Ele proferiu um único xingamento silencioso, tão sujo
quanto a situação em que se encontrava.
Enquanto os dedos se afundavam no excremento, Murtagh reparou que havia
algo duro ali embaixo. Hum.
Apesar da repulsa, ele cavou até conseguir agarrar o objeto. Parecia metal: oval,
da metade do tamanho da palma da mão, com um entalhe em um dos lados. Uma
moeda? Não, era muito grande para isso.
Segurando com firmeza o objeto, ele se levantou e saiu cuidadosamente pela
porta da torre.
Thorn contraiu o focinho quando Murtagh se aproximou e recuou vários passos.
— Tão ruim assim? — perguntou Murtagh, triste, enquanto fechava o
portãozinho ao sair.
Se você não tomar banho antes de amanhã chegar, todos no raio de uma légua
saberão onde você esteve.
— A-hã.
Murtagh se virou para que a lua ficasse atrás dele e ergueu o objeto. Como
suspeitava, era um pedaço chato de metal, e parecia feito de eletro — embora fosse
difícil ter certeza ao luar, poderia ser ouro —, com um gancho de ferro na parte de
trás... Era um broche para prender uma capa no ombro. Havia excrementos
incrustados no entalhe na face do broche, e Murtagh passou quase um minuto
raspando a substância grudenta com a unha do polegar antes de visualizar o
desenho.
Ele se sentiu como uma árvore seca sendo atingida por um raio ao reconhecer o
que tinha nas mãos.
O que é isso?, perguntou Thorn.
Murtagh compartilhou com ele uma lembrança do salão de jantar privativo de
Galbatorix, onde estandartes carmesins pendiam das paredes, bordados com os
brasões dos Renegados. O estandarte do lado oposto da mesa, de frente para a
cadeira onde Murtagh tantas vezes havia se sentado, tinha o mesmo desenho do
broche.
— É a marca de Saerlith.
Thorn também pareceu atingido por um raio.
Como isso veio parar neste lugar?
— Não sei.
Saerlith era um nome de menor importância entre os Renegados. Ele fez pouco
para se distinguir dos companheiros traidores, embora tenha compartilhado da
infâmia geral. Tudo o que Murtagh sabia era que Saerlith era humano e nasceu em
algum lugar perto da cidade de Teirm. E que o dragão dele teve a infelicidade de
nascer com escamas de tom castanho-avermelhado. Como os outros dragões dos
Renegados, o nome do dragão de Saerlith foi perdido, apagado pela vontade
coletiva de sua espécie. Os dragões não perdoavam àqueles que consideravam
traidores. Um defeito deles, talvez, mas quando se tratava dos Renegados, era
compreensível.
Murtagh tentou se lembrar de como Saerlith havia morrido. Não em Nal Gorgoth.
Isso ele sabia. Os relatos eram confusos, mas supostamente Galbatorix havia
despachado Saerlith para a costa sul da Alagaësia e lá ele e seu dragão foram
emboscados e mortos. Por quem, Murtagh não sabia, mas presumiu que os Varden
ou seus aliados fossem os responsáveis.
De qualquer maneira, Saerlith morreu muito antes da época de Murtagh.
Se Saerlith e seu dragão descobriram Nal Gorgoth…, disse Thorn.
— Então é possível que Galbatorix soubesse sobre este lugar. — Murtagh
balançou o broche na mão. — Ou talvez Saerlith estivesse trabalhando com os
Sonhadores em uma causa própria.
Galbatorix o teria matado por isso.
— Se ele soubesse.
Murtagh guardou o broche no bolso. Mais uma vez, sentiu como se o vilarejo
fosse uma coisa viva que estava esperando e observando com intenções
desconhecidas. Fez uma careta, se ajoelhou e usou o chão para retirar um pouco
mais dos excrementos de corvo dos dedos.
— Não estou gostando disso — disse ele ao ficar de pé. — Nem um pouco. Tem
alguma coisa acontecendo aqui que Bachel não quer admitir.
Thorn apontou o cinto de Murtagh com a cabeça, onde ele tinha colocado o
broche.
Que povo estranho que deixa vestígios dos Renegados por aí.
— Um povo descuidado, com certeza. Ou arrogante. — Murtagh parou para
pensar, e a pele se arrepiou quando um pensamento perturbador lhe ocorreu. — E
se... E se Galbatorix encontrou Nal Gorgoth quando estava viajando de volta pela
Espinha, depois que os Urgals mataram seu dragão? Ou se foi para aqui que ele e
meu pai fugiram depois que traíram os Cavaleiros? Sempre ouvi dizer que
Galbatorix se escondeu em um lugar maligno, onde os Cavaleiros não ousaram
segui-lo. E se Nal Gorgoth for esse lugar? E se for aqui que Galbatorix conheceu
Durza e... onde treinaram meu pai?
Thorn sibilou como uma cobra. Murtagh teve o mesmo sentimento.
Se os Cavaleiros estavam familiarizados com Nal Gorgoth, por que permitiriam
que esse lugar ficasse de pé?
— Não sei. Talvez achassem que estava abandonado. Talvez tenham incendiado
o local e expulsado os habitantes originais. Não sabemos há quanto tempo Bachel
ou seu povo estão aqui. Os prédios são mais antigos do que qualquer outro que já
vi. Vai saber quem os construiu.
O olhar de Thorn ficou mais intenso.
Umaroth sabia o suficiente para nos alertar contra vir aqui. E se os dragões de
antigamente, e seus Cavaleiros, tivessem...
A língua de Thorn estalou entre os dentes.
... tivessem medo?
CAPÍTULO IV

Sonhos e presságios

M urtagh e Thorn se encararam, uma pergunta não dita pairando entre os dois: o
que ou quem os dragões ou Cavaleiros temeriam?
— Se Galbatorix e Morzan vieram aqui — disse Murtagh —, talvez todos os
Renegados tenham vindo.
Ele olhou para as silhuetas dos telhados escuros e para a ponta da Torre de
Pederneira iluminada pelo luar. A descoberta do broche colocava uma nova
perspectiva sobre tudo que Bachel dissera durante o banquete. E, ainda assim, ele
permanecia na dúvida. Será que suas suposições eram infundadas? Seus instintos
lhe diziam que havia alguma sinceridade nas afirmações de Bachel sobre destino e
profecia. Ele só não sabia o quê ou o quanto. Talvez seu desejo de aprender mais a
respeito dela e da terra enegrecida fosse tolice.
Ele olhou para Thorn.
— Talvez você tenha razão. Talvez devêssemos ir embora. O que acha?
Thorn pestanejou. Sua surpresa era evidente. Em todo o tempo que passaram
juntos, Murtagh jamais havia sugerido abandonar qualquer objetivo que estivessem
buscando. O dragão cravou as pontas das garras nas rachaduras entre as lajotas.
Se este é o lugar em que os Cavaleiros temiam pisar...
— Talvez não seja.
As narinas de Thorn se dilataram.
Se for, devemos saber, pelo bem dos filhotes no Monte Arngor. Qualquer coisa
perigosa o bastante para ameaçar os antigos Cavaleiros poderia destruir a
próxima geração de dragões. Permaneça na caça, procure o rastro. Há velhos
segredos aqui, posso farejá-los.
— Tudo bem. Mas temos que ser espertos em relação a essa situação. Não vamos
acabar mortos por nada.
Com Thorn atrás dele, Murtagh deu a volta no canto nordeste do templo. Atrás,
havia uma faixa de grama aparada que, apesar da época do ano, estava macia sob os
pés. Uma trilha levava até um pequeno bosque de pinheiros situado na base dos
contrafortes.
À medida que se aproximava das árvores, Murtagh notou que o ar ficava mais
quente e também úmido, e o cheiro de enxofre ressurgiu. O solo ao redor das
árvores estava coberto por uma crosta negra, semelhante à área em frente ao
vilarejo, e pequenas línguas de vapor subiam da terra. E, no entanto, ela não era
estéril. O bosque parecia um jardim. Ao luar, ele viu arbustos de mirtilo e flores —
fechadas e murchas durante a noite —, e uma enorme variedade de cogumelos
dispostos em padrões agradáveis.
Ele pensou no jardim secreto nas catacumbas de Gil’ead.
Thorn hesitou na entrada do bosque, mas os aldeões tinham podado os galhos
mais baixos, deixando a trilha larga e com espaço o bastante para ele caminhar sem
roçar nas árvores. Assim sendo, conseguiu seguir Murtagh, que ficou feliz pela
companhia.
— Lembre-me de apagar seus passos quando voltarmos — murmurou ele.
Thorn emanou uma sensação de confirmação.
O coração do bosque era ainda mais escuro do que o interior da Torre de
Pederneira. Murtagh finalmente cedeu e sussurrou:
— Brisingr.
A luz mágica que ele criou era uma centelha minúscula, não mais brilhante que
um carvão moribundo. Mas foi o suficiente para enxergar onde estava pisando.
A trilha serpenteava entre as árvores, passando por canteiros de plantas bem
cuidadas e capinadas — a maioria eram ervas e bagas — até chegar aos sopés das
colinas.
Lá, Murtagh viu uma escuridão ainda maior se escancarando diante deles, como
uma ferida aberta nas encostas. A princípio, os olhos se recusaram a compreender a
ausência. Ele estava olhando para alguma coisa? O interior de alguma coisa? Era
uma sombra?
Sem entender, Murtagh aumentou o fluxo de energia para a luz mágica,
permitindo que ela brilhasse até...
Ele conseguiu enxergar.
Uma boca de pedra e terra, escancarada diante deles. A caverna era tão grande
que Thorn teria cabido ali dentro. O interior era uma profundeza negra misteriosa
que nadava com sombras impenetráveis e se agitava com sons sinistros: o clique de
uma pedra caindo; uma corrente forte de ar aquecido entrando e saindo, como se as
montanhas estivessem respirando, lentamente e com dificuldade; os guinchos
agudos de morcegos esvoaçantes; e até, imaginou Murtagh, gemidos baixos, quase
inaudíveis, do peso maciço da terra conforme ela se acomodava e se deslocava,
buscando provocar um colapso ainda maior nas ruínas desmoronadas que o tempo
criava em todas as coisas.
Em cada lado da caverna escancarada havia um tipo de alvenaria que combinava
com o resto do vilarejo e, dentro dessa alvenaria, um par de anéis de ferro iguais,
cada um tão largo quanto a altura de Murtagh. Os anéis eram sólidos o suficiente
para conter até mesmo Thorn, e na oscilação da luz mágica, eles pareciam escuros,
enferrujados e com manchas pretas que lembravam sangue seco.
Um altar feito de basalto cortado ficava à esquerda da caverna, e Murtagh achou
aquilo estranho. Teria sido mais impressionante — e visualmente agradável —
centralizar o altar na abertura. Comparado com o altar da catedral de Dras-Leona,
aquele ali parecia tosco, até mesmo inacabado. Ainda assim, ele tinha uma presença
rústica que fez Murtagh pensar em ritos antigos e sacrifícios feitos para apaziguar
um deus cruel.
O fedor de enxofre estava mais forte do que nunca, e uma lufada intensa, quente
e desagradável, saiu da caverna, fazendo Murtagh engasgar-se com o odor de ovos
podres. Ele cobriu o nariz e a boca com a manga.
Thorn provou o ar, torcendo o focinho e sibilando.
Sinto cheiro de carne podre e água corrente e…
As escamas se agitaram.
E o fedor de homens. Eles estão…
Passos soaram do interior da caverna, a princípio fracos, mas estavam se
aproximando. Duas ou mais pessoas saíam das profundezas negras.
Afaste-se!, disse Murtagh, alarmado.
Ele apagou a luz mágica e recuou o mais rápido e silenciosamente que pôde.
Nossos rastros!, comentou Thorn, enquanto fazia o mesmo.
Os passos estavam ficando mais altos.
— Vindr! — sussurrou Murtagh às pressas.
Com o feitiço, ele criou uma pequena corrente de vento que varreu e aplainou a
trilha enquanto os dois corriam pelo bosque.
Olhando por sobre os ombros, Murtagh achou ter visto algumas figuras usando
robes andarem entre as árvores. Seu pulso acelerou. Será que tinham visto Thorn?
Estava escuro e o bosque era denso, então talvez não. Talvez.
Os dois guardas ainda estavam no sono encantado quando ele e Thorn entraram
correndo no pátio.
— Me ajude a subir! — disse Murtagh.
Thorn se agachou e o Cavaleiro subiu no pescoço do dragão, segurando com
força. O animal o ergueu alto o suficiente para que Murtagh subisse correndo no
telhado do templo e entrasse nos aposentos.
Logo em seguida, Thorn se enroscou no outro lado do pátio.
Foi bem na hora. Olhando pela janela voltada para o norte, Murtagh viu quatro
homens, encapuzados e sombrios, passarem pelo templo e se dispersarem pelas ruas
do vilarejo.
Ele soltou o ar, relaxando. A seguir, voltou à janela do pátio e olhou para Thorn.
Bachel tem muito o que explicar, disse ele. E quero saber o que os Sonhadores
consideram tão importante naquela caverna.
Thorn bufou.
Seja o que for, acho que os vapores lá de baixo apodrecem a mente deles.
Murtagh coçou o antebraço, preocupado.
Acho que você tem razão. De qualquer forma, eu gostaria de saber a verdade.
Embora, naquele caso, ele se perguntasse se a verdade não seria tão arriscada
quanto a ignorância. Ele e Thorn se abstiveram de compartilhar seus nomes. Havia
um risco muito grande de serem ouvidos em Nal Gorgoth, mesmo que se limitassem
à privacidade de suas mentes.
Fique de olho hoje à noite, disse Murtagh.
Isso eu farei. Ao menor sinal de algo errado, acordo você.
Obrigado.
Murtagh encerrou o feitiço que estava usando para manter os guardas dormindo.
Os dois homens bufaram e se mexeram, mas não abriram os olhos, porque estavam
mesmo muito cansados, e Murtagh pensou que provavelmente dormiriam até de
manhã.
Por fim, fechou as janelas do quarto e se enclausurou na escuridão densa.

Murtagh acendeu a vela ao lado da cama, foi ao lavatório e fez o possível para se
limpar dos excrementos de corvo. Apesar de usar um pouco de magia, não
conseguiu. Torceu para não estar fedendo a ponto de despertar as suspeitas de
Bachel ou de Grieve.
Sem camisa, Murtagh se sentou na beirada da cama. O colchão era estofado com
lã, não com palha. Um luxo inesperado. Ele segurou o broche de Saerlith, que
também tinha lavado, e examinou o objeto à luz bruxuleante da vela.
Se os Sonhadores de fato tivessem sido aliados de Saerlith ou dos outros
Renegados, a parceria significava tão pouco para eles que haviam deixado aquele
broche abandonado como um dejeto na Torre de Pederneira? Ou será que o objeto
apenas tinha caído e sido esquecido, resultado de algum acidente?
Questões. Tantas questões.
No fundo de sua mente, Murtagh sentiu os pensamentos de Thorn ficarem
estranhos e desconexos quando o dragão caiu em um sono conturbado. Como
sempre, desejou poder acalmá-lo, mas tinha medo de acordá-lo, por isso ficou
sentado e não aproximou sua mente. Os sonhos do dragão apenas pioraram a
sensação de inquietude do próprio Murtagh.
Ele se recostou com um suspiro.
Um dia, dois no máximo. Era isso que se permitiria. Se até lá eles não
encontrassem respostas para as muitas perguntas que Bachel e Nal Gorgoth
provocavam, seria hora de arrancar a informação à força — seja por palavras ou
ações.
Murtagh estremeceu e pegou a camisa.
As câmaras eram frias, e a temperatura caía cada vez mais. Ele pensou em
acender a lareira, mas estava cansado e não queria se preocupar com as chamas
durante a noite. Murtagh molhou os dedos, apagou a vela e se enterrou sob a pele de
carneiro e os cobertores.
Depois de alguns minutos, ele virou a pele de carneiro para baixo. Pronto. Em
seguida, puxou os cobertores até o pescoço e fechou os olhos enquanto o calor se
acumulava em torno do corpo.
Levou algum tempo para acalmar os pensamentos o suficiente para dormir.
Murtagh queria descansar. Suspeitava que o dia seguinte seria difícil, e era
importante estar o mais alerta possível para o caso da estadia deles em Nal Gorgoth
se tornar violenta. Mas não conseguia parar de pensar na Torre de Pederneira, no
broche de Saerlith e na caverna sentada como um grande sapo guloso atrás do
templo.

A escuridão rodopiante o engoliu e, no centro dela, no fundo de um buraco


inacreditavelmente profundo, bem no coração do vazio, em sentido anti-horário,
jazia um horror amorfo — antigo e maligno e do qual emanava uma fome constante
e impiedosa: nunca saciada, que tudo consumia, com um deleite especial pelos
sofrimentos das criaturas presas entre os dentes a mastigar.
A mente de Murtagh fugiu do horror, mas era uma corrente mortal, mais
poderosa que o Olho do Javali entre as ilhas do Sul de Uden e Parlim. Quanto mais
ele tentava, mais devagar se movia…
O medo tomou conta de Murtagh. Um medo gélido que congelou veias,
acorrentou braços e pernas e transformou o estômago em ácido. O coração
palpitou e, por um momento, pareceu parar. Nas garras do terror, ele gritou por
socorro como quando era criança:
— Mãe!
Então a mente de Thorn tocou a dele, o horror escancarado recuou, e, por um
tempo, Murtagh se sentiu perdido na vasta paisagem dos pensamentos do dragão.
Eles estavam voando, cada vez mais alto, até que o chão sumiu de vista e o
cenário acima e abaixo era o mesmo: um céu perfeito, sem lugar para pousar e
apenas nuvens acima deles. Um bando de águias passou gritando, com garras
prontas para arrancar olhos. Elas se afastaram, e era impossível dizer qual direção
era para cima e qual era para baixo.
Ele perdeu a noção do tempo. Então um grupo de dragões surgiu acima deles:
dragões de todas as formas e cores, com as escamas brilhando e as asas batendo
até todo o ar vibrar como um tambor. Por um instante houve esperança e
companheirismo, mas apenas por um instante. Os dragões se viraram contra eles,
atacaram os dois e rasgaram a carne de Thorn até que as asas se transformaram
em restos esfarrapados. Thorn mergulhou do céu pálido para as profundezas
aquecidas da terra, onde o chão era pesado e opressivo, e o único consolo era a
dor e o ódio e o gotejamento constante do próprio sangue quente.
Nasuada parou na frente de Murtagh. O vestido dela estava rasgado e
manchado, e ele viu os cortes nos antebraços dela. Viu os machucados que ele
infligiu-lhe, a mando de Galbatorix. Viu os rastros vermelhos deixados pelas larvas
que abriram caminho sob a pele dela. E a culpa de Murtagh não teve limites.
— Por quê? — perguntou ela. — Por quê, por quê, por quê? Diga-me… por quê?
Uma disjunção, e então um campo de batalha se estendeu diante deles, indo dos
seus pés até o horizonte manchado de fumaça. Humanos, Urgals e elfos lutavam
aos milhares: um mar de corpos ondulantes com a intenção de infligir dor uns aos
outros.
Zar’roc estava na mão direita de Murtagh e o escudo, na outra. Thorn estava ao
lado dele. Eles rugiram juntos e avançaram para um conflito enlouquecido.
Murtagh brandiu a espada, descontrolado, e sentiu o choque já conhecido do
impacto quando a lâmina cortou carne e osso, e os inimigos caíram diante dele.
Uma parede de chamas ondulantes disparou à frente de Murtagh quando Thorn
pulverizou os guerreiros reunidos com fogo líquido. O cheiro de cabelo e pele
queimados tomou conta do ar, e os combatentes gritavam enquanto cozinhavam
dentro de suas armaduras.
Murtagh continuou em frente, com Zar’roc mais leve do que nunca na mão. E ele
matava sem parar, sentindo, a cada morte, um poder crescente.
Uma nuvem de corvos pairava sobre o campo de batalha e, ao longe, escondida
pela fumaça, mas notavelmente presente, Bachel observava. E Murtagh sabia que
ela aprovava tudo aquilo.
CAPÍTULO V

Recitações de fé

O som dos sinos acordou Murtagh, um som alto e agudo que ricocheteou nas
encostas das montanhas e fez os corvos da Torre de Pederneira crocitarem.
Ele pestanejou, instantaneamente alerta, e estendeu a mão para Zar’roc. A
sensação familiar do cabo envolto em arame o confortou.
Uma luz acinzentada impregnava o quarto. Parecia que a manhã já estava
avançada, mas, por causa das montanhas altas, o sol ainda não havia nascido.
Murtagh procurou a mente de Thorn… e encontrou o dragão já acordado no pátio
lá embaixo.
Eles compartilharam um momento de intimidade.
Você teve o mesmo sonho que eu, comentou Thorn.
Não foi uma pergunta, mas Murtagh respondeu mesmo assim.
Sim. Eu… eu nunca tive uma experiência assim antes.
Ele sentiu Thorn se remexendo.
As visões eram como aquelas que ELE nos mostrou, durante o tempo sombrio.
Murtagh conteve um calafrio. De todas as torturas que Galbatorix lhes infligira,
aquela sempre fora a mais odiada. Sem aviso, o rei enchia suas mentes com
imagens falsas destinadas a confundir os sentidos e dificultar que resistissem à
influência dele.
Sim, mas também eram diferentes, respondeu Murtagh. Eram mais reais do que a
realidade.
Murtagh se sentou e passou as pernas pela beirada da cama. Ele encarou a parede
por um momento e então esfregou o rosto em uma tentativa inútil de dissipar as
memórias da noite.
Umaroth estava certo. Este não é um bom lugar, disse Thorn. Não devemos
demorar mais do que o necessário.
Pode ser, mas quero saber o que Bachel tem a dizer hoje. Ela nos deve uma
explicação. Várias explicações.
Murtagh foi ao lavatório e jogou água fria no rosto. Seria o clima pesado que
impregnava Nal Gorgoth suficiente para explicar os sonhos que ele e Thorn
compartilharam? Ou havia outra força atuando? Ao contrário das coerções de
Galbatorix, Murtagh não havia sentido nenhuma mente tocando a deles durante a
noite. Os sonhos pareciam ter surgido espontaneamente das tocas ocultas da
consciência dos dois.
Thorn bufou.
Não eram sonhos meus.
Não. Murtagh sabia muito bem com o que Thorn sonhava: voos, combates e o
tempo que passou preso em Urû’baen.
Embora o deixasse nervoso, Murtagh usou a palavra kverst para remover a barba
por fazer do rosto. Ela caiu da pele como poeira negra. Ele passou a mão pelo
queixo, satisfeito. Não queria parecer nada menos do que perfeitamente
apresentável diante de Bachel.
A seguir, secou o rosto e prendeu Zar’roc no cinto, onde também enfiou o broche
de Saerlith.
Quando ele se dirigiu para a porta, uma batida soou.
— Posso entrar, Regicida? — perguntou uma mulher.
Murtagh se irritou com o título, apesar de os Sonhadores parecerem usá-lo como
sinal de respeito.
— Pode.
A porta se abriu e revelou Alín, a jovem que havia servido a ele e a Bachel
durante a festa. Como antes, ela usava um robe branco, ao contrário do resto dos
aldeões. Segurava uma bandeja com comida.
Ela se curvou um pouco — o que Murtagh achou estranho; as criadas em
Urû’baen sempre faziam mesuras — e levou a bandeja até a mesinha ao lado da
cama.
— O desjejum, meu senhor.
Murtagh teve uma sensação desconcertante ao ser chamado de meu senhor
novamente. Era um direito dele, mas apenas por causa da traição de seu pai.
Tecnicamente, ele não reivindicava mais nenhum título, exceto o de Cavaleiro... e
Regicida. E traidor.
Ele fingiu um sorriso relaxado enquanto se aproximava para inspecionar o
conteúdo da bandeja. Meio pão de centeio grosso, três bergenheds defumados e uma
caneca de vinho aguado. O padrão, como era de esperar, mas ele não confiava na
comida. O banquete da noite anterior tinha sido um evento espontâneo e ele viu as
refeições serem preparadas. O desjejum, no entanto, poderia ter sido adulterado.
Não valia o risco. Ele pegaria uma ou duas maçãs secas dos alforjes, e isso o
sustentaria por um tempo.
— Infelizmente, não estou com muito apetite — disse ele em um tom suave.
A mulher parecia incomodada por estar ali e enrijeceu quando ele se aproximou.
Depois, abaixou a cabeça e torceu as pontas da fita azul amarrada na cintura.
— Claro, meu senhor. Vou levar a bandeja.
— Seu nome é Alín, não é? — perguntou Murtagh ao vê-la esticar a mão na
direção da bandeja.
— É — respondeu ela baixinho.
Ele assentiu.
— Você faria a gentileza de me guiar de volta ao pátio, Alín? Não me lembro do
caminho. — Uma mentira, mas Murtagh queria a oportunidade de interrogá-la.
Ela se curvou novamente.
— Sim, senhor — respondeu, contida. — Siga-me, senhor.
Com passos rápidos, ela o conduziu para fora do quarto. Murtagh a seguiu, mas
em um ritmo mais lento — lento o bastante para que ela fosse forçada a reduzir o
passo pela metade.
— Diga-me, Alín — disse Murtagh —, pois desejo muito saber: há quanto tempo
Bachel governa em Nal Gorgoth?
Ela lhe lançou um olhar rápido e tímido sob cílios claros.
— Muito tempo, meu senhor. Mais do que eu tenho de invernos.
Murtagh ergueu as sobrancelhas. Se Alín estivesse falando a verdade, então
Bachel era meio elfa — essa era a única explicação óbvia para a bruxa não
apresentar nenhum sinal de idade.
— Você diria que ela tem sido uma governante justa, Alín?
— Claro, Regicida — respondeu ela em um tom de reprovação. — Bachel é a
Oradora. Como ela poderia errar conosco?
— De fato, como? Imagino que ser capaz de prever o futuro ajudaria a evitar tais
acasos. Você diria que ela é adepta da profecia?
A mulher assentiu rapidamente.
— Ah, sim, meu senhor. É o dever da Oradora nos guiar, e temos sorte que ela
seja tão versada na arte dos augúrios.
— Entendo.
Murtagh parou diante dos painéis de pedra entalhada do patamar. À luz da
manhã, eles ainda pareciam perturbadores.
Alín também parou. Ela não tinha escolha.
— Você veste branco, não cinza — comentou Murtagh.
A mulher cruzou as mãos diante de si, e mangas compridas as cobriram.
— Eu sou uma das escolhidas do templo. Esse robe representa nossa pureza.
Enquanto eu servir no templo, por vontade de Bachel, nenhum homem pode me
tocar sob pena de perder as mãos com as quais pecou.
Ela então ergueu o olhar e o encarou. Murtagh viu um desafio naqueles olhos,
como se ela o desafiasse a quebrar a proibição.
— E, da mesma forma, você não pode tocar em um homem.
— Não, meu senhor.
Ele assentiu.
— Qual é o propósito de Nal Gorgoth, Alín? — perguntou com delicadeza. — O
que Bachel busca realizar?
No momento em que as palavras saíram da boca, Murtagh soube que havia
exagerado. As costas de Alín se empertigaram, os ombros se endireitaram, e uma
centelha de fogo rebelde iluminou a expressão dela.
— O senhor não conseguiria entender se eu contasse, forasteiro. Tal compreensão
só pode vir da própria Bachel, pois ela é a...
— A Oradora. Sim, você disse. — Mesmo que fosse mais do que infrutífero, ele
decidiu continuar: — Mas eu me pergunto: de quem Bachel é a oradora, Alín?
Quem é o Sonhador dos Sonhos?
A cor sumiu das bochechas de Alín.
— Por favor, meu senhor. O senhor não deveria me perguntar uma coisa dessas.
— Mas pergunto.
Ela balançou a cabeça.
— Eu não posso dizer. Eu imploro ao senhor...
— Não pode ou não quer?
Ela balançou a cabeça novamente, toda a rebeldia desaparecendo, e virou as
costas para ele.
— O senhor não entende. Não é capaz de entender. Por favor, meu senhor, por
aqui.
Pensativo, Murtagh a seguiu pelo patamar — para longe dos entalhes
enlouquecedores — escada abaixo, e depois pelos corredores que levavam ao pátio.
Quando os dois chegaram à porta que dava para o lado de fora, Alín o
surpreendeu ao parar com a mão no batente.
— Como é a sensação, Regicida? — perguntou em voz baixa.
— Qual sensação?
A mulher olhou para ele com o rosto perdido nas sombras do corredor escuro.
— Viver lá fora... além daqui. Como é o resto da Alagaësia?
— Qual é o ponto mais longe de Nal Gorgoth em que você já esteve?
— Eu nunca saí deste vale, Regicida. — Uma pitada de tristeza defensiva deu o
tom da voz dela.
Não foi uma resposta inesperada para alguém da posição social de Alín, mas
Murtagh achou difícil ter uma perspectiva tão limitada. Estar tão limitado a um
lugar só poderia levar a mente a se tornar igualmente restringida.
Ele pensou por um momento em qual seria a melhor forma de responder àquela
pergunta.
— A Alagaësia é muito maior e selvagem do que você pode imaginar. Há
montanhas tão altas que seus picos desaparecem de vista. Desertos enormes onde
costumavam viver dragões. Florestas tão antigas que nenhuma memória resta de seu
nascimento. E há cidades também: grandes e pequenas, e pessoas de todos os tipos.
Humanos e elfos e anões e Urgals. Até mesmo um povo-gato. E muito, muito mais.
Uma pitada de melancolia talvez tenha aparecido na expressão de Alín, mas era
difícil dizer com certeza no corredor escuro.
— E com o que eles sonham, toda essa gente?
Murtagh observou para ver o efeito que as palavras dele causariam.
— Cada pessoa sonha seus próprios sonhos. Alguns são assustadores ou
desagradáveis, alguns são lindos e esperançosos. Alguns são tolos ou absurdos. Eles
diferem para cada pessoa.
— Mesmo para você?
— Por que não?
— Porque você é um Cavaleiro — disse ela, parecendo confusa.
Ele se sentiu igualmente confuso.
— O que ser um Cavaleiro tem a ver com os meus sonhos?
Alín franziu o cenho.
— O senhor deve saber. Está unido a um dragão, e os dragões são o sangue e os
ossos da terra. Eles são a fonte de tudo o que foi, é e será. Eu pensei que, por causa
de seu vínculo com Thorn...
— Pensou o quê? — perguntou Murtagh gentilmente.
— Que o senhor teria os mesmos sonhos que nós em Nal Gorgoth.
— Todo mundo aqui sonha igual, Alín?
Ela se voltou para a porta.
— É a única coisa que não suporto... A mesmice terrível, noite após noite. Os
sonhos raramente mudam.
Alín empurrou a porta e saiu antes que Murtagh pudesse fazer outra pergunta.

Thorn deu uma cutucada de boas-vindas em Murtagh quando eles se encontraram


no pátio. O homem coçou o focinho do dragão em resposta.
Murtagh então percebeu que Alín estava parada atrás dele com as mãos
entrelaçadas e o olhar fixo nas lajotas, com o corpo inteiro rígido como se estivesse
apavorada. Mas quando ela deu uma espiadela para Thorn, os olhos brilharam, e ele
percebeu que Alín estava intimidada por estar na presença de um dragão.
— Você já tinha visto um dragão antes? — perguntou Murtagh.
Ela balançou a cabeça, mantendo o olhar voltado para baixo.
— Não, meu senhor. Ele é magnífico.
Eu gosto dela, disse Thorn.
Claro que sim. Você se importaria se eu...
Nem um pouco.
— Se quiser, pode chegar mais perto — sugeriu Murtagh, com um pequeno
sorriso.
Alín ofegou e ergueu o olhar com uma alegria indisfarçável.
— Ah! Sim, por favor. Quero dizer, obrigada, meu senhor.
Com passos cuidadosos, ela se aproximou de Thorn e guinchou quando o dragão
arqueou o pescoço e pairou sobre ela, com uma nuvem de fumaça saindo das
narinas.
Murtagh deu um sorriso irônico.
Você é tão dramático quanto um trovador.
Thorn o ignorou e baixou a cabeça até ficar ao nível dos olhos de Alín. Ela ficou
imóvel, mas com a expressão aberta e radiante, e as pontas dos dedos tremiam.
— Ele não vai te machucar — disse Murtagh.
Alín riu com energia febril.
— Eu não me importaria se ele me machucasse. Eu ficaria honrada. Não é todo
dia que a pessoa encontra um deus vivo.
Murtagh sentiu as sobrancelhas se erguerem. Lançou um olhar para Thorn.
— Você ouviu isso? Um deus vivo, diz ela.
O dragão o surpreendeu ao expandir a mente até tocar a de Alín e, por uma fração
de segundo, os três se uniram. Murtagh teve uma breve impressão do lado espiritual
e emocional de Alín: uma sensação de afeto, admiração e um brilho avassalador.
Thorn encerrou a conexão. Alín gritou e caiu de joelhos.
Murtagh foi até ela com a intenção de ajudá-la. No último momento, ele se
lembrou de não tocá-la e parou, com as mãos pousadas nos ombros de Alín. Ele
recuou.
— Você está bem?
Passou-se um longo momento até que ela se mexesse e erguesse o olhar com
lágrimas no rosto.
— Nunca pensei ser tão abençoada — sussurrou ela, depois voltou o olhar para
Thorn e baixou a cabeça. — Obrigada. Obrigada. Mil agradecimentos ao senhor.
Murtagh não sabia como responder. Observou enquanto ela se recompunha e se
levantava.
— Bachel mandará buscá-lo em breve — disse ela, com a voz tão clara e límpida
quanto um céu de inverno. — Esteja pronto para atendê-la. Ela não tolera atrasos.
— Não, imagino que não — falou Murtagh.
Alín lançou um último olhar a Thorn, com uma expressão subitamente
perturbada, e fugiu para o templo.
Sem ela, o pátio pareceu frio e vazio.
Murtagh se voltou para Thorn e franziu a testa.
— Por quê?
Raspando as escamas na pedra, Thorn enrolou o pescoço em torno de Murtagh e
o prendeu em uma grande espiral.
Pareceu apropriado.
— Apropriado porque ela disse que você era magnífico?
Thorn bufou.
Não. Porque muito foi dito a ela, mas ela viu pouco. Eu já fui assim. É bom saber
a verdade das coisas.
Com isso, Murtagh abrandou a postura.
— Acho que você está certo.
Thorn zumbiu, e Murtagh coçou o focinho do dragão de novo.
— Bem, contanto que ela não tenha visto nada a respeito de ontem à noite, não
há mal algum.
E talvez algo de bom.
— Talvez.
Thorn desenrolou o pescoço e Murtagh pegou três maçãs secas dos alforjes. Ele
as comeu rapidamente, sem saber quanto tempo levaria até que Bachel os
convocasse. As maçãs não o sustentariam por muito tempo, mas o manteriam de pé
pelas próximas horas.
Vozes soavam das ruas para as quais o pátio se abria: cantos rítmicos que
pareciam mais cerimoniais do que musicais.
Curioso, Murtagh caminhou até a esquina mais próxima, com Thorn o seguindo.
Ele não precisou ir muito longe para ver um grupo de mais ou menos vinte
Sonhadores reunidos em torno de uma alcova construída dentro da parede externa
de uma casa. Nela, havia um pequeno altar — não muito diferente do que Murtagh
havia encontrado na noite anterior — com frutas e pedaços de carne empilhados no
centro.
Outro Sonhador vestido de branco, um homem, estava virado de frente para os
aldeões, e era para ele que as pessoas dirigiam as vozes. O canto era tão rápido, tão
ensaiado, que a princípio Murtagh não conseguiu distinguir uma palavra da outra,
mas, enquanto ouvia, começou a identificar frases repetidas, como “Com nossas
mãos, assim servimos”, “Da forma como é sonhado, assim será” e “Dada a nossa
recompensa terrena, louvada seja”.
Entre as frases repetidas, o Cavaleiro percebeu que os aldeões estavam
descrevendo os sonhos que tiveram naquela noite: algo a ver com sangue, fogo e
injustiças antigas. Os detalhes lhe escapavam, mas captou palavras aqui e ali, como
vislumbres de peixes prateados em um riacho. Alguns elementos o lembravam das
visões que compartilhou com Thorn, mas apenas em parte. Todo o resto pareceu
variar bastante do que eles viram.
Não havia dúvida de que os aldeões estavam acostumados com os sonhos, como
Alín dissera. O canto era repetitivo, ritual, quase inconsciente, com uma
característica indutora de transe, como se a batida das vozes entorpecesse as
mentes. Os olhos dos aldeões ficaram vidrados enquanto eles se balançavam junto
com o ritmo das palavras.
Enquanto observava, Murtagh se surpreendeu com a coesão do grupo. Os aldeões
pareciam mais uma entidade única e multifacetada do que indivíduos reunidos. A
causa que os unia — fosse qual fosse — parecia tão forte que apagava as diferenças
entre eles, e o resultado era intimidador.
Mesmo com Thorn ao lado, uma sensação vazia de inveja se formou dentro de
Murtagh. Ele tinha saudade dos momentos, por mais raros que tivessem sido, em
que se sentiu unido em um propósito comum aos soldados do exército de
Galbatorix. A camaradagem trouxe consigo determinada confiança — uma
fortificação de seu próprio ser, mesmo quando a definição de quem ele era se
expandia para incluir seus irmãos de armas. Murtagh teve essa sensação, muito
brevemente, quando treinou com os guardas em Gil’ead. E recuando ainda mais no
tempo, ele compartilhou um sentimento semelhante durante as viagens com Eragon.
Mas esses dias já tinham ficado para trás havia muito tempo.
Thorn tocou o cotovelo de Murtagh, que sorriu tristemente.
O canto continuou com numerosas repetições de “Da forma como é sonhado,
assim será”, e eram tão perfeitamente uniformes, tão perfeitamente iguais em
entonação e recitação irracional, que a mesmice de repente pareceu repulsiva. A
sensação era de estar observando um grupo de boçais sonâmbulos que se moviam
sem pensar, com olhos opacos, cegos, fixos em um ponto vago à distância, sem
piscar, enquanto as bocas se abriam e se fechavam com precisão sincronizada. A
inveja de Murtagh evaporou, como névoa diante do fogo de um dragão, e ele
percebeu algo mais a respeito dos Sonhadores: eles não eram um grupo
conspiratório, nem uma organização política, nem mesmo marcial. Na verdade,
eram um culto, dedicados aos sonhos e à Oradora acima de tudo.
O canto parou.
Por um momento, o silêncio reinou na rua.
— Digam quais diferenças viram, se algum de vocês viu — pediu o acólito do
templo.
— Eu vi uma revoada de dragões, só que dessa vez um deles, bem no meio, era
carmesim — disse um homem com uma marca de nascença tão escura quanto um
respingo de vinho no nariz.
O acólito assentiu com um gesto compreensivo.
— Os Ouvidos de Bachel ouviram você. O que mais?
— Um obelisco de pedra com uma ponta preta e entalhe dourado — respondeu
uma garota de não mais do que dez anos, com tranças parecidas com fios de ouro.
— O entalhe brilhou, e ouvi uma voz falando palavras que não entendi.
O acólito assentiu novamente.
— Você se apresentará a Bachel na audiência da manhã, e ela falará com você a
respeito do significado de sua visão.
— Da forma como é sonhado, assim será.
Murtagh continuou a ouvir os cultistas confessando seus sonhos. Perguntou-se
quantos deles falavam a verdade e quantos estavam inventando detalhes para obter
uma chance de impressionar os vizinhos ou agradar a Bachel. Mas talvez isso não
fosse gentil da parte dele. Os aldeões pareciam sinceros e convencidos das
experiências que tiveram.
É natural que seja assim, pensou Murtagh. Tentou imaginar como era crescer em
Nal Gorgoth, sendo constantemente questionado a respeito de seus sonhos, e se eles
eram parecidos com o que ele e Thorn vivenciaram na noite anterior... Murtagh
estremeceu.
Uma mulher emergiu do meio do grupo. Ela era de meia-idade, com cabelos que
caíam em madeixas emaranhadas, e o rosto estava contraído e lastimoso, como se
tivesse passado a noite inteira preocupada. Ela esfregou as mãos com dedos
retorcidos como raízes.
— Ouça-me! — berrou a mulher.
O acólito de robe branco olhou para ela com algo parecido com repulsa.
— Fale e seja ouvida, ó Dethra.
A mulher soluçou e balançou a cabeça.
— Eu não sonhei como era certo e apropriado. Minha mente esteve vazia a noite
inteira até pouco antes de acordar. Então, uma imagem encheu minha mente e vi a
montanha branca com...
Os rostos daqueles que ouviam se fecharam, e Murtagh não viu nenhuma
caridade nas suas expressões.
— Chega! — exclamou o acólito. — Não envenene nossas mentes com suas
visões falsas. Você é impura, Dethra.
— Eu sou impura! — gritou ela com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Você é indigna!
— Eu sou indigna! Puna-me! Deixe-me expiar!
Com uma expressão estrondosa de irritação, o acólito apontou para ela.
— Dethra! Você não pode recuperar as graças dos Olhos de Bachel até que
expurgue essa heresia de seu ser. Vá ao templo e confine-se na Sala de Azurita até
Bachel achar apropriado que volte ao reino dos Sonhadores.
A mulher gritou de terror e desabou no chão, onde ficou tremendo e balbuciando
coisas incompreensíveis.
O acólito de robe branco avançou de forma intempestiva, agarrando-a pelo braço
e a arrastando em direção ao templo.
A multidão se abriu diante dos dois, homens e mulheres observando em silêncio
absoluto. Na frente do grupo, a garota de cabelos dourados mordia o polegar, com
olhos arregalados e solenes.
Aquela mulher está com medo do confinamento ou da expiação?, perguntou
Murtagh a Thorn.
Ou de Bachel?
Era um pensamento inquietante. Com Thorn ao lado, Murtagh seguiu o acólito
até o templo e o viu empurrar Dethra para dentro da construção.
CAPÍTULO VI

A Corte dos Corvos

— Aí— Aí está você, Cavaleiro — disse Grieve em tom forte de desaprovação


enquanto ia na direção de Murtagh e Thorn com passos acelerados. Ele fez uma
reverência tão pequena que mais pareceu um aceno. — Dragão Thorn, Bachel
concederá audiência a você agora. A vocês dois.
Murtagh gesticulou na direção do templo.
— É para entrarmos?
— Claro. Bachel os aguarda em sua câmara de audiências.
Murtagh arqueou as sobrancelhas.
— Ora, meu bom Grieve, sinto informar que as portas do templo são estreitas
demais para Thorn. A menos que você espere que ele as destrua.
A irritação no rosto de Grieve o deixou contente.
— Não espero — respondeu ele, rígido. — Dragão Thorn, há um átrio logo
adiante, para o qual pode voar. De lá, poderá acessar a câmara.
Murtagh hesitou e olhou para Thorn.
Deseja tentar?
O dragão rosnou e respondeu tanto para Murtagh quanto para Grieve:
Irei até o átrio, apenas. Se Bachel desejar falar comigo, terá que vir até mim.
A expressão irritada de Grieve se intensificou.
— Você corre o risco de ofender a Oradora, Dragão Thorn.
Thorn bufou. Que seja. Com um bater de asas, ele tomou o ar. Seu corpo
obscureceu o céu por um momento, e então ele estava acima do templo, onde pairou
feito um morcego carmesim antes de recolher as asas e sumir de vista sob o pico do
edifício.
— Temo que ninguém seja capaz de dizer a um dragão o que fazer, nem mesmo
um Cavaleiro — disse Murtagh em um tom calmo.
Grieve respondeu com um resmungo, então se virou e andou com aquelas
passadas esquisitas em direção à entrada do templo coberta pelas sombras.
Alerta e curioso, Murtagh o seguiu com a mão no cabo da espada.
Entre os pilares facetados ao fundo, havia duas portas de carvalho escurecido
abertas. A madeira era entalhada com runas e incrustada com fios de ouro que
traçavam o mesmo desenho de ramificação esculpido na superfície da fachada do
templo. O ar lá dentro estava notavelmente mais quente e carregado com o cheiro
de enxofre. Murtagh sentiu a umidade se acumulando na pele, minúsculas gotas de
orvalho sulfuroso.
Eles andaram por uma passagem curta iluminada por lamparinas a óleo. O
caminho, por fim, se abriu em um átrio. Era amplo e quadrado, com quatro piscinas
elevadas — tomadas por juncos e musgo flutuante — nos cantos, enquanto no
centro havia uma escultura gigante, quase da altura do pé-direito. A estátua era de
pedra negra e toda composta por ângulos, estilhas e arestas desconjuntados, mas,
quando vista como um todo, havia uma forma em meio ao caos. Ele achou que
deveria reconhecê-la, mas a verdade lhe escapava como um nome ou um rosto que
não conseguia identificar.
Thorn tinha aterrissado próximo à estátua e a olhava como se pretendesse
derrubá-la com um sacudir de sua cauda.
— O que é aquilo? — perguntou Murtagh.
Grieve continuou com seu andar esquisito e não se virou para olhar.
— Uma representação do sonho.
Uma inquietação fez Murtagh apertar um pouco mais a capa ao redor do corpo.
O que você acha?, perguntou a Thorn.
Uma abominação.
É um pesadelo, com certeza.
Se eles forem tolos a ponto de atacar você, vou destruir este lugar até não sobrar
pedra sobre pedra, disse Thorn enquanto Murtagh seguia Grieve.
Murtagh sorriu, reconfortado.
Ótimo.
Do outro lado do átrio, outra passagem fazia curva para o sul e terminava em
uma porta alta e larga o suficiente para Thorn passar. Portas de carvalho escuro com
reforços de ferro estavam abertas e, depois delas, ecoava um grande espaço.
A câmara parecia metade sala do trono e metade santuário interno. Um braseiro
de cobre martelado — com três metros de largura ou mais — ficava no centro da
sala, enchendo o ar com a fumaça de incenso carregada de aroma de sálvia, pinho e
cedro, embora não abafasse o cheiro de enxofre, que parecia mais forte dentro do
templo. Sob o braseiro, um cano de ferro fundido ligava o fundo ao chão de metal.
Um pavilhão sem teto, feito de pedra lapidada, circundava o braseiro, e nas suas
colunas havia cabeças de dragão esculpidas que se estendiam sobre as brasas
brilhantes, como gárgulas na catedral de Dras-Leona.
O teto estava perdido na sombra. O chão brilhava com lascas peroladas de um
enorme mosaico multicolorido que girava de maneira que os olhos de Murtagh
consideraram difíceis de seguir. Estandartes vermelho-sangue pendiam das paredes,
com as bordas esfarrapadas e o tecido mofado e carcomido por traças. Em frente à
entrada, do outro lado do braseiro e do pavilhão, havia uma longa arcada dupla com
cadeiras de pedra colocadas entre as colunas esculpidas, encobertas pelas sombras
escuras e vazias, exceto por poeira e memórias. A arcada terminava em uma
plataforma sobre a qual havia uma cadeira de pedra de espaldar alto coberta por
peles de animais.
E reclinada naquele trono implacável estava Bachel em toda sua glória absoluta e
imperiosa. Um único facho de luz a iluminava de cima — um raio filtrado por
alguma janela oculta de modo inteligente — e a envolvia em uma radiância
aparentemente sagrada. Dessa vez, ela usava uma tiara de jade e couro, preta e
polida até emitir um brilho oleoso. Seu vestido era vermelho e novamente feito de
faixas amarradas com nós, anéis ostentando rubis e esmeraldas enfeitavam seus
polegares.
Bachel estava bebendo de um cálice de quartzo esculpido, e a cor de seus olhos
parecia âmbar líquido ao brilho do braseiro.
Em todos os aspectos, ela formava uma figura imperiosa, e uma inquietação
profunda se formou em Murtagh. Era como se estivesse abordando alguma fonte
secreta de poder; podia quase sentir o gosto da energia emanando de Bachel, como
se ela fosse a personificação de alguma enorme força. Mesmo Galbatorix teria
hesitado diante da bruxa, pensou.
Três acólitos estavam dispostos diante de Bachel e do altar, ajoelhados no
mosaico, com capuzes cobrindo os rostos e mãos unidas em oração. Um único
aldeão de cinza — um anão, aparentemente de meia-idade — estava no meio deles.
— … doze contra doze, e o cisne negro explodiu em fogo acima do campo de
batalha, e… — dizia o anão.
Bachel ergueu um dedo, interrompendo-o.
— Você teve outra visão de vitória, Genvek.
O anão cofiou a barba trançada.
— Ainda há mais, Oradora. Depois do cisne, eu vi…
— Você pode me contar isso mais tarde, meu filho — disse Bachel enquanto
Grieve se aproximava do altar, seguido por Murtagh.
O Cavaleiro notou que a bruxa não parecia mal depois de ter se esbaldado no
banquete. Bachel sorriu, e os dentes reluziram feito conchas polidas na luz pálida
vinda de cima.
— Esta corte tem um convidado que precisa ser atendido. Vá embora
imediatamente.
Genvek, o anão, pareceu desconcertado, mas cofiou a barba de novo, fez uma
mesura e partiu com um olhar feio dirigido a Murtagh.
— Venha agora, Regicida — disse Bachel, com sua voz orgulhosa e forte. —
Aproxime-se para que eu possa vê-lo mais nitidamente.
Murtagh obedeceu. Ele passou entre os acólitos e ficou diante deles, embora
odiasse ter alguém fora de seu campo de visão.
O sorriso de Bachel aumentou enquanto ela o estudava. A seguir, gesticulou para
o templo de maneira elegante, as joias em seus dedos cintilando constelações no ar.
— Bem-vindo à Corte dos Corvos, Murtagh, filho de Morzan. Faz mais de meio
século desde a última vez que um Cavaleiro esteve aqui.
Será que foi Saerlith ou outro dos Renegados? Ou o próprio Galbatorix?,
perguntou-se Murtagh.
Antes que pudesse responder, ela acrescentou:
— E boas-vindas também a você, Dragão Thorn.
Murtagh se virou para ver que Thorn havia enfiado a cabeça pela entrada da
câmara de audiências. O dragão não ousou mais que isso, mas Murtagh ficou
contente com sua presença.
— Admito que não vejo corvos, senhora — comentou ele, sentindo-se mais
confiante.
A bruxa riu, e a voz rouca ecoou no teto obscuro.
— Olhe com mais atenção, Regicida. Há muita coisa que você não enxerga.
Murtagh odiava quando lhe diziam que não compreendia algo. E odiava ainda
mais quando isso era verdade.
Forçando uma expressão de brandura educada, ele ergueu o olhar enquanto
também expandia sua consciência. Dezenas de mentes minúsculas apareceram
acima dele, como anéis de velas dispostas em um espaço ritual. Corvos. Um bando
inteiro deles empoleirado na parte inferior do teto, em cornijas, entalhes e vigas de
pedra. Depois de descobrir aquilo, Murtagh começou a escutar os ruídos enquanto
as aves cacarejavam, murmuravam e se mexiam para lá e para cá com as garras
batendo. E, no entanto, nenhum dos corvos crocitou, e ele não via excrementos no
mosaico abaixo.
Ele levantou uma sobrancelha.
— O chão está muito limpo.
O sorriso de Bachel demonstrava mistério.
— Os corvos são meus parentes. Eu falo com eles, e eles me respondem. Eu
ordeno e eles obedecem, igual a todas as minhas crianças.
Bachel ergueu uma das mãos.
— Venham — continuou, e Murtagh ouviu magia na palavra: uma compulsão que
quase o fez dar um passo à frente antes de se controlar.
Com um vendaval suave de asas batendo, os corvos desceram em uma nuvem
sombria e pousaram nas costas e nos braços do trono de Bachel, assim como no
altar que a rodeava. Como um único ser, o bando terrível encarou Murtagh com
olhos fantasmagóricos — íris brancas inflexíveis e fixas na escuridão da câmara.
Bachel riu e cacarejou carinhosamente para os pássaros. Um dos corvos pulou
perto da bruxa. Ela coçou a cabeça dele e embaixo do bico enquanto o pássaro
fechava os olhos em aparente êxtase.
— Entenda, Regicida, a Oradora eu sou, mas também sou a Rainha dos Corvos.
Havia certa surrealidade na imagem dela sentada, imperante, entre aqueles corvos
murmurantes; parecia um espectro, e Murtagh sentiu como se o mundo tivesse
virado um pouco no eixo, e ele não estivesse mais em um local regido pelas
familiares leis naturais, mas por uma lógica mais antiga e mais selvagem.
Ele ouviu Thorn soltar um pequeno sibilo na entrada da câmara.
Murtagh fez uma pequena reverência.
— A extensão do seu poder é realmente impressionante, lady Bachel. Parece que
até um corvo comum reconhece a sua autoridade.
— Corvos estão longe de ser comuns — retrucou Bachel, que arrulhou para o
pássaro cujo bico ainda coçava. — Você sabia, meu filho, que os Urgals acreditam
que os corvos carregam as almas dos mortos para a vida após a morte?
— Não sabia.
Ela assentiu.
— Ver um corvo deixa um Urgal com um pavor imenso, mas ele também fará de
tudo para ajudar um corvo necessitado ou para evitar feri-lo, pois acredita que, se
enfurecidos, os corvos se recusarão a carregá-los para os campos de seus ancestrais
quando eles morrerem.
— E no que você acredita, minha senhora?
Bachel arqueou uma sobrancelha.
— Vá — disse ela com uma voz que ecoou com poder.
Os pássaros decolaram em uma massa agitada para as sombras acima.
— Eu acredito que os corvos estão com fome e não sabem dizer quando estão
saciados, e é por isso que sempre são encontrados no campo de batalha se
banqueteando dos caídos.
Os lábios de Murtagh se curvaram com repulsa.
— Algo horrível de se pensar a respeito de um hábito tão desagradável, minha
senhora.
A bruxa tomou um gole do cálice, despreocupada.
— Você não pode culpá-los pela natureza deles.
— Nem tenho que elogiá-los por ela, tampouco.
Bachel inclinou a cabeça.
— É verdade. — Então ela estreitou os olhos e o âmbar ficou mais escuro. —
Diga-me, meu filho: você descansou bem na noite passada?
— Bem o bastante.
O olhar dela se aguçou.
— E você e Thorn sonharam? Devem ter sonhado. Todas as criaturas neste vale
sonham, mesmo os corvos.
Ela parece querer muito saber, disse Thorn.
Parece mesmo.
Murtagh brincou com o rubi no pomo de Zar’roc enquanto ponderava. Não
queria contar nada íntimo demais a Bachel, mas estava curioso a respeito de como
ela interpretaria suas visões. Qualquer reação dela lhe diria mais sobre os
Sonhadores do que ele revelaria sobre si mesmo.
Então contou tudo a ela, exceto por um detalhe: a aparição de Nasuada no sonho.
Isso era íntimo demais, e Murtagh não tinha intenção de dissecar o significado
daquilo com uma estranha.
— E você, Thorn? — perguntou Bachel. — O que viu?
Thorn rosnou baixinho. Vi a mesma coisa.
Então a bruxa se recostou no assento, inclinou o rosto para o facho de luz que
incidia em sua tez e soltou um longo suspiro.
— Ah, que belas visões, Regicida. Posso sentir suas promessas, como o toque
quente dos primeiros raios de sol.
— Eu não as chamaria de belas.
Bachel baixou os olhos para ele.
— Isso é porque sua visão está ofuscada, meu filho, limitada pelos seus sentidos
e confinada pela sua mente. Assim como é para todos nós, até para você, Thorn.
— Mas você enxerga a verdade? — perguntou Murtagh, sem disfarçar a
descrença.
Ela balançou a cabeça, fazendo a tiara se mover.
— Não, meu filho, não alego ter tal sabedoria. Sou apenas um receptáculo para a
compreensão. Uma intérprete, se quiser chamar assim.
— Então interprete.
Os lábios de Bachel se curvaram.
— Muito bem, Regicida, interpretarei.
Ela fechou os olhos e os acólitos se curvaram de modo sincronizado e
começaram a cantar em uma língua desconhecida. Grieve baixou a cabeça até que
apenas seu bico de viúva estivesse visível. Faíscas pularam do braseiro quando
Bachel murmurou diversas palavras naquela língua estranha, palavras que pairavam
no ar mais do que deveriam. Por um momento, a câmara pareceu obscurecer, como
se uma sombra a encobrisse.
Um frio se espalhou pelo ar abafado.
Murtagh se manteve firme, mas todos os pelos do corpo estavam arrepiados.
Sentia-se em campo aberto durante uma forte tempestade, com raios caindo.
Que teatral, ele comentou com Thorn.
Mesmo assim, não podia negar o efeito que a cerimônia exercia sobre ele, fosse
magia ou outra coisa.
Quando Bachel falou, sua voz soou oca e sinistra:
— Contemplai... Da forma como foi, assim será. Veja agora o centro de todas as
coisas, o rei em seu trono, a serpente em seu covil. Veja agora suas velhas dores...
injustiças não vingadas... e triunfos futuros. A limpeza da espada, o filho liberto do
pai. Veja agora isto, e saiba que é verdade. Da forma como foi sonhado, assim será.
Murtagh sentiu um calafrio nas entranhas e todo seu corpo enrijeceu à palavra
pai, uma resposta tão instintiva quanto a dor.
Bachel murchou ligeiramente. Então abriu os olhos e, com um sorriso cansado,
gesticulou para os acólitos. Eles pararam de se curvar e cantar, e a câmara voltou ao
silêncio.
Murtagh tentou permanecer impassível, embora seus músculos estivessem
retesados feito cordas esticadas.
A bruxa se empertigou no trono.
— Pronto, Regicida. Já disse minha parte.
— A Oradora falou — murmurou Grieve.
— E ainda assim não entendo mais agora do que quando começou — respondeu
Murtagh.
— É porque ainda preciso explicar a explicação. Não se apegue tanto às
convenções, meu belo principezinho. Você deve aprender a enxergar para além da
visão mortal.
Murtagh franziu ainda mais a testa.
— O que você quer, Bachel? Por que espalhou seus servos pela Alagaësia? Com
qual propósito? E por que diz que Thorn e eu seremos os salvadores da terra? Do
que vamos salvá-la?
— Você reconhece o formato deste santuário, meu filho? — perguntou Bachel,
indicando a câmara ao redor.
Desprevenido, Murtagh se atrapalhou na resposta.
— Não, não reconheço.
— Pois deveria. Ele tem um gêmeo sob Urû’baen: o Salão da Profetisa. Acredito
que o conheça.
Murtagh sentiu-se momentaneamente fraco e quase se sentou. Tremeu
ligeiramente enquanto tentava permanecer de pé.
Ele olhou ao redor. A bruxa tinha razão. Se ignorasse o arco, os pilares e o
pavilhão aberto, o plano geral do espaço era similar, se não idêntico, ao do Salão da
Profetisa. E o altar de cinzas, aquele odioso pedaço de pedra, não era diferente
daquele em que Galbatorix mantivera Nasuada acorrentada...
Bachel se inclinou para a frente com um olhar de rapina.
— Os vapores sagrados que emanam do chão aqui da mesma forma já emanaram
das rochas sob Urû’baen. Na época, uma Oradora também viva naquele salão, os
inalava e compartilhava a sabedoria do sonho com aqueles inteligentes o bastante
para consultá-la.
Será que Galbatorix sabia a verdade sobre a Profetisa? Ele negara conhecer sua
origem, mas ao longo dos anos Murtagh aprendera que o rei mentia, e mentia bem.
Talvez Bachel também esteja mentindo, disse Thorn.
Murtagh teve dificuldades para recuperar a voz.
— Você reclama o mesmo manto da Profetisa?
— Somos da mesma linhagem, na fé e nos costumes, se não no sangue.
Murtagh olhou de relance para Thorn, confuso. Tudo que já ouvira falar da antiga
Profetisa mencionava suas previsões sinistras, e havia várias histórias a respeito de
pessoas que ignoraram ou contrariaram seus conselhos e vieram a se arrepender.
Murtagh nunca conseguira se convencer de que o futuro estava definido. Assim
como Thorn, odiava a ideia de que alguma força alheia ditava o rumo de sua vida.
O conceito parecia usurpar toda motivação e responsabilidade de suas escolhas. No
entanto... se Bachel fosse mesmo um oráculo, Murtagh precisava saber suas
previsões para ele e para Thorn, ainda que talvez se rebelassem contra elas.
A bruxa pareceu ler seus pensamentos, embora ele não sentisse qualquer toque
em sua mente.
— Para começar, direi uma coisa, meu filho: foi o Destino que o trouxe aqui.
Você não teria conseguido resistir ao desejo de encontrar Nal Gorgoth, e a mim,
assim como uma mariposa não consegue resistir à atração de uma chama à noite. Os
fios do destino podem ser puxados por quem os conhece. Puxados e cortados. Nal
Gorgoth e outros lugares iguais duraram mais do que você pode imaginar. Nenhum
dragão, Cavaleiro, elfo ou qualquer outra criatura em toda a história do reino
conseguiu acabar com nossos redutos ou extinguir nossa fé.
— Nem mesmo Galbatorix? — disse Murtagh com um tom monótono.
O sorriso de Bachel se alargou, mostrando mais dentes do que era normal para
um ser humano.
— Nem mesmo o próprio matador de dragões, Cavaleiro. Ele tentou, uma vez, e
logo percebeu a magnitude de seu erro.
Medo e frustração romperam o controle de Murtagh.
— Quem é você? — perguntou, permitindo que um pouco de seu poder entrasse
na voz.
Ele era capaz de usar palavras para controlar e comandar tão facilmente quanto
Bachel — e tinha um dragão a seu lado.
A voz dele ecoou nas paredes da câmara, e Grieve e os acólitos de robe branco se
enrijeceram.
— Oradora! — disse Grieve, e a palavra saiu entre os dentes cerrados.
Bachel não pareceu afetada. Ela fez um gesto com a mão para Grieve.
— Acalme-se, meu filho. Você está tão nervoso quanto um coelho da primavera.
Nosso convidado não quer nos fazer mal.
Grieve cerrou o maxilar, mas permaneceu quieto. Murtagh não estava disposto a
fazer o mesmo.
— Mas minha paciência está se esgotando. Você me prometeu respostas, Bachel,
e só me deixou com mais perguntas.
Ela tamborilou as unhas contra o braço do trono.
— Duvida da minha palavra?
— Não, senhora, só de quando pretende cumpri-la.
Ela o encarou com olhos semicerrados, sua tiara e ombros envoltos pela pálida
radiância vinda de cima.
— Caminhe entre nós por um dia e uma noite, você e Thorn. Veja o que somos e
como vivemos, antes de tentar nos julgar. Sonhe mais uma vez em Nal Gorgoth e
deixe sua mente vagar longe e fundo.
Ela estava sendo evasiva, isso era óbvio, mas ao mesmo tempo a oferta era
tentadora. Havia muitas coisas difíceis de explicar a respeito de Bachel e dos
Sonhadores, e ele acreditava ser de máxima importância compreender melhor o que
eram e o que queriam. Ainda mais se Bachel possuísse os mesmos poderes
premonitórios da Profetisa. Por si mesmo e por Thorn, e por Nasuada também,
precisava descobrir mais.
O que me diz?, perguntou a Thorn.
Um dia a mais não é um preço tão alto.
— Se fizermos isso, você abandonará seus enigmas e falará de forma mais clara?
— perguntou Murtagh, erguendo o queixo.
A bruxa fez um gesto gracioso com a mão, como se o convidasse a se curvar.
— Se fizerem isso, e se esforçarem para enxergar de verdade, então sim,
Regicida, darei minha explicação e irei além. Vou revelar os fios do destino e você
entenderá tanto o papel que desempenhou quanto o que ainda pode desempenhar.
Uma grande tempestade está chegando, Regicida, uma que vai abalar os próprios
alicerces da Alagaësia, e todos nós devemos escolher um lado.
— Uma tempestade já devastou o reino. Outra poderia destruí-lo.
Fogo substituiu o mel nos olhos da bruxa.
— Então que seja destruído, e um mundo novo e melhor ressurgirá das cinzas! —
A expressão no rosto dela se suavizou de forma mercurial. — Mas não hoje,
Regicida.
Ela então se levantou e desceu do trono, os acólitos lhe abrindo passagem.
— Venha. Se vai ficar conosco, Regicida, proverei uma distração muito divertida.
— E o que seria, minha senhora? — indagou ele, cauteloso.
Ela passou por ele, a cauda de seu vestido arrastando pelo chão.
— O esporte dos reis, meu belo príncipe. Uma caçada ao javali!
CAPÍTULO VII

Presa e espada

U ma caçada ao javali teria empolgado e assustado Murtagh quando ele era mais
jovem. Javalis eram animais perigosos, e ele sabia de pelo menos quatro condes que
foram mutilados ou mortos por um porco selvagem. O perigo fazia parte da emoção
da caça; era uma chance de provar a coragem, aprimorar as habilidades marciais e
— para muitos homens — cair nas graças das mulheres na corte. A primeira vez
que Murtagh caçou javalis aconteceu com um grupo de nobres liderado por lorde
Barst. Não tinha sido uma experiência agradável. Ele perdeu a chance de matar um
javali, acabou coberto de lama da cabeça aos pés, e Lyreth e os colegas dele o
zombaram na viagem de volta. Murtagh teve mais sorte nas expedições seguintes,
mas elas sempre foram maculadas pelas lembranças daquela humilhação inicial.
Dessa vez, porém, não sentia nenhuma empolgação com a perspectiva de uma
caçada. As proteções mágicas removiam qualquer perigo possível e, junto com ele,
qualquer sensação de desafio ou realização, deixando apenas abate pela carne. Foi
um pensamento sombrio. Havia uma diferença significativa entre um caçador e um
açougueiro, e ele não desejava ser um deste.
Acompanhado de Bachel e de sua comitiva, ele deixou o templo e retornou ao
pátio da frente.
Caiu poeira da construção quando Thorn aterrissou ao seu lado.
Bachel abriu seus braços para dar boas-vindas.
— Uma caçada, nobre dragão! Junte-se a nós em nossa aventura e você poderá
saciar sua sede de sangue e fome de carne.
Thorn bufou e olhou para Murtagh.
Ela gosta de fazer muito barulho, como uma pega pela manhã.
Você quer vir?
O dragão lambeu os beiços.
Não vou deixar você sair por aí sozinho com ela. Além disso, ela não está
errada; eu estou mesmo com fome.
— Reúnam-se, meus filhos fiéis! — exclamou Bachel. — Tragam-nos cavalos,
água, vinho e tudo o mais que for necessário para uma caçada. E rápido!
Dezenas de cultistas de robes cinza e acólitos do templo de robes brancos
passaram às pressas pelo pátio de um lado para o outro enquanto corriam para
obedecer. Alín se aproximou carregando duas braças de lanças de lâmina larga e
cabo curto e entregou um par a Bachel e outro a Murtagh.
Bachel testou o gume das lanças com o polegar e a apontou na direção de
Murtagh como se fosse um dedo acusatório.
— Existe uma condição para a caça, Regicida.
É claro.
— E qual seria, minha senhora?
— Nenhum feitiço deve ser usado para matar os javalis. Eles são feras sagradas,
tocadas pelo poder deste lugar, e seria desrespeitoso, e uma blasfêmia, agir de modo
diferente.
Murtagh também testou o fio das lanças. Elas estavam afiadas de maneira
tolerável, mas o metal parecia ser um ferro bastante fraco. As pontas não
aguentariam um primeiro golpe e as bordas não permaneceriam agudas depois de
mais alguns. Usá-las seria um desafio, assim como renunciar à mágica.
Ele gostou da ideia.
— Isso parece razoável. Vou respeitar os seus costumes.
Ela assentiu.
— O Sonhador olhará com bons olhos o seu esforço, meu filho.
Então Murtagh gesticulou para as lanças da bruxa.
— Pretende caçar também, minha senhora?
Um brilho surgiu nos olhos de Bachel, que ergueu uma das lanças com uma
facilidade surpreendente.
— Acha que eu sou incapaz?
Ele não achava isso, mas também não conseguia estimar suas habilidades.
— Caçar javalis requer muita força. Nunca vi uma mulher tentar — disse ele,
com voz suave.
A risada de Bachel ecoou nas montanhas e os corvos crocitaram em resposta lá
da Torre de Pederneira.
— Uma mulher humana, você quer dizer. Que bom então que eu não sou apenas
humana. O sangue dos elfos corre em minhas veias. Embora possa não ser tão
grosso quanto o da minha mãe, ainda é mais do que o das mulheres da sua espécie.
— Então estou ansioso para ver sua proeza no campo de ação.
— E eu, a sua, meu filho.
Enquanto os cultistas se apressavam em organizar a caçada, vários dos servos de
Bachel trouxeram biombos e a circundaram com eles enquanto Alín e outras duas
mulheres a atendiam. Quando os biombos recuaram, Murtagh viu que Bachel não
mais usava o vestido vermelho e sim roupas masculinas, com avambraços de couro
nos antebraços e botas de cavalgada que lhe chegavam às coxas, além de um elmo
enfeitado com linhas de rebites cintilantes. O elmo tinha meia viseira para lhe
proteger os olhos e o nariz, e uma gola de cota de malha circundada por elos de
latão ou bronze. Eram belos trajes, na opinião de Murtagh, para a guerra ou o
esporte.
Do meio das construções de pedra, saíram homens com uma vintena de cavalos
— animais baixos e robustos que eram pouco mais altos do que pôneis. A pelagem
era mais felpuda do que qualquer cavalo que Murtagh já tinha visto, como se os
animais estivessem usando cobertores próprios para se aquecer nos longos invernos
do norte.
Murtagh recebeu uma égua com pelagem castanha para montar. Ela nem se
comparava aos cavalos de batalha nos quais fora treinado, mas o animal parecia
bastante estável. Murtagh só torcia que a coragem dela se mantivesse durante a
caçada.
Antes de montar, ele tirou a capa e a enfiou em um dos alforjes que Thorn
carregava. Ela o atrapalharia quando estivesse a pé durante a caçada.
Ao subir na sela, a desaprovação de Thorn tomou conta dele.
Não parece correto ver você cavalgando um desses animais parecidos com
cervos sem chifres.
Cavalos. Eles são chamados de cavalos, e você sabe disso.
Mas soa mais ofensivo chamá-los de cervos sem chifres.
Murtagh olhou para ele. Se Thorn fosse humano, teria jurado que o dragão estava
sorrindo.
Você está se divertindo, não está?
Thorn bufou.
Não é todo dia que vejo um Cavaleiro montando um cavalo.
Enquanto o grupo de caça se preparava para partir, Murtagh percebeu uma coisa.
Cachorros… Eles não têm cachorros.
Depois de perceber isso, reparou que o vilarejo estava em silêncio. Não havia
cães ladrando, nem vira-latas latindo nas ruas ou brigando por comida. O que era
estranho. Em todos os seus anos de vida e em todas as viagens que fez, Murtagh
nunca tinha visto um assentamento humano sem cães.
Os cães são tão importantes?, perguntou Thorn.
São. Para o homem comum, ter um cachorro é a coisa mais próxima do vínculo
que você e eu compartilhamos.
Você está comparando dragões com cachorros?
Não, não. Não dessa forma, foi apenas para dizer que a conexão que um humano
pode compartilhar com um cachorro pode, em parte, se assemelhar à conexão que
temos.
Thorn não parecia convencido.
Hum... Você já teve um cachorro?
Você sabe que não… Os outros meninos teriam machucado ou matado qualquer
cachorro que eu tivesse.
O lábio de Thorn se contraiu ligeiramente, não o suficiente para que outros
notassem, mas Murtagh viu.
Eles não teriam ousado se eu estivesse lá.
Murtagh riu.
Não. Não mesmo.
Ele conduziu a égua até Bachel.
— Eu notei que vocês não têm cachorros.
O desdém aguçou as feições angulosas da bruxa.
— E por um bom motivo. São criaturas blasfemas.
— Cachorros?
— Eles se recusam a aceitar o discernimento que alguém é capaz de receber
através do poder deste lugar. Nenhum cachorro permanece em Nal Gorgoth, e
sempre foi assim. Os corvos são mais sábios. Eles entendem a promessa do sonho.
— Mas como vão cercar os javalis?
O olhar semicerrado de Bachel se tornou misterioso.
— Você verá, Regicida. Não precisaremos da assistência a que você está
acostumado.
Enquanto o grupo organizava as provisões, Murtagh avistou Alín observando no
meio dos pilares sob as sombras do templo, uma figura furtiva, meio escondida
atrás da pedra esculpida.
Quando todos no grupo estavam montados, Bachel ergueu uma lança acima da
cabeça.
— Comigo! — gritou.
Ela esporeou o garanhão peludo adiante, para longe do templo e vilarejo adentro.
Murtagh se sentiu tentado a brandir Zar’roc, como se estivesse reunindo tropas,
mas em vez disso esporeou a égua e seguiu em um ritmo tranquilo. Os cultistas
vieram atrás, e Thorn fechou a retaguarda, com os passos pesados sacudindo a
poeira das telhas das construções ao redor.
Dezenas de aldeões se reuniram nas ruas para vê-los partir. Murtagh avistou um
número surpreendente de crianças entre eles.
Deveria haver mais pessoas aqui, considerando quantos filhos elas têm, disse a
Thorn. É estranho.
Talvez eles mandem os filhotes para outro lugar quando estão crescidos,
respondeu o dragão.
Assim que o grupo alcançou o limite de Nal Gorgoth, Bachel conteve o garanhão
e apontou para o lado sul do vale.
— Está vendo aquele pequeno espaço entre as montanhas, Regicida? Onde as
árvores seguem um riacho que vem das alturas? Aquele é o nosso destino.
— Vamos encontrar javalis lá, minha senhora?
— O suficiente para alimentar um grupo de dragões!
Ela esporeou o garanhão novamente e se curvou sobre o pescoço do cavalo, que
resfolegou assustado e saiu correndo pela terra enegrecida.
Grieve fez uma cara feia e chicoteou a lateral da égua em que estava montado.
— Acompanhem a Oradora, malditos! — gritou para os guerreiros que
completavam o grupo.
Com um clamor de cascos e os gritos dos homens empolgados, eles se dirigiram
para o sul em direção ao espaço estreito que separava uma montanha da outra.
Será de admirar se não espantarmos todos os javalis com essa balbúrdia, disse
Murtagh.
Thorn o surpreendeu alçando voo. Suas asas lançaram uma sombra carmesim
sobre o grupo quando o dragão planou sobre eles.
Farei um reconhecimento à frente e verei onde nossa presa pode estar, antes que
vocês expulsem a caça dos locais em que comem e bebem.
Murtagh observou com certo pesar Thorn subindo com facilidade invejável até os
sopés das colinas. Desejou estar montando o dragão em vez da égua com a pelagem
castanha, porque odiava ser deixado para trás entre desconhecidos.
Acima de tudo, ele odiava como aquela sensação lhe parecia familiar.
O ar ficou mais quente à medida que se aproximavam do vale lateral estreito, e
cada vez mais filetes de fumaça se erguiam da terra incrustada, como enguias-de-
jardim. Em algumas ocasiões, um pouco da fumaça trazida pelo vento atingiu o
rosto de Murtagh, que se engasgou com o fedor avassalador de enxofre. A terra
tinha uma aparência carbonizada e estéril, como se tivesse sido arrasada pelo fogo
em um passado recente.
Como Bachel havia diminuído a velocidade do garanhão para um ritmo mais
moderado, Murtagh conseguiu cavalgar ao lado dela.
— Eu nunca vi um lugar como este antes, exceto na Campina Ardente, bem ao
sul. E ela não cheirava a enxofre.
A bruxa assentiu.
— Existem muitos desses lugares, Regicida, espalhados pela Alagaësia, embora
não sejam fáceis de encontrar. Há outro, não muito ao sul daqui: as catacumbas de
Anghelm, onde Kulkarvek, o Terrível, está enterrado com honras de estado.
Murtagh lutou para esconder sua reação. Kulkarvek foi o único Urgal conhecido
por ter unido a raça briguenta sob o mesmo estandarte, um evento ocorrido muito
antes da queda dos Cavaleiros, se fosse possível acreditar nas histórias. O túmulo
dele era um dos outros locais — junto com as ruínas de El-harím e a ilha de
Vroengard — que Umaroth o havia alertado para evitar.
Porém, o que mais incomodou Murtagh foi a insinuação de que havia muitos
desses lugares na Alagaësia inteira: lugares onde o chão estava queimado e o ar
cheirava a enxofre.
Por que eles não são mais conhecidos?, perguntou ele a Thorn. Mesmo que
estejam em pontos remotos e isolados, os Cavaleiros ou outras pessoas saberiam de
qualquer lugar com um cheiro como esse. Seria difícil de esconder, especialmente
do ar.
Um véu mágico, talvez? Um feitiço que esconde o óbvio da vista?
Proteções mágicas deveriam bloquear esse tipo de coisa.
Depende do feitiço. Você sabe disso. Pode ser um encantamento que ninguém
vivo conhece. Ou algo semelhante ao Banimento dos Nomes.
Murtagh ergueu o olhar para Thorn.
Magia de dragão? Você sente algo do tipo aqui?
Não sei o que sinto, apenas que a terra parece viva, apesar de estar carbonizada.
O mundo se estreitou em volta deles quando o grupo de caça entrou no vale e as
montanhas se apertaram até que os sopés estivessem a apenas algumas dezenas de
metros de distância e densas fileiras de árvores bloqueassem a visão. Era bom que
Thorn estivesse no ar e não ali em um local tão apertado, pensou Murtagh.
Bachel foi à frente por um caminho bem trilhado que serpenteava entre os
pinheiros altos.
Depois da garganta, o vale voltou a se alargar, e Murtagh viu o que em outro
lugar na Espinha teria sido um longo campo alpino onde cervos, ursos e outros
animais selvagens se reuniriam. Ali, não. Ali a terra ainda estava queimada e
enegrecida, e as árvores estavam mortas e esqueléticas — despidas de tudo, exceto
alguns aglomerados de galhos quebradiços. Nada disso causou uma impressão tão
forte em Murtagh quanto a enorme quantidade de cogumelos crescendo no solo.
Havia de todos os tipos. De chapéu marrom, de chapéu branco, redondos como
esponjas do mato, em camadas como o templo em Nal Gorgoth, largos como
escudos ou altos e estreitos como uma lança; a profusão de formas era avassaladora.
Uns tinham lamelas e outros eram vermelhos como joaninhas, e havia alguns
enormes e lenhosos, mais altos do que um homem montado em um cavalo. Um
cheiro intenso e saboroso perfumava a área — como um bife bem cozido —, e véus
finos de esporos marrons subiam levados por correntes de ar ascendente, se
misturando com os filetes de vapor do solo.
No meio do campo e da floresta de cogumelos, Murtagh avistou formas escuras
se movendo entre as sombras: enormes javalis selvagens, com o dorso saliente e
cobertos por uma pelagem grossa e negra.
— Eles comem os cogumelos e crescem em um tamanho excepcional por causa
disso — explicou Bachel enquanto trazia o cavalo para o lado da montaria dele. —
Isso dá à carne um sabor diferente de qualquer outra.
Murtagh balançou a cabeça, ainda absorvendo o que via.
— Eu nunca vi ou ouvi falar de cogumelos assim.
— O solo aqui é bom para eles, assim como é hostil para as plantas verdes.
De cima, parece que o chão está coberto por banha derretida, comentou Thorn,
circulando na extremidade da fenda estreita que dividia a Espinha, a alguns
quilômetros de distância.
Que agradável, respondeu Murtagh.
— Como pode ver, não precisamos de cães de caça — continuou Bachel. — Nós
somos nossos próprios cães de caça. Avançaremos para a cabeceira do vale e os
javalis se reunirão diante de nós. Se o seu dragão...
— Ele é tão meu quanto eu sou dele.
As pálpebras da bruxa ficaram semicerradas como se ela achasse graça.
— É claro, Regicida. Se Thorn quiser caçar lá do outro lado, poderá nos ajudar e
prender os javalis entre nossas lanças e seus dentes e garras.
É um bom plano, disse Thorn, e Murtagh quase conseguiu ouvi-lo estalar o
maxilar com determinação. Farei isso.
O dragão dobrou as asas carmesins e mergulhou em direção ao fim do vale,
descendo como um meteoro flamejante. As fileiras de cogumelos o esconderam
quando ele desceu.
Bachel ergueu a lança.
— Desmontar!
O grupo de caça obedeceu, assim como Murtagh, grato por se livrar da égua
castanha por enquanto.
Alguns segundos depois, um baque surdo ecoou pelo vale — era o som do pouso
de Thorn os alcançando.
Murtagh percebeu que havia inúmeras trilhas de caça serpenteando pelo campo
de cogumelos gigantes — caminhos pisoteados pela passagem de incontáveis
cascos afiados.
Assim como os cultistas, ele prendeu o cavalo e depois partiu a pé pela trilha
próxima. O solo, embora enegrecido, era mais macio do que em Nal Gorgoth, como
se toda a superfície estivesse repleta de fungos.
Murtagh fez uma careta ao pisar em um conjunto de cogumelos marrons, que se
dissolveu em um líquido escorregadio e malcheiroso da cor de fezes.
— Espalhem-se — ordenou Bachel.
Os guerreiros obedeceram rapidamente e formaram uma linha em arco de cada
lado da bruxa. Grieve permaneceu por perto, o que parecia ser esperado.
Murtagh se afastou do grupo em direção ao lado leste do vale. Ele queria espaço
para manobrar, pois caçar com estranhos era perigoso — ainda mais ali. Além
disso, sabia, por causa de caçadas de javalis anteriores, que ter espaço para correr
significava muitas vezes a diferença entre sucesso e lesão ou morte.
— Aonde você está indo, Regicida? — gritou Bachel com uma voz alegre.
— Eu caço melhor sozinho, lady Bachel! — respondeu ele no mesmo tom.
Ela lhe lançou um sorriso selvagem. Os cogumelos pareciam arcaicos —
predecessores primitivos de plantas de acabamento mais refinado —, como se
fossem relíquias de um tempo além da história registrada, e Bachel também parecia
um vestígio desse passado antigo.
— Apenas se lembre de controlar sua língua, Regicida. Você deve matar sem
magia.
— Ah, isso eu farei — murmurou ele.
Por mais fraco que fosse o metal usado para fazer as lanças que lhe deram,
Murtagh sabia que poderia desferir pelo menos um golpe fatal com cada uma.
Eles subiram o vale dando cada passo com muito cuidado. À frente do grupo, um
rugido ocasional soava quando Thorn perseguia um javali ou outro. Não demorou
muito para que o dragão tocasse a mente dele novamente, e Murtagh o encontrou
tomado por sangue, empolgação e pela emoção ardente da caçada.
A bruxa tinha razão, disse Thorn. A carne é boa.
Murtagh riu baixinho.
Essa deve ser toda a recomendação de que um açougueiro ou cozinheiro
precisam. Um dragão disse: “A carne é boa.”
Thorn rugiu achando graça.
As botas de Murtagh amassavam, esmagavam e quebravam cogumelos a cada
passo. Os corpos fúngicos macios tornavam difícil manter uma passada firme. Ele
não estava em nenhuma trilha, o que não era ideal para encontrar caça, mas permitia
que mantivesse distância do grupo de Bachel, algumas dezenas de metros à direita.
Os sentidos de Murtagh se aguçaram quando ele se aproximou da borda de uma
área densa de... Ele não sabia como chamá-las. Árvores de cogumelos? Os troncos
retorcidos eram tão grossos quanto o peito de um cavalo, e pedaços de membranas
semelhantes a teias de aranha estavam agarrados a eles. Por favor, nada de aranhas
gigantes, pensou Murtagh. Ele preferiria enfrentar uma horda de Urgals de mãos
vazias.
O ar era espesso, úmido e cheirava a carne e muito calor, como se Murtagh
estivesse enfiado em uma gigantesca axila suada. Ele fez uma careta e avançou com
cautela, os olhos iam de sombra em sombra enquanto procurava um javali.
Seria uso de magia encontrar as feras com minha mente?
Você se importa em agradar à bruxa?, perguntou o dragão, sem Murtagh
direcionar seu pensamento a ele.
Não, mas me importo em manter minha palavra.
Ele decidiu confiar apenas nos próprios olhos e ouvidos por um momento. Foi
um desafio ainda mais interessante.
Um coro de guinchos e grunhidos soou pelo campo à direita. Ele se agachou e
viu um grupo de sete ou mais porcos selvagens — tanto machos quanto fêmeas —
sair correndo de debaixo dos cogumelos que pareciam árvores e atacar Bachel e sua
linha de guerreiros.
Bachel se apoiou em um joelho só, apoiou a extremidade rombuda da lança no
peito do pé e mirou a ponta da lâmina na direção das feras que se aproximavam. Os
guerreiros fizeram o mesmo, e a bruxa soltou um uivo penetrante que capturou a
atenção do javali líder e atraiu o animal para ela como metal para uma magnetita.
Murtagh observou, sem fôlego por um breve momento, os animais diminuindo a
distância entre eles e os cultistas, destruindo cada cogumelo no caminho.
Alguns dos porcos selvagens contornaram os cultistas que esperavam por eles,
mas três — incluindo o líder — colidiram com os caçadores e se empalaram nas
armas. Um dos guerreiros caiu e gritou ao ser pisoteado por um porco selvagem
enquanto sangue esguichava do peito ferido do animal.
Bachel pegou a presa com a ponta da lança. O impacto a fez recuar vários
centímetros. Então, cravou os calcanhares no chão, empurrou com força e enfiou a
lança no peito do javali indignado. Com um grito alegre, a bruxa se levantou,
ergueu o javali com a arma e jogou o animal moribundo no chão. Foi uma façanha
surpreendente. Mesmo com as habilidades aprimoradas de um Cavaleiro, Murtagh
sabia que seria incapaz de realizar tal ato sem a ajuda da magia.
Bachel plantou um pé nas costas do javali caído, abriu os braços, jogou a cabeça
para trás e encheu o vale com um uivo triunfante.
A visão e o som provocaram uma emoção primitiva em Murtagh. A bruxa era
como uma fera selvagem, pura, feroz e aterrorizante. Naquele momento, Bachel
parecia mais um dragão do que um humano ou um elfo.
— Esse é um para mim, Regicida — gritou Bachel sem olhar para ele.
Atrás da bruxa, o guerreiro pisoteado gemia no chão, com o peito quebrado
arfando. O porco selvagem do homem estava caído de lado a alguns passos de
distância, com um grande ferimento no peito, e chutava e estremecia enquanto
sangrava até a morte.
Então, subitamente, mais mil guinchos pareceram soar: um ataque atormentado
aos ouvidos quando dezenas e depois centenas de porcos selvagens saíram da massa
de cogumelos tamanho família na frente de Bachel e seus guerreiros. Ao longe,
Murtagh ouviu Thorn se aproximando, sem fazer nenhuma tentativa de esconder
seus passos pesados.
Distraído, Murtagh espreitou por entre os troncos das árvores de cogumelos
numa tentativa de enxergar melhor. Ele vislumbrou Bachel posicionando a lança
novamente e os guerreiros se aproximando para proteger os flancos dela.
Outro grunhido soou, surpreendente pela proximidade.
Murtagh se encolheu e se apoiou em um joelho no momento que uma sombra
eriçada avançou em sua direção através da floresta de fungos. As presas brilharam
brancas e afiadas na penumbra, uma boca avermelhada se escancarou e pequenos
olhos rolaram, pretos e redondos. O javali soltou um clamor rouco que Murtagh
tinha ouvido em muitos pesadelos e logo estava em cima dele.
O porco selvagem se chocou contra Murtagh com uma força surpreendente. O
animal era mais denso que qualquer humano e muitas vezes mais forte. Murtagh
sentiu a lança afundar no peito profundo da fera e, da mesma forma, sentiu a
vibração ao longo do cabo quando a lâmina de ferro atingiu uma costela e se partiu
em duas.
O javali guinchou e girou para o lado ao cair sobre Murtagh. Ambos desabaram
no chão enegrecido em um emaranhado de braços, pernas e patas.
Golpes violentos atingiram Murtagh nas costelas e na nuca, e as proteções
mágicas ganharam vida. Ainda assim, os golpes doeram.
Murtagh gritou e tentou se levantar, mas o javali estava deitado transversalmente
em cima dele, chutando e se debatendo, e o Cavaleiro não conseguiu encontrar um
bom ângulo para se erguer.
A seguir, mais javalis passaram correndo — uma torrente de feras assustadas e
enlouquecidas —, e o peso dos porcos selvagens enfiou Murtagh no lamaçal
escorregadio e viscoso dos cogumelos esmagados. Um fedor espesso e podre
entupiu suas narinas, tornando impossível respirar. Dezenas de cascos afiados se
cravaram em Murtagh, mortais como qualquer adaga, e as proteções mágicas
consumiram ainda mais a força dele.
Os guinchos e grunhidos eram ensurdecedores. Um túnel carmesim se fechou em
torno da visão de Murtagh, escurecendo o mundo.
Ele tateou em busca de Zar’roc. Os dedos encontraram o pomo, mas não havia
espaço para desembainhar a espada enquanto estava deitado de bruços.
Uma palavra da língua antiga saltou para a ponta da língua. Bastava dizê-la e ele
poderia afastar os javalis ou mesmo matá-los. Mas aí Murtagh teria falhado no
desafio de Bachel, e o fracasso era mais doloroso do que os golpes que martelavam
seu corpo.
Ele conseguiu tomar um fôlego rápido e superficial. Não foi o suficiente.
Maldição. Murtagh estava ficando sem tempo. Se...
Ele gritou de dor quando um javali pisou no seu cotovelo direito. As proteções
mágicas impediram que a junta quebrasse, mas a pressão enfiou o braço no solo
macio, e o ângulo fez com que algo no cotovelo se esticasse ou se partisse.
Então um casco preto desceu na lateral da sua cabeça, raspando o crânio, e o
impacto virou o pescoço de Murtagh para o lado.
Estrelas tomaram sua visão, o mundo ficou escuro e nebuloso, e todos os sons
desapareceram na distância, vagos e quase incompreensíveis.
CAPÍTULO VIII

Clemência de mãe

U m sol negro circundado por chamas negras pairava em um céu escuro. As


estrelas estavam apagadas, derretidas; o ar, frio e seco, com um vento cortante
soprando do norte.
O mundo estava morto. Todo o chão estava rachado e carbonizado como nos
arredores de Nal Gorgoth. Havia árvores sem folhas nos flancos de montanhas
caídas, e a agudeza dos picos tinha sido derrotada pela passagem de eras
incontáveis. Não havia pássaros ou feras visíveis; se vagasse até os confins da
terra, ele sabia que não encontraria nada além de ossos e cinzas.
A existência era uma tumba onde jaziam os pecados do passado.
Mas não… não totalmente.
À frente dele, perto do horizonte escuro e cinzento, um trecho enorme do solo se
erguia como se o próprio mundo estivesse se desintegrando, mas a enormidade
escarpada se movia e mexia como só uma criatura viva seria capaz. Manchas
vermelhas brilhavam saindo da silhueta, como brasas vistas através de um vidro
fumê.
O pavor o consumiu, absoluto, obliterando pensamentos, e uma sensação de
perdição que fez com que os braços e pernas ficassem moles e a mente fraquejasse
com um medo incessante. Tudo havia sido perdido, e diante dele estava o
instrumento da destruição de todos.
A fera se ergueu empinada nas patas traseiras contra o sol negro — um dragão
sem asas, de tamanho apocalíptico, de presença aterrorizante. Destruidor de
esperança, devorador de luz, com língua de cobra e garras em gancho.
Ela se virou, e o olho flamejante o encarou. Ele se encolheu diante dela, sentindo
o toque frio da morte agarrar seu coração, sentindo a rendição inevitável e
impotente diante do que não podia ser mudado, do que não podia ser detido.
A boca do dragão se abriu e uma chama fulminante iluminou a bocarra e…
— Acorde! Acorde, Regicida!
Os olhos de Murtagh se abriram de repente, e ele se levantou com um grito de
pânico enquanto o fogo corria pelas veias e o coração convulsionava como um
coelho moribundo.
Bachel estava de pé diante dele, uma adaga de lâmina negra manchada de sangue
em uma das mãos e a lança na outra. Grieve e os guerreiros cercavam os dois, e
meia dúzia de porcos selvagens mortos jaziam no chão pisoteado nas proximidades:
um campo de batalha em miniatura, mas não menos tenso ou mortal por causa
disso.
Antes que Murtagh pudesse se recompor o suficiente para entender o que havia
acontecido, Thorn irrompeu pela floresta de cogumelos, rugindo enquanto se
aproximava. Ele parou diretamente sobre Murtagh, se virou e rosnou enquanto
procurava por inimigos. O sol estava atrás do dragão, e as escamas reluziram
vermelhas e brilhantes.
A imagem fez Murtagh estremecer ao se lembrar da visão de desolação e, por um
segundo, foi dominado novamente por um medo mortal.
Thorn estendeu uma pata para ele, como se fosse pegá-lo e voar para longe, e
Murtagh ergueu a mão.
— Não — resmungou. — Estou bem.
Ele não estava, e Thorn sabia.
Você está ferido?, disse o dragão.
Murtagh se levantou, trôpego, e avaliou o próprio estado. Nenhum sangue
parecia ser dele, mas seu cotovelo direito latejava e já começava a inchar. Ele
dobrou e esticou o braço; ainda estava se movendo como deveria. Nada quebrado,
então. Murtagh lançou um rápido feitiço de cura, tomando o cuidado de pronunciar
as palavras sem emitir som, e só então notou quão profundamente exaurido as
proteções mágicas o deixaram. Suas mãos e seus pés estavam frios, e havia uma
fome corrosiva na barriga.
Nada muito sério. Você viu o que eu vi? O dragão?
Não, disse Thorn, mostrando ainda mais os dentes. Sua mente estava fechada
para mim.
Murtagh estava tão abalado que não parou para considerar a prudência do ato,
mas compartilhou a memória com Thorn em todo o seu imediatismo aterrorizante.
O dragão emitiu um silvo profundo e cravou as garras no chão. Murtagh sentiu o
próprio medo refletido nos pensamentos do companheiro.
Foi apenas um sonho, acrescentou Murtagh às pressas.
Um sonho maligno, no entanto. Talvez tenha sido mais do que apenas um sonho.
Uma premonição? Elas nunca falam de um futuro muito distante.
Thorn estremeceu e baixou a cabeça até que os olhos estivessem na altura dos de
Murtagh.
Temos certeza disso? Quem comprovou?
Eu…
— Meu filho, você está ferido? — perguntou Bachel.
Ela apontou com a ponta da adaga o sangue no peito de Murtagh. O gibão dele
estava rasgado, o ar frio contra a pele exposta.
— Você está coberto de sangue.
A ponta da adaga estava desconfortavelmente próxima. Murtagh recuou meio
passo. Sua mão se moveu até o punho de Zar’roc.
— Não estou ferido, não. Obrigado por... ter ajudado.
A bruxa assentiu, satisfeita. Ela limpou a adaga na braçadeira de couro e a
embainhou.
— É melhor caçar em grupo do que sozinho.
— Talvez você tenha razão. — Murtagh estremeceu e esfregou os braços,
tentando levar calor de volta para eles. — Quando eu estava no chão, eu vi... Eu tive
uma visão. Uma visão maligna.
A expressão de Bachel ficou mais intensa, e ela deu um passo à frente e colocou
a mão livre em seu ombro. Surpreso, ele resistiu à urgência de afastá-la. O aperto da
bruxa parecia ferro quente.
— Uma visão — disse ela, a voz baixa e enérgica. — Descreva-a para mim, meu
filho. Agora mesmo, e rápido, antes que a esqueça. É importante.
Perturbado, mas curioso, Murtagh obedeceu, falando em frases curtas e rápidas,
ansioso para expelir as palavras a fim de conseguir parar de pensar no sol negro e
no dragão incrivelmente grande...
Grieve e os guerreiros ouviram com muita atenção e murmuraram com o que
pareceu ser admiração ou reverência enquanto ele descrevia o dragão.
— Ah — disse Bachel. — Você é abençoado.
Ela tirou a mão do ombro dele e a circulou acima da cabeça, indicando tanto o
pequeno vale lateral quanto a fenda de onde eles vieram e que continha Nal
Gorgoth.
— Todos que aqui chegam sonham, mas poucos são os que recebem presságios
tão nítidos. E os que os recebem muitas vezes se tornam Oradores.
— Existem muitos Oradores? — perguntou Murtagh.
— Minha senhora — disse Grieve com uma voz tensa. — Não é correto que um
estranho sai...
— Tsc-tsc — disse Bachel. — Nosso hóspede não é uma pessoa comum. Não
mesmo.
Uma careta de desaprovação se formou no rosto marcado de Grieve, que puxou o
punho do robe salpicado de sangue de um jeito nervoso e zangado, como se o que
realmente quisesse fazer fosse colocar os dedos grossos em volta do pescoço de
Murtagh.
— Existiram muitos Oradores, alguns falsos, alguns verdadeiros, através dos
tempos — disse a bruxa em voz altiva. — Somos Du Eld Draumar e vivemos
nesses lugares de poder desde antes de os elfos serem elfos. O próprio Povo Pardo
nos conhecia... conhecia e temia.
Murtagh traduziu mentalmente. Du Eld Draumar era uma maneira elegante de
dizer “Os Antigos Sonhadores”, mas como foi dito na língua antiga, havia mais
verdade no nome do que em qualquer outro idioma.
— Eu acredito em você — disse ele, sincero.
Embora duvidasse que Bachel lhe daria uma resposta significativa, precisava
perguntar.
— O que, em sua opinião, significa a visão, ó Oradora?
— É um presente. As emanações desta terra mostraram a você uma visão do
mistério sagrado que está no cerne de nosso credo. O que você viu, Regicida, é uma
parte do que ainda pode ser.
— Como um aviso?
Ela o surpreendeu ao pegar em sua mão e pressioná-la contra o peito dele, sobre
seu coração. Os dedos dela estavam grudentos de sangue. Bachel respondeu em um
tom baixo e sério, sem nenhum indício de nada além de absoluta sinceridade.
— Como uma promessa.
Ela largou a mão dele.
Um toque quente e frio do medo nascido do sonho tomou conta de Murtagh. Ele
se encolheu e descobriu que havia perdido a vontade de fazer mais perguntas.
Ela está mentindo, disse Thorn.
Se estiver mentindo, ela acredita na mentira.
Murtagh olhou para os guerreiros e contou. Faltavam mais dois. Através dos
cogumelos que Thorn havia derrubado, o campo aberto era visível. No centro
jaziam vários porcos selvagens sem vida, assim como os três guerreiros abatidos.
Um dos homens ainda se movia, embora debilmente. Sangue respingado, humano e
animal, manchava de vermelho os chapéus dos cogumelos ao redor.
— As feras cobraram um preço — disse Murtagh.
Bachel assentiu de maneira séria, embora não parecesse triste ou chateada, mas
sim orgulhosa.
— Meus homens serviram bem hoje, Regicida, e aqueles que caíram, caíram a
serviço de nossa fé. O sacrifício deles não será esquecido ou ficará sem
recompensa.
— Da forma como é sonhado, assim será — disseram os guerreiros, abaixando as
cabeças.
Dito isso, Murtagh esperou que Bachel fosse cuidar dos feridos ou, pelo menos,
despachasse alguns homens para a tarefa. Em vez disso, a bruxa apontou para o
javali que ele havia matado.
— Você pegou uma bela fera, Regicida. Não esperava nada menos.
Na morte, o javali parecia menor, embora ainda fosse imponente; devia ter o
mesmo peso de vários homens grandes. A lança de Murtagh se projetava do meio
do peito do animal, e o cabo era uma vara quebrada.
— E sem a ajuda do menor encantamento ou feitiço, minha senhora — respondeu
ele, com uma reverência e a mão estendida, como se solicitasse uma dança na corte.
— Foi o que vi — retrucou Bachel. — Mas, se não fosse por nossa ajuda, você
teria sobrevivido? Será que uma vitória assim pode mesmo ser contada?
Murtagh arqueou uma sobrancelha. Ele não estava no clima para joguinhos, mas
não podia permitir que o desafio dela passasse sem contestação.
— Eu matei o javali, minha senhora, e morto ele estaria não importa o que
acontecesse comigo. Como esse era meu objetivo, sim, conto como uma vitória.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios de Bachel.
— Justo, meu filho.
No campo aberto, o homem ferido soltou um gemido agonizante. O som chamou
a atenção de Bachel, e ela se afastou de Murtagh.
— Venha — disse a bruxa, indo em direção ao campo.
A ordem irritou Murtagh, mas mesmo assim ele a seguiu.
Devo me oferecer para curá-lo?, perguntou a Thorn.
Espere para ver que mágica a bruxa é capaz de fazer. Se ela não puder curar o
homem, aí sim se ofereça para ajudar.
Uma boa ideia.
Apressando o passo, Murtagh se aproximou de Bachel e gesticulou para os
javalis mortos à frente deles.
— Você realizou um abate heroico, lady Bachel.
Ela quase não reagiu ao elogio, como se fosse algo comum.
— Foi igual a todos os meus abates, Cavaleiro.
Disso, Murtagh não duvidava.
Ao se aproximarem da mistura caótica de sangue e cogumelos esmagados no
centro do campo, ficou evidente que os dois guerreiros que jaziam imóveis no chão
já estavam mortos.
Bachel se ajoelhou ao lado do homem que ainda respirava. O gibão dele estava
dobrado para dentro da grande cavidade no peito onde as costelas foram quebradas.
Saliva misturada com sangue cobria o queixo, e a respiração estava engasgada e
superficial. Um pulmão perfurado, supôs Murtagh, se não pior.
Com um toque gentil, Bachel alisou a testa do homem. Ele abriu os olhos e
encarou a bruxa. No olhar do guerreiro, Murtagh viu uma devoção absoluta.
— Shh — disse Bachel, com a voz calma e vasta como um oceano sem vento. —
Fique contente, Rauden. Você serviu bem.
O homem assentiu. Lágrimas encheram os olhos dele.
— Mehtra — sussurrou Rauden, com muita emoção.
O rosto de Bachel demostrou afeição, e ela o aproximou do dele.
— Sehtra.
Então, com um movimento suave e rápido, ela sacou a adaga de lâmina preta,
colocou-a ao lado da bochecha dele e a enfiou na cabeça do homem, que
convulsionou. Depois, seu corpo ficou inerte.
— Sangue de Espectro! — praguejou Murtagh, que começou a avançar.
Ao redor, os guerreiros levantaram suas lanças.
— Eu poderia tê-lo curado.
Bachel limpou a adaga na manga do homem.
— Ele não tinha mais salvação, meu filho.
— Para mim, tinha! Você devia ter me deixado tentar!
Bachel se levantou e se virou para encará-lo. Sua expressão era feroz e terrível,
mas também angustiada.
— Nem pense em me questionar, Cavaleiro! Você não conhece nossos costumes!
Buscamos servir ao Sonhador de todas as maneiras possíveis, cada um de nós, e
quando nossa hora chega, ansiamos por retornar a Ele, que nos sonha. É nosso
maior desejo.
— Sim, mas...
— Assunto encerrado, Murtagh, filho de Morzan. Basta!
O rosto de Murtagh se contraiu em reprovação e ele retesou o maxilar. Como se
por magia, Bachel se transformou diante dele; agora via a crueldade em suas feições
e a teimosia de sua certeza iludida. E questionou a própria credulidade. Então um
frio assentou em suas entranhas conforme se dava conta do perigo potencial da
situação, e todas as emoções o abandonaram, deixando-o vazio. Murtagh assumiu o
mesmo aspecto imperturbável e neutro que o serviu tão bem na corte.
— Claro, minha senhora. Desculpe.
Bachel inclinou a cabeça, se voltou para o homem morto e colocou a mão na sua
testa. Ela murmurou algo e fechou os olhos vazios e sem vida dele.
A bruxa ficou em silêncio por um momento, com uma expressão inescrutável.
— Grieve, cuide para que nossas presas sejam coletadas e nossos mortos
também. Leve todos para Nal Gorgoth, para que possamos nos banquetear com
nosso triunfo.
— Sim, Oradora.
Bachel assentiu e se afastou da confusão de corpos e cogumelos despedaçados,
indo na direção dos cavalos.
Murtagh a observou. Em seguida, olhou para Grieve, que estava instruindo os
guerreiros a amarrar as patas dos javalis.
— O que quer dizer mehtra?
Grieve deu a ele um olhar emburrado e se curvou para ajudar outro homem a
amarrar as patas de um javali.
— Significa mãe, Forasteiro. Pois Bachel é como nossa mãe em todos os
sentidos, e nós confiamos nela como tal.
— E sehtra?
— Filho.
Atordoado, Murtagh foi até Thorn.
Ela é tão impiedosa quanto Galbatorix.
O dragão concordou.
E, mesmo assim, as pessoas ainda a veneram.
Rauden a chamou de mãe, sabendo que ela iria matá-lo. Galbatorix nunca
inspirou tamanho amor. Apenas medo.
Por um momento, Murtagh pensou em seguir Bachel e cavalgar de volta na égua
castanha. Mas não queria ficar perto dela. Não naquele momento.
Ele se virou para Thorn.
— Chega de cavalos. — E estendeu a mão para o estribo pendurado no flanco
esquerdo de Thorn.
O dragão se agachou para que Murtagh pudesse pegar o laço de couro fervido e
subir em suas costas.
Bom.
— Você pode levar meu javali? Prefiro não esperar por Ba...
As palavras ainda estavam saindo da boca de Murtagh quando Thorn aprumou
sua postura, assustando os guerreiros, que fugiram. Leve como um gato, o dragão
caminhou até onde estava a presa.
Com uma pata, Thorn pegou a carcaça ensanguentada do porco selvagem, saltou
para o céu e voou para longe do campo de caça.
CAPÍTULO IX

Ponto de ruptura

D esculpe por assustar você. O javali me pegou de surpresa.


Thorn soltou um sopro grave enquanto se elevava sobre o flanco de uma
montanha, voltando para Nal Gorgoth.
Você devia ser mais cuidadoso.
Sim… Talvez eu precise refazer minhas proteções mágicas. Acho que fui muito
negligente com o que elas toleram.
Thorn fez uma curva bem aberta sobre Nal Gorgoth. Ao ver o vilarejo de cima
pela segunda vez, Murtagh notou que os prédios estavam dispostos em círculos que
se cruzavam, como anéis em um lago banhado pela chuva.
Você ainda deseja ficar aqui esta noite?, disse Thorn.
Não sei.
Uma imagem do sol negro sobre uma terra árida passou pela mente de Murtagh,
que sentiu mais uma vez o toque cruel de um vento do norte. Ele juntou os braços
ao corpo para se aquecer e, pela primeira vez, se perguntou se as respostas de
Bachel eram do tipo que ele queria ouvir.
Tem algo errado aqui, disse ele.
Muito, muito errado.
Quando pousaram no pátio, Alín veio de dentro do templo, carregando uma jarra
de água com um pano e uma bacia. Foi uma visão bem-vinda. Murtagh podia sentir
a sujeira na própria pele: sangue, terra e o suco seco de cogumelos esmagados, tudo
misturado.
Com ela, estavam a cozinheira do templo — uma mulher carrancuda e corpulenta
com um avental manchado e antebraços grandes como os de um padeiro — e meia
dúzia de ajudantes de cozinha. Juntos, a cozinheira e os ajudantes enfrentaram a
inspeção minuciosa de Thorn para buscar o javali de Murtagh e levá-lo para ser
fatiado.
Murtagh ficou feliz em ver a fera ser levada. Ele já havia tido sua dose de caçada
de javalis por um bom tempo.
Alín colocou o jarro, o pano e a bacia nas lajotas, fez uma reverência e recuou
para uma distância segura.
— Muito obrigado — disse Murtagh.
Ela desviou os olhos quando ele tirou o gibão rasgado e manchado de sangue e a
camisa de lã que usava por baixo. Murtagh xingou. As roupas estavam arruinadas.
Ele teria que usar a camisa de linho até que pudesse adquirir novas.
— Como foi a caçada, meu senhor? — perguntou Alín em voz baixa, mantendo o
olhar no chão.
Murtagh molhou o pano e esfregou o sangue na pele, que se agarrava a ele com
persistência obstinada.
— Se a sua única medida de sucesso for o número de animais mortos, foi uma
caçada muito boa. Caso contrário, eu diria ruim. Muito ruim. As feras levaram três
de seus homens.
Alín baixou a cabeça.
— Sinto muito por ouvir isso.
Murtagh grunhiu.
— Sente mesmo? Bachel enfiou uma adaga em um deles. Ele se chamava
Rauden. É assim que as coisas são feitas por aqui?
Olhos azul-claros se fixaram nos de Murtagh.
— Rauden foi ferido?
— Foi — respondeu Murtagh, relutante. — Mas eu poderia tê-lo ajudado. A sua
preciosa Oradora também.
A determinação e a convicção de Alín nunca pareciam vacilar.
— Talvez seja verdade, meu senhor, mas confio no julgamento da nossa Oradora.
Ela sabe o que é melhor para nós e, se era a hora de Rauden deixar esta vida e se
juntar ao sonho maior, então é bom que Bachel tenha estado lá para facilitar sua
jornada. Nenhum de nós poderia pedir mais.
— Porque ela é sua mehtra.
Um lampejo de desaprovação cruzou o rosto de Alín.
— Nós não a chamamos assim levianamente, Regicida.
— Não entendo o motivo de a chamarem desse jeito. Ela não parece nada
materna.
Ela ergueu o queixo.
— O senhor deve entender que Bachel é a Oradora. As preocupações dela
transcendem as dos meros mortais. O senhor não pode presumir que a conhece ou
compreende. Se o que ela fez lhe parece errado, a culpa não é dela. Ela não erra.
Murtagh pensou um pouco. Havia uma chance, bem, bem pequena, de Alín estar
certa. Se Bachel pudesse ver o futuro, então cada escolha que fazia poderia ser a
correta. No entanto, certamente não havia justificativa para matar Rauden. Ele
contraiu os lábios.
— Assim dizem todos que desejam manter o poder e não serem desafiados.
— O senhor é injusto. Nenhum rei ou rainha jamais teve tanto direito de governar
como Bachel, nem tanta responsabilidade.
Abandonando o pano, Murtagh se curvou e derramou o conteúdo do jarro sobre a
cabeça e os ombros. A água estava surpreendentemente fria, ainda mais no calor
fora de época que impregnava Nal Gorgoth, e mesmo assim foi um alívio e um
prazer se sentir limpo.
— É mesmo? — disse ele.
Alín assentiu com uma expressão séria.
— Os fardos dela são imensos, meu senhor. A vida de qualquer homem, de
qualquer um de nós aqui em Nal Gorgoth, é como um grão de poeira quando
comparada à importância dos deveres da Oradora.
Murtagh não estava a fim de forçar o assunto. Ele sacudiu o cabelo para retirar o
excesso de água e se virou para pegar a camisa de linho nos alforjes.
Ao se virar, ouviu Alín soltar um pequeno suspiro de susto, e sabia que ela havia
visto a cicatriz nas suas costas. Uma curiosidade mórbida o levou a olhar para ela,
esperando ver pena ou desgosto distorcendo o rosto da jovem.
Ele não viu nem uma coisa nem outra. O rosto dela demonstrava o que Murtagh
só poderia interpretar como compaixão. Até mesmo compreensão. A raiva que
estava crescendo dentro dele se esvaiu, deixando-o vazio e desprevenido.
— Ah — disse ela. — Em que batalha você foi ferido? Foi Eragon quem...
— Não.
— Então foi Galbatorix ou...
— Foi meu pai.
Os olhos de Alín se arregalaram muito e então Murtagh pôde ver pena neles.
Como não suportava aquilo, ele se virou e se ocupou em pegar a camisa de linho.
Alín ficou em silêncio o tempo todo.
Thorn deu uma cutucada reconfortante no ombro de Murtagh, que fez um carinho
nele sem olhar. O dragão começou a lamber as escamas das patas dianteiras, e
também as garras, limpando a terra e o sangue de javali que as escurecia. A língua
farpada raspava a cada lambida.
— Ah! Espere, por favor! Eu posso ajudar — disse Alín, que fez uma rápida
reverência e correu de volta para o templo.
Thorn fez uma pausa e observou com curiosidade.
— O que você acha...
Murtagh se interrompeu ao vê-la voltar com outra bacia cheia de água e vários
outros panos pendurados nos braços.
Alín colocou a bacia nas pedras diante das patas dianteiras de Thorn e se curvou
novamente.
— Por favor, dragão, me deixaria lavá-lo?
Murtagh sentiu Thorn considerar e, a seguir, o dragão abriu a mente para ela.
Deixarei.
A reverberação das palavras dele fez Alín pestanejar e recuar. Depois ela
assentiu, molhou um pano e — com todo o cuidado, como se estivesse limpando as
joias da coroa de um rei, frágeis com o passar do tempo — começou a limpar o
sangue e a terra das escamas de Thorn.
Murtagh observou, sem saber o que achar daquilo, mas tocado pela consideração
dela. Em todo o tempo que passou com Thorn, nunca se preocupou em ajudá-lo a se
limpar. Thorn era meticuloso com a aparência, e Murtagh não tinha visto motivo
para oferecer ajuda.
— Então seus votos permitem que você toque em Thorn, mas não em mim? —
disse Murtagh. — Ele é tão ele quanto eu.
Alín franziu os lábios enquanto passava o pano sob a ponta de uma escama.
— O senhor sabe que não é assim. Thorn não é humano, nem elfo, nem anão,
nem Urgal. É diferente com ele. Além disso, minha fé nunca me proibiria de tocar
em um dragão. Isso seria... Ora, seria como trancar uma pessoa no subsolo e
impedi-la de sentir o toque do sol em seu rosto.
— Os dragões são realmente tão essenciais para você e para o resto dos
Draumar?
— São. Mais do que eu consigo explicar a um forasteiro.
Murtagh olhou para o vale lateral. Bachel e a comitiva ainda não haviam chegado
a Nal Gorgoth.
— Eu tive uma visão durante a caçada.
O espanto passou pelo rosto de Alín, mas ela o escondeu rapidamente.
— Temos muitas visões em Nal Gorgoth, meu senhor.
— Sim, mas esta foi diferente, creio eu.
Murtagh a descreveu para ela enquanto Alín limpava as patas e as garras de
Thorn. A acólita pareceu cada vez mais incomodada, então ele mencionou o dragão.
— Pare! Não diga mais, meu senhor. Isso é para a Oradora ouvir e interpretar,
não eu.
— E, no entanto, eu gostaria de ouvir suas considerações — disse Murtagh, que
prosseguiu com o relato.
Alín soltou um grito, largou o pano e tapou as orelhas com as mãos.
— Isso... Não, não! Não posso ouvir mais nada!
E com as mãos ainda na cabeça, ela fugiu do pátio.
Murtagh a observou ir embora, frustrado. Por mais que tentasse obter
informações sobre os Draumar, todos os caminhos pareciam levar de volta a Bachel.
Ao lado dele, Thorn levantou uma pata e inspecionou as escamas brilhantes. Ele
lambeu uma última mancha de sujeira.
Alín não é uma má pessoa.
— Não, mas a lealdade dela para com Bachel é inabalável.
Então Murtagh pegou as últimas duas maçãs desidratadas dos alforjes de Thorn,
sentou-se sobre a pata direita do dragão e começou a comer enquanto esperava. Sua
mente estava tomada pela indecisão. Não parava de vislumbrar os javalis o
pisoteando, Bachel enfiando a adaga em Rauden, o sol negro naquele céu morto... E
se perguntava: o que poderia ser tão importante que o povo de Nal Gorgoth estava
disposto a morrer sem hesitação?
Precisava conversar com Bachel de novo. Descobrir por que ela agia daquela
maneira. Se houvesse uma explicação sensata, então talvez... Mas não. Como
poderia haver?
O que você acha de tudo isso?, perguntou a Thorn.
Antes que o dragão pudesse responder, Bachel e o que restava do grupo de caça
entraram no pátio. Os cavalos montanheses peludos estavam agitados e irritados.
Eles puxavam atrás de si liteiras improvisadas feitas de galhos amarrados, sobre os
quais repousavam os javalis e os guerreiros mortos.
Murtagh se levantou e foi na direção de Bachel, determinado a superar suas
respostas evasivas.
Não dera mais do que alguns passos quando um uivo desesperador tomou o pátio
e uma mulher descalça se aproximou correndo, vinda do meio das casas. Seu cabelo
estava solto e esvoaçava feito uma flâmula de fogo. Ela foi direto para os liteireiros
e se jogou sobre o corpo de Rauden, todo o tempo chorando, soluços
profundamente angustiantes que eram dolorosos de ouvir.
Murtagh parou. Uma multidão de aldeões se reuniu nos limites do pátio,
assistindo.
Bachel foi até a mulher e pousou uma mão sobre sua cabeça.
— Minha filha — disse ela em um tom pesaroso. Então falou baixinho para que
apenas a mulher a ouvisse.
A mulher enlutada assentiu, e, embora as lágrimas continuassem a escorrer,
Murtagh a ouviu dizer:
— Obrigada, mehtra.
Para a surpresa de Murtagh, ela soou sincera.
Então Bachel virou sua atenção para os aldeões reunidos.
— Meus filhos! Nossos mortos precisam de um enterro, para que possam dormir
e sonhar em paz. Venham comigo, pois vamos cuidar disso e com presteza, e depois
celebraremos suas vidas com os prêmios que o Sonhador nos deu. Venham!
Vamos...
Ela foi interrompida por um barulho de ferro e um clamor de ordens ríspidas,
como “Andem!” e “Avancem!”, por entre as ruas do vilarejo.
Bachel não pareceu surpresa.
— Abram caminho! — ordenou ela, e as pessoas em volta obedeceram.
Ele e Thorn se viraram para olhar. O que houve dessa vez?, perguntou-se
Murtagh.
Quatro guerreiros carregando lanças conduziam uma fila de prisioneiros
algemados para o pátio. Murtagh contou rapidamente: eram vinte e um homens e
mulheres acorrentados, desgrenhados, com o rosto sujo, abatidos e apáticos, como
se já tivessem perdido toda a esperança de liberdade. Eram uma mistura de jovens e
velhos, embora nenhum deles fosse criança. Pelas roupas, Murtagh imaginou que os
prisioneiros fossem plebeus de algum lugar perto de Ceunon. Retirados de um
navio, talvez, ou capturados em uma incursão na Baía do Fundor.
Thorn sibilou e mostrou ligeiramente os dentes.
Eu sei, disse Murtagh.
Com o passo pesado e cambaleante, Grieve foi até os guerreiros que guardavam
os prisioneiros. Ele falou com os homens e depois voltou para o lado de sua
senhora.
— Seus últimos escravos, Oradora.
— Escravos? — indagou Murtagh, sem fazer nenhuma tentativa de esconder que
se sentia ofendido com a ideia.
Ele não gostava de servidão, escravidão ou qualquer tipo de trabalho forçado.
Uma das primeiras mudanças que Nasuada fez ao assumir o trono em Ilirea foi
tornar ilegais tais práticas em todo o reino. Murtagh aprovara a decisão, apesar de
achar que ela havia minado um pouco o decreto ao exigir que os mágicos se
juntassem à Du Vrangr Gata ou então tivessem as habilidades cortadas por meio de
ervas e poções.
Bachel lançou um olhar avaliador aos prisioneiros.
— Servos que logo se juntarão a nós em nossa causa grandiosa e terrível.
— Você espera que essas pobres pessoas jurem lealdade a você? — perguntou
Murtagh.
Bachel arqueou uma sobrancelha. Vestida de peles salpicadas de sangue, tinha
um aspecto fantástico, como se fosse um espírito da floresta que ganhou vida, e
parecia tão perigosa quanto qualquer animal selvagem.
— Todos que servem à nossa causa aqui em Nal Gorgoth servem por livre e
espontânea vontade, meu filho. Assim como você o fará.
— É... difícil de acreditar nisso.
— Porém, assim é, meu filho. Você deve ter fé.
— Mas como posso me juntar à sua causa se nem sei qual é?
Inescrutável como sempre, Bachel se virou.
— Em breve tudo será revelado, Regicida, mas eu o aviso, você pode descobrir
que a compreensão é muito mais difícil do que a ignorância. — Ela se virou para os
guerreiros que guardavam os prisioneiros e ordenou: — Levem-nos. Eu lhes
concederei uma audiência mais tarde.
Então ela retornou até os corpos dos guerreiros mortos e caminhou junto a eles
conforme os cultistas carregavam os cadáveres para o templo. A viúva de Rauden
foi junto, a mão contra o peito.
Murtagh os observou partir, sentindo-se impotente. Não conseguiu se obrigar a
invadir uma procissão funerária. Então ficou junto de Thorn e girou o punho de
Zar’roc até quase esfolar a palma da mão.

Murtagh sabia que poderia aprender mais sobre os Draumar se fosse assistir aos
rituais funerários, mas não conseguia aguentar mais de Bachel e dos aldeões
naquele momento. Em vez disso, disse a Thorn: Preciso me mover.
Saíram do pátio e Murtagh vagou por Nal Gorgoth com passos duros. A vila
estava sinistramente vazia; todos os cultistas estavam no templo, e os únicos sons
de vida vinham dos corvos na Torre de Pederneira e do gado preso nos limites do
lugar. Quanto aos prisioneiros — os escravos —, haviam sido conduzidos pelos
soldados para longe do templo e sumido da vista de Murtagh. Quase usou a mente
para procurá-los, mas se conteve.
Decidiu que haveria tempo para isso depois.
Thorn seguiu atrás dele, tomando cuidado para não raspar as escamas nas laterais
das construções e destruir os entalhes antigos ou derrubar uma das esculturas
parecidas com dragões.
Murtagh parou e estudou as esculturas. Que elas se assemelhavam a dragões era
inegável, mas também era óbvio que as criaturas representadas tinham diferenças
sutis que as faziam parecer de outra raça. Os espinhos na cabeça eram mais curtos
do que os de Thorn, Shruikan ou Saphira, e as cabeças eram mais compridas, mais
ossudas e mais finas na testa. Talvez as diferenças fossem resultado de escolhas
criativas por parte dos artesãos, mas Murtagh não acreditava nisso. As esculturas
tinham sido feitas com muito cuidado — observadas com muito rigor — para que
tais liberdades ou imprecisões fizessem sentido.
Eles se parecem mais com as Fanghur, disse ele, nomeando as serpentes do
vento, as dragonetes, conhecidas por viverem nas Montanhas Beor.
Aqueles vermezinhos nunca voaram tão para o norte, retrucou Thorn. Não se as
memórias de Yngmar forem confiáveis.
E será que são? O mundo é velho, até mesmo os dragões não sabem tudo de
importante que aconteceu.
É estranho mesmo, comentou Thorn enquanto erguia a cabeça acima dos telhados
para cheirar o ar.
Murtagh seguiu em frente.
Quanto mais andava, mais nervoso ficava. Entre a surra que levara na caçada e a
visão que se seguiu, fora pego desprevenido pela morte de Rauden. Teria ficado
surpreso de todo modo, mas só agora estava tendo tempo para pensar e organizar a
mente. Não importa o que Bachel ou Alín ou qualquer pessoa diga, aquilo foi
errado. Ele bufou. Eragon dissera o mesmo a ele depois que Murtagh matara
Torkenbrand, o traficante de escravos indefeso. Mas fora uma situação diferente.
Torkenbrand era uma ameaça. Rauden, não. Certamente não para Bachel.
Pensar no traficante de escravos o relembrou dos prisioneiros dos cultistas. Seus
escravos.
Uma certeza começou a se solidificar em Murtagh.
Ele parou de novo e olhou para Thorn. O dragão baixou a cabeça até que
estivessem se encarando olhos nos olhos. Murtagh sentiu a mesma certeza nele.
Não me importa o futuro que Bachel veja para nós, disse Murtagh.
Para mim também não.
Só quero saber o que ela e os Draumar estão tentando fazer. Não pode ser nada
de bom.
A respiração quente de Thorn o envolveu, uma sensação reconfortante.
Quer insistir com Bachel?
Murtagh assentiu.
No jantar desta noite. Ou ela responde às minhas perguntas ou...
Nós lutamos?
Se for preciso. Só que... Murtagh estremeceu. As crianças. Temos que proteger as
crianças.
Thorn passou a língua nos dentes.
É difícil lutar em um ninho sem quebrar os ovos.
Então teremos que dar um jeito de esvaziar o ninho primeiro. É um vale bem
grande. Há muito espaço para correr e se esconder.
E se os jovens se recusarem a correr? Thorn inclinou a cabeça. Podem ficar e
lutar como os mais velhos, e então?
Murtagh balançou a cabeça.
Não sei. Vamos fazer o melhor que pudermos. Ele segurou a cabeça de Thorn
com as mãos. Está decidido?
Está.
Ainda assim, a incerteza o corroía. Confrontar a bruxa era uma perspectiva cada
vez mais arriscada, e ele não conseguia explicar bem o porquê. No entanto, estava
determinado, assim como Thorn. Não havia mais como voltar atrás.
CAPÍTULO X

Agitação

E nquanto Murtagh e Thorn refaziam seu caminho pela vila, se depararam com
um velho desdentado sentado perto de um poço, vestido em farrapos, com olhos
azul-esbranquiçados pela cegueira e uma muleta tosca feita a partir de um galho
bifurcado. Ele se balançava e olhava sem ver para as montanhas enquanto sorria e
mascava.
— Arrá! O príncipe sem coroa, andando em uma terra estrangeira — disse o
homem quando Murtagh passou. — Filho da tristeza, bastardo do destino, canto da
traição lamentável. Dragão vermelho, dragão negro, dragão branco... Sol branco, sol
negro, sol morto.
Murtagh parou e se agachou ao lado do homem.
— O que você sabe a respeito de um sol negro?
O homem virou o rosto para Murtagh. A pele estava tão enrugada que pendia em
dobras como couro solto cobrindo os ossos. Ele gargalhou.
— Sonhei com ele. Ha-ha-ha-ha. Sol devorado, terra devorada, o velho sangue
vingado e o novo escravizado. Você sonhou, pequeno príncipe? Você vê? O que foi?
A Oradora comeu sua língua? Ha-ha-ha-ha.
— Ninguém comeu a minha língua — disse Murtagh em tom ameaçador.
O homem o ignorou e se virou na direção de Thorn.
— Altivo, esguio, escolhe, escolhe, escolhe, mas não consegue acordar para a
vida, ó, não. Sirva ao senhor ou durma para sempre. Que mentiras imortais podem
surgir em eras, ha-ha-ha-ha!
E o homem não disse mais nada que se assemelhasse a um discurso coerente.
Frustrado, Murtagh se levantou e voltou pela aldeia.
Isso é inútil, disse a Thorn. São todos loucos. Este lugar deveria ser chamado de
vilarejo dos enigmas.
Talvez tenha sido isso que prendeu Galbatorix e os Renegados.
O quê? Enigmas sem fim?
Você consegue pensar em uma armadilha melhor para uma mente afiada?
Murtagh não conseguiu.
Eu me pergunto se todo mundo acaba que nem aquele velho confuso se fica neste
vale amaldiçoado tempo suficiente.
Ao voltarem ao templo, Murtagh e Thorn encontraram os cultistas preparando
outro banquete. Mesas e cadeiras e peles tinham novamente sido espalhadas ao
redor da fonte arruinada, entremeadas com braseiros cheios de carvão e fogueiras
assando carnes em espetos.
A comida estava longe de ficar pronta, então Murtagh se recolheu a seus
aposentos por um tempo. Tentou tirar um cochilo, mas sua mente estava agitada
demais para dormir. Em vez disso, ficou deitado na cama com os olhos fechados, e
arriscou expandir os pensamentos e vasculhar levemente o vilarejo e a área embaixo
dele, procurando um grande número de pessoas escondidas nas proximidades.
Murtagh encontrou algumas centelhas intensas de consciência onde não esperava —
uma sob o templo e várias agrupadas no topo da torre mais alta —, mas nenhuma
grande horda escondida, nenhum exército esperando para invadir o sul e tomar a
Alagaësia.
Deveria ter sido um alívio, mas ele continuou tenso.
Por fim, pôs-se de pé e voltou ao pátio, onde foi se sentar junto de Thorn. Lá, ao
menos, sentiu-se mais tranquilo.
Conforme o sol descia, Grieve surgiu do templo e começou a gerenciar a
arrumação. Então veio Bachel.
A bruxa retirara a roupa de caçada e usava agora um vestido de lã fina tingida de
roxo-escuro, quase preto, e uma tiara de ouro e prata incrustada com cabochões de
rubi adornava sua cabeça. Um pesado manto de lã, vermelho como folhas de
outono, envolvia seus ombros.
Ela cumprimentou Murtagh e Thorn e seguiu para seu tablado. Ali, um grupo de
acólitos em robes brancos se reuniram em um círculo ao redor dela e começaram a
se balançar enquanto cantavam e murmuravam. Murtagh não viu Alín entre eles.
Bachel estava com a cabeça e os ombros acima dos acólitos — a altura dela era
aumentada pela plataforma onde estava. Ela balançava com os acólitos, de olhos
semicerrados e braços erguidos para o céu, como se implorasse pela bênção de um
deus invisível.
Povo estranho, comentou Thorn.
Murtagh grunhiu.
Depois de alguns minutos, Alín foi até ele. Ela evitou o olhar de Murtagh.
— Como posso servir a você e a Thorn, meu senhor? Posso trazer algo para
beber?
Murtagh recusou a oferta.
— O que ela está fazendo? — perguntou, apontando para Bachel.
— Ela está orando por um clima ameno durante o inverno, meu senhor. E está
evocando sonhos para libertar as mentes dos escravos que nossos guerreiros
trouxeram.
Algo na fala de Alín o perturbou, mas ele não sabia o motivo.
— E para quem Bachel reza?
Alín recuou.
— Trarei vinho e queijo, meu senhor, para sustentá-lo até o festim.
— Espere, não é...
Mas a jovem já tinha se afastado às pressas, de cabeça baixa e coberta pelo
capuz.
Murtagh soltou um rosnado baixo e se recostou em Thorn.
O que sonhos têm a ver com convencer prisioneiros a se juntar à sua causa? Se
os sonhos forem parecidos com os que tivemos, eles só vão querer ir embora.
Uma pequena baforada de fumaça subiu das narinas de Thorn.
Talvez eles sonhem diferente de nós. A bruxa disse que nem todo mundo aqui tem
essas visões.
— Hum — disse Murtagh, sem se convencer.
Bachel continuou a balançar e cantar com seus seguidores até que Grieve tocou
um gongo de latão. Então ela bateu palmas.
— Vamos comer! — gritou. — Regicida, junte-se a mim.
Ela se afundou em sua liteira na plataforma.
Relutante, ele se juntou a Bachel.

Durante todo o festim, Murtagh se conteve, esperando o momento de confrontar a


bruxa. Embora estivesse com fome, comeu pouco, preferindo não encher a barriga
antes do que estava por vir. Era uma pena: as poucas bocadas que deu no javali
estavam deliciosas. Nisso Bachel dissera a verdade. A carne alimentada pelos
fungos era incrivelmente gostosa, melhor do que qualquer outra que já comera,
mesmo na corte de Galbatorix. Era suculenta, saborosa e adocicada, e tinha um
intenso sabor amendoado. Por mais defeitos que tivessem, os cultistas sabiam
preparar muito bem uma carne de porco.
Enquanto comiam, ele fez diversas perguntas casuais a Bachel, mas ela se
recusou a respondê-las e se desviou a cada vez. Era como tentar extrair informações
de uma pedra. De certa forma, ele ficou grato por isso. A recusa da bruxa
reafirmava a decisão dele e de Thorn.
Murtagh manteve seu temperamento sob controle, mas sentia a irritação
crescendo conforme se preparava para agir. Ele nunca foi de ficar sentado de braços
cruzados e sempre se irritava com restrições e imposições. As evasivas de Bachel
eram isso e mais: a bruxa o estava desrespeitando na frente do povo dela.
Quando os aldeões serviram o que Murtagh sabia ser o último prato do banquete
— gelatina recheada com nozes e frutas vermelhas —, ele olhou discretamente para
Thorn e disse: Isso já durou tempo demais. Esteja pronto para lutar ou voar. Se as
coisas correrem mal, não deixe Bachel escapar.
Os pensamentos de Thorn foram tomados por uma decisão sombria.
Estou pronto.
Ele abriu as asas em preparação. Ninguém além de Alín — que estava atrás de
Bachel — pareceu notar.
Murtagh esperava que a acólita não atrapalhasse se a conversa se transformasse
em violência. Ele se preparou e então disse:
— Bachel, Thorn e eu tomamos uma decisão; não queremos esperar a noite
inteira. Nossa paciência está se esgotando. Queremos respostas. Agora. Qual é o
objetivo dos Draumar? Que futuro você previu, e a quem você serve? Quem é o
Sonhador dos Sonhos?
Os aldeões tocando liras nem titubearam, mas Murtagh percebeu uma tensão
repentina em todo o pátio e o peso de muitos olhos.
A bruxa parou com o cálice a meio caminho da boca torta. Ela tomou um gole e
baixou o copo em um movimento peculiar. Quando falou, sua voz soou afiada feito
uma espada.
— Você é muito presunçoso, meu filho.
— Muito. E não tenho mais estômago para esses mistérios infindáveis. Você é a
Oradora. Fale francamente comigo, então.
Ela acenou com a mão.
— Agora não é hora de insistir em assuntos tão cansativos. Isso arruinaria o
deleite da nossa noite.
— Então que seja arruinado! — A voz de Murtagh soou tão alto que os músicos
se atrapalharam nas cordas antes de recuperar o ritmo. — Eu insisto.
Raiva tomou o rosto de Bachel. Atrás dela, Alín observava, de olhos arregalados
e apavorada.
— Você insiste! — disse a bruxa, com uma voz assustadora. Ela tirou a capa e se
levantou, e os aldeões tocando lira finalmente ficaram em silêncio. — Você não tem
o direito de insistir aqui, ó criança rebelde. As tradições de hospitalidade o
protegem, mas nem mesmo um hóspede pode me insultar impunemente.
— Hóspede ou não, teremos nossas respostas — disse Murtagh.
Atrás dele, Thorn grunhiu ligeiramente e se agachou. O Draumar mais próximo
ao dragão se afastou às pressas, derrubando baixelas, pratos e comida pelo pátio e
derramando riachos escuros de vinho que se espalharam como sangue escorrendo.
Você dirá não a um dragão, bruxa?, disse Thorn.
Em um instante, a raiva de Bachel se transformou em desprezo frio.
— Você não entenderia minhas respostas. Nenhum dos dois entenderia. Ainda
não. Não enquanto forem forasteiros.
— Besteira! Outro discurso vazio que não significa nada.
Da bolsa do cinto, Murtagh pegou o broche de Saerlith e o jogou na plataforma
entre ele e Bachel. O metal ressoou ao atingir a pedra.
— A quem você serve, bruxa? Você é um instrumento dos Renegados?
Galbatorix? Ou eles eram seus inimigos?
A expressão de Bachel ficou furiosa ao ver o broche.
— Você tem se intrometido onde não deveria, Forasteiro.
— E ainda assim você não responde. A quem você serve? O que você quer?
— A quem eu sirvo? — A voz da bruxa ganhou força e ficou mais grave, de
modo que as palavras ecoaram pelas paredes e pelas colinas. — Eu sirvo a um
poder maior do que você pode imaginar, Cavaleiro. Eu sirvo ao Sonhador dos
Sonhos e não serei questionada por gente da sua laia! Curve-se diante do meu poder
e mostre arrependimento.
As últimas palavras de Bachel chegaram como um golpe poderoso e o ar sacudiu
poeira solta e lascas de pedra que caíram do telhado do templo. Uma nuvem de
escuridão se formou em volta do corpo da bruxa quando ela ergueu os braços e
gritou com um som sem palavras para o céu crepuscular.
Murtagh esperou um ataque. Mas nenhum veio. Em vez disso, ouviu o grito dela
percorrer o vale inteiro, como uma carga de cavalaria dando a volta e repetindo. O
ar ficou silencioso, e os Draumar se prostraram com súplicas melancólicas. Um
instante depois, o pátio estremeceu sob eles, e todo o vale pareceu se erguer e
gemer, e as próprias montanhas tremeram. Os picos de granito derramaram longos
deslizamentos de neve incrustada e ondas brancas devoradoras desceram correndo
pelos flancos de madeira. O bando de corvos de Bachel gritou seu alarme coletivo
dentro da Torre de Pederneira. Corujas e águias ergueram voo das copas das árvores
aos gritos, e animais de todos os tipos tagarelaram pelo vale inteiro.
Thorn rosnou quando o chão se moveu. Ele saltou no ar, e a rajada de vento
causada por suas asas só aumentou a confusão. A pulsação do vento era tão forte
que forçou Murtagh a apertar tanto os olhos que mal conseguia enxergar.
Então o fundo do vale ficou silencioso novamente. Os gritos dos animais foram
diminuindo, sendo o último os latidos agudos de uma raposa.
Thorn se acomodou ao lado de Murtagh. As escamas do dragão estavam eriçadas,
como o pelo de um gato assustado.
Momentos depois, baques surdos ecoaram do topo das montanhas, como golpes
de martelo de gigantes.
Bachel baixou os braços. Ela olhou para Murtagh e Thorn com uma expressão
distante, como se fossem de pouca importância. Quando falou, a voz era fraca e sem
emoção.
— Não teste minha paciência novamente, Murtagh, filho de Morzan.
Compartilharei a verdade com você quando achar conveniente. Até lá, participe da
minha hospitalidade e não seja tão impertinente.
A bruxa se curvou, pegou o broche de Saerlith e fechou a mão em torno dele.
Antes, Murtagh não havia sentido nenhuma magia, nenhuma força ou ímpeto
irradiando de Bachel, mas naquele momento começou a sentir. Um clarão de luz
dourada surgiu entre os dedos dela. Ela abriu a mão e revelou o broche esmagado
em uma esfera irregular.
Bachel largou o orbe no braseiro ao lado da plataforma, se sentou na liteira e
pegou o cálice.
— Venha, meu filho. Sente-se, e vamos esquecer esse aborrecimento e aproveitar
o resto da noite.
Murtagh havia aprendido que existiam momentos em que a atitude mais sábia era
aguardar o momento certo em vez de se jogar de cabeça numa batalha.
Decidiu que aquele era um deles.
Relaxou a pegada no cabo de Zar’roc e se abaixou cautelosamente na cadeira
onde esteve sentado. Os braços estavam úmidos de suor, e ele mal conseguia ouvir
por causa do sangue pulsando nos ouvidos.
Bachel bateu palmas.
— Músicos, de novo — disse.
E eles recomeçaram a dedilhar as liras e cantar naquela língua oculta. Pelo pátio
inteiro, os Draumar se levantaram e começaram a recolher os restos espalhados do
banquete. Atrás da plataforma, Alín estava amedrontada e curvada. As mãos
tremiam quando ela as entrelaçou diante do robe branco.
Thorn se acomodou logo atrás de Murtagh, que ficou muito contente com a
companhia. A preocupação do dragão refletia a dele.
Devíamos ir embora daqui, disse Thorn.
Concordo.
Então por que esperamos? Em alguns segundos posso nos colocar no ar.
E a bruxa pode conjurar a magia dela tão rápido quanto pode pensar.
Murtagh fingiu um sorriso educado e recusou quando um cultista lhe trouxe um
prato de guloseimas.
Você quer lutar com ela agora?, perguntou o Cavaleiro.
… Não.
Compartilharam um breve momento de entendimento sombrio. A bruxa era mais
habilidosa do que tinham previsto e Murtagh não queria medir sua magia contra a
dela, por medo de que fosse inferior.
O que ela fez não deveria ser possível. Ninguém é forte o bastante para mover
tanta terra e pedra de uma vez. Nem mesmo Shruikan.
Se todos os Eldunarí trabalhassem juntos, conseguiriam.
Talvez. Mas já investiguei com a mente. Você também. Não tem nenhum Eldunarí
por aqui.
A respiração de Thorn soprou quente contra a nuca de Murtagh.
Ela pode ter usado alguma fonte secreta de energia, armazenada em gemas.
Mas por que desperdiçá-la em uma demonstração dessas? Tanta energia seria
um tesouro inestimável. Levaria anos e anos para adquirir.
Murtagh resistiu ao impulso de agarrar Zar’roc de novo. Ele queria a espada na
mão, a lâmina desembainhada e um escudo no outro braço. E, no entanto, sabia que
nada disso o protegeria do poder de Bachel.
Não, ela deve ter uma fonte de energia que se renova, e não pode estar tão longe
assim.
Ele ergueu os olhos quando Alín se aproximou com uma jarra de vinho e lhe
ofereceu um cálice de pedra. Ele aceitou e ela encheu o copo, embora se recusasse a
olhá-lo, e depois se curvou.
— Meu senhor — disse Alín, e partiu.
Ainda inquieto, Murtagh tomou um gole maior do que de costume. O vinho fez
pouco para acalmar seus nervos. Ele tomou outro gole e um pensamento lhe
ocorreu, fazendo-o baixar o copo e olhar para o braseiro próximo enquanto pesava
as possíveis consequências.
Acho que sei o motivo de Bachel estar postergando. Ela quer que a gente durma
de novo. Que sonhe. É isso que está esperando. Ela disse isso antes, não disse? Por
isso nos pediu para ficar mais uma noite. Deve acreditar que os sonhos aqui vão de
alguma forma nos convencer a nos juntarmos à causa deles. Assim como com seus
prisioneiros.
Sentiu um leve rosnar escapar de Thorn.
Então não devemos dormir.
Não ousaremos.
Murtagh girou o cálice com os dedos.
Se dormirmos, estremeço ao imaginar o que poderia acontecer.
Seria bom ter ajuda, se vamos lutar contra Bachel.
Pensar em algo assim era doloroso, mas Murtagh não via alternativa.
Concordo. Assim que sairmos daqui, vou mandar uma mensagem a Eragon e
Saphira e a Arya e Fírnen.
Uma pitada de empolgação intensa surgiu na mente de Thorn.
Então a mais nova geração de dragões e Cavaleiros voarão juntos.
Hum. Mas antes de irmos embora de Nal Gorgoth, quero descobrir o que há
naquela caverna.
A primeira reação de Thorn foi cautela. Por quê?
Porque talvez a fonte de poder de Bachel esteja lá embaixo.
E se você a encontrar...
Talvez a gente possa usá-la. Ou destruí-la. De todo modo, saber o que é nos
daria melhores chances de derrotar Bachel. Vamos esperar todo mundo dormir, eu
vou investigar a caverna e depois vamos embora. Quando a bruxa acordar, já
teremos partido.
Ótimo, disse Thorn.
Então Bachel propôs um brinde, e Murtagh sorriu e ergueu o cálice em resposta.
E o tempo todo sua mente girava com especulações sombrias.
CAPÍTULO XI

Expectativa

J á estava escuro quando eles terminaram o banquete. Bachel, como parecia ser
seu costume, comera tudo que lhe fora oferecido, e ainda mais, e bebera um
pequeno barril de vinho tinto, e agora jazia em lassidão na plataforma, cheia e
satisfeita. Olhando para ela, Murtagh pensou em um sapo gordo e enorme, feliz
com a própria gula.
A um sinal de Grieve, os liteireiros da bruxa ergueram a liteira e a levaram para o
interior escuro do templo. A música então parou, os cultistas começaram a remover
as mesas e arrumar o festim. Alín foi até Murtagh e se ofereceu para conduzi-lo até
os aposentos dele.
Depois de se despedir temporariamente de Thorn, Murtagh aceitou.
O robe branco de Alín parecia quase brilhar enquanto ela o conduzia pelos
corredores sem iluminação do templo.
— Bachel já tinha feito algo como aquilo antes? — Murtagh sabia que não
precisava especificar sobre o que estava falando.
Uma hesitação momentânea, uma falha quase imperceptível, surgiu no andar de
Alín.
— Uma vez, há muito tempo, meu senhor. Uma mulher veio a Nal Gorgoth.
Uluthrek era o nome dela, o que era estranho, pois era humana. Bachel foi tratar
com ela fora do vilarejo. Ninguém escutou o que elas disseram, mas o Vale dos
Sonhos tremeu como aconteceu hoje.
— Bachel foi encontrar a mulher? — Murtagh teve dificuldade de imaginar.
— Sim, meu senhor.
— Você sabe por quê?
— Não, meu senhor.
Quando os dois chegaram às portas dos aposentos, Murtagh disse:
— Alín, você está presa a juramentos. Isso eu entendo. Mas preciso saber qual é
a fonte de poder de Bachel. Diga-me isso, pelo menos.
— Ela é a Oradora, meu senhor. Todos os que servem como Oradores têm esse
poder.
— Sim, mas por quê? De onde ele vem?
Um toque de exasperação animou as feições da jovem.
— Que pergunta boba. Vem do Sonhador dos Sonhos, como tudo na vida. — Ela
fez uma reverência e concluiu: — Seus aposentos, meu senhor.
Alín se virou para ir embora.
— Espere!
Sem pensar, Murtagh estendeu o braço para detê-la, mas Alín percebeu e se
encolheu da mão dele como se fosse um ferro em brasa. As costas dela bateram em
uma coluna embutida na parede.
Alín soltou um grito angustiado e arqueou o peito, perdendo toda a compostura.
Murtagh recolheu a mão quando percebeu que quase a tocara. Ele franziu os
olhos ao ver como Alín endireitou cuidadosamente a postura, o rosto pálido como
neve recém-caída.
— Ela mandou chicotear você — disse Murtagh.
Não foi uma pergunta. Ele reconheceu a maneira como Alín se moveu; ele
sempre se movimentava da mesma forma após Galbatorix tê-lo mandado para o
poste.
— Eu não deveria ter falado com o senhor como fiz antes — contou Alín em voz
baixa.
— Depois da caçada? — Murtagh lutou para manter a voz sem um traço de raiva.
Ela assentiu.
— Foi errado falar com tanta intimidade. Eu errei.
Alín cobriu o rosto com as mãos e, antes que Murtagh pudesse responder, saiu
correndo, com os sapatos de couro macio tamborilando pelo corredor de pedra.

Uma camada espessa de nuvens havia se formado sobre as montanhas e deixado a


noite sem estrelas e lua. A escuridão convinha a Murtagh, tornando mais fácil se
esgueirar por ali.
Ainda assim, era difícil calcular a passagem do tempo sem uma visão do céu, e
ele não sabia quanto esperar antes de sair dos aposentos. Acendeu um pequeno fogo
na lareira do quarto e observou as chamas consumindo a madeira.
A mente se recusava a descansar. Imagens do sol negro e do dragão gigante
continuavam se intrometendo, e Murtagh se viu planejando demais o que poderia
acontecer se ele e Thorn tivessem que lutar contra Bachel e o resto dos Draumar.
O que quer que acontecesse, ele queria proteger as crianças. Mas seria difícil,
muito difícil, dadas as habilidades da bruxa.
Ele pegou uma das moedas de ouro da bolsa no cinto e a ergueu diante do fogo.
O metal cintilou, quase espelhado de tão polido. Imaginava que houvesse um feitiço
nele, para preservar a moeda do desgaste.
O perfil de Nasuada continuava misterioso. Ele passou o polegar pela face dela e
então parou, sentindo como se estivesse tomando uma liberdade indevida.
Ela estava em perigo — Murtagh tinha certeza disso — e em grande parte por
causa de Bachel. Ele estava determinado a ajudar a protegê-la.
— Se ao menos... — murmurou ele, então parou.
Existia frase mais inútil que essa? Se ao menos não tivesse convencido
Galbatorix a sequestrar Nasuada. Mas, se não houvesse feito isso, o rei a teria
matado. Como era frequente na vida de Murtagh, fora forçado a escolher entre dois
infortúnios, e embora tivesse tentado escolher o menos pior, ainda era um
infortúnio.
Mal-humorado, ele guardou a moeda e encarou as profundezas do fogo.
Desejou ter pensado em tirar o compêndio dos alforjes de Thorn e trazê-lo. Ler
teria sido uma distração bem-vinda. Em vez disso, começou a compor outro poema.
As palavras vinham aos trancos e barrancos, com pouca delicadeza, e os versos
pareciam incoerentes e desagradáveis de ouvir. Ainda assim, ele continuou tentando
consertá-los e ajeitá-los e, no final, recitou para si mesmo:

Frágil é a flor que cresce na escuridão.


Preciosa é a flor que desabrocha à noite.
Seus jardineiros ausentes, cegos ou indiferentes.
Mas pétalas pendentes e quebradas ainda têm beleza
Muito própria. Tenha cuidado onde pisa, para que você não
Esmague os tesouros espalhados diante dos pés.

Quando o fogo já tinha ardido pelo que pareceu uma hora, Murtagh apagou as
brasas com a sola da bota, foi até as janelas voltadas para o leste e olhou para baixo,
para os homens que montavam guarda no pátio.
Ele praguejou. Em vez de dois, havia sete guerreiros, todos acordados. E nos
peitos cobertos por cotas de malha, Murtagh viu o conhecido amuleto encantado
dos cultistas, feito de caveira de pássaro. Bachel estava lhe mandando uma
mensagem. Ela sabia que Murtagh havia escapado do quarto na noite anterior e
estava tomando precauções para impedi-lo de fugir novamente. Sete homens ou
dois — os números não importavam. O que importava eram os amuletos, que
poderiam bloquear o feitiço que ele havia usado antes.
Só havia uma maneira de descobrir.
— Slytha — murmurou ele.
Murtagh sentiu uma diminuição mínima de força, mas os homens pareciam
impassíveis.
— Maldição — disse ele entre os dentes cerrados.
Thorn olhou para o Cavaleiro de onde estava deitado sobre as lajotas.
Você deseja que eu remova os homens?
A ideia era tentadora.
Não, ainda não. Deixe-me pensar um momento.
Uma baforada de fumaça cinza saiu das narinas de Thorn. Os guerreiros lançaram
olhares nervosos ao dragão.
Murtagh se afastou das janelas e andou de um lado para o outro do quarto
enquanto considerava as opções.
Foi a lembrança da caixa de confusão que lhe deu a primeira dica de uma
solução. A caixa tinha sido projetada para capturar e conter conjuradores que
também estivessem protegidos contra magia. Ela realizava isso por meio de uma
combinação de força bruta e da alteração das coisas em volta de seu pobre
prisioneiro, e não na pessoa em si.
Teremos de ser rápidos, disse Murtagh ao se voltar para as janelas.
Eles não vão escapar, respondeu Thorn.
Murtagh flexionou as mãos e se preparou.
— Thrysta vindr — sussurrou. O feitiço era bastante simples, mas era a intenção
que importava.
A princípio, os sete guerreiros não perceberam que algo estava errado. Então um
deles fez uma expressão curiosa e apontou em pânico na direção do homem à
frente. O companheiro franziu a testa.
Murtagh já estava em movimento. Ele saltou pela janela, deslizou pelo telhado
abaixo, mal se preocupando em diminuir a velocidade, e aterrissou no pátio.
A aparição repentina assustou os homens e os fez pegar suas lanças e apontar
para Murtagh. Mas, quando tentaram gritar e dar o alarme, nenhum som saiu de
suas bocas. Pois, como Murtagh sabia, o feitiço havia endurecido o ar em torno dos
rostos dos guerreiros, de modo que eles não podiam inalar nem exalar.
Os olhos dos homens se arregalaram de raiva, indignação e horror, e os rostos
ficaram roxos quando o sangue congelou sob suas peles. Mas foram corajosos,
Murtagh teve que admitir. Cinco guerreiros avançaram contra ele enquanto um se
virava para correr até a parte principal do vilarejo e outro para a entrada do templo.
Thorn esticou a pata dianteira e jogou no chão o guerreiro que ia em direção ao
vilarejo. Ele não se levantou.
Murtagh disparou para o lado e deu uma ombrada no homem que corria para o
templo. O guerreiro tropeçou e caiu.
Os outros cinco se aproximaram. O golpe desajeitado de uma lança desviou nas
proteções mágicas de Murtagh, que conseguiu recuar e colocar a fonte arruinada
entre ele e os perseguidores.
Os guerreiros tentaram ir atrás, mas estavam sem ar. Um após o outro, eles
desmoronaram, os rostos manchados e pálidos, e veias salientes nos pescoços
tensos.
Então tudo ficou silencioso, exceto pelos pés se debatendo nas lajotas.
Murtagh correu até Thorn e verificou se as correias da sela estavam bem presas.
Ele não a tinha removido durante todo o tempo em que os dois estiveram em Nal
Gorgoth, nem Thorn pedira isso a ele.
— Agora não tem mais jeito — disse Murtagh em voz baixa.
Temos que ir, antes que alguém note.
— Primeiro a caverna.
Thorn bufou em reprovação, e Murtagh o encarou.
— É nossa única chance de descobrir o que tem lá.
O dragão rosnou do fundo do peito.
Está bem, mas vou ficar feliz de ir embora deste lugar.
— Então somos dois.
O último dos guerreiros parou de se mover enquanto Murtagh ajustava a bainha
da espada e pegava seu manto dos alforjes. A armadura teria sido um conforto —
ainda que pequeno —, mas mesmo com uma leve camada de ferrugem agindo como
amortecedor de som nos anéis de ferro, ele temia que a cota de malha fizesse muito
barulho.
Com Thorn como um companheiro furtivo na retaguarda — ou tão furtivo quanto
um dragão do tamanho dele poderia ser —, Murtagh saiu de mansinho pelo canto
nordeste do templo e se dirigiu para o bosque de pinheiros, passando pelo trecho de
relva aparada. Na entrada do bosque, parou para vasculhar com os pensamentos.
Não encontrando ninguém à frente, ele sussurrou “Brisingr” e criou uma fraca luz
mágica vermelha no ar acima.
O fogo arcano iluminava o caminho enquanto eles prosseguiam pela trilha que
serpenteava entre os pinheiros escuros. As trevas e a escuridão avançavam por
todos os lados, como se o único pedaço de realidade que existisse fosse o pequeno
círculo de terra que a luz mágica pintava de vermelho.
Thorn tremeu, incomodado, e manteve a cabeça e o rabo baixos para evitar os
galhos.
Sob os pinheiros, o ar estava carregado com o cheiro de ervas e cogumelos, além
do onipresente fedor de enxofre. Murtagh sentiu como se os dois estivessem no
depósito de um curandeiro e imaginou que usos teriam as plantas.
Na caverna escancarada situada no sopé das colinas, Murtagh viu uma mancha de
sangue fresco no altar à esquerda da abertura. No brilho rubi da luz mágica, a marca
era preta como tinta e, ao vê-la, o Cavaleiro teve um mau pressentimento.
Ele soltou Zar’roc na bainha e seguiu em frente.
Uns cinco metros caverna adentro, Murtagh ouviu os passos de Thorn vacilarem
e pararem atrás dele. Ele olhou para trás e viu o dragão bem rente ao chão, com asas
apertadas contra o corpo e lábio de cima enrugado em um rosnado de medo.
Murtagh olhou para o teto arqueado de pedra lá no alto.
— Até aqui? — disse ele em voz baixa.
Ele achava que tinha espaço suficiente para que Thorn não se sentisse ameaçado.
O dragão rosnou baixo.
Desculpe.
— Suas asas nem tocam as paredes. Você ainda pode lutar se precisar e, se
tivermos que fugir, há espaço para você se virar...
Não. Eu… Thorn colocou uma pata para a frente, tremeu violentamente e a
recolheu. Ele pestanejou e uma película reluzente cobriu os olhos, brilhando ao
refletir a luz mágica. Eu quero, mas não consigo.
Murtagh voltou para Thorn e abraçou seu pescoço. Por um momento, os dois
ficaram assim, e o calor das escamas aqueceu o peito de Murtagh através da camisa
fina de linho.
— Está tudo bem — murmurou. — Fique aqui. Serei rápido e então podemos ir
embora.
Thorn zumbiu, parecendo envergonhado.
Eu gostaria de não ter tantos defeitos.
Uma onda de tristeza, compaixão e pesar tomou conta de Murtagh.
Minhas dores são diferentes das suas, mas tenho tantos defeitos quanto você, se
não mais, disse, abrindo mais a mente. Você sabe.
Eu sei.
Ninguém é perfeito. Ninguém passa pela vida ileso. Portanto, não se culpe pelo
que está fora do seu controle. Estamos aqui e temos um ao outro. Isso é o que
importa.
Outro tremor percorreu o corpo de Thorn.
Vou tentar seguir você. Se…
Não, não. Fique aqui. Tentaremos em outro lugar, quando não tivermos que nos
preocupar em levar uma facada nas costas. Fique, não vou demorar.
Promete?
Eu prometo. Wiol ono.
CAPÍTULO XII

O poço do sono inquieto

M urtagh avançou sem ninguém para a escuridão que o esperava.


Apesar das garantias que fez para Thorn, ele se sentia vulnerável e com medo. As
câmaras que jaziam enterradas abaixo dele estavam tomadas pelo desconhecido,
inimaginável e obscuro. Como poderia se preparar para enfrentar algo que ainda
não havia nomeado?
Murtagh manteve Zar’roc solta na bainha enquanto descia a escada de pedra
trabalhada que adentrava a caverna. O teto permanecia alto, perdido em uma cúpula
de sombra que a iluminação fraca da luz mágica não conseguia penetrar. Ele
poderia ter aumentado o fluxo de energia para a luz mágica — intensificado o brilho
como um sol em miniatura —, mas havia o risco de que isso chamaria atenção.
Além disso, ouvia os guinchos agudos de morcegos empoleirados no alto, e mais
luz poderia acordá-los, e isso traria os cultistas para onde ele estava.
Os passos de Murtagh pareciam curiosamente altos enquanto ele continuava
descendo a escada, e a cada eco sinistro nas paredes invisíveis o pulso disparava. Os
degraus corriam para a frente e para trás em zigue-zague e estavam desgastados no
meio devido à passagem de pés incontáveis ao longo dos séculos. Murtagh teve
uma sensação não apenas de idade, mas também de antiguidade. Quem quer que
tivesse construído a escadaria, fez isso muito antes da Alagaësia ser um lugar
habitado. O que foi que Bachel disse? Que os cultistas viviam em Nal Gorgoth
desde antes de os elfos serem elfos... Murtagh estava começando a acreditar que ela
dissera a verdade.
A caverna permaneceu larga e alta o suficiente para um dragão do tamanho de
Thorn — ou maior — enquanto continuava a avançar cada vez mais fundo na terra
retumbante. O ar ficava cada vez mais quente e úmido, e o cheiro de enxofre ainda
mais forte.
Murtagh secou as palmas das mãos na calça. Ele não queria que ficassem
escorregadias, caso tivesse que pegar Zar’roc.
A boca da caverna desapareceu atrás dele, e logo ele ocupava sozinho um mundo
de escuridão. Expandiu os pensamentos — a uma distância mais longe do que
pensou que tivesse coberto — e tocou a mente de Thorn.
Tudo bem?, perguntou ele.
Os corvos estão se mexendo, mas o vilarejo ainda dorme.
Murtagh acelerou o passo.
Vou tentar não demorar muito, mas esta caverna... parece sem fundo.
Não se preocupe. Eu guardarei a entrada.
Eu sei.
Apesar do calor, Murtagh sentiu um calafrio e um arrepio correu seu corpo. Uma
desconcertante presença era perceptível, como se mil olhos invisíveis o cercassem
na escuridão opressora. A coragem vacilou, e ele estava prestes a aumentar a
claridade da luz mágica quando...
Um brilho esverdeado apareceu diante dele, tão fraco que mal era visível. De
início, Murtagh pensou que seus olhos lhe estivessem pregando uma peça, mas,
depois de mais alguns metros, percebeu que não, realmente havia luz à frente.
Ele extinguiu a luz mágica, e as sombras avançaram. A luminescência verde
repugnante o guiou à frente e, a cada passo, ela aumentava de força até ele
conseguir enxergar: a escada de pedra trabalhada terminava no piso de uma caverna
rochosa que se estendia em direções desconhecidas. As rochas com depósitos de
carvão visíveis estavam manchadas com membranas de lodo verdejante, das quais
emanava a luz tênue e fria. Havia vários cogumelos brotando entre as rochas, sendo
o tipo mais comum um cogumelo curto, com chapéu roxo e lamelas caídas que
lembravam a carne interna de uma ostra. Por toda parte, filetes de vapor de enxofre
subiam do chão da caverna, como se a própria terra estivesse respirando e suando.
Um caminho sinuoso com lajotas similares às do pátio do templo se estendia
desde o pé da escada e desaparecia nas sombras retumbantes.
Murtagh praguejou baixinho ao chegar ao fundo. Ele nunca tinha visto um lugar
assim — nem mesmo nas Montanhas Beor, entre os túneis e as cavernas que os
anões construíram e cuidavam. Se o espaço era uma ocorrência natural, Murtagh
não sabia dizer. Não havia estalactites ou estalagmites visíveis, e as rochas limosas
estavam quebradas em pedaços, como pedras de pedreira.
Ele jogou a capa para trás dos ombros.
Eu deveria ter deixado essa capa com Thorn.
O calor estava ficando insuportável.
Murtagh tentou estimar a que profundidade estava. Ele devia ter descido por
dezenas de metros, se não mais. Esculpir tantos degraus assim teria sido uma tarefa
monumental, mesmo com magia, e se o trabalho tivesse sido feito à mão... O que há
de tão importante aqui embaixo?
Ele começou a percorrer o caminho.
A combinação do brilho desconcertante do lodo, do cheiro de enxofre e do perigo
implícito fez o estômago de Murtagh revirar, como se ele tivesse comido um ovo de
pato que não foi cozido o suficiente. Murtagh engoliu a saliva que enchia a boca e
tentou ignorar a sensação, embora o corpo lhe dissesse para fugir até o céu aberto e
o ar fresco.
O pé direito dele atingiu algo duro.
Uma pedra do tamanho de um punho rolou para longe. Murtagh saiu do caminho
e a pegou. A rocha brilhava e reluzia como se estivesse queimando por dentro.
Fazia um par perfeito com a pedra que ele tirara de Sarros em Ceunon, no que
parecia meio ano atrás.
Seu coração acelerou, e ele enfiou a pedra na bolsa pendurada no cinto.
Talvez a trinta metros da escada, uma enorme parede curva surgiu diante dele, em
estado bruto e com fendas. Três túneis a perfuravam, e Thorn teria cabido em cada
um deles se tivesse dobrado as asas e mantido a barriga rente ao chão, como uma
grande serpente luzidia. O túnel do meio tinha bordas de pedra trabalhada: um anel
de blocos retangulares esculpidos com linhas de ângulos agudos e as mesmas runas
desconhecidas do vilarejo. No centro de cada bloco fora colocado um cabuchão de
opala, que refletia o brilho do lodo como vários olhos de gato.
Os túneis à esquerda e à direita eram simples, inacabados: tubos de pedra bruta
que se enterravam nas raízes das montanhas. Eles não pareciam ter sido abertos a
cinzel ou martelo, mas também não pareciam naturais. Eles o lembraram dos túneis
por onde ele fugiu das câmaras secretas do capitão Wren embaixo de Gil’ead — só
que muito maiores.
Sons fracos emanavam das profundezas dos túneis. Sussurros. Gemidos. Gritos
suaves que ecoavam e pareciam com um pio de pássaro. De início, ele pensou estar
ouvindo vozes ou chamados de animais, mas depois de um tempo se convenceu de
que era o próprio ar se movendo pelas veias da terra que dava origem aos sons
misteriosos.
Ele escolheu entrar no túnel central. Os artesãos desconhecidos que trabalharam
nas cavernas despenderam esforços especiais nele e, portanto, o túnel devia ser
importante ou levar a algo importante.
Murtagh continuou em frente. Mais fundo no ventre da terra. Mais fundo no
sombrio desconhecido, buscando, buscando, sempre buscando ir um pouco mais
adiante, cada sentido afiado como navalha, com a pele toda arrepiada, suor frio
escorrendo pela nuca e se acumulando na cintura por causa do cinto.
As paredes do túnel eram revestidas com ladrilhos de pedra bruta em formato de
diamante. Os ladrilhos estavam dispostos como as escamas de um dragão, de modo
que Murtagh se sentia andando dentro de uma pele descamada de enormes
proporções.
Não muito longe, após um minuto de caminhada, não mais do que isso, a
escuridão invadiu novamente, pois os ladrilhos estavam livres de lodo.
Foi quando ele viu uma sala iluminada à frente. Uma sala clara. Uma sala branca
como osso, revestida com o mais fino mármore, cujos veios tinham sido entalhados
com ouro martelado. Havia incensários de latão pendurados em correntes nos
focinhos de cabeças de dragão esculpidas, que se projetavam das paredes circulares
alinhadas por colunas. Pequenas chamas ardiam em alcovas na parede, mas o fogo
não consumia pavios nem combustível, parecendo brotar diretamente do mármore.
Várias portas abertas de tamanho humano levavam a ainda mais túneis. Mas foi o
que havia no centro da sala que chamou a atenção de Murtagh, pois era grande e
estranho: um círculo de mármore bruto, com vários palmos de altura e uma tampa
de metal cinza em cima, como um poço coberto.
Ao se aproximar, ele viu um painel de cristal transparente emoldurado no metal e
através do cristal... um vazio vaporoso que penetrava mais fundo na terra.
Murtagh franziu a testa. Era esse o poço sagrado mencionado por Grieve? Era
ele, ou o que ele continha, a fonte do poder de Bachel? O poço em si não parecia
grande coisa. E, ainda assim, o ar parecia reverberar como uma corda dedilhada.
Era verdade que nem todas as magias eram feitas por humanos, elfos, anões ou
qualquer outra raça pensante e autoconsciente. Também havia magias naturais,
como os cristais flutuantes de Eoam, mas elas tendiam a ser descontroladas e
imprevisíveis.
Se o poço fosse um desses lugares, isso poderia explicar a perícia de Bachel com
a magia. E se era esse o caso, não era o tipo de coisa que os Draumar deveriam
dominar. Não que ele quisesse que a Du Vrangr Gata assumisse o controle de um
local tão importante, tampouco. Foi exatamente para isso que os Cavaleiros foram
criados: supervisionar e mediar o que poderia desestabilizar o reino.
Murtagh se curvou sobre a tampa martelada e franziu os olhos tentando espiar
através das serpentes de vapor que rodopiavam lá embaixo. Havia o indício de uma
forma sob a névoa: um contorno vago que ele quase conseguia entender.
Abrindo a mente, enviou um pensamento cauteloso e investigativo para o interior
da escuridão. Ele não sabia o que esperar, mas suspeitava que houvesse algo
interessante escondido no fundo do poço...
Os gemidos e murmúrios que ecoavam pelos túneis pareceram ficar mais altos, e
a visão de Murtagh tremeu como se criaturas sombrias estivessem se movendo nas
bordas. Quando ele pestanejou, as imagens piscaram por trás das pálpebras —
rápido demais para registrá-las —, e um forte desejo de dormir recaiu sobre ele,
pressionando-o para baixo. Ele lutou contra essa vontade, assustado. De onde quer
que aquilo viesse, Murtagh tinha certeza de que era a fonte dos pesadelos que
atormentavam o vilarejo, como um miasma maligno vazando do solo e infectando
as mentes adormecidas dos aldeões.
O vapor lá embaixo se dividiu em alguns pontos, e ele viu no escuro diferentes
níveis de túneis e câmaras, perfurados pelo poço que descia. E no fundo distante,
obscurecido por trechos flutuantes, um brilho pulsante que...
— Você não deveria estar aqui, meu filho.
Murtagh se virou para ver Bachel e Grieve parados na entrada. O cabelo da bruxa
estava solto e caía, escuro e lustroso, em uma bagunça tempestuosa em volta do
rosto e ombros até o meio das costas. As mangas do vestido estavam levantadas
para expor os antebraços; os pés, descalços; e a fuligem em volta dos olhos,
manchada como se ela tivesse sido interrompida enquanto a retirava. Em uma das
mãos, carregava uma lança alta, cujo cabo era feito de um material esverdeado, com
uma longa lâmina farpada de formato estranho no topo. Um brilho fraco cercava a
cabeça da arma.
Murtagh sentiu um frio nas entranhas que o impediu de se mover. Ele reconheceu
a arma. Era uma Dauthdaert — uma Lança da Morte —, feita pelos elfos com
apenas um propósito em mente: matar dragões. Os elfos haviam forjado doze delas
durante sua guerra com os dragões, antes da formação dos Cavaleiros, e as
encantaram para que pudessem perfurar escamas e contornar até mesmo a magia
selvagem de um dragão.
Além disso, Murtagh conhecia essa Dauthdaert específica. Era a mesma lança
que Arya tinha usado para matar Shruikan. Niernen era o nome da arma, e era
amaldiçoada, odiada e cobiçada por todas as pessoas de ambição sangrenta. Ele
pensou que aquela Dauthdaert havia se perdido na destruição após a morte de
Galbatorix. O fato de ter sobrevivido era surpreendente. O fato de alguém tê-la
retirado de Ilirea e levado para Bachel era preocupante.
Em contraste com a aparência arcana da lança, Grieve carregava uma arma mais
mundana: uma clava de madeira maciça com faixas de ferro presas.
Thorn! Como Bachel e Grieve passaram por ele? Murtagh queria entrar em
contato com o dragão através da mente, mas não ousava baixar suas defesas mentais
com a bruxa e o companheiro dela tão perto. Ainda assim, ele não sentia dor ou
alerta através da sutil e constante conexão que compartilhava com Thorn, e isso era
um alívio. Mais túneis, pensou Murtagh. Devia haver uma passagem ligando o
templo às cavernas abaixo.
A mão de Murtagh apertou o punho de Zar’roc. Em qualquer outra circunstância,
ele teria sacado a espada, mas queria — ou melhor, precisava — entender mais
sobre o poder de Bachel antes de lutar com ela, ainda mais sozinho, sem Thorn.
— Eu vi a caverna e fiquei curioso.
— Este não é um lugar para forasteiros.
A postura de Bachel estava equilibrada, não excessivamente rígida. Era a maneira
perfeita de se preparar para ação violenta. Os olhos brilhavam com promessas
sombrias, e ela segurava a Dauthdaert com uma facilidade que convenceu Murtagh
de que estava bem acostumada a usá-la.
— E que lugar é este, minha senhora?
Bachel e Grieve começaram a andar com passos cadenciados em volta do poço
de pedra. Murtagh copiou o movimento, mantendo o poço entre eles.
Grieve foi quem respondeu, com um olhar furioso sob a testa pesada e bruta.
— É o Poço dos Sonhos, Cavaleiro, e ninguém pode se aproximar sem a
permissão de Bachel. É o coração de todas as coisas, a fonte da promessa e do
poder, e aqueles que o profanam devem morrer.
Com o polegar da mão esquerda, Murtagh puxou Zar’roc mais ou menos cinco
centímetros para fora da bainha, de modo que ela saísse sem se prender.
— E eu o profanei, Bachel?
A princípio, ele pensou que a bruxa responderia com raiva. Mas então ela riu de
forma preguiçosa e se aproximou com mais um passo. Grieve se separou dela e
contornou o outro lado do poço, cercando Murtagh.
Ele recuou um passo para não ser flanqueado. Uma das portas abertas estava
atrás dele. Murtagh tinha espaço para fugir.
— Profanou? — perguntou Bachel, quase ronronando. — Não, meu filho, acho
que não. Não se você se ajoelhar e jurar fidelidade a mim. Pois como pode o servo
estar errado se estiver agindo de acordo com a vontade de sua senhora? Ajoelhe-se,
Murtagh, filho de Morzan, e sua vida será poupada.
Zar’roc cantou ao ser desembainhada, e seu peso familiar foi um alívio na mão
de Murtagh, que deu um sorriso torto.
— Você sabe que não farei isso. Você não me deu nenhuma razão digna de ser
ouvida. Mesmo que tivesse, Thorn e eu jamais nos ajoelharíamos por medo ou
desespero. Se dobrarmos os joelhos, será por amor, dever e respeito, ou nunca o
faremos.
A expressão de Bachel se tornou arrogante, condescendente.
— Você não entenderia se eu contasse, Regicida. Você alegaria que sim, mas não
sentiria a verdade e seu coração estaria vazio. Eu esperava poupá-lo disso. Esperava
que você sonhasse como todos nós sonhamos aqui em Nal Gorgoth, e acabaria
entendendo a verdade como todos nós. Teria se dedicado à nossa causa, livre e
voluntariamente.
— Foi assim com Saerlith? — perguntou Murtagh. — Ele a seguiu livremente?
Enquanto falava, ele arriscou enviar um único disparo de pensamento para a
superfície. Thorn! Um grito de socorro ao único com quem podia contar.
Mas tudo o que ele recebeu em troca foi medo. Medo de espaços fechados, medo
de ficar preso, medo de perder. Um gosto azedo tomou toda a boca de Murtagh.
Não poderia contar com ajuda.
Os lábios de Bachel se torceram para um lado.
— Saerlith foi um peão e nada mais. Ele serviu aos nossos objetivos, assim como
Galbatorix e Morzan.
A menção do pai de Murtagh pareceu uma tentativa óbvia de provocá-lo. Ele
optou por ignorar a isca.
— Duvido disso. Galbatorix não serviu a nada nem a ninguém.
As palavras de Murtagh pareceram ferir o orgulho da bruxa.
— Seu medo o leva a superestimar o rei. Como acha que ele perdeu o dragão?
Murtagh sentiu o orgulho igualmente ferido.
— Galbatorix? Ele foi se aventurar no norte, e um grupo de Urgals...
— Não! — gritou Bachel, que cortou o ar com um gesto na horizontal, a mão
estreita como uma lâmina, e depois prosseguiu em um tom mais comedido: — É
verdade que os Urgals mataram Jarnunvösk nas regiões geladas do extremo norte,
mas você está enganado quanto à razão pela qual Galbatorix e seu pobre grupo se
aventuraram. Ele mentiu para você, Forasteiro. Tudo o que ele e os antigos
Cavaleiros disseram a respeito daquela expedição era mentira!
Mantenha Bachel falando. Murtagh continuou contornando o poço, tentando
manter uma distância igual entre ele, a bruxa e Grieve.
— Então, qual é a verdade, Bachel? Ou você só vai responder com mais
enigmas?
Bachel assumiu uma postura fria e cruel.
— A verdade é esta: os Cavaleiros tinham medo de nós, Du Eld Draumar. E
tinham medo de mim. Eles despacharam Galbatorix e seus companheiros para nos
procurar, em segredo, para que os Cavaleiros pudessem nos destruir mais tarde.
Que idade teria a bruxa?
— Se eles tinham tanto medo de você, por que mandariam Cavaleiros
destreinados ou inexperientes? Nenhum deles era um veterano. Você não espera que
eu acredite nessa história.
— O objetivo do grupo de Galbatorix era nos encontrar, não nos atacar —
respondeu Bachel. — Na verdade, eles nem sabiam ao certo quem estavam
buscando, uma vez que seus anciões não quiseram lhes contar a respeito dos
Draumar.
Murtagh diminuiu a velocidade dos passos enquanto dezenas de possibilidades
passavam por sua cabeça. Nada do que a bruxa disse era impossível, mas, se fosse
verdade, as implicações eram terríveis, pois significava que os Draumar eram
perigosos o suficiente para ameaçar até mesmo os Cavaleiros.
— Mas eles foram atacados.
Bachel assentiu bem rápido.
— Galbatorix voltou vagando pela Espinha, sozinho e meio enlouquecido. Ele
nos encontrou nesse estado, e foi assim que o acolhemos. A princípio, Galbatorix
desconfiou de nós, assim como você, e nos culpou pela morte de Jarnunvösk, mas
cuidei dele com toda a atenção necessária e, com o tempo, ele veio a entender que
eram os Cavaleiros os culpados por sua perda.
— Você o colocou contra eles — sussurrou Murtagh. — E depois o mandou de
volta para enfrentá-los.
Mais uma vez, Bachel assentiu.
— Foi um teste. Se os Cavaleiros fossem tão bons e compassivos quanto
afirmavam, teriam ficado com pena de Galbatorix e lhe dado outro dragão. Mas não
eram e não deram, e Galbatorix veio a entender a verdade a respeito deles.
O medo dominou Murtagh. Era difícil imaginar Galbatorix como algo menos que
a pessoa mais poderosa da terra, incluindo os elfos. Se Bachel tivesse feito o que
afirmava — pela potência de suas palavras, pela força de sua magia ou por alguma
combinação das duas coisas —, então, de alguma maneira, ela superara até o rei.
— Quer dizer que Galbatorix e os Renegados eram seus escravos? — perguntou,
com uma voz baixa.
— Em parte. Eles foram instrumentos úteis para um fim necessário.
Ele inclinou a cabeça.
— Que era?
— A erradicação dos Cavaleiros.
— Por que você buscaria tal coisa? Os dragões não são sagrados para o seu
povo?
Bachel fez um aceno de desdém com a mão.
— Os vermes menores não importam. O sangue deles está maculado pelos erros
de seus antepassados, e somente quando os Cavaleiros e seus dragões fossem
erradicados do mundo, uma nova era poderia começar.
Grieve se aproximou um pouco, perto demais para o gosto de Murtagh, que
recuou alguns passos.
— E Durza? — perguntou. — Sempre ouvi dizer que Galbatorix o conheceu na
Espinha, depois que Jarnunvösk morreu.
— Isso é verdade — respondeu Bachel e inclinou a cabeça. — O Espectro
compartilhava de nossos sonhos, e foi por causa deles que suas ambições cresceram
bem mais do que o normal para a laia dele.
— Ele morava aqui?
— Por muitos anos, incluindo o período em que Galbatorix e seu pai viveram
aqui, depois de fugir de Ilirea com o filhote Shruikan. — O brilho da Dauthdaert
iluminou o lado do rosto de Bachel com um tom macabro. — Seu rei e seu pai
sabiam a verdade das coisas, Murtagh, filho de Morzan. Você sempre esteve
destinado a seguir os passos deles. Não há outro caminho para você.
A mente de Murtagh girava enquanto analisava as revelações da bruxa. E, no
entanto, ele permaneceu convencido de uma verdade: Galbatorix nunca teria
dobrado o joelho para outra pessoa. Não depois que se voltou contra os Cavaleiros.
Se Galbatorix se aliou aos Draumar, foi apenas por uma questão de conveniência. O
rei não era nenhum fanático, nenhum crente genuíno. Na primeira oportunidade, ele
teria se voltado contra os Draumar e tentado destruí-los. Murtagh se lembrou do que
Bachel havia dito antes da caçada ao javali: que Galbatorix uma vez tentou
expurgar os assentamentos dos Draumar. Tentou e falhou.
À luz implacável do discernimento, ele percebeu. De alguma forma, os Draumar
resistiram ao rei. De alguma forma, ela resistiu. Bachel era um perigo até para
Galbatorix. Mas por quê, por quê, por quê, por quê?
— Eu não sou meu pai — retrucou ele em uma voz tensa. — Também não sou o
homem que já fui. É você que está enganada, bruxa. Não me curvarei a você.
— Que pena — falou Bachel, mas ela parecia despreocupada.
Murtagh ergueu Zar’roc e girou o cabo na mão, como se estivesse alheio a tudo e
a todos.
— Você não pode me vencer, Bachel. Nenhum de vocês pode.
A bruxa soltou uma risada louca e desenfreada que causou arrepios em Murtagh.
Bachel não tinha mais medo dele do que ele teria de um salteador comum, e a
palma da mão de Murtagh ficou escorregadia de suor no cabo envolto em arame de
Zar’roc. Eu deveria ter colocado luvas, pensou. Sem tirar os olhos de Bachel ou de
Grieve, ele desenganchou a capa e a enrolou no antebraço esquerdo, e ouviu a voz
de Tornac na cabeça dizendo: “Uma vestimenta na mão não dominante pode servir
para distrair, prender e, na ausência de um escudo, proteger.”
— Talvez eu não possa vencê-lo, Regicida — disse Bachel —, embora isso seria
uma competição interessante. No entanto, não sou eu que você deve superar. Sou
apenas um instrumento para um poder superior, e nem você, nem eu, nem o mais
sábio dos elfos ou o mais forte dos dragões ainda vivos pode prevalecer contra
aquilo a que sirvo.
Ela tocou o painel de cristal na tampa gradeada e ele se abriu, aparentemente por
vontade própria, liberando uma nuvem sufocante de vapor iluminada por uma luz
verde.
Murtagh não sabia qual perigo o vapor representava, mas sabia o suficiente para
ter medo. Ele teve meio segundo para inalar e a seguir a nuvem o envolveu,
escureceu a sala e fez os olhos dele arderem.
Um toque de pânico fez o pulso disparar. Ele não tinha proteções mágicas para
filtrar o ar. Um descuido. Murtagh se virou para correr, e a ponta brilhante da
Dauthdaert passou por sua orelha.
Ele se encolheu e usou Zar’roc para afastar o cabo da lança. Lançou-se na
direção de Bachel, mas a distância estava errada. Ela estava fora de alcance, rindo
em meio à névoa de enxofre.
Grieve foi para cima dele pelo flanco, balançando com eficiência implacável a
clava com pontas de ferro. O golpe o pegou em uma posição inconveniente e a arma
acertou seu braço direito. As proteções mágicas desviaram o golpe e a clava patinou
para longe em meio a redemoinhos de vapor.
Ao mesmo tempo, pensamentos cruéis acossaram a mente de Murtagh: Bachel e
Grieve estavam tentando derrubar as defesas dele e assumir o controle de sua
consciência. Os ataques mentais dos dois eram muito potentes, se igualando até ao
de Galbatorix. Mas Murtagh também não era fraco e resistiu dentro do seu interior,
seguro de quem e do que era.
Bachel estocou várias vezes com Niernen, rápida como um elfo. A Dauthdaert
estalava como uma língua mortal através do vapor. As bordas eram tão afiadas que
rasgavam a nuvem como uma gaze.
Apenas alguns segundos se passaram, mas os pulmões de Murtagh já estavam
pegando fogo. Ele sentiu como se fosse explodir. Precisava de ar, precisava
respirar...
Ele lançou um contra-ataque nas mentes de Bachel e Grieve, uma tentativa
desesperada de dominá-los com a força bruta de sua consciência. À distância, sentiu
Thorn adicionando força à dele e ganhou coragem ao perceber isso.
Murtagh deu um passo para trás e o calcanhar tropeçou na borda de uma lajota de
pedra no chão.
O estômago revirou quando ele caiu. Murtagh se contorceu com a intenção de se
apoiar em um braço, mas…
… foi lento demais. Ele caiu de lado e o impacto tirou o ar de seus pulmões.
Murtagh inalou sem querer, e o vapor pungente e sulfuroso preencheu o nariz, a
boca e a garganta.
Tossindo, ele se arrastou para trás, mantendo Zar’roc acima da cabeça para evitar
os golpes. Bachel e Grieve estavam avançando. Eram formas negras nas nuvens
grumosas, com contornos que se distorciam. Murtagh sentiu como se estivesse
caindo novamente e o corpo carecesse de substância, e escutou o som de um
movimento horrível, como um vento em uma planície desolada no fim de todas as
coisas.
Murtagh tentou se levantar, tentou gritar, tentou concentrar a determinação em
uma palavra ou feitiço, mas o mundo estava se dissolvendo em volta dele, e os
pensamentos estavam dispersos como sementes diante daquele vento uivante
horrível. Novamente ele viu o sol negro e o dragão se levantando, e um
pressentimento inexorável de perdição esmagou qualquer esperança sua.
O rosto de Bachel se materializou diante dele, com filetes de vapor envolvendo
as feições angulosas. Os olhos da bruxa brilhavam com êxtase febril, e os lábios
eram vermelho-rubi, como se pintados com sangue.
— Você não pode vencer, Regicida. Eu sirvo ao poder do sonho e Àquele cuja
mente conjura o sonho. Durma.
Murtagh lutou com todas as forças, mas a escuridão o tomou. Bachel, a câmara e
tudo o que ele conhecia desapareceram.
CAPÍTULO XIII

Pesadelo

S ol negro, dragão negro e uma eternidade de desespero. Ele estava caindo em um


vazio incompreensivelmente grande, e no fundo estava adormecida uma mente de
tamanho impossível, cujos pensamentos se moviam tão devagar quanto as correntes
dentro de um mar gelado e eram sombrios, frios e hostis. Ele sentiu uma presença
que o fez estremecer e se encolher até a insignificância, e todos os empenhos
humanos pareciam não ter mais importância do que as realizações de uma colônia
de formigas.
Ele procurou por Thorn, mas o vínculo que os dois compartilhavam
desaparecera. Ele estava sozinho, sem recursos, expedientes ou esperança de
resgate.
Então estava girando pelo espaço, e a malevolência o pressionava com força
esmagadora por todos os lados. Ele viu dragões rasgando sua carne, e os corpos
de seus inimigos espalhados pela terra mortificada, queimados com chamas,
carbonizados com fuligem. Ele viu a escuridão sob as montanhas e sentiu o frescor
da terra firme contra as laterais do corpo. Os vermes se alimentavam de seus
braços e suas pernas putrefatos enquanto o cheiro da morte o envolvia em seu
abraço sepulcral.
O vazio se escancarou. Em meio ao desespero e aos horrores estridentes, um
amanhecer sangrento se espalhou por uma terra de bronze, e ele se viu triunfante:
uma coroa de ouro na cabeça, Zar’roc na mão, Thorn ao lado e Bachel também... e
um mundo a seus pés, se curvando a ele como se curvara a seu pai e a Galbatorix.
Uma visão. Uma premonição. Uma promessa terrível.
Então ele estava na cela sob a cidadela em Urû’baen. Paredes de pedra
molhadas com infiltração de umidade, mofo preto crescendo na forma de mapas
com veios na argamassa em ruínas, terra misturada com excrementos e urina e
migalhas caídas de pedaços de pão velho. Os carcereiros batiam nas grades das
celas e zombavam dos prisioneiros — sem compaixão, ajuda ou gentileza da parte
deles. E, quando os carcereiros saíram, terrores surgiram rastejando das
rachaduras das paredes: aranhas gordas, claras e pesadas, com pernas peludas e
antenas compridas. Elas arrastaram os estômagos inchados sobre ele e o
morderam sem parar, e parecia que ele podia sentir o toque nervoso das patas com
garras. Os sons das aranhas se movendo o mantinham acordado à noite, e ele
nunca conseguia dormir bem.
Um ovo vermelho diante dele, da altura do joelho e com veios brancos. Atrás, a
sombra invisível DELE. O ovo rachou, e Murtagh observou, ansioso, quando um
pedaço da casca se soltou. Ele viu o filhote mais delicado, lindo e indefeso:
vermelho, berrando e faminto, faminto, faminto. Ele estendeu a mão para pegá-lo, e
focinho e mão se tocaram, e o contato foi elétrico...
Ele puxou as algemas, gritando, soluçando ao sentir o tormento do filhote do
outro lado da parede. ELE se curvou sobre Murtagh — a barba rente como uma
adaga preta, a boca fina curvada em um deleite raivoso — e disse:
— Jure a mim, Murtagh. Jure fidelidade a mim ou mandarei que arranquem
todas as escamas do corpo dele. Jure fidelidade a mim como seu pai fez antes de
você.
Ele estremeceu, se arrepiou e se enfureceu, mas não conseguiu resistir. A dor do
filhote — a dor de uma criatura tão perfeita e inocente, a dor que ele sentia como
se cada partícula de agonia fosse sua — foi demais. Sozinho, ele poderia ter
suportado. Mas não isso.
— Eu juro — soluçou. — Juro fidelidade a você.
O sorriso maligno se alargou.
— Na língua antiga, agora. Use as palavras que eu lhe dei.
E ele jurou conforme foi instruído, e as palavras eram cinzas na sua boca.
Mais tarde, vieram mais juramentos. E mais tarde ainda, ELE falou os nomes
verdadeiros dos dois, e Murtagh e Thorn estavam perdidos, perdidos, perdidos…

A consciência voltou, nebulosa como uma nuvem.


Murtagh pestanejou, alienado, sem saber onde estava e como havia chegado lá.
Ele se sentia cheio de lã: grosso, lento e pesado.
Sentou-se, confuso.
Havia uma passarela de mármore abaixo de Murtagh. Paredes curvas do túnel em
volta. E diante dele... uma mulher com cabelos soltos, uma lança brilhante em uma
das mãos e a luz do triunfo no rosto de olhos aquilinos. Ela era feroz, bonita e
terrível. Não havia misericórdia nem consolo em suas feições, apenas uma paixão
ardente que varreria qualquer coisa que bloqueasse o seu caminho.
Bachel. Lembrar o nome foi uma luta; falar era impossível.
A mulher se inclinou na direção dele.
— Levante-se, Regicida — ordenou ela com uma voz que vibrou com poder.
As palavras de Bachel eram irresistíveis. Atordoado, ele se levantou, ainda
incapaz de formar um som coerente.
Ela juntou os lábios e soprou nele. O vapor girou em direção a Murtagh e trouxe
um forte odor podre. Por alguma razão, ele parou de considerá-lo ofensivo. Ao
contrário, o vapor era inebriante, e ele sentia que nunca conseguiria respirar o
suficiente para satisfazê-lo. Cada tragada era uma alegria que fazia a cabeça girar e
o impedia de se concentrar em qualquer coisa por mais de um momento.
— Ande comigo, meu filho — disse Bachel.
As palavras dela ecoaram na mente de Murtagh, suaves como uma música, mas
fortes como ferro.
Ela se afastou através do vapor e ele a seguiu, mudo e perplexo.
Um homem acompanhava os dois com passos cambaleantes e longos. Murtagh
estudou o rosto esburacado e tentou identificá-lo, sem conseguir. O homem
carregava uma espada vermelha em uma das mãos e uma clava com ponta de ferro
na outra, e levava uma capa solta pendurada na dobra do braço.
Eles atravessaram uma câmara revestida de mármore e seguiram por um túnel de
ladrilhos e por uma caverna iluminada por limo com o chão quebrado. Ao chegarem
ao pé de um conjunto de degraus escavados na pedra, a mente de Murtagh começou
a se aguçar, embora ele continuasse confuso.
— Onde… onde está…
Bachel se virou e soprou nele novamente, um sopro suave de ar quente. Com ele
veio uma onda de vapor de um frasco de cristal que ela segurava na palma da mão.
Murtagh não havia notado aquilo antes.
Ao toque do vapor, todos os pensamentos o abandonaram.
— Feche a boca, Regicida. Não cai bem que você fique boquiaberto como um
peixe surpreso.
Ele obedeceu.
— Bom. Agora venha comigo, Regicida. Venha.
Os três subiram os degraus, e o brilho do lodo desapareceu atrás deles. No lugar,
luzes de tochas surgiram acima e à frente, e as chamas — que ainda não eram
visíveis — lançaram uma multidão de sombras nas paredes e na boca da caverna.
O último degrau passou sob os pés de Murtagh, que voltou a pisar em terreno
plano. Bachel o conduziu até um grande dragão vermelho agachado no caminho
escuro diante deles.
O dragão rosnou, a cauda se contorceu, e Murtagh sentiu um pouco da presença
do dragão na mente, mas não entendeu. As palavras e impressões impostas à
consciência dele eram uma tempestade sem sentido cheia de pedaços aleatórios de
destroços lançados pelo vento.
Um rugido irrompeu do dragão, forte o suficiente para que Murtagh sentisse a
vibração contra a bochecha.
— Silêncio agora — disse Bachel.
Ela ergueu o frasco e soprou na boca de cristal, e uma nuvem de vapor fluiu e
envolveu a cabeça do dragão.
A criatura reluzente se debateu e estremeceu, e então os olhos quase felinos se
reviraram e o corpanzil enorme ficou mole e imóvel.
Um temor amorfo tomou conta de Murtagh, mas ele não conseguiu reagir.
Depois de longos minutos... o dragão se mexeu novamente.
Bachel foi até ele e colocou a mão em seu focinho.
— Acorde, ó escravo do sonho.
As pálpebras do dragão se abriram com um estalo. O animal arqueou o pescoço e
balançou a cabeça, como se para espantar um enxame de moscas. A criatura olhou
para Murtagh, e Murtagh para ela, e nenhum deles falou, ambos igualmente
confusos.
Um conjunto de sete corvos desceu do céu enegrecido. Eles circundaram a
cabeça de Bachel formando juntos uma coroa, depois se acomodaram nos ombros e
braços dela. A bruxa sorriu para eles com carinho e acariciou as penas com o dorso
do dedo indicador enquanto os pássaros espiavam Murtagh e o dragão com olhos
claros.
Com os corvos como companheiros, Bachel avançou, saindo da caverna e
entrando no bosque.
— Venham — disse, e Murtagh e o dragão a seguiram.
Eles não tiveram escolha.
Os pinheiros de agulhas negras permaneciam como sentinelas silenciosas
vigiando a estranha procissão cambaleante que passava sob os ramos arqueados.
Murtagh ergueu os olhos para as copas das árvores e para o negrume aveludado do
céu nublado e tentou entender por que o mundo parecia tão desconexo.
Com passos ritmados, eles atravessaram a relva aparada e depois voltaram para o
pátio diante do templo. Fileiras de pessoas em robes cinza estavam ali paradas
como estátuas encapuzadas. Cada uma segurava uma tocha acesa, e os rostos
estavam voltados para baixo, de modo que apenas o topo dos capuzes era visível.
Bachel conduziu Murtagh e o dragão para o centro da congregação silenciosa, e
um quarteto de guerreiros se reuniu em torno dela, com lanças de prontidão.
A bruxa apontou para o dragão com um dedo em forma de garra.
— Prendam-no — ordenou, com a voz soando nítida no ar da noite, e jogou o
frasco aos pés do dragão.
O cristal quebrou com um som agudo. Uma nuvem de vapor se expandiu e se
reuniu ao redor da cabeça do dragão, se movendo como se fosse uma coisa viva. A
seguir, Bachel acenou para Murtagh.
— Comigo, Regicida — falou ela, e andou em direção à entrada do templo, com
os sete corvos ainda montados nos braços e ombros.
Ele queria se opor, mas não conseguia formar as palavras. Nenhum som saiu de
sua garganta.
A bruxa alta o conduziu para o interior do templo, através de corredores frios e
escuros, passando por janelas fechadas e portais vazios que pareciam órbitas sem
olhos. Eles desceram novamente, por uma escada em caracol, até chegarem a uma
série de celas com grades de ferro. Grieve abriu uma porta e empurrou Murtagh
para dentro.
— Agora, ó Cavaleiro, beba isso — ordenou Bachel.
Ela entregou a Murtagh outro frasco, menor, mais delicado. Dentro havia um
líquido perolado que brilhava com uma luminosidade sobrenatural.
Ele olhou com uma expressão parva para o frasco, incapaz de entender o que era
esperado. O chão e o teto pareciam girar. Murtagh balançou e quase caiu.
Bachel colocou um dedo no dorso da mão dele e empurrou na direção da boca. A
pele dela era fria contra a dele.
— Beba — ordenou novamente a bruxa, com uma voz que era um vento
passando por galhos sem folhas, galhos ou casca.
Ele bebeu. O líquido desceu queimando feito conhaque.
Grieve pegou o frasco e fechou a porta de ferro.
— Dê a ele sua capa para que fique aquecido — disse Bachel. — Ele é meu filho,
afinal, e quero que seja tratado como tal.
A peça de roupa pousou em cima de Murtagh como uma pétala pesada de lã
feltrada. Ele tirou a capa do rosto. As fibras roçaram na pele. Ele sentia cada uma, e
elas o dominaram com o influxo de sensações.
Bachel se curvou na direção dele por entre as barras de ferro.
— Durma, Regicida. Durma... e sonhe... sonhe... sonhe.
A voz desapareceu na distância, e a sombra engoliu o rosto da bruxa quando ele
caiu para trás — caiu e caiu e caiu, e todo o universo girou em volta dele. Murtagh
gritou, mas ninguém respondeu.

Ele estava parado na sacada real com vista para a arena, com Galbatorix atrás
dele, aproximando-se sem ser visto, pois Murtagh mantinha o olhar fixo no ringue
de areia — o mesmo ringue onde ele havia matado seu primeiro homem.
— Observe agora — disse o rei, e a voz continha a autoridade de um trovão.
Murtagh agarrou o parapeito da sacada e apertou até as unhas ficarem brancas.
Ele queria gritar e reclamar — queria pular o parapeito e cair dentro da arena —,
mas isso só pioraria a situação.
Thorn estava no centro da arena. Ele tinha apenas quatro dias de vida: ainda
fraco e incapaz de voar, embora não parasse de levantar as asas finas e diminutas e
empurrá-las para baixo em uma tentativa inútil de decolar. O dragão andava em
círculos, chilreando de preocupação, sem saber para onde ir ou o que fazer. Ele viu
Murtagh na sacada e soltou um gemido lamentável, e o homem sabia que seus
próprios sentimentos estavam afetando o filhote. Então, ele endureceu o coração e,
apesar da angústia que isso lhe causou, fechou a mente para o filhote lá embaixo.
— Ele é jovem demais — disse Murtagh entre os dentes cerrados.
— Nenhuma criatura é jovem demais — respondeu o rei. — Se ele quiser
sobreviver, deve aprender a lutar e se alimentar. Não há outro jeito.
As portas levadiças de ferro em ambos os lados da arena se ergueram e, de cada
abertura, um par de lobos cinzentos saltou para dentro do ringue. Eles rugiram e
rosnaram quando viram Thorn, e seus pelos se eriçaram.
Thorn recuou, mas não havia para onde correr ou se esconder.
— Por favor — disse Murtagh, rangendo os dentes.
— Não.
O rei estava tão perto que Murtagh sentia a respiração quente em sua orelha.
Os lobos cercaram Thorn. O dragão era mais comprido que eles, mas os lobos
tinham muito mais massa corporal do que o filhote.
Depois de algumas tentativas frustradas, os lobos começaram a avançar e
beliscar as asas e a cauda de Thorn.
O dragão se contorcia para enfrentar cada nova ameaça, mas não era rápido o
suficiente, e os lobos se moviam juntos com uma compreensão silenciosa. Em
segundos, gotas de sangue fumegante pingavam dos rasgos nas asas de Thorn, e ele
ergueu a pata esquerda do chão, incapaz de apoiar o peso nela.
Cada gota de sangue parecia o fim do mundo.
Murtagh sentiu como se estivesse prestes a explodir. Ele derrubou a barreira que
havia erguido na mente e disparou os pensamentos para a pequena, mas feroz,
consciência do dragão.
Thorn se encolheu, distraído, e os lobos se aproximaram.
Pule!, gritou Murtagh na mente do dragão, incluindo uma imagem do que ele
queria dizer.
Thorn hesitou, ainda indeciso, e um dos lobos mordeu a cauda dele. Com um
ganido, o dragão girou para enfrentar o agressor.
Isso foi um erro. Os outros lobos correram para ele, com as mandíbulas abertas
e presas espumando, prontas para se fechar nas patas delgadas e nas asas
delicadas de Thorn.
Murtagh forçou determinação na mente ainda não desenvolvida do dragão e
gritou novamente: Pule! Para seu alívio, Thorn saltou e usou as asas para ganhar
um pouco mais de altura até cair do outro lado da arena. Os muros eram altos
demais para ele transpor, o que significava que tinha que lutar.
Os lobos correram atrás dele, e Murtagh deu mais instruções ao dragão. Thorn
era, como todos os integrantes da espécie, um lutador nato, e levou apenas alguns
segundos para começar a entender e reagir.
Thorn saltou nas costas do lobo mais próximo e cravou os dentes no pescoço da
fera. Com um gesto forte e violento, arrancou um pedaço de couro e músculo —
liberando um jato de sangue — e então saltou para um segundo lobo.
O lobo se contorceu quase ao meio, tentando morder o dragão, mas Thorn
cravou as garras e mordeu a cabeça dele até que as patas da criatura se dobraram
e ela caiu no chão.
A queda derrubou Thorn de lado e, antes que Murtagh pudesse fazer qualquer
coisa para ajudar, os outros dois lobos avançaram e começaram a atacar o filhote
brutalmente.
— Não!
Por alguns segundos, o dragão mal esteve visível, perdido sob um nó confuso de
pelagem, patas e caudas cinzentas. Grunhidos, rosnados e ganidos de dor
encheram a arena, e jatos de sangue se espalharam pela areia batida. Murtagh
sentiu dores intensas vindo de Thorn e temeu que tudo estivesse perdido. Ele não
conseguia entender. Por que Galbatorix permitiria que sua mais nova conquista
morresse?
— Como pôde? — disse ele, mal conseguindo formar as palavras.
— Veja.
Os lobos se separaram. Um se arrastou para longe, com as patas traseiras
flácidas e inúteis, o pelo emaranhado de saliva, espuma e sangue. O outro rolou
para o lado, com as patas chutando o ar e a barriga rasgada e uma pilha de
intestinos cinzentos saindo. Os chutes diminuíram.
Entre os lobos estava Thorn. O pequeno dragão estava espancado e dilacerado
— as asas, retalhadas em vários lugares —, mas fogo ardia em seus olhos
brilhantes, e sangue escorria das presas afiadas como navalhas e das grandes
garras nas patas traseiras.
Com um pequeno rugido, Thorn correu atrás do lobo com as patas traseiras
paralisadas. Ele mordeu e segurou a nuca do lobo, e o animal estremeceu e ficou
mole, morto.
A seguir, Thorn se agachou sobre a presa e começou a dilacerar o cadáver, com
uma fome voraz.
— Viu só? — disse o rei. — Ele é um dragão, e os dragões foram feitos para
matar. É assim que eles são. É assim que você é. Se aprender isso agora, os
próximos dias serão muito mais fáceis para você, ó filho de Morzan. Agora vá até
ele e cure o seu dragão como quiser.
— Eu vou te matar por isso.
Uma risada grave atrás dele.
— Não, isso você não fará. Você sonhará em me matar, planejará me matar,
desejará minha morte de todo o coração, mas no final verá a retidão de meus
preceitos e perceberá que não há como se opor ao meu poder. Você é meu,
Murtagh, assim como Thorn, e me servirá como seu pai serviu antes de você.
Para isso, Murtagh não tinha resposta. Ele foi cuidar dos ferimentos de Thorn.
Essa também não foi a única ocasião que eles visitaram a arena. Cada vez que
Thorn ficava com fome, Galbatorix o forçava a lutar por comida, e Murtagh não
tinha escolha a não ser assistir, impotente, enquanto o jovem dragão matava e
matava novamente. Mesmo quando Thorn cresceu mais do que o maior dos ursos, o
rei ainda insistia em fazê-lo enfrentar a presa em um conflito mortal.
Murtagh viu as areias do ringue se encharcarem de sangue e, fora da cidadela, o
céu ficar vermelho. Em volta, ouviu os sons de prisioneiros gritando e se
lamentando em tormento, e se virou e correu sem parar por um labirinto de túneis
rochosos. Mas Murtagh sempre voltava ao cemitério da arena e, toda vez, via
Thorn curvado sobre as presas, sozinho, assustado, coberto de sangue e comendo,
faminto.
Assim como Thorn teve suas provações, Murtagh também teve as dele. E elas
foram tão longas, sangrentas e inescapáveis quanto.
E, debaixo disso tudo — subjacente às imagens e emoções avassaladoras
trazidas do passado indesejável —, estava o vazio escancarado, e dentro dele… um
núcleo de loucura que girava lentamente em torno de algum propósito
desconhecido, mas implacável.
E Murtagh chorou e gritou de medo.
CAPÍTULO XIV

Uvek

M urtagh acordou.
Não houve retorno lento à realidade. Nenhum aumento gradual da luminosidade,
nenhuma ampliação da consciência dos sentidos. Em um momento, nada. No
seguinte...
Estava sobre um piso de pedra cinza, a centímetros do nariz. A pedra estava
rachada e pequenas filigranas de musgo haviam se infiltrado nas fendas minúsculas
do material: um rendilhado de verde em uma superfície nua e austera. O cheiro de
musgo e pedra combinados era como o odor de um riacho de montanha ou então de
uma caverna profunda com um lago que nunca era banhado pelo sol.
O corpo de Murtagh estava frio. Ele estava deitado de bruços no chão duro, o
joelho esquerdo latejava e o braço direito havia ficado dormente após tanto tempo
dobrado sob o peso do corpo.
Quanto à mente... os pensamentos estavam mais claros, mais concentrados do
que antes, embora ele ainda se sentisse estranhamente tonto, e havia um gosto
enjoativo no fundo da garganta que Murtagh achou que deveria reconhecer...
Ele se lembrou das cavernas embaixo do vilarejo, do lodo brilhante e de ter
encontrado o poço onde Bachel e Grieve o confrontaram.
Ele se sobressaltou. Thorn!
Com o braço esquerdo, Murtagh se ergueu. A cabeça girou, e ele se apoiou no
chão e fechou os olhos até recuperar o equilíbrio e o braço direito parar de formigar.
A seguir, olhou em volta.
Estava em uma cela escura, não muito diferente daquela em que ficara confinado
sob Urû’baen. Havia um catre estreito de madeira em uma parede, com um balde
para fazer as necessidades ao lado. A capa estava embaixo dele, amassada e
enrugada. Não havia janelas, apenas três paredes de pedra nua e barras de ferro
onde deveria estar a quarta. (Murtagh notou que as barras haviam demandado uma
quantidade incomum de metal para um vilarejo tão pequeno.)
A única luz vinha de uma pequena lamparina perto do final do corredor em frente
à cela.
Do outro lado do corredor havia mais três celas, perdidas em sombras escuras.
Murtagh tentou entrar em contato com Thorn através da mente, mas não
encontrou o fio de conexão. Além disso — e tão preocupante quanto —, Murtagh
não conseguia sentir qualquer outra mente nas proximidades. Ou o vilarejo estava
deserto, ou de alguma forma os filamentos de pensamento de Murtagh estavam
sendo bloqueados... E o que era aquele gosto grudado em sua língua e sua
garganta? Ele quase conseguia reconhecê-lo.
O medo se instalou como chumbo frio nos ossos de Murtagh. Mais uma vez, ele e
Thorn se viam derrotados, assim como aconteceu com Galbatorix. E mais uma vez,
presos contra a vontade, pois ele não podia imaginar que Thorn estivesse livre para
lutar ou já o teria resgatado.
Mesmo nos piores pesadelos, Murtagh nunca imaginou que os dois se
encontrariam em uma situação semelhante novamente.
Tolo, pensou e se xingou. Tinha sido confiante em excesso e tanto ele quanto
Thorn estavam pagando o preço.
Haveria tempo suficiente para recriminações mais tarde. Por enquanto, ele tinha
que se concentrar na fuga.
Murtagh cerrou as mãos várias vezes em preparação. A seguir, agarrou o ferro
frio, concentrou a determinação e sussurrou:
— Kverst.
Nada aconteceu. Murtagh não conseguia romper a barreira na mente — o painel
fino e semelhante a vidro que uma consciência tinha que quebrar para manipular
diretamente a energia. Ele tentou de novo, mas não encontrou um ponto de apoio
para sua determinação. A barreira fugia do alcance, e os pensamentos dele
permaneciam muito desconcentrados para perfurá-la.
O medo se aprofundou até ficar mais parecido com desespero. Ele reconheceu
então o sabor que sentia: a droga chamada vorgethan, ou alguma composição dela.
Galbatorix dera a mesma coisa para ele em Urû’baen até forçar sua lealdade; Durza
tinha usado a droga em Eragon em Gil’ead, e a Du Vrangr Gata forçava os mágicos
que se recusassem a ingressar ou jurar lealdade à organização deles a consumi-la.
Pois a vorgethan tinha dois efeitos muito específicos: desacelerava os
movimentos do corpo e tornava quase impossível conjurar feitiços.
Murtagh balançou a cabeça, consternado e furioso consigo mesmo. Como fui tão
estúpido? Escapar seria muito mais difícil agora. Se conseguisse entrar em contato
com Thorn... O dragão deveria estar acorrentado e, além disso, a vorgethan também
tornava difícil tocar a mente dos outros.
— Seus sortilégios não vão funcionar, humano.
A voz era grave como rochas retumbantes e selvagem como um vento do norte.
Veio da cela oposta à dele, e deu um susto em Murtagh, que tropeçou, as mãos
erguidas como se fosse se defender de um ataque.
Uma forma se moveu nas sombras: uma massa descomunal, com ombros largos e
uma cabeça muito maior do que deveria ser...
Do breu completo emergiu um rosto surrado e cheio de cicatrizes, tão largo
quanto o peito de Murtagh. Pele cinza, olhos amarelos, dentes pontiagudos e
enormes chifres de carneiro que desciam em voltas afiadas, contornando as maçãs
do rosto largas...
Um Urgal!
A nuca de Murtagh se arrepiou enquanto o Urgal o estudava do outro lado do
corredor com seus olhos amarelos tão ferozes quanto os de um gato selvagem. A
criatura usava um gibão de couro de urso grosseiramente costurado, enfeitado com
pelo. Os braços eram musculosos, e a pele tinha cicatrizes e tatuagens com
desenhos familiares para Murtagh; ele os tinha visto nos estandartes nas aldeias de
Urgals sobre as quais havia sobrevoado com Thorn. Uma tanga de couro
completava o traje da criatura. Ele não usava calçados, e Murtagh viu as unhas
amarelas em forma de garra nos pés de sete dedos.
— Ela usou o Sopro em você — disse o Urgal.
A boca e o queixo se projetavam do resto do rosto o suficiente para lhe dar um
leve focinho, e o maxilar pesado mutilava as palavras de uma forma que Murtagh
achou difícil de entender. Mas conseguiu entender.
— Foi assim que ela capturou você, humano.
— O So... Como você conhece a nossa língua, Urgal?
Murtagh achou difícil encadear as palavras em frases coerentes. A mente ainda
estava estranha: os pensamentos continuavam patinando em direções diferentes, e o
corpo parecia leve e desequilibrado, sem substância.
Os olhos do Urgal se desviaram, como se ele estivesse olhando para algo
distante.
— Eu conheço muitas coisas. Qual é o seu nome, sem-chifres?
Murtagh conhecia Urgals o suficiente para ter noção de que tinha sido insultado
pela criatura — e gravemente. Se fosse um Urgal, ele imaginou que isso o
incomodaria, mas não era nem se incomodou.
Por um breve momento, Murtagh pensou em mentir, mas mentiras estavam além
de sua capacidade no momento. Mesmo assim, ele foi cauteloso.
— Nomes são coisas poderosas. Seria uma tolice… tolice compartilhá-lo sem
prudência.
Mais uma vez, o Urgal se concentrou nele. A criatura fez um humm fundo na
garganta e arranhou o emaranhado de cerdas negras que cobria o peito.
— Você diz a verdade, mas alguns nomes são mais perigosos que outros. Você
não tem um nome comum para falar com forasteiros?
— Tenho.
— Humm. Eu sou Voz do Vento e Escalador. Eu me sento em silêncio e ouço os
pássaros, os ursos e as palavras das árvores. Nenhuma tribo me possui, e eu mesmo
não possuo nenhuma. Meu nome comum é Uvek.
— Uvek... Meu nome comum é Murtagh.
Um clarão de fogo iluminou os olhos fundos do Urgal.
— Então é você quem compartilha seus pensamentos com o verme Thorn.
Notícias a seu respeito chegaram até os confins da Alagaësia. Ouvi dizer que lutou
contra os Urgralgra nas montanhas dos anões, e que depois lutou contra os
Urgralgra pelo matador de dragões Galbatorix. É verdade?
Parecia surreal para Murtagh que ele estivesse conversando com um Urgal — e
que Uvek estivesse fazendo as mesmas perguntas que ele recebia dos humanos no
reino de Nasuada.
— É verdade — disse ele, cansado. — Galbatorix nos capturou e nos obrigou a
lutar contra os Varden. Caso contrário, suponho que teria sido companheiro de
escudo de sua espécie quando eles se juntaram aos Varden.
— Humm. Você odeia os Urgralgra?
— Não — disse Murtagh enquanto se aproximava novamente das barras de ferro
e se encostava nelas, recebendo o apoio de bom grado. — Mas também não tenho
nenhum amor por sua espécie. Um de seus chefes quase me matou quando eu era
mais jovem.
Uvek arreganhou os dentes grandes no que Murtagh percebeu ser algo parecido
com um sorriso. Se não fosse pela experiência que tinha com Thorn, a expressão
teria sido aterrorizante e difícil, até impossível, de interpretar.
— Você diz a verdade. Eu gosto disso, humano. E aqui está você, então o chefe
não pode ter sido tão ruim. Você vivo, ele morto?
— Ele morto.
— Então tudo bem. O que mais importa?
Murtagh grunhiu. Ele agarrou as barras e sacudiu, mas elas não se mexeram. As
pontas estavam enfiadas em cavidades profundas perfuradas na pedra, e ele
suspeitou que alguma forma de magia fortalecia as barras, pois estavam livres de
ferrugem ou descoloração.
Tonnnnng. Uvek estalou um dedo contra as barras da cela dele, e o metal soou
como um sino.
— Eu não consigo quebrar este ferro, Homem-Murtagh. Você também não
consegue.
— Não... Você disse que ela, Bachel, usou o Sopro em mim?
A cabeça pesada de Uvek se moveu para cima e para baixo em um aceno.
— É assim que ela chama.
— O que é? Sopro de quê?
O Urgal deu de ombros.
— Ela não me contou, então não posso te contar.
Murtagh sentiu que estava franzindo a testa enquanto tentava pensar.
— Sortilégio... Como você sabe que não posso usar magia?
— Porque — disse Uvek ao se curvar para a frente com um olhar sério no rosto
bestial — eu também não posso. Eles nos dão venenos que roubam nossas forças,
nos tornam fracos e indefesos. Então eu fico aqui sentado como chukka esperando
por uma faca.
Murtagh achou difícil entender essa nova informação.
— Você... Você é um conjurador?
— Não. Eu sou xamã. Há diferença. Mas estou familiarizado com sortilégios e
conheço algumas palavras de poder. — Uvek puxou a ponta de um chifre,
pensativo. — Eles te deram mais veneno, eu acho. Ou a mesma quantidade, mas,
como você é menor, dói mais.
Um momento de silêncio se passou enquanto Murtagh estudava Uvek
novamente, reavaliando. Ele sabia que os Urgals tinham os próprios mágicos, mas
nunca tinha conhecido um. A aliança entre Galbatorix e a espécie deles já havia
sido rompida quando os Gêmeos o arrastaram de volta para Urû’baen.
Os joelhos de Murtagh ficaram subitamente fracos, e ele se abaixou até o chão,
usando as barras como apoio. Murtagh estendeu a mão para trás, puxou a capa e a
colocou sobre os ombros.
— Tem que haver uma maneira de escapar — murmurou.
Uvek riu, um som desagradável.
— Sou mais forte que você e tenho a cabeça mais clara, e ainda assim não
consigo escapar. A bruxa é inteligente e forte também.
Murtagh pestanejou. Ele não conseguia desanuviar os olhos. Tudo parecia um
pouco embaçado.
— Se eu conseguisse falar com Thorn...
— Se os desejos fossem reais, o mundo acabaria.
— O... o mundo pode estar acabando de qualquer maneira.
— Humm. Isso depende do que a bruxa quer fazer.
— Como você... como você foi... — A luz da lamparina pareceu diminuir, as
sombras estreitaram a visão de Murtagh, e tudo ficou escuro e cinza.
— Humano? Humano? Abra os olhos, Homem-Murtagh. Abra...
Os sonhos dessa vez foram mais fragmentados. Imagens passando rápido, cada uma
com uma carga de emoção forte o suficiente para derrubar um homem. Murtagh se
viu lançado das alturas do deleite frenético para as profundezas da morbidez
horrível, e vice-versa. Às vezes, ele achava que sentia Thorn, e os sonhos dos dois
pareciam se entrelaçar, e então os dois eram separados pelas correntes rodopiantes
de imaginações febris: marés estranhas levando a terras mais estranhas.
Durante todo o tempo, Murtagh tentou manter o senso de identidade, mas foi
difícil, pois ele não sabia o que era real e não tinha uma pedra-ímã para definir o
rumo. A experiência foi exaustiva e aterrorizante, ainda mais porque ele sentiu um
abismo escancarado subjacente a todas as visões — e, dentro desse abismo, uma
presença à espreita tão grande e malévola que Murtagh se encolheu com medo de
enlouquecer.
Em desespero, ele gritou na língua antiga, tentando acalmar as águas
tempestuosas da mente. Embora pudesse expressar as palavras de poder, não
conseguia dar a elas a força necessária para operar uma mudança nos estilhaços
irregulares de imagens desconexas.
Desamparado, ele não teve escolha a não ser enfrentar os altos e baixos das ondas
tempestuosas e torcer — torcer — que elas logo diminuíssem.

Um banho de água fria despertou Murtagh do torpor.


Ele cuspiu e inalou um esguicho de gotículas. Começou a tossir.
Um par de cultistas de robe branco estava de pé diante dele. Um segurava um
balde vazio, o outro, uma tigela de madeira e uma colher.
— O que…
Os homens o prenderam contra o chão duro, segurando seus braços e suas pernas.
Ele se debateu, mas não tinha forças. Eles o contiveram tão facilmente quanto uma
criança.
Um dos homens tirou um pequeno frasco de cristal de dentro da túnica. Murtagh
reconheceu que o objeto continha o mesmo vapor encantado que Bachel havia
usado nele. Não!
Ele lutou mais do que nunca quando o cultista destampou o frasco e soprou o
conteúdo em seu rosto. O vapor encheu as narinas de Murtagh e, em segundos, a
vontade de resistir se esvaiu, os braços e as pernas ficaram moles, e ele olhou para o
teto sem piscar.
— Mantenha-o de pé para que eu possa alimentá-lo — disse o outro cultista.
Murtagh se sentiu sendo colocado à força em uma posição sentada. A seguir, o
homem que o segurava puxou suas bochechas e forçou a boca a se abrir enquanto o
companheiro enfiava uma colher de gororoba. Murtagh engasgou. Uma grande
porção caiu na camisa e manchou a roupa.
O cultista franziu a testa e, após a próxima colherada, fechou o nariz de Murtagh
e pressionou a palma da mão sobre a boca do prisioneiro.
Enquanto a gororoba escorria garganta abaixo, Murtagh reconheceu o gosto
ardente de conhaque.
Quando a tigela ficou vazia, os cultistas o deixaram cair de lado e saíram da cela.
A porta se fechou com um estrondo retumbante.
Passos recuaram ao longe.
Do outro lado do corredor, a voz de Uvek soou:
— Homem-Murtagh? Consegue falar?
Murtagh emitiu um som incoerente e tentou rolar para o lado. O movimento
quase fez com que vomitasse. Antes que pudesse avançar mais, novos passos
ecoaram pela masmorra, dessa vez se aproximando.
O par de cultistas de robe branco voltou com as mãos vazias. Eles abriram a cela
e, apesar dos protestos murmurados de Murtagh, pegaram-no pelos braços e o
arrastaram pelo corredor.
CAPÍTULO XV

Obliteração

D uas viradas no corredor os levaram a uma porta de madeira. Ela se abriu para
uma sala de pedra com um braseiro cheio de carvão incandescente e uma mesa de
madeira com algemas de ferro.
A visão o atingiu com uma força chocante. Tinha uma semelhança horrível com o
Salão da Profetisa em que Galbatorix o forçou a torturar Nasuada. Cada parte do ser
de Murtagh se rebelou contra o que estava diante dele. Murtagh rejeitou, repudiou e
renegou tanto o passado quanto o futuro e, por um segundo, o fogo abrasador da
compreensão queimou os efeitos da vorgethan.
Não! Ele cravou os calcanhares no chão e se contorceu nas mãos dos captores em
uma tentativa inútil de se libertar. Desesperado, curvou-se e mordeu a mão de um
dos homens. O cultista gritou enquanto o sangue quente pulsava na boca de
Murtagh.
Os homens o jogaram contra a mesa, e ele viu estrelas quando a cabeça bateu na
madeira. Murtagh continuou a lutar mesmo enquanto os homens colocavam
algemas à força em seus pulsos e tornozelos.
— Não — rosnou Murtagh, quase inaudível.
Os cultistas o ignoraram. Os dois se retiraram para os cantos da sala e
permaneceram em posição de sentido, e um deles ficou segurando a mão enquanto
o sangue escorria das marcas de dentes deixadas em sua carne.
Mais uma vez, Murtagh tentou usar magia. Mais uma vez, falhou.
A porta se abriu e — com uma lufada de ar semelhante a uma batida de asas
gigantes — Bachel entrou. A bruxa usava um robe longo e preto de gola alta com
bordados dourados nos punhos. Na testa havia um adereço combinando, rígido e
chanfrado, feito de fios trançados e decorados com pérolas e crânios polidos de
corvos. O fundo escuro do adereço emoldurava o rosto anguloso, como em um
retrato cuidadosamente pintado. Mas, ao contrário da maioria dos retratos, uma
máscara cobria a metade superior do rosto de Bachel e parecia se fundir à pele,
conferindo-lhe um aspecto estranho e dracônico, como se a forma de um dragão
fosse de alguma maneira imposta sobre o corpo dela, talvez por encantamento ou
ilusão.
Era mais do que um simples truque. Murtagh podia sentir uma presença adicional
na sala, uma força sufocante e inumana da qual Bachel era apenas o receptáculo.
O efeito da máscara foi o mesmo que... que... Murtagh lutou para lembrar. Então
lhe ocorreu: Capitão Wren. Foi o mesmo que as máscaras que o capitão guardava no
gabinete, e pareceu a Murtagh que elas deviam ter vindo do mesmo lugar. Talvez
Wren tivesse dado a máscara aos Draumar. Ou talvez eles tivessem lhe dado suas
máscaras.
De qualquer maneira, Bachel assumiu uma aparência assustadora e
desproporcional, e cada som e movimento que ela fazia adquiriam uma realidade
aumentada, como se ele estivesse diante de um deus em carne e osso.
Por mais desorientadora e intimidadora que fosse a experiência, isso não foi o
pior. Não para ele. Pois a máscara o lembrava, mais do que tudo, de quando
Galbatorix lhe ordenou que usasse uma meia máscara enquanto interrogava
Nasuada. Murtagh nunca soube o motivo exato, mas suspeitava que o rei queria
forçar uma distância entre eles, para que ela não se consolasse com qualquer olhar
ou expressão de Murtagh, e para que ele pudesse assumir mais facilmente o papel
de torturador.
Murtagh odiava aquela máscara maldita.
— Bem-vindo, Regicida.
As palavras da bruxa ressoaram como se saíssem dos picos das montanhas: um
som sobrenatural que em nada se parecia com a voz de um humano ou de um elfo.
Bachel avançou em direção à mesa e Murtagh viu que ela usava joias nas mãos:
em cada dedo, uma garra de ônix presa a um engaste de ouro esculpido. As garras
eram afiadas e Murtagh se enrijeceu quando a bruxa as passou na curva de seu
ombro. Mesmo através da camisa, elas o arranharam.
— O que… você quer, bruxa? — perguntou ele, com um esforço de
determinação.
— Quero você. — Ela sorriu e, sob a máscara, os dentes demonstraram uma fome
selvagem.
— Nunca.
— Você vai se curvar a mim, Regicida, e vai servir a mim e, então, a quem eu
sirvo. — Os olhos de Bachel brilhavam com uma luz melíflua. — E será ricamente
recompensado por ajudar a forjar nosso futuro temível. Não mais um príncipe, mas
um rei apto a governar o mundo.
Era atordoante estar perto da figura da bruxa, enorme e semelhante ao de um
dragão, e Murtagh hesitou diante daquela força, vacilou e se sentiu diminuído.
— Não — disse ele, mas a palavra pareceu lamentavelmente fraca.
— Um rei — sussurrou Bachel, se inclinando a fim de que ele pudesse sentir sua
respiração no ouvido. — Um rei como o mundo precisa, e eu sua sacerdotisa, e
traremos vingança há muito esperada a esta terra corrompida.
Murtagh balançou a cabeça, tentando bloquear a voz insidiosa. Uma provação
estava próxima, ele sabia, e iria testá-lo ao máximo.
— Por quê?
A bruxa se empertigou, alta e distante como uma estátua de rosto cruel.
— Somos os devotos de Azlagûr, o Devorador. Azlagûr, o Primogênito. Azlagûr,
o Sonhador. Aquele que dorme e cuja mente adormecida tece a trama do mundo
desperto. Mas o adormecido está ficando inquieto, Regicida, e nós somos Seus
olhos, Seus ouvidos e Suas mãos. Com nossas ações, prepararemos o mundo para
Sua temida chegada. Aqueles que servem a Azlagûr, aqueles que O agradam, serão
elevados por Ele e Dele receberão poder. Poder como não existe no mundo desde os
tempos antigos, quando a magia era incontrolável e ilimitada e o Povo Pardo ainda
era composto por primitivos abrindo caminho para fora da lama.
Com uma expressão terrível, ela se inclinou novamente sobre Murtagh, que
pensou ver chamas saltando dos olhos dela e sangue pingando das garras de ônix.
— Junte-se a mim, Regicida. Junte-se a mim por vontade própria. Tudo o que
você deseja será seu se você tiver fé.
— Nunca — disse ele, arfando.
O ar parecia quente, e Murtagh tinha dificuldade para respirar. Ele sentiu como se
estivesse sufocando.
— Que assim seja. Terei você de qualquer maneira, pois sou o avatar de Azlagûr
e Ele não pode ser negado.
E Bachel raspou as garras no peito dele. Faíscas voaram das pontas afiadas de
ônix quando atingiram as proteções mágicas de Murtagh, que ficou fraco quando os
feitiços consumiram sua força na tentativa de defendê-lo.
A expressão dela ficou sisuda, e o rosto encantado era assustador de se ver. Com
um movimento calculado, Bachel colocou as garras em um círculo sobre o coração
de Murtagh e pressionou para baixo com força cada vez maior. As pontas das garras
começaram a brilhar em vermelho, e Murtagh ficou tonto e sem fôlego.
As proteções mágicas poderiam tê-lo defendido para sempre... se ele tivesse
energia para alimentá-las. Mas não tinha. Sustentar os feitiços era como tentar
segurar uma pedra enorme com as mãos estendidas: o peso era esmagador e, em um
instante — para evitar matá-lo —, as proteções mágicas falharam. As garras de
Bachel, então, afundaram no peito de Murtagh.
Ele se enrijeceu e gritou.
— Como... — Murtagh conseguiu falar, ofegante.
— O poder de Azlagûr é maior do que você pode imaginar, Regicida. Ele não
será negado.
E a mente da bruxa atacou a de Murtagh com uma torrente de pensamentos
sombrios, rápidos e ágeis.
Ele não tinha forças para mantê-la afastada. Não naquele momento. Então tentou
uma abordagem diferente, mais perigosa, mas não menos eficaz. Murtagh se curvou
como um junco ao vento e permitiu que a consciência de Bachel fluísse em torno da
dele. Onde e quando ela tentava agarrar um dos pensamentos de Murtagh, ele
escorregava para o lado e voltava a atenção para outro lugar. A distração se tornou
uma defesa, e, com ela, Murtagh frustrou Bachel repetidas vezes.
A bruxa não desistiu. Ela possuía recursos que ele não tinha, e toda vez que um
pensamento ou memória passava pela mente de Murtagh, Bachel aprendia um
pouco mais a respeito dele.
— Ahhh!
As garras dela cortaram listras sangrentas no peito de Murtagh, que arqueou as
costas. Ele puxou as algemas de ferro e tentou quebrá-las, mas eram muito grossas e
estavam bem presas.
A dor concentrou a mente de Murtagh, e a bruxa usou isso para fixar a
consciência dele, para segurá-la e encurralá-la enquanto tentava subjugá-lo à sua
vontade. Mas, mesmo drogado, Murtagh conhecia aquele jogo. Ele havia jogado
com Galbatorix mais vezes do que gostaria de lembrar e sabia como se curvar e
desviar para escapar das garras de Bachel.
Nasuada também havia jogado o jogo com ele durante o tempo que passou no
Salão da Profetisa. E ela — feroz, orgulhosa, forte — nunca cedeu. O pensamento
deu a Murtagh uma pequena dose de esperança.
Ainda assim, escapar do controle mental da bruxa era um trabalho exaustivo,
semelhante em esforço a uma luta corporal, e mais difícil por causa das feridas que
Bachel infligiu a ele.
— Eu não tenho nenhum desejo de desfigurar você, Regicida. — A bruxa
sacudiu uma gota de sangue das garras de ônix, que brilhou à luz do braseiro
enquanto caía, uma esfera perfeitamente reluzente do vermelhão mais intenso. —
Mas é preciso muito pouco para causar agonias que deixariam louco até mesmo um
elfo.
Bachel pressionou a ponta da garra em um dos arranhões no peito dele,
encontrando um nervo, e um fogo elétrico disparou pelo torso e pescoço de
Murtagh.
Ele lutou para manter o rosto imóvel. Quanto mais caretas fazia, pior parecia a
dor. Quando, após uma eternidade de sofrimento, Bachel levantou a garra, ele falou,
ofegante:
— Você... quer... me deixar... louco?
— Se louco é o que posso ter, então louco é o que terei. Você é uma ferramenta
útil de qualquer maneira, Regicida, mas minha preferência seria tê-lo como você é,
inteiro, bonito e apto para lutar contra um exército. — Ela riu, e foi um som
desconcertante que emanou da sombra dracônica que envolvia a bruxa. — Mas
acho que você seria um louco muito divertido. A escolha é sua, Regicida. Junte-se
aos Draumar. Junte-se a mim e sirva nosso terrível mestre Azlagûr como fizeram
aqueles que vieram antes de nós.
— Nunca.
— Tsc-tsc-tsc. Tão repetitivo. Tão chato. Você deve pensar em respostas mais
criativas, meu filho rebelde. Não me force a castigá-lo, embora eu o castigue para o
seu próprio bem.
Ela levantou a mão com garras novamente e Murtagh se forçou a dizer, o mais
rápido que pôde:
— Az... Azlagûr fala com você?
Um sorriso secreto se formou no rosto de Bachel, que deteve as garras no ar.
— De certa forma. Ele fala com todos nós, Regicida, até mesmo com você, se
tiver ouvidos e olhos para entender. Quando você sonha, esses são os sonhos de
Azlagûr, e através deles entendemos Sua vontade. Como a sacerdotisa e como a
Oradora Dele, Azlagûr me envia sonhos de forma particular, e eu os compartilho
com meu povo e interpreto para eles os sonhos que eles têm. É assim que
recebemos a sabedoria de Azlagûr.
— Com que finalidade?
— Que ocasionemos a destruição desta era e o início de outra. Que refaçamos o
mundo por meio de fogo e sangue, e que realizemos profecias e planos que
abrangem milênios. Você não entende, Regicida? Nós somos os instrumentos do
Destino. Nós fomos escolhidos para definir o padrão da história e, por meio dela,
teremos uma recompensa além da imaginação mortal.
As garras de Bachel desceram novamente e Murtagh mais uma vez deu voz à sua
dor.
No fundo da mente, ele sentiu uma agonia igual vindo de Thorn, e o sentimento
aumentou o tormento de Murtagh, pois não podia ajudar aquele que lhe era mais
importante.
CAPÍTULO XVI

Sonhando acordado

A bruxa atormentou Murtagh por horas. Bachel pedia repetidamente para ele
ceder ou se submeter.
Murtagh sempre recusava.
Mas ele deu à bruxa todo o resto que ela exigia. Quando ela ordenou que
Murtagh concordasse, ele concordou. Quando mandou que ele virasse a cabeça ou
dissesse que a causa dos Varden estava errada e equivocada, Murtagh obedeceu. Era
um truque que ele havia aprendido em Urû’baen. Se Murtagh concordasse, isso lhe
daria um pequeno alívio, físico e mental. Se fosse cooperativo, isso apaziguaria
Bachel até certo ponto. Mas, quanto à questão central, ele nunca cedeu e, tanto
quanto pôde, desviou, dissimulou e tentou ofuscar os esforços da bruxa.
Se não tivesse sido drogado, Murtagh teria tentado dominar a mente de Bachel e
torná-la sua própria serva. Do jeito que estava, ele só podia suportar.
A bruxa não estava interessada somente na obediência dele. Ela questionou
Murtagh a respeito de Eragon e Saphira, Arya e Fírnen, e, especificamente, sobre o
estado do reino de Nasuada, incluindo a dispersão dos mágicos da Du Vrangr Gata,
a localização dos exércitos e muitas outras informações úteis de inteligência. A
respeito de muito do que ela perguntou, Murtagh não tinha conhecimento especial,
embora Bachel nem sempre acreditasse nele e insistisse duramente em todos os
pontos.
As perguntas lhe mostraram duas coisas. A primeira foi que Bachel parecia
pensar que um ataque em grande escala ao reino de Nasuada não era apenas
desejável, mas uma possibilidade real. Com que exército? E, segundo, que Bachel e
os Draumar estavam muito mais bem informados do que a quantidade de cultistas
ou a localização pareciam indicar. Quantos simpatizantes eles têm?
Tais pensamentos coerentes apareciam apenas nas breves pausas entre as
indagações de Bachel. Na maioria das vezes, Murtagh vagava em meio a uma
confusão mental de dor, incapaz de entender qualquer coisa além da necessidade de
escapar das garras da bruxa.
E... ele estava assustado.
O medo não fez com que se acovardasse, porém quanto mais via o rosto
distorcido de Bachel, quanto mais sentia as garras de ponta vermelha, e quanto mais
a consciência intrusa da bruxa puxava as partes mais íntimas de sua personalidade,
maior o terror dele se tornava.
Murtagh tinha feito muitas coisas difíceis na vida, muitas coisas vergonhosas e
sanguinárias, algumas impostas, algumas nascidas de sua própria fraqueza, mas ali,
naquele momento, estava o maior desafio que já enfrentara. Porque, ao contrário de
como fora com Galbatorix, Murtagh não podia — não queria — se permitir ceder.
Ele sabia quais tormentos existiam naquele caminho, e eram piores do que qualquer
dor física.
Ou disso ele se convenceu. Mas, por esse motivo, não havia fim à vista, e isso
tornava difícil manter a esperança.
Ele tentou não pensar, apenas fazer o que tinha que ser feito na expectativa
infundada, e talvez inútil, de que, em algum momento, Bachel se cansaria dele e
direcionaria a crueldade para outro lugar.
O rosto de Nasuada muitas vezes enchia a mente dele, com uma expressão leve,
às vezes de empatia, em outras contorcida de dor e medo. E isso forçou Murtagh a
se lembrar do que fez com ela. O sofrimento que ele infligiu não foi menor do que o
que agora suportava, e reconhecer isso fez seu estômago revirar. Havia uma parte
dele que acolheu o tormento como penitência por seus crimes. Mas não importava o
tamanho da agonia, os erros do passado continuavam sendo uma prova de seus
fracassos.
Bachel notou, pois, enquanto ele lutava com as lembranças, aproximou o rosto do
dele e o estudou com um humor frio.
— O que sua rainha pensaria de você agora? — murmurou a bruxa. — Será que
teria pena de você? Não, acho que ela ficaria enojada com sua fraqueza, meu
pequeno príncipe indefeso. É uma fraqueza fatal, da qual você nunca se recuperará,
a menos que jure fidelidade a mim e a Azlagûr.
— … Não.
As garras de Bachel desceram, e ele gritou novamente.
Depois de um tempo interminável, a bruxa ficou entediada. Ela tirou outro frasco
de cristal do corpete, destampou e soprou uma nova nuvem de vapor sobre o rosto
dele.
Murtagh prendeu a respiração, mas, como aconteceu com Thorn, a nuvem se
agarrou a ele e, quando finalmente seus pulmões cederam, o fedor pútrido de
enxofre entupiu nariz e boca. A sala se inclinou e tudo o que era sólido pareceu sem
substância.
A não ser Bachel. A forma dele manteve sua substância. O rosto da bruxa ficou
incrivelmente grande quando ela se inclinou sobre ele.
— Vamos tentar novamente amanhã, Regicida. Deixe esse conhecimento
preencher seus pensamentos. Enquanto isso, que o Sopro de Azlagûr lhe traga
sabedoria através do sonho, e sonhando você encontrará seu caminho.
O rosto de Bachel se afastou.
— Leve-o para o poço antes de devolvê-lo à câmara. O cheiro dele me ofende.
— Como quiser, Oradora — respondeu um homem fora de vista.
A bruxa saiu da sala e mãos invisíveis removeram as algemas dos pulsos e
tornozelos de Murtagh. Ele foi arrastado pela construção e, por um tempo, tudo o
que percebeu foram as batidas das pernas no chão de pedra, a tensão nos braços e
nos ombros, e o balanço da cabeça, que o deixou enjoado.
Sangue escorria de seu corpo. Menos do que ele temia, mas qualquer quantidade
era indesejável.
Água gelada foi despejada em sua nuca. O choque desanuviou um pouco a mente
de Murtagh. Ele arfou e olhou em volta: estava sentado ao lado do poço do lado de
fora do templo, e os dois cultistas jogavam baldes de água sobre ele. Depois, o
arrastaram até o pátio do templo.
Thorn estava lá. Correntes de ferro pesadas prendiam o dragão às lajotas, o
focinho estava envolto em tiras grossas de couro e as asas, presas às laterais do
corpo por voltas de corda. Sangue semelhante a alcatrão cobria as membranas
rugosas.
O coração de Murtagh deu um salto. Ele sentiu como se houvesse palavras que
precisavam ser ditas e ações que precisavam ser tomadas, mas não conseguia se
mexer.
Murtagh olhou para Thorn, e Thorn para ele — os olhos de rubi do dragão
estavam opacos, derrotados, esmaecidos por drogas ou magia ou alguma
combinação dos dois. Havia uma tristeza na expressão de Thorn que atingiu o
âmago de Murtagh, mesmo nos extremos da própria angústia, e ele lutou para se
livrar das mãos dos captores, mas não conseguiu fazer mais do que se debater
fracamente.
— Deixe disso — disse um dos cultistas.
Do outro lado do pátio, Alín apareceu — de robe branco e rosto pálido — entre
as colunas do templo. Ela pareceu abalada diante da visão dele e de Thorn, embora
Murtagh não conseguisse entender por quê. Por um instante, ele pensou que Alín
estivesse prestes a falar, mas então os captores se viraram e o arrastaram em direção
à pequena porta lateral do templo, e o momento passou.
Murtagh caiu de lado com um impacto doloroso e a porta da cela se fechou atrás
dele com um estrondo.
Ficou deitado em cima da capa amassada por um longo tempo, tentando juntar os
pedaços de si mesmo o suficiente para dar sentido ao mundo.
Apesar dos esforços em contrário, os olhos dele se fecharam...
Ele estava sentado em um trono... aquele trono: a mesma monstruosidade negra
e dourada de onde Galbatorix recebia a corte. Thorn estava à esquerda enquanto
Eragon ajoelhava-se no piso de mármore encerado diante dos dois, com a cabeça
baixa para esconder o rosto e com o mesmo cabelo de mechas castanhas
desgrenhadas de que Murtagh se lembrava. Havia marcas vermelhas em volta dos
pulsos dele e — com a certeza encontrada apenas em sonhos — Murtagh sabia que
o havia subjugado e que o outro estava sob seu comando, assim como ele mesmo
estivera sob o comando de Galbatorix.
Atrás de Eragon estavam as formas ajoelhadas de Arya, do rei anão Orik e, por
último... de Nasuada. Assim como Eragon, os rostos de todos estavam virados para
o chão. De todos, exceto Nasuada. Ela olhou para Murtagh com uma expressão de
devoção amedrontada, e ele soube que ela também estava sob seu comando e que,
ainda mais do que os outros, era uma escrava da palavra dele.
Mais adiante ainda havia filas intermináveis de soldados: humanos em cotas de
malha e gibões acolchoados; elfos vestidos nas cores da floresta, com arcos
elegantes nas mãos e espadas longas e graciosas nos quadris; anões com martelos,
piques e batalhões de lanceiros montados em Feldûnost — as altivas cabras
montesas das Montanhas Beor —, e Urgals também, com as armas toscas, alguns
da altura de um homem, e outros com mais ou menos três metros: os Kull, enormes,
musculosos, aterrorizantes.
E Murtagh sabia que cada soldado lhe devia fidelidade, que poderia mandá-los
para o campo de batalha e que morreriam por ele.
Sentiu que o poder era dele e acolheu a sensação de controle, pois com isso ele
poderia fazer o que era certo — o que era necessário — e, mais importante,
poderia manter Thorn e a si mesmo seguros. Ninguém poderia comandá-los ou
escravizá-los se eles governassem o reino. Tão simples. Tão direto. Por que ele
nunca havia pensado nisso antes? Não teria mais que debater a questão de se
manter ou não afastado dos acontecimentos da Alagaësia. Ao assumir seu lugar de
direito no trono, Murtagh poderia contornar o problema e todos no reino poderiam
se tornar parte dele, em vez de Murtagh se tornar parte deles.
Murtagh sorriu ao contemplar seu domínio. Pela primeira vez na vida, sentiu
como se tivesse encontrado seu lugar.
No final da câmara de audiências incrivelmente grande, uma janela de três
folhas dava vista para o oeste e, enquadrada nela, um sol negro descia...

— Homem-Murtagh... Está me ouvindo? Acorde agora, humano... Humano?


O arco escuro do teto de pedra foi a primeira coisa que Murtagh viu. Ele
pestanejou e se mexeu. Cada músculo do corpo estava dolorido e tenso. Murtagh
havia puxado os grilhões com todas as forças e estava pagando o preço por isso
agora. O dia seguinte seria pior.
Sangue seco se esfarelou no peito quando ele rolou de joelhos. A mente ainda
estava turva; a inteligência, embotada; e a visão, embaçada.
Do outro lado do corredor, viu Uvek, agachado perto da porta da própria cela,
com as pontas dos chifres tocando as barras. Era difícil dizer, mas Murtagh achou
que o Urgal parecia, se não preocupado, pelo menos com vontade de se compadecer
de um companheiro de prisão.
— Consegue falar, Homem-Murtagh?
Ele demorou mais do que gostaria para emitir um som.
— Eu...
Passos se aproximando ecoaram nas paredes. O pavor tomou conta de Murtagh,
que recuou da porta da cela. Em frente a ele, Uvek recuou silenciosamente até ficar
escondido nas sombras.
Murtagh não tinha se movido mais do que alguns centímetros até Alín atravessar
o corredor e parar diante de sua cela. Ela o encarou, as bochechas tão pálidas quanto
o robe. As sobrancelhas se estreitaram e os lábios se contraíram, e a jovem tremeu
levemente, como se tomada por uma paixão poderosa.
Ela se ajoelhou e colocou uma bandeja de madeira na cela de Murtagh, com um
pequeno jarro com o que cheirava a vinho aguado. A tigela continha pão, queijo
duro e várias tiras de bergenhed defumado.
Alín se levantou e arrumou a frente do robe. Murtagh notou que as mãos dela
tremiam. A jovem se virou e saiu correndo da cela dele, e o robe esvoaçou como
uma flâmula ao vento.
— Você tem uma amiga, Homem-Murtagh. — A voz estrondosa de Uvek
precedeu seu dono enquanto o Urgal emergia das sombras.
— … Talvez.
A fome repentina — voraz, ardente, insuportável — fez Murtagh correr adiante
para dilacerar o pão e o queijo. As próprias mãos não estavam mais firmes que as de
Alín. Amiga ou não, o sabor inconfundível de conhaque maculava a comida que ela
havia trazido — a temida droga vorgethan. Por um momento, Murtagh pensou em
abrir mão da comida, mas estava desesperadamente fraco. Se não comesse, sabia
que a determinação o abandonaria por completo. Para sobreviver, ele teve que
engolir à força o próprio veneno que o mantinha aprisionado.
— A bruxa maltratou você — disse Uvek.
Não foi uma pergunta. Olhando para ele novamente, Murtagh viu uma bondade
na expressão do Urgal que nunca havia encontrado naquela raça antes. Uma
imagem lhe ocorreu — tão nítida e forte que, por um momento, ele achou que
estivesse olhando para outro tempo e lugar —, uma imagem de Uvek sentado no
cume de uma montanha alta, perto de um pinheiro desgrenhado e soprado pelo
vento... curvado sobre uma única flor azul, clara e delicada, com uma expressão
pensativa.
Murtagh balançou a cabeça. O Sopro e a vorgethan estavam tornando a realidade
fina como uma cortina gasta, como se ele fosse capaz de espiar por um buraco
puído e ver o que de outra forma estaria escondido.
— O que ela quer de você, Homem-Murtagh?
— Ela... — Ele tossiu, e flocos de sangue seco caíram no chão. — Ela quer que
eu jure fidelidade a ela e me junte aos Draumar.
Uvek inclinou a cabeça. A ponta de um chifre bateu nas barras da cela.
— Ela quer o mesmo de mim.
— Mas ela não tortura você.
— Não desde que capturaram você. Creio que ela o ache mais interessante.
— Sorte a minha.
Murtagh bebeu bastante do vinho aguado e depois começou a comer o bergenhed
defumado. Enquanto mastigava, ele estudou Uvek.
— Por que Bachel quer a sua fidelidade?
— Os Draumar buscam fidelidade de todos que cruzam o caminho deles.
Murtagh assentiu. Ele estava tendo problemas para encontrar as palavras de que
precisava.
— Sim, mas… Não. Por que… por que você?
— Porque eles conseguiram me encontrar.
Isso ainda não era o que Murtagh queria saber, mas, como estava com dificuldade
em se expressar adequadamente, resmungou e se concentrou em comer.
Quando a comida acabou, ele se recostou e descansou a cabeça na pedra fria da
cela, fechando os olhos enquanto tentava fortalecer o cordão fino e quase
indetectável que o unia a Thorn. Uvek assistiu o tempo todo, mas Murtagh não se
importou. Havia muito ferro entre eles e, além disso, não se sentia ameaçado por
Uvek... embora tivesse certeza de que o Urgal era bastante capaz de muita violência
quando a situação pedia.
Teve pouco sucesso com Thorn. Tudo o que ele conseguiu sentir foram emoções
indistintas, nenhuma agradável. Pensamentos completos e palavras ainda se
mostraram impossíveis de trocar. De qualquer forma, a mente de Murtagh
continuou vagando, e ele percebeu que ganhava e perdia os sentidos, como se o
mundo fosse dividido em pequenas seções de consciência, breves lampejos de
lucidez e o resto fosse loucura ou, pior, inexistência.
Ainda assim, a mente continuava voltando para Nasuada e para a intimidade
terrível do tempo que passaram juntos no Salão da Profetisa. A vergonha de
Murtagh cresceu e, com ela, o respeito dele por Nasuada. O fato de ela ter resistido
a Galbatorix e aguentado por tanto tempo parecia milagroso para Murtagh naquele
momento. Não sabia como ela tinha conseguido. Nem como havia se recuperado.
Murtagh temia não ser tão forte.
Ele estava quase dormindo — ou perdido em um estado de fuga que se
assemelhava ao sono.
— Homem-Murtagh, por que você e Dragão-Thorn vieram para Nal Gorgoth?
— Queria... descobrir... quem Bachel... pedra... de enxofre.
— Como os Draumar pegaram vocês? Foi quando a terra tremeu?
Era muito difícil explicar por completo.
— Não... me descuidei... depois do festim...
Ele ouviu Uvek se remexer e o Urgal soltou um som raivoso.
— Festim! Há quanto tempo você está em Nal Gorgoth, Homem-Murtagh?
— Dois... dois dias.
— Por que não matou os Draumar quando podia?
Murtagh se forçou a abrir os olhos.
— … estava curioso. Importante saber antes de agir.
As sobrancelhas grossas e pronunciadas de Uvek se descontraíram, e a cabeça
pesada se moveu para cima e para baixo.
— Ah. Isso é prudente, Homem-Murtagh. Mas agora você está preso como Uvek. Teria sido
melhor agir antes, teria evitado muita dor, muito...
A voz do Urgal desapareceu no esquecimento quando os olhos de Murtagh
rolaram para trás, e ele caiu da cela, lá embaixo, lá embaixo, lá embaixo, através da
escuridão sem fim, dentro das visões cruéis dos sonhos prometidos.
CAPÍTULO XVII

Fragmentos

O s cultistas voltaram mais uma vez.


A porta da cela se abriu e Murtagh acordou sobressaltado, confuso. Parecia ser o
meio da noite, embora não houvesse como saber no espaço sem janelas. Noite ou
dia, o tempo havia perdido todo o sentido e, por alguns segundos dispersos, o
Cavaleiro não fez ideia de onde estava nem do que estava acontecendo.
Braços o ergueram do chão e Murtagh começou a protestar. Os dois homens de
robe branco o arrastaram para fora da cela.
Os cultistas o carregaram de volta para a sala de tortura. Iluminadas por carvão,
manchadas de sangue, o fedor tenso de terror se agarrava às pedras esculpidas com
persistência obstinada e cruel. Bachel esperava por ele, com o mesmo adereço de
cabeça e a máscara de aparência de dragão da outra vez. Era uma figura alta e
assustadora, com um corvo empoleirado em cada ombro.
Murtagh lutou sem sucesso ao ser acorrentado pelos cultistas à mesa de laje
bruta. Murmurando baixinho, Bachel se curvou sobre ele, e o som da agonia de
Murtagh ecoou nas paredes indiferentes.

Havia uma monotonia na dor. Cada ferida trazia um novo desconforto — imediato,
insistente e exigindo a atenção de Murtagh — e, no entanto, possuía uma mesmice
mortal que se confundia em uma única mancha de agonia. O caráter repetitivo era
quase tão insuportável quanto os próprios ferimentos. O processo era tão
sordidamente previsível. Ele odiava saber a direção das cruéis intenções de Bachel e
como os cuidados não tão ternos assim da bruxa eram eficazes. Ter experiência
naquilo não trazia proteção. Na verdade, isso tornava as provações mais difíceis de
suportar, e a confusão contínua que emaranhava os pensamentos de Murtagh apenas
aumentava a tensão desumana de cada instante eterno.
Mesmo assim, ele ainda conseguiu escapar e confundir os ataques mentais de
Bachel. A bruxa ficou frustrada e usou o Sopro mais uma vez. O tempo se quebrou
em volta dele, que não conseguiu ordenar o acontecimento dos eventos. Murtagh
parecia pular entre os momentos, sem amarras a um presente constante, um
náufrago jogado de um momento fragmentado para o seguinte, como um pedaço de
destroço indo de onda em onda.
Ele se apegou à única coisa de que tinha certeza: o próprio senso de identidade.
Isso ele sabia. O cerne da pessoa que ele era — a verdade de seu nome na língua
antiga — lhe deu forças mesmo nas profundezas do desespero.

A dor não era mais só dele. Murtagh sentia tormentos adicionais vindos de Thorn,
que aumentavam sua angústia. Ele xingou Bachel, mas a bruxa apenas riu como
sempre fazia e mais uma vez exigiu a fidelidade de Murtagh.
Foi um exercício inútil da parte dela, mas Murtagh sentiu lágrimas no rosto — a
primeira vez que chorava por causa daqueles suplícios. Chorava não por si, mas por
Thorn. O dragão não merecia a dor, nunca mereceu tal tratamento. Eu falhei,
pensou o Cavaleiro, e essa constatação foi esmagadora. Mais uma vez, ele foi
incapaz de proteger o amigo. Mais uma vez, outro sofreu por causa de seus erros.
Murtagh gostaria de poder pedir ajuda a Eragon. Teria engolido o orgulho de bom
grado se isso significasse que Eragon e Saphira viriam voando para resgatá-los. De
que adiantava o orgulho quando a pessoa era reduzida à parte mais ordinária e
mesquinha da existência? Orgulho, vaidade, ambição, raiva — nada foi deixado
para Murtagh. Apenas a necessidade de sobreviver. E de alguma forma salvar
Thorn.

Os cultistas estavam jogando água nele; lavando-o como antes. Os velhos hábitos
da corte fizeram Murtagh querer agradecer, para mostrar que, embora estivesse à
mercê deles, não haviam retirado seu autocontrole e boas maneiras. Mas as palavras
não saíam da boca.

Thorn jazia no pátio, espancado e sujo. Murtagh nunca tinha visto um dragão tão
intimidado — um cão maltratado se encolhendo diante do dono. A visão fez com
que algo se rompesse no peito dele, que tentou falar.
— Thorn... — foi tudo o que conseguiu dizer entre lábios rachados, em um tom
suave.
Os olhos do dragão o encararam de volta com um olhar opaco e sem vida.
Murtagh sentiu uma roçada na mente e, por um momento, vislumbrou uma
paisagem sombria e tenebrosa de pensamento, onde nenhuma centelha de esperança
brilhava e a escuridão cinzenta se aproximava por todos os lados.

— Homem-Murtagh… — falava Uvek. — Está me ouvindo, Homem-Murtagh?


Pisque se entender as palavras.
Murtagh tentou rolar para o lado, mas os músculos se recusaram a responder. Ele
caiu de costas contra a parede, de olhos fechados, e soltou um som de derrota. Com
uma das mãos, fez um gesto vago na direção do Urgal.
Um grunhido veio de Uvek. Pelas pálpebras entreabertas, Murtagh o viu
agachado próximo às grades da cela dele.
— Você é forte, Homem-Murtagh. Mais forte do que a maioria dos sem chifres.
— Cavaleiro... — A palavra veio como um coaxo da garganta irritada.
— Humm. É mais do que isso. A força vem daqui. — Uvek bateu com o dedo na
lateral da cabeça. — E aqui. — Ele bateu no centro do peito.
Uma tosse repentina fez Murtagh gritar ao sentir uma pontada lancinante na
lateral do corpo. Parecia que uma de suas costelas estava quebrada, ou perto disso.
Respirou fundo.
— O que... você sabe... de... Azlagûr?
O rosto de Uvek se fechou e os músculos dos antebraços se retesaram e
contraíram.
— Apenas que os Draumar veneram esse aí. Nunca ouvi o nome antes de Nal
Gorgoth, mas acho... Não, não sei o que acho. Bachel é louca, mas isso não quer
dizer que o poder seja imaginado. Não.
— … Não.
Murtagh fez uma careta ao fechar a capa sobre o peito. As pedras embaixo dele
pareciam insuportavelmente frias.
— Fico sonhando… sonhando com... — A força diminuiu e, com ela, a voz; com
esforço, ele se recompôs. — Com um sol negro e um dragão negro... Acho... que
tem... algo a ver com... Azlagûr.
As sombras no rosto marcado de Uvek aumentaram.
— É mesmo? Também vejo o sol negro, Homem-Murtagh. Toda noite ele
perturba meu sono. Humm. Você sabe como os Urgralgra acham que o mundo vai
acabar?
— Como?
Uvek fez uma careta.
— O grande dragão, Gogvog, surgirá do oceano e comerá o sol, as estrelas e a
lua. Depois, cozinhará o mundo com suas chamas. Será um mau momento para os
Urgralgra. E para os sem chifres também.
Um sorrisinho muito leve tocou os lábios de Murtagh.
— Eu imaginaria... que sim.
— Isso me lembra o sol negro. — O Urgal empertigou os ombros. — Isso me
incomoda, Homem-Murtagh. Aqui é um lugar ruim, eu acho. Muito ruim.
Murtagh não podia discordar.
Os olhos se fecharam, e ele sentiu como se estivesse prestes a desmaiar.
A voz de Uvek o trouxe de volta à consciência.
— É ruim dormir quando você está ferido assim, Homem-Murtagh. Eu sei. Feche
os olhos e você não acordará novamente. Pode acontecer.
— Não consigo... ficar... acordado — murmurou Murtagh.
O Urgal bufou.
— Vou te contar uma história, então. Humm. Vou contar como os Draumar me
pegaram. Quer ouvir?
— … Quero.
— Bom. Fique de olhos abertos, Homem-Murtagh. A história começa assim:
quatorze invernos. Quatorze invernos eu passei sentado no topo da montanha. Eu
penso. Eu sonho. Eu escuto. Pássaros e feras, as abelhinhas que se alimentam das
flores da primavera, eu escuto todos, Homem-Murtagh. Eles me ensinaram muito a
respeito do mundo, e pensei que entendia, mas... Guh! — Ele puxou as pontas dos
chifres, e os lábios grossos se curvaram com desgosto. — Não entendo. Fui tolo na
ocasião, mas não percebi. Saí do clã porque achei melhor ficar sozinho. A única
maneira de aprender sem distração. A única maneira de ajudar os Urgralgra sem
favorecer este ou aquele clã. Única maneira de me destacar.
Uvek bateu uma unha grossa e amarela na barra de ferro diante dele.
— Quanto mais velho eu fico, Homem-Murtagh, mais eu acho que ser sábio é
saber quanto ainda não se sabe. Muito fácil ser enganado por pensar que
entendemos o padrão, mas o mundo é como areia caindo no vento. Muito zhar.
Muita aleatoriedade. Humm... Há dois anos, o clã Vrekqna veio até mim e me
contou a respeito de sem chifres que os atacam, fazem prisioneiros, matam seus
guerreiros. Eles pediram ajuda, só que eu não quis deixar o topo da montanha e os
mandei embora. Poucas luas depois, o clã Thulkarvoc veio até mim com o mesmo
pedido. Disseram que os sem chifres tinham magias estranhas contra as quais não
podiam resistir. Disseram que deixaram amuletos de caveiras de pássaros. Disseram
que roubaram seus carneiros e queimaram suas cabanas. Ainda assim, eu não saí do
topo da montanha. Orgulhoso demais eu era, muito, muito orgulhoso.
Um silêncio pensativo se seguiu enquanto Uvek mexia no cinto, e Murtagh foi
pegando no sono, embalado pela quietude das celas.
Então o Urgal falou novamente:
— Há duas luas, os Draumar vieram à minha cabana. Eles me disseram para ir
com eles. Eu disse não. Eles disseram que sim, então nós lutamos, Homem-
Murtagh. Mas eles eram muitos e eu estava sozinho. Não, não sozinho. Falei errado.
Havia uma gralha. Ela me visitava todos os dias, e eu falava com ela. Ela me
escutava, e eu lhe dava sementes. Por doze anos, Homem-Murtagh, ela veio até
mim. Eu a chamava Kiskû. Ela tentou me ajudar, atacar os Draumar. — Uvek fez
um som grave e longo como uma pedra caindo. — Mas os Draumar a mataram.
Aquele tal de Grieve jogou uma pedra nela. É uma coisa ruim de se fazer, Homem-
Murtagh. Gralhas não são como corvos. Gralhas trazem vida, sorte e notícias de
longe.
Uvek se balançou e os chifres bateram nas barras da cela.
— Os Draumar me pegaram, Homem-Murtagh, como um coelho na armadilha, e
me trouxeram para cá, onde eu fico enquanto os sonhos apodrecem minha cabeça.
O Urgal coçou embaixo do queixo.
— Aí está a sua história, Homem-Murtagh. Agora você sabe como sou estúpido e
como fui pego. Humm. Era errado viver separado. Eu não pude ajudar os clãs e os
clãs não puderam me ajudar. — Ele balançou sua cabeça. — É melhor encontrar
uma maneira de estar perto daqueles de quem gostamos, mesmo que nem sempre a
gente se encaixe facilmente. As abelhas sabem disso. Os lobos sabem disso. Agora
eu também sei.

Bachel estava ficando cada vez mais impaciente e, como resultado, usava métodos
cada vez mais cruéis.
Murtagh conhecia seus limites e já os alcançara. As proteções mágicas tinham
acabado — aquelas que o teriam protegido contra dano físico, pelo menos —, o
corpo estava fraco e a mente era uma névoa confusa. Às vezes, parecia que a bruxa
controlava a consciência dele. Em outras ocasiões, ele ainda era capaz de escapar
dos ataques mentais profundos de Bachel. Muitas vezes, porém, ele não sabia se
estava livre ou não, e temia que seus pensamentos não fossem mais seus.
Quando Murtagh não conseguia mais reagir como a bruxa desejava, ela
conjurava magia sem palavras e curava as feridas dele. Mas não todas, e apenas o
suficiente para restaurá-lo à aparência de consciência. Era a forma mais cruel de
cuidado, e Murtagh odiava a falsidade do ato quase mais do que as torturas em si.
Um corvo crocitou.
Era noite. Tarde ou cedo, ele não sabia dizer. As pedras estavam frias e úmidas
embaixo do corpo. A respiração de Uvek era um som constante na masmorra
inteira.
Murtagh olhou fixamente para a escuridão. Padrões de luz se formaram diante
dos olhos, uma exibição iridescente de decoração caótica, laranjas, vermelhos e
azuis pulsantes de uma pureza raramente encontrada na natureza.
Ele não conseguia dormir. Tentou compor um poema para acalmar a mente, mas
as palavras lhe escaparam. Até o próprio conceito do poema fugiu. O que Murtagh
não conseguia nomear, ele não conseguia descrever, e tudo parecia sem esperança.
Novamente, o corvo crocitou.

Dois cultistas seguraram Murtagh enquanto um terceiro forçou um mingau ralo


dentro da boca dele. Ele engasgou e tentou cuspir, mas eles taparam seu nariz até
ele engolir. O mingau ardeu como conhaque.

Os olhos de Murtagh se arregalaram quando uma aranha de corpo negro reluzente


passou pelas pedras diante dele. Ele gritou e tentou se afastar, mas a dor fez os
braços cederem. Ele caiu de lado.
A aranha desapareceu em uma rachadura na parede. Ele olhou fixamente para a
fenda estreita, convencido de que dezenas, não, centenas de aranhas apareceriam a
qualquer momento. Cada toque das roupas parecia um inseto andando por seu
corpo, e quando uma gota de umidade caiu do teto e pousou na nuca, ele arranhou e
raspou como se fosse arrancar a própria pele.
Quando ele finalmente fechou os olhos, as aranhas encheram os sonhos
acordados. Aranhas de corpo preto ou branco, e Murtagh pensou ouvir Nasuada
sussurrando em seu ouvido, estimulando-o a se render. Ele a viu deitada a seu lado,
mas o rosto dela derreteu e se transformou no de Galbatorix, que lhe lançou um
sorriso sagaz.
Murtagh gritou.

Enquanto estava nos extremos da agonia, Murtagh sentiu um estalo na mente e foi
tomado por uma enxurrada de emoções. Mesmo atordoado, ele reconheceu a
sensação dos pensamentos de Thorn e se agarrou a eles como um homem se
afogando se agarraria a um galho passando em uma enchente.
Imagens do pátio flutuaram diante dos olhos de Murtagh; era difícil dizer qual
parte dele estava na masmorra embaixo do templo e qual parte estava em cima,
deitado nas lajotas. Thorn sofria uma dor igual à dele e, de alguma forma, a
intensidade do tormento compartilhado pelos dois superou a resistência sufocante
da vorgethan e do Sopro.
Thorn transmitiu reconhecimento, alívio e afeto. Pesar também, e confusão, pois
tudo era uma névoa borrada...

Murtagh viu Alín parada na porta da cela mais duas vezes. A mulher parecia cada
vez mais incomodada e, quando falava com ele, sua voz parecia vir do fim de um
grande túnel...
Ela o alimentou. Disso Murtagh se lembrava. Comida sólida. Ele ficou grato por
comer algo diferente da gororoba forçada goela abaixo pelos cultistas. Mas sólida
ou não, ainda ardia com o gosto odioso de conhaque.

Bachel se curvou sobre Murtagh, o rosto distorcido e meio escondido, decorado por
um tom dourado berrante causado pela luz do braseiro de cobre. Ele sentiu o cheiro
do suor na pele da bruxa e o calor da sua respiração.
— Você vai me servir e, através de mim, Azlagûr — sussurrou ela. — Se não
posso ter sua obediência prometida por sua língua, vou obtê-la por outros meios. No
final, você se curvará diante de mim, meu filho, e cumprirá minhas ordens neste fim
dos dias.
— Nunca — ele conseguiu resmungar.
— Nenhum ser foi feito para o nunca. Nem mesmo Azlagûr. Somos criaturas de
mudança. Seja assim agora, Regicida. Mude. Torne -se!
A bruxa ergueu os braços e a aparência dracônica se fortaleceu até que parecia
que ele estava encarando os olhos de uma grande fera de fogo. Bachel gritou com
uma voz que não era dela, e ele sentiu as forças da magia girando ao redor. A bruxa
baixou os braços e atirou um frasco no chão. Murtagh foi envolvido por uma nuvem
pegajosa do Sopro. A seguir, as garras dela se cravaram com selvageria renovada na
carne dilacerada de Murtagh, que gritou com tanta força que a voz falhou e sangue
encheu a garganta.
Através dos olhos de Thorn, ele viu Grieve, de cara fechada, estalar um chicote
de ferro, e o dragão rugiu com tormento igual ao de Murtagh.
Para cima e para baixo perderam todo o significado. A razão e a lógica os
abandonaram, deixando apenas o sentimento. E o que eles sentiam era insuportável.
O que não podia continuar... não continuou.
Murtagh capitulou. Ele sentiu, percebeu, mas no momento não se importou. Tudo
o que queria era que a dor parasse. Não podia jurar fidelidade a Bachel, isso estava
além de qualquer chance, mas não podia mais continuar lutando.
Assim sendo, ele parou.
Ele desistiu, e sua mente se retirou dos horrores da situação, e uma estranha casca
de passividade se formou em volta dele, entorpecendo as emoções, embotando os
pensamentos. O que ele era encolheu até quase desaparecer.
Murtagh notou uma sensação de triunfo irradiando de Bachel. Mas ele não se
importava. Isso não importava.
Nada daquilo importava. Apenas que a dor havia parado.
E parou. Thorn também havia desistido e os dois jaziam em seus respectivos
lugares — acorrentados e algemados —, esperando as ordens a que obedeceriam.
CAPÍTULO XVIII

Sem defeitos

M urtagh permaneceu imóvel diante do trono de espaldar alto e forrado de pele


de Bachel. Acima deles, o farfalhar de penas e os crocitos sussurrados de corvos
escondidos ecoavam nas pedras do teto sombreado: um acompanhamento constante
dos acontecimentos.
Murtagh olhou sem enxergar enquanto os cultistas tiravam as roupas dele. Todos
os ferimentos causados pelas torturas foram curados por Bachel. A pele do
Cavaleiro estava novamente lisa e perfeita.
Do assento elevado, a bruxa observava com um olhar impassível por cima da
borda de uma taça de latão amassada. Grieve estava ao lado dela, com o rosto
inescrutável e de cara fechada.
— Vire-se, meu filho — disse ela.
Ele se virou.
No meio da câmara estava Thorn, sentado e de asas fechadas, ombros curvados
para cima de tensão. Nenhum grilhão prendia as patas escamadas, mas ele não se
mexia.
— Pare.
Murtagh ficou de costas para Bachel, com os olhos fixos nos pálidos raios de sol
que se infiltravam pelas bordas da porta distante. O chão de mosaico estava frio sob
seus pés. Ele estremeceu, mas foi um reflexo. Nenhum pensamento acompanhou o
arrepio.
— Há uma cicatriz muito feia nele, Grieve.
— Sem dúvida, Oradora.
— Eu me pergunto se devo removê-la. Afinal, ele deve ser nosso símbolo ilustre.
Nosso campeão irrepreensível. Nosso rei dos reis.
Os lábios de Murtagh se contraíram, mas ele não conseguia falar.
— Se assim desejar, Oradora.
— Hum. — O vinho chocalhou no cálice enquanto Bachel tomava um gole. —
Não, acho que não. É bom para ele se lembrar de que não é sem defeitos. E que não
é todo-poderoso.
— Muito sábio, senhora.
Os membros de Thorn tremeram, e um som baixinho escapou da garganta do
dragão.
— Vire-se e me encare, meu filho.
Ele obedeceu.
A bruxa se inclinou para a frente em seu trono.
— Você é como merece ser, Regicida. Nunca se esqueça disso. Foi marcado pelo
ódio do seu pai, e não serei eu a libertá-lo desse fardo. Não até que você decida
aceitar Azlagûr, a mim e os Draumar como sua família. Pois é isso que somos, e
amamos você mais do que imagina. — Ela então olhou para Grieve. — Cuide para
que ele receba boas roupas. Afinal de contas, é nosso filho mais honrado.
O rosto de Grieve demonstrou desaprovação, mas a voz permaneceu respeitosa.
— Se é sua vontade, Oradora.
— É, sim.
Por um tempo, Murtagh permaneceu nu. A pele lhe parecia estranha, e ele não
sabia quem ou o que era. Uma sensação inexplicável de tristeza o tomou por inteiro.
Então os cultistas trouxeram roupas e o vestiram. Calça de lã de qualidade —
vermelha e preta —, botas de montaria de couro macio que iam até os joelhos e uma
camiseta fina por baixo de um gibão acolchoado. Por cima, um tabardo de armadura
de escamas arcaicas, com metal em tom cinza-aveludado e a ponta de cada escama
decorada com uma linha de ouro embutido que traçava a forma da escama. A
cintura recebeu um cinto cravejado de ouro, e na cabeça foi colocado um elmo em
forma de coroa, do tipo que algum rei há muito esquecido poderia ter usado em
batalha.
— Pronto — disse Bachel, se recostando na cadeira. — Agora você tem a
aparência certa.
Murtagh não respondeu. As palavras pareciam sem importância. Ele pôde ouvir a
respiração pesada de Thorn enquanto ambos esperavam a ordem da bruxa.
Os olhos de Bachel estavam frios enquanto ela os estudava — eles, os vassalos;
ela, a soberana materna. A voz soou com uma determinação insensível que abafou
os gritos suaves dos corvos.
— Chegou a hora. Este ainda não é o fim do fim, nem mesmo o meio do fim, mas
afirmo que este dia marca o começo do fim. E será uma calamidade para todos os
que se opõem a nós.
Bachel mandou Murtagh fazer muitas coisas. Ele fez o que lhe foi ordenado —
apático, sem resistência, com a mente abafada como se estivesse enrolada em
mantas de lã de feltro. Nas poucas ocasiões em que lhe ocorreu um pensamento
coerente, Murtagh se perguntou se eram reais.
Ele passava as noites na cela embaixo do templo. O Urgal do outro lado do
corredor tentava falar com ele, mas nenhuma palavra ressoava na mente de
Murtagh. Como elas não vinham de Bachel, ele não prestava atenção.
Durante os dias, ficava sentado à direita da bruxa no santuário interno do templo
— enquanto Grieve lhe olhava feio do outro lado da câmara — ou então cavalgando
ao lado dela enquanto Bachel o conduzia pelo vale. À noite, realizavam festins no
pátio: banquetes de lazer com carne de javali assada, vinho envelhecido e
cogumelos preparados de todas as maneiras possíveis. Bachel estava sempre
falando com Murtagh: falando, falando, falando, um fluxo interminável de palavras
que moldava as ações dele e punha ordem no mundo em volta.
Enquanto falava, às vezes pousava a mão no braço dele, não com paixão, e sim
como faria com um bem valioso, e o cheiro da bruxa se misturava ao enxofre
onipresente.
Thorn acompanhava os dois na maioria das vezes, mas nem sempre. Duas vezes,
Murtagh viu Grieve subir na sela de Thorn e voar no dragão, no alto do céu acima
de Nal Gorgoth. E uma vez eles voaram para além dos picos protuberantes e
passaram horas fora.
Quando voltaram, Thorn pousou no pátio e ali se agachou, sentindo frio e
tremendo. Murtagh olhou para o dragão, deprimido, embora sem meios de dar voz à
tristeza que sentia.
Do meio dos pilares da frente do templo veio Alín, carregando um jarro de água,
uma cesta de bergenhed e um pedaço de pano esfarrapado. Ela colocou a cesta
diante da cabeça de Thorn, então molhou o pano e lavou a sujeira e o sangue seco
das feridas em processo de cicatrização nas laterais do corpo do dragão.
Os lábios de Murtagh tremeram, e ele agarrou o próprio cinto.

Sob o comando de Bachel, os cultistas começaram os preparativos para um grande


festival a ser realizado em uma semana.
— Tive uma premonição — anunciou ela ao vilarejo reunido. — Está se
aproximando o momento do Festival da Fumaça Negra. Enviem grupos de ataque
para reunirmos os meios a fim de adorar Azlagûr, o Devorador, da maneira
adequada.
Nal Gorgoth virou uma colmeia de atividade. Os cultistas iam de um lado a outro
na realização constante e frenética de deveres. Três grupos de guerreiros armados
partiram a cavalo, gritando elogios e palavras de devoção a Bachel com as lanças
erguidas. Ao lado de Thorn, Murtagh observou os guerreiros irem embora e desejou
partir com eles — escapar do vale e respirar ar fresco não contaminado pelo
enxofre.
Naquele dia, Bachel o levou para caçar javalis. A bruxa deu a ele uma lança para
empunhar, e Murtagh a segurou sem sentir, embora o peso da arma despertasse um
desejo obscuro dentro dele.
A bruxa montou em Thorn antes dele. O cabelo estava preso em camadas, os
braços expostos ao vento, os dentes brilhando com prazer feroz. Era estranho ter
outra pessoa na sela — tanto para Murtagh como para Thorn. Mas nenhum dos dois
reclamou.
A guarda de honra de Bachel seguiu no solo enquanto Thorn voava de Nal
Gorgoth para o vale cheio de cogumelos onde os javalis se criavam e procriavam.
A caçada aconteceu praticamente como antes. Murtagh permaneceu ao lado de
Bachel, seguindo suas ordens, apoiou a lança no arco do pé e esperou enquanto
Thorn conduzia as feras até eles. Murtagh aguardou, e nenhum medo acelerou o
pulso, nem empolgação, alegria ou qualquer forma de sentimento humano que seria
normal naquela circunstância.
Ele observou o que estava acontecendo como se estivesse vendo de uma grande
distância, como se nada que visse pudesse afetar a ele ou a Thorn, e, portanto, não
tivesse nenhuma consequência real. Até mesmo as próprias ações pareciam
pertencer a outra pessoa: um estranho sem nome que usava seu rosto, mas não
continha nada dele.
Os javalis retumbaram no chão batido, uma parede de carne animal rosnando e
bufando, com a intenção de abrir caminho atropelando quem bloqueasse a
passagem.
Um choque de impacto: sangue e calor e cheiro de vísceras.
Murtagh matou um javali, assim como Bachel.
Depois, a bruxa se reclinou na liteira e mandou Murtagh se sentar aos pés dela
enquanto os guerreiros cuidavam dos feridos e estripavam as feras mortas. Um
círculo de cogumelos partidos cercava o grupo, e o ar estava carregado com o
cheiro de terra.
Murtagh encarou, vidrado, o céu além dos picos altos das montanhas, o vazio
pálido que o chamava, impossível e inalcançável.
Os dedos frios de Bachel deslizaram entre o pescoço e ombro dele e pararam ali.
— Você consegue imaginar, Regicida, como foi ser abençoada com a força dos
sonhos de Azlagûr enquanto ainda era uma criança? — perguntou ela, com uma voz
baixa que parecia combinar com o cheiro dos cogumelos. — O que o poder dessas
visões pode fazer com uma pessoa? Como pode mudá-la? Qual o tamanho da
solidão que a pessoa sentiria ao conseguir ver o que os outros não veem? Quando
cada momento era um sonho acordado? Consegue imaginar?
Ele se virou para olhá-la. A expressão da bruxa era distante e contemplativa; um
humor que não tinha visto nela antes. Bachel tomou um gole da taça amassada.
Havia sangue espalhado em gotinhas irregulares no vestido dela, assim como nas
mãos e no gibão de Murtagh.
— Eu acredito que você consegue, Regicida. Minha mãe... ela não conseguiu. Os
sonhos a afastaram de seu povo e a trouxeram a Nal Gorgoth, mas ficou com
ciúmes quando Azlagûr falou comigo e os Draumar souberam que eu seria sua nova
Oradora. Sua mehtra. Uma bênção imensurável. No entanto, o próprio sangue do
meu sangue não conseguiu suportar. O ressentimento enlouqueceu minha mãe, que
se voltou contra mim, e, com o tempo, não tive escolha a não ser pôr um fim nela.
Outro gole.
— Você me julga por isso, Regicida? Não, acho que não. Você teria matado
Morzan se tivesse tido a oportunidade. Você entende minha decisão, creio eu. Um
pouco, pelo menos. E quando chegar a hora da fumaça preta, entenderá melhor
ainda.
As palavras da bruxa soaram falsas para Murtagh, mas ele teve dificuldade em
compreender o motivo. Será que ele teria matado Morzan? Sim. Mas havia algo
além disso na questão, e o toque dos dedos frios de Bachel o fez querer afastar a
mão dela e fugir de sua presença.
Ele voltou o olhar para o pedaço de céu entre os picos cobertos de neve.
— Eu não sou a única Oradora, sabe, Regicida. Houve inúmeros outros antes de
mim, desde o início dos tempos. Nem sou a única agora no reino. Onde quer que a
fumaça negra suba, lá você encontrará os Draumar.
Isso chamou a atenção de Murtagh de volta para ela. Bachel levantou uma
sobrancelha escura.
— Ah, sim, Regicida. Os Draumar fazem parte da trama do mundo há muito mais
tempo do que você imagina. Eles não apareceram por acaso. Por que acha que uma
Oradora ocupa o Salão da Profetisa, sussurrando visões do que poderia acontecer
nos ouvidos dos elfos? Por muito tempo a vontade de Azlagûr moldou o rumo dos
eventos.
Ela esvaziou a taça.
— Vou lhe contar uma coisa, Regicida. Existem lugares no fundo do subterrâneo
onde os sonhos de Azlagûr se tornam realidade. É verdade. Os fantasmas adquirem
substância, as raízes das montanhas parecem se mover e é difícil saber para onde ir.
Um dia, você verá.
Logo depois, Bachel se levantou e se recompôs, sem falar mais a respeito dessas
coisas. As presas foram colocadas em trenós improvisados, que foram arrastados
pelos cultistas de volta para Nal Gorgoth enquanto Murtagh e Bachel voavam em
Thorn.

Era noite, e Murtagh se viu olhando fixamente para o reflexo na água que enchia o
balde mantido dentro da cela. Ele não reconheceu o rosto barbudo que devolvia o
olhar da superfície imóvel.
Murtagh foi tomado por um desejo, e os lábios se moveram enquanto ele tentava
falar seu verdadeiro nome. Sua língua conhecia as palavras, porém elas não soavam
mais verdadeiras. Ele sentiu um desespero vazio ao perceber que havia se tornado
um estranho para si mesmo mais uma vez.
Teve um acesso de raiva e deu um tapa na água, espalhando o reflexo em mil
direções diferentes.
A raiva passou. Ele se ajoelhou, molhou as mãos na água que restava no balde e
as lavou várias vezes. Como parecia que o sangue do javali ainda estava grudado na
pele, Murtagh esfregou até que ficasse vermelha e em carne viva, mas o sangue
parecia nunca sair.
Ele se sentou ajoelhado diante do balde, olhando para os arranhões nas mãos, e
desejou... Ele não tinha certeza do que desejava, apenas algo que de alguma forma
aliviasse a queimação em seu peito.

Os sonhos daquela noite foram piores do que os anteriores. Pareciam mais potentes
e imediatos, e também mais distorcidos e perturbadores. Vilarejos massacrados
surgiram na mente dele, e as memórias da batalha o fizeram suar frio. Uma corrente
de notas graves — discordantes demais para serem chamadas de melodia — ecoava
por toda parte e era como compartilhar a mente de um dragão, só que muito maior,
mais distorcida e estranha do que até mesmo o mais louco dos Eldunarí.
Eis que, em meio à cavalgada de imagens sangrentas, surgiu uma lembrança.
Uma memória de verdade.
A sala de armas cheirava a ferrugem, óleo, couro e suor velho. A luz da tarde
jorrava como mel pelas janelas estreitas e iluminava as lâminas das lanças
armazenadas em suportes nas paredes. Era uma sala de muitas esperanças... e
muitos medos.
Tornac puxou as fivelas laterais do peitoral de Murtagh para verificar se
estavam bem apertadas. A seguir, deu um tapa no ombro do rapaz.
— Está pronto. Mantenha a respiração sob controle e não terá nada a temer.
— Nada?
— Não de gente como Goreth. Ele é bem rápido, mas não tem a técnica. —
Tornac deu a volta até a frente de Murtagh e o examinou de cima a baixo. — Não
está perfeito, mas vai servir.
As palavras eram mais reconfortantes do que a armadura. Mesmo assim,
Murtagh sabia que o espadachim pragmático estava fingindo tranquilidade. Goreth
era um dos duelistas mais temidos da corte do rei. Ele havia ferido três homens nos
últimos quatro meses e, em vinte e sete duelos, tinha perdido apenas cinco.
Tornac leu os pensamentos de Murtagh com bastante facilidade. Sempre lia.
— Seja valente. É uma exibição. O rei não quer ver você morto. Seria como ver
um cavalo excelente sendo abatido.
— Eu sei.
— Lembre-se do que lhe ensinei e não terá nada a temer.
Tornac o surpreendeu ao lhe dar um breve abraço. Era a primeira vez que o
espadachim mostrava tal emoção — e também era a primeira vez que Murtagh
travava um duelo.
Eles se separaram, e Murtagh soltou uma risada trêmula.
A areia brilhosa da arena o fez parar e apertar os olhos enquanto a visão se
ajustava. Era um dia frio de outono, mas as expectativas pelo combate aceleraram
o pulso, e ele já se sentia superaquecido dentro da armadura.
As arquibancadas estavam lotadas de nobres, presentes ali para testemunhar o
espetáculo do filho único de Morzan em uma disputa de armas aparentemente
amistosa contra Goreth de Teirm, o da espada de prata. O duelo tinha sido ideia de
Galbatorix. Ele havia passado por acaso pelos pátios de treino enquanto Murtagh
recebia as instruções diárias de Tornac e, ao vê-los, sugeriu que seria mais
adequado se as habilidades de Murtagh fossem testadas de forma mais formal.
Como sempre, o que o rei desejava logo se tornou realidade.
Murtagh viu muitos rostos conhecidos nas arquibancadas, mas nenhum amigo.
Ele sabia que Tornac iria assistir da sala de armas, o que lhe deu coragem e
determinação. Não queria decepcionar seu mentor. Além disso, preferia morrer a
passar vergonha diante da multidão. O menor sinal de fraqueza lhe renderia uma
vida inteira de escárnio na corte, e a posição em que se encontrava já era bem
difícil.
Goreth entrou pelo portão oposto a ele. Alto, tinha braços e pernas bem
definidos e a graça sinuosa de um guerreiro experiente. Apesar das garantias de
Tornac, não havia dúvida: Goreth era um lutador formidável e Murtagh sabia que
seria levado ao limite de suas habilidades.
Eles saudaram o rei, que era apenas uma forma nas sombras, sentado no trono
sob um dossel de veludo. Os arautos fizeram as declarações e o mestre de
cerimônias leu as regras de combate: proibido morder, proibido chutar enquanto
um homem estivesse no chão. Proibido arrancar os olhos. Proibido golpear a
virilidade (ou seja, proibido golpear abaixo da cintura).
Ao final dos discursos intermináveis, soou uma trompa, o mestre de cerimônias
deixou cair o lenço e o duelo começou.
Apesar do fogo nas veias, Murtagh sentiu como se estivesse preso em areia
movediça, mal conseguindo mover as pernas ou levantar os braços. No entanto, ele
se esquivou e aparou e bateu na espada do oponente como deveria. Nenhum dos
dois usava escudo, pois a competição seria um teste de pura esgrima, e Murtagh
havia se recusado a colocar braçadeiras para poder se mover mais rápido. Ele
confiava na cota de malha para proteger os braços de cortes.
Na maioria das vezes, protegeria. Mas a ponta da espada de Goreth encontrou o
punho da manga esquerda de Murtagh, e o pedaço de aço afiado deslizou por baixo
do gibão usado sob a cota de malha. Uma linha trêmula, quente, fria e agonizante,
a lâmina percorreu a parte externa do antebraço dele.
Por instinto, Murtagh puxou o braço para trás e gritou quando a espada o
cortou novamente no retorno.
Os dedos da mão esquerda se contraíram e se fecharam em um nó inútil. Se não
fosse pelos espectadores, ele teria concedido o duelo, mas o orgulho, o medo e a
pura raiva teimosa o impediram.
Goreth aproveitou a vantagem e estocou novamente, rápido. Enquanto recuava,
Murtagh bateu com a espada e desviou o ataque. Seu oponente fez pressão intensa
com vários golpes e investiu. Murtagh levou um golpe de raspão no quadril, na
saia da cota de malha. Em uma tentativa desesperada de se recuperar, ele reagiu
com um golpe e acertou o cotovelo de Goreth com a ponta da espada.
Goreth deixou cair a arma.
Foi um golpe de sorte. Murtagh não tinha esperanças de repeti-lo mesmo se
treinasse por uma semana. Ele não hesitou, dando continuidade ao ataque como
havia sido ensinado por Tornac: passou a ponta da espada sob o braço de Goreth e
espetou a axila, onde a armadura não cobria.
Foi um ferimento estreito, mas profundo o suficiente para fazer Goreth gritar e
cair no chão, marcando o fim do duelo.
Ou foi o que Murtagh pensou.
Com sangue pingando do braço esquerdo caído, ele olhou para o rei em busca
do veredito final. Era tradição que Galbatorix declarasse o vencedor de qualquer
competição que presenciasse; a palavra do rei era final e, até que ele falasse,
nenhum resultado — nenhuma verdade — era oficial.
A sombra se inclinou para a frente no trono e as pontas da coroa cintilaram, mas
o rosto do rei permaneceu muito escuro para ver a expressão.
— Acabe com ele, filho de Morzan.
A princípio, Murtagh não acreditou no que ouviu, mas a voz de Galbatorix soou
com uma força sobrenatural e não havia como confundir as palavras. A multidão
ficou tensa, com vários suspiros de susto e gritos soando entre as fileiras de
assentos, mas ninguém se pronunciou contra a ordem do rei. Ninguém foi tão tolo.
Goreth não teve tais escrúpulos. Ele começou a implorar em voz alta. Em um
instante, a imagem do guerreiro famoso desapareceu, substituída por mais um
soldado assustado rastejando no campo de batalha, implorando pela misericórdia
do inimigo que se aproximava.
Murtagh hesitou. Ele tentou achar qualquer via de fuga pela arena. Então, viu
Tornac parado dentro do túnel de entrada da arena, fora da vista do público, mas
bem na linha de visão de Murtagh. O rosto do mestre espadachim estava pálido e
contraído, e ele parecia querer falar, mas os lábios permaneceram bem fechados, a
expressão severa. Ele assentiu, um movimento único e curto, e Murtagh entendeu.
Não havia como escapar. E não havia ajuda também.
— Acabe com ele, filho de Morzan.
Então, Murtagh fez o que tinha que fazer, embora se sentisse mal em cumprir
aquela ordem. Ele foi até Goreth e tentou dar ao homem uma morte rápida com um
corte no pescoço. Mas Goreth levantou o braço, e a lâmina de Murtagh patinou na
braçadeira de ferro. O homem não estava a fim de desistir e morrer. Murtagh o
odiou por isso e, ainda assim, sentiu pena dele. Perdeu todo o senso de controle e
começou a golpear Goreth enquanto o homem continuava tentando repeli-lo. O
tempo todo Goreth gritou e implorou. Murtagh também gritou, sons sem sentido
para abafar a voz do homem.
Quando acabou, o sangue manchava a areia batida por metros ao redor deles, e
o corpo retalhado e desfigurado de Goreth finalmente ficou imóvel.
Murtagh se apoiou em um joelho e usou a espada como muleta para não cair.
Foi um abuso terrível da arma, mas, naquele momento, ele não se importava com o
tamanho da bronca de Tornac por arruinar o fio da lâmina.
Um aplauso solitário soou do trono. Galbatorix ficou de pé. O resto dos
espectadores se levantou em resposta.
— Muito bem, Murtagh.
Ele gesticulou com um dedo. Murtagh soltou um suspiro de susto e agarrou o
antebraço ferido enquanto a pele e os músculos se contorciam como cobras e se
uniam até ficarem inteiros.
— Traga-o para meus aposentos assim que ele tiver se banhado e trocado de
roupa — disse o rei, como um aparte ao mestre de cerimônias.
— Claro, meu senhor.
O rei partiu junto com os seguidores, e a arena se esvaziou rapidamente,
deixando Murtagh sozinho com o primeiro homem que matou. O mestre de
cerimônias se aproximou e, antes que pudesse falar, Tornac apareceu ao lado de
Murtagh.
— Cuidarei para que ele vá até o rei — disse Tornac com voz ríspida, e o mestre
de cerimônias não discutiu.
— Eu… Eu… Ele não… — disse Murtagh, enquanto era guiado por Tornac para
fora da arena.
— Você fez o que era necessário. Não pense nisso.
Mas Murtagh pensou. Depois de se encontrar com Galbatorix nos aposentos dele
— no qual o rei lhe deu a tarefa de destruir um vilarejo que acreditava estar
abrigando traidores dos Varden —, Murtagh decidiu, com o consentimento absoluto
de Tornac, fugir da capital e do próprio Galbatorix.
Ele nunca mais falou a respeito do duelo.

Alguns dias depois que os cultistas começaram os preparativos para o festival, um


pequeno grupo de visitantes chegou a Nal Gorgoth. Eles vieram montados em
cavalos altivos e tocaram uma trompa para anunciar a própria chegada. Os
visitantes estavam ricamente equipados, carregavam flâmulas com desenhos
coloridos e vieram bem armados e bem blindados.
No santuário interno do templo, Murtagh estava sentado em uma cadeira de pedra
ao lado do trono de Bachel. Mais cadeiras foram dispostas em uma fileira dupla que
se estendia a partir da plataforma com o trono, e nelas se sentaram os visitantes. Os
homens pareciam ser uma mistura de nobres e, como evidenciado pelos finos trajes,
mercadores. Os rostos pareciam nadar diante de Murtagh, e ele teve dificuldade em
se concentrar nas feições e se lembrar delas. Mas havia algo familiar a respeito…
— Ora, Murtagh! Jamais pensei em te encontrar aqui, por incrível que pareça. O
que está fazendo em Nal Gorgoth?
As palavras vieram de um jovem na cabeceira das cadeiras enfileiradas à
esquerda. Murtagh franziu a testa enquanto lutava para se concentrar. As feições do
homem se aguçaram por um momento e um nome surgiu na mente de Murtagh:
Lyreth.
O Cavaleiro abriu a boca e fechou.
Uma risada veio do jovem.
— Meu caro amigo, você parece um peixe que foi atingido por um remo. — Ele
moveu a boca para demonstrar.
O resto dos visitantes riu também.
Com um esforço supremo, Murtagh recuperou a voz.
— Não sei por que estou aqui.
— Vocês devem perdoá-lo — disse Bachel. Acima da taça de bronze, a boca se
ergueu no menor dos sorrisos. — O Regicida não anda bem nos últimos dias.
O grupo de homens voltou a rir, e os corvos lá no alto imitaram os visitantes com
gritos roucos e incessantes.
Os cultistas chegaram com a comida. Redemoinhos de fumaça espessa com
cheiro de sálvia saíram dos braseiros próximos, tornando o ar pesado. Bachel e os
visitantes começaram a conversar com empolgação. Murtagh não conseguiu
acompanhar. O incenso fez seus olhos arderem e a garganta engasgar, o que tornou
ainda mais difícil se concentrar, mas a comida o distraiu… Ele se viu estranhamente
relutante em comer o pedaço de carne de javali colocado diante de si. A carne não
tinha mais o cheiro doce e suculento, e o sabor havia perdido todo o apelo.
O olhar de Murtagh ficava voltando para os rostos diante dele. Tirando aquele
que havia puxado assunto, ele sentia como se… como se devesse conhecer o
homem sentado no final, à direita. Alguma coisa a respeito das feições do homem
permaneceu na mente de Murtagh — uma irritação que não passava.
Ele largou a faca e encarou o prato, as fatias de carne que lhe reviravam o
estômago.
Além das fileiras de cadeiras, nas sombras da entrada, Thorn estava encolhido no
mosaico, zumbindo sem sentido enquanto Alín o alimentava com restos de javali.
Murtagh ergueu os olhos. Lá em cima, na abóbada mergulhada em sombras do
teto, ele pensou ver os círculos pálidos dos olhos dos corvos os encarando, frios e
cruéis.
CAPÍTULO XIX

Escolhas

E ra manhã. Embora a aldeia continuasse quente como sempre, o vento das


montanhas era muito frio e o contraste fazia com que parecesse ainda pior. Cortinas
de neve cobriam os flancos irregulares da Espinha, envolvendo os picos de branco,
como se protegessem a virtude há muito desaparecida.
Murtagh estava ao lado de Thorn; a capa fechada no pescoço lhe era familiar,
mas não sabia onde a conseguira. Um escudo pesava em seu braço esquerdo, e
Bachel sorriu quando lhe entregou uma espada branca. Não era Zar’roc — ele não
via a espada carmesim desde… desde antes —, mas foi a primeira arma que
conseguia se lembrar de segurar… em… em…
Ele pestanejou.
— Vá em frente, Regicida, e ajude meus guerreiros — ordenou Bachel,
comandante, triunfante, selvagem.
A mão dura da bruxa acariciou a bochecha de Murtagh, e ela olhou para Thorn.
— Você servirá também, dragão. Voe como ordenado e, quando chegar, poderá
lutar ao lado de seu mestre.
Thorn estremeceu e baixou a cabeça.
Sim.
Foi a primeira vez que Murtagh o sentiu desde…
Grieve se aproximou vindo do outro lado do pátio. O homem estava vestido com
um corselete de cota de malha, com uma maça pesada em uma mão e um broquel na
outra.
— Você fará o que Grieve disser — instruiu Bachel. — Ele falará em meu nome,
e o que ele ordenar você deve fazer.
Murtagh baixou a cabeça.
A bruxa tirou um frasco da manga do vestido preto, destampou e soprou o
conteúdo vaporoso sobre ele e Thorn. Com a primeira inalação do Sopro, a cabeça
de Murtagh ficou leve e o pátio, ainda mais distante, como se ele estivesse
enxergando através de uma luneta de fabricação anã.
— Minha senhora — disse Grieve, fazendo uma grande reverência.
Um sorrisinho se formou nos lábios de Bachel. Ela tocou Grieve no topo da
cabeça, e os lábios da bruxa se moveram silenciosamente.
— Vá agora e volte rapidamente, para que eu saiba que está feito — disse ela em
seguida.
— Como quiser.
Ao comando de Grieve, Murtagh embainhou a espada (havia uma bainha
pendurada no cinto) e subiu nas costas de Thorn. A sela já estava no lugar. Por
hábito, ele enfiou as pernas pelas tiras de cada lado e apertou.
Grieve subiu nas costas de Thorn e se acomodou entre os espinhos atrás de
Murtagh. A proximidade do homem era incômoda, e ficou ainda mais quando
Murtagh sentiu uma cutucada nas costelas. Ele olhou e viu uma adaga pressionada
contra a lateral do corpo.
— Mova-se com cuidado, Cavaleiro — disse Grieve entre os dentes cerrados. —
Caso contrário, não se moverá mais.
Murtagh não reagiu. De uma forma distraída e desinteressada, ocorreu-lhe o
pensamento de que gostaria de matar Grieve.
O homem deu um tapinha no pescoço de Thorn.
— Voe, fera!
E, com uma batida de asas, Thorn saltou do chão, e eles voaram.

Com as orientações de Grieve, Thorn voou para fora da fenda que continha Nal
Gorgoth e virou para o norte a fim de seguir a costa da Baía do Fundor. Na foz do
vale, onde o rio desaguava na baía, Murtagh viu um navio atracado no cais de
madeira: um veleiro alto, elegante e bem-feito, com um casco construído em
clínquer, como era comum em Ceunon.
Rajadas de neve acossaram o trio enquanto eles seguiam para o norte. O inverno
estava se intensificando e não demoraria muito para que as montanhas ficassem
intransponíveis para quem estava a pé.
O ar tinha um cheiro estranho para Murtagh. Demorou muito para que ele
entendesse o motivo: ali não fedia a enxofre. Em vez disso, o ar era limpo, frio e
fresco — revigorante em sua pureza.
Nunca o ar pareceu tão… tão gostoso.
Rastros de muitos animais marcavam o cobertor branco lá embaixo: coelhos,
cervos, ursos e muito mais. As pegadas deixavam linhas semelhantes a veias entre
árvores, rochas e riachos gelados, um mapa dos movimentos da vida, mais aleatório
do que o curso da água e, ainda assim, muito mais significativo.
Entre as trilhas de caça, uma única linha de terra escura e batida corria ao longo
da costa. Era muito reta e regular para ter sido feita por qualquer fera estúpida, e
não havia como confundir sua natureza: uma trilha feita por homens, sem neve por
ter sido limpa por muitos pés e patas. Um grupo a cavalo, talvez, ou então viajantes
a pé, o que parecia improvável devido ao local e à estação. Qualquer que fosse a
resposta, o grupo não poderia estar muito à frente ou então a neve teria apagado a
trilha e deixado o rastro branco e difícil de seguir.
Uma gaivota soltou um grito irritante sobre a água e desviou para o leste quando
Thorn se aproximou.
Eles voaram por metade da manhã, seguindo cegamente as ordens de Grieve.
Quando ele mandava virar, Thorn se virava. Quando ele mandava subir ou descer,
Thorn obedecia. E o tempo todo Murtagh se manteve ereto na sela, com a face
inexpressiva e a pele do rosto tão fria que ficara dormente.
Ele agiria quando necessário — ou quando recebesse uma ordem —, mas, caso
contrário, não havia nada para fazer além de existir.
Finalmente, um grupo de homens a cavalo apareceu ao longo da costa. Quando
eles viram Thorn, frearam as montarias.
— Pouse — ordenou Grieve.
Enquanto Thorn descia, os cavalos recuaram diante da visão do dragão e os
homens sofreram para mantê-los parados. De perto, a verdade ficou evidente: o
bando de homens era um dos três grupos de guerreiros que Bachel havia
despachado de Nal Gorgoth.
— A que distância estão os Orthroc? — perguntou Grieve.
Um dos homens apontou para a frente, em direção a uma crista coberta de
pinheiros.
— Do outro lado daquela elevação. Eles estão reunidos perto de um riacho dando
água aos cavalos, mas logo voltarão a se movimentar.
Murtagh sentiu Grieve balançar a cabeça, satisfeito.
— Excelente. Vocês vão atacar ao meu sinal. O dragão e o Cavaleiro irão à
frente, mas vocês têm que deixar espaço para o dragão. Seus cavalos vão se
assustar, e não posso prometer que esses dois vão se comportar como planejado.
O guerreiro demonstrou desdém, e os outros homens riram com ironia.
— Eles estão tão enfeitiçados que não sabem nem onde estão — disse um deles,
um sujeito baixo de cabelos louros, nariz vermelho e cílios congelados.
— Não importa — retrucou Grieve, curto e grosso. — Bachel conta conosco, e
não devemos decepcioná-la.
Murtagh sentiu novamente a pontada da adaga de Grieve nas costelas.
— Muito bem, então. Você e Thorn voarão adiante e atacarão os Orthroc do outro
lado daquele pico. Capturem os suprimentos deles e matem todos que estiverem
diante de vocês, mas, se algum deles fugir, não devem persegui-lo. Deixe isso para
os meus guerreiros. Entenderam?
— Sim — disse Murtagh, que afrouxou as tiras em volta das pernas.
Sim, disse Thorn.
— Então, vamos! — E, para os homens a cavalo, Grieve fez um gesto e disse: —
Ataquem!
Os guerreiros viraram os cavalos para o norte, cravaram as esporas e começaram
a galopar em direção ao pico.
Thorn esperou até que o grupo chegasse ao pé da elevação antes de se agachar e
alçar voo atrás deles. Murtagh se curvou sobre o pescoço do dragão quando o vento
frio o atingiu de frente e o obrigou a franzir os olhos. A ferocidade gelada do vento
clareou um pouco sua mente, como uma camada fina de pátina sendo arrancada de
cobre envelhecido.
Thorn passou por cima do pico, dos homens a cavalo, dos pinheiros carregados
de neve e desceu em direção a um leito largo de riacho, quase seco no inverno.
Perto dele, havia um bando amontoado de figuras vestidas com peles entre uma fila
comprida de cavalos. Para Murtagh, os Orthroc em trajes bárbaros pareciam
volumosos e ameaçadores, e ele viu chifres curvos nas cabeças de vários deles.
Urgals!
Thorn rugiu. Os Orthroc recuaram com medo e começaram a correr, mas foram
impedidos pela neve. Eles eram muito lentos. Muito, muitíssimo lentos.
Os cavalos gritaram quando Thorn pousou no chão diante deles com um
estrondo. O som era enlouquecedor e os animais empinaram-se, se debateram e
fugiram. Alguns caíram, esmagando os Orthroc que estavam por perto. Pacotes
escorregaram para o chão e as cordas se esticaram, derrubando os cavalos ou
estalando como chicotes.
Murtagh não pensou. Não precisava. Havia uma luta a ser travada, uma espada na
mão e inimigos que pretendiam matar a ele e a Thorn. Era um problema simples.
Uma figura correu na direção deles, e Thorn deu um tapa com a pata e quebrou o
guerreiro.
Murtagh saltou para o chão. O impacto o deixou de joelhos, mas ele se recuperou
e avançou com o escudo erguido. Uma flecha passou zunindo por sua cabeça, um
traço borrado quase invisível.
Um dos Orthroc surgiu diante dele com uma lança na mão. Murtagh bateu com a
espada na lança para desviá-la, depois rasgou o casaco de pele do guerreiro até o
pescoço. O homem desmoronou com sangue jorrando do ferimento mortal como
uma fonte da cor de rubi.
Murtagh já estava passando por ele. Dois Orthroc enormes se aproximaram. Um
cavalo deu um coice em um deles, que caiu. O outro golpeou Murtagh com uma
acha de armas enferrujada. Ele saiu do alcance, se esquivou de duas investidas e,
em seguida, diminuiu a distância e estocou o Orthroc na barriga. Então, ao passar
por ele, jarretou o Urgal com um golpe de esquerda.
A princípio, a luta parecia separada de quem e do que era Murtagh. Ele se
percebeu em movimento e não sentiu nada. Mas os instintos da carne não podiam
ser negados. Mesmo através da cortina de indiferença, sentiu o sangue acelerar, a
respiração se intensificar e a ardência dos músculos sobrecarregados. E uma fúria
sanguinária cresceu dentro dele, junto com um medo de igual intensidade, até que o
coração sentiu como se estivesse prestes a explodir e…
Toc.
Uma flecha atingiu o broquel e varou o braço.
Tec.
Uma flecha atingiu o ombro e perfurou a armadura de escamas.
Ele não tinha mais as proteções mágicas contra ataques físicos. A ponta da flecha
perfurou pele e músculo, enviando uma pontada de dor lancinante através do braço
e do ombro. Naquele momento, Murtagh ficou frio como gelo; parecia que o pulso
tinha parado e tudo o que ele via adquiriu um brilho azulado. Ele não estava mais
com raiva ou com medo. Em vez disso, Murtagh era um instrumento de violência
pura e implacável, desprovido de pensamento, misericórdia ou qualquer coisa que
se assemelhasse a uma emoção humana. Ele se movia com uma perfeição nascida
da prática, da experiência e da intenção inconsciente.
Uma flâmula de chamas riscou o céu cinzento: o fogo lançado por Thorn pintou o
campo de corpos em combate com uma luz macabra.
Pelo que parecera uma eternidade, Murtagh lutou. O braço esquerdo estava
dormente e inútil, mas isso nem de longe diminuiu seu ímpeto. Ele fora treinado por
um dos melhores espadachins do reino, cunhado nas batalhas mais ferozes da
memória recente, e sua força e velocidade foram potencializadas por ser um
Cavaleiro.
Os Orthroc não tiveram chance contra ele. Murtagh abateu os Urgals como feixes
de trigo seco com uma foice, e a espada ficou vermelha de sangue. Os poucos
Orthroc que tentaram fugir não deram mais do que alguns passos antes que Murtagh
os alcançasse e os matasse por trás, ignorando seus gritos.
Enquanto matava, uma alegria terrível se enraizou dentro dele. Era como se os
sonhos que teve em Nal Gorgoth tivessem se tornado reais, e uma nova onda de
força percorreu seus braços e suas pernas. Por que ele não deveria conquistar e
matar? Por que não deveria assumir o trono e governar com Bachel ao seu lado? Por
que não poderia moldar o mundo à sua vontade?
Por fim, não restavam mais Orthroc. O último jazia aos pés dele, soltando um
suspiro de morte.
Murtagh se virou. Um caminho de neve manchada de sangue levava de volta ao
riacho. Corpos jaziam espalhados pelo chão salpicado e apenas os cavalos dos
Orthroc permaneciam de pé, com os dentes compridos arreganhados, olhos rolando
e arregalados, e cascos afiados batendo no chão.
Thorn estava agachado dentro de um círculo de cadáveres — tanto de Orthroc
quanto de cavalos. O focinho estava franzido em um rosnado, e dentes, garras e
patas dianteiras estavam salpicados de sangue e de vísceras alheias. O dragão estava
ofegante e tremendo, e pequenas labaredas de chamas saíam das narinas a cada
exalação.
Grieve ainda estava sentado nas costas de Thorn. O homem parecia abalado, mas
triunfante.
Atrás de Thorn, os outros Draumar circularam o campo de batalha. Nenhum
parecia ter sujado as armas de sangue.
O Orthroc aos pés de Murtagh soltou um último suspiro e logo em seguida o
corpo vestido de peles ficou mole. O movimento chamou a atenção dele. Pela
primeira vez, olhou para o rosto de um dos Orthroc e viu… não um Urgal, mas um
homem com bochechas queimadas pelo vento, uma espessa barba ruiva e tranças
decoradas com contas que pendiam de ambos os lados da testa larga. Um homem
como qualquer outro que poderia ter sido encontrado em várias tribos errantes da
parte norte da Alagaësia.
Murtagh ergueu o olhar a fim de analisar os cadáveres. Todos humanos, e não
apenas homens, mas mulheres e… corpos menores também.
Ele começou a tremer quando, em um instante, a febre da batalha se transformou
em repulsa doentia e as promessas sedutoras de sonhos mal concebidos se tornaram
uma realidade nua e crua. Bachel não havia enviado os dois para atacar um comboio
de guerreiros armados, mas sim um grupo de integrantes de uma tribo, e a única
razão que Murtagh poderia imaginar para tais pessoas estarem se deslocando no
inverno era porque procuravam segurança — ficar a salvo de gente como os
Draumar.
Apesar do estado de confusão mental, Murtagh sentiu vontade de vomitar. A dor
da flecha no ombro veio à tona com força paralisante, e ele engasgou sem querer.
Murtagh queria negar a evidência diante dos próprios olhos, mas possuía uma
mente muito prática para se iludir. Ele sabia o que suas mãos tinham feito.
Não, não só suas mãos. Ele.
Murtagh olhou para Thorn e viu o dragão o encarando com uma expressão
atormentada que o Cavaleiro reconheceu da época em que estiveram presos em
Urû’baen. O fogo se extinguiu nas narinas de Thorn, que estremeceu e soltou um
gemido leve.
O dragão começou a dar um passo à frente.
— Parado! — vociferou Grieve, ainda montado na sela.
Thorn congelou.
Enquanto Grieve deslizava para o chão, Thorn e Murtagh continuaram a olhar um
para o outro, incapazes de quebrar a compulsão que os prendia.
A neve ensanguentada estalou sob as botas do homem enquanto ele se
aproximava de Murtagh. Grieve estudou a flecha fincada no ombro do Cavaleiro.
— Teria sido melhor se eles tivessem matado você — disse Grieve em um tom
indiferente.
Ele pegou um amuleto de caveira de pássaro de dentro do robe, pressionou no
ombro de Murtagh e puxou a flecha.
A dor fez com que a visão de Murtagh escurecesse e as pernas fraquejassem.
Ele caiu de joelhos e olhou. Não havia sangue. A ferida havia cicatrizado e estava
vermelha e enrugada, como se tivesse se passado uma semana de cicatrização.
Murtagh se apoiou nos calcanhares e moveu o braço esquerdo: ainda estava fraco,
mas os músculos pareciam funcionar.
Ele estremeceu novamente.
— Fique de pé, larva de verme — disse Grieve, que se virou antes de gritar para
os guerreiros a cavalo: — Reúnam os suprimentos para que o dragão possa carregá-
los! Sejam rápidos! Bachel está ficando impaciente. Quando partirmos, peguem
todos os cavalos que puderem e levem-nos para Nal Gorgoth.
— Da forma como é sonhado, assim será — responderam os homens em
uníssono.

Murtagh se sentou ao lado de Thorn e observou enquanto os cultistas empilhavam


pacotes de suprimentos — comida, roupas, odres de bebida — diante deles. Grieve
o poupou da tarefa de ajudar, não por misericórdia, mas porque, com o braço ferido,
ele seria de pouca ajuda.
O olhar de Murtagh se voltou para os corpos caídos na neve pisoteada. Ele
baixou os olhos para as mãos manchadas de sangue e para a pata suja de vísceras de
Thorn a seus pés.
Então, fechou a capa com mais força. Ainda não tinha parado de tremer.
O focinho de Thorn tocou o ombro dele. O gesto era para proporcionar uma
sensação de conforto, mas Murtagh não sentiu nenhuma melhora. O único
pensamento que lhe veio à mente foi: Não. Uma declaração de negação, de rejeição.
Não voltada para o dragão, mas para as circunstâncias que os prendiam.
Os cultistas usaram cordas para amarrar os suprimentos. Grieve mandou o
Cavaleiro subir nas costas de Thorn e subiu junto. O dragão agarrou as cordas entre
as garras ensanguentadas e decolou com pesar.

O voo de volta para Nal Gorgoth foi frio e silencioso. Apesar do fardo adicional de
Thorn, não foi mais lento do que antes, pois o vento estava a favor.
Murtagh desejou que não estivesse.
Fios de luz alaranjada opaca se estendiam sob as nuvens a oeste e passavam entre
as saliências dos picos das montanhas quando o vilarejo apareceu.
Thorn pousou no pátio do templo e Bachel saiu para cumprimentá-los junto com
os liteireiros, guerreiros e assistentes. Alín estava perto da bruxa, com o rosto pálido
e abatido, e os olhos dela se arregalaram ao ver as patas de Thorn e as mãos de
Murtagh.
Junto a Bachel e sua comitiva estavam também os convidados recém-chegados,
incluindo o homem que Murtagh não conseguiu identificar, e...
— Murtagh! Parece que você escorregou e caiu no matadouro de um açougueiro!
Bastante desajeitado de sua parte, devo dizer!
Lyreth. Em toda a sua elegância cheia de bordados, com um cálice de vinho em
uma das mãos e a outra apoiada na cintura de uma cultista. Outrora, aquelas
palavras teriam incomodado Murtagh. Agora eram como palha ao vento.
Quando Murtagh desceu da sela, Bachel mandou que os guerreiros retirassem a
espada dele, o banhassem e o levassem de volta para a cela sob o templo. Eles
obedeceram.
Na saída, um dos cultistas roçou no lampião no final do corredor da masmorra,
apagando a chama. As celas caíram numa escuridão total.
Murtagh ficou deitado no chão de pedras, com frio e tremendo enquanto gotas de
água pingavam do cabelo. A escuridão parecia um túmulo para a culpa: ela o
envolveu com uma força terrível, revirando suas entranhas e estrangulando sua
respiração.
Ficou imóvel por um tempo infinito, a sensação angustiante de erro tão dolorosa
quanto uma ferida.
A partir disso, uma verdade se formou no centro da mente confusa, um núcleo
inflexível de realidade inescapável: ele não podia continuar como estava, mas nem
ele nem Thorn conseguiriam mudar as coisas. Fazer isso estava além da capacidade
deles.
Um arranhão intenso soou no corredor, como se algo muito pesado se deslocasse
pelas lajotas.
— Homem-Murtagh, qual é o problema?
Foi necessária toda a recém-adquirida acuidade mental de Murtagh para forçar as
palavras a saírem da boca.
— Me ajude...
CAPÍTULO XX

Qazhqargla

— Não— Não posso ajudar você, Homem-Murtagh — disse Uvek, com uma
voz que parecia triste.
— Por favor… Me ajude… Eu…
Passos rápidos se aproximaram pelo corredor e vacilaram por um momento. Uma
reclamação aborrecida foi sussurrada e, então, uma batida de pederneira e aço.
Murtagh lutou para se sentar. Usando o braço direito, ele se apoiou nas barras de
metal da cela. O ferro estava tão frio que parecia queimar. Ele ajeitou a capa em
volta da camisa fina de lã.
Uma chama se acendeu no lampião no início do corredor e Alín correu até a cela
de Murtagh, carregando uma tigela de sopa rala com meio pão dentro. Ela hesitou
ao vê-lo.
— Sinto muito — sussurrou Alín, passando a tigela pelas barras. — Nunca
deveria ter sido assim.
E ela se virou e saiu correndo, com passos que soaram leves como penas nas
pedras.
Do outro lado do corredor, Uvek virou a enorme cabeça na direção de Murtagh.
Iluminado lateralmente pela luz do lampião, o rosto bruto do Urgal estava sombrio e
preocupado. Havia uma tristeza sábia naqueles olhos amarelos.
— Foi tão ruim assim, Homem-Murtagh, o que eles mandaram você fazer?
— Sim... — Murtagh abriu as pálpebras e, sem virar a cabeça, olhou para o
Urgal. — Me ajude... Não posso... Não posso… continuar…
Falar demandava toda a força que ele ainda tinha e, depois, Murtagh ficou mole e
teve que se concentrar na respiração enquanto esperava que o chão se estabilizasse
sob ele.
— Humm.
Quando Murtagh se recuperou o suficiente para abrir os olhos novamente, viu
Uvek o observando com preocupação.
— Dragão-Thorn não pode ajudar Homem-Murtagh? — perguntou o Urgal. —
Dragão e Cavaleiro juntos? Dragões muito fortes.
— Não… Não desta… vez.
— Humm. Não sei o que fazer. Eu sou xamã, falo com espíritos. Você conhece
espíritos, certo?
Murtagh conseguiu assentir.
— Eu falo com espíritos. Às vezes eles respondem. Mas não conseguem me
ouvir agora. Não neste lugar, não com veneno no estômago.
— Se eu pudesse… usar… magia… poderia… libertar… — disse Murtagh,
reunindo toda a sua força.
Mas ele não conseguia manter a concentração mental por tempo suficiente para
continuar falando.
Uvek cutucou o lábio inferior grosso com uma unha em forma de garra.
— Humm. Olhe, Homem-Murtagh.
Do cinto de couro bruto, Uvek tirou um pequeno objeto: um pedaço de pedra
negra esculpida que estava amarrada com uma tira fina de cordão trançado.
— Viu? Eu tenho amuleto. Os sem chifre não pegaram porque acharam que era
só uma pedra. Hrr-hrr-hrr.
Levou um momento para Murtagh perceber que o Urgal estava rindo. Uvek
ergueu a pedra para que refletisse a luz do lampião. A superfície brilhava como se
fosse incrustada com pontinhos de ouro.
— O amuleto é para curar. Poderia ajudar com o Sopro, mas…
— Mas?
— Está fraco, Homem-Murtagh. Amuleto vazio. Eu costumava curar cervos com
a perna quebrada. Tentei dar força ao amuleto, mas… — Uvek balançou a cabeça.
— Não funciona. Mas talvez funcione com você. Você é um Cavaleiro.
Um levíssimo lampejo de esperança se formou em Murtagh.
— Talvez... — Ele lutou para se sentar.
Uvek se curvou para a frente, segurando a pedra negra como se fosse um frágil
ovo de azulão.
— Se você escapar, Homem-Murtagh, vai me libertar? Vai libertar Uvek Voz do
Vento?
— Sim...
— Humm. Os Urgralgra têm muitas relações ruins com os sem chifres. Hrr. E os
sem chifres têm muitas relações ruins com os Urgralgra. Antes de dar o amuleto,
preciso que Homem-Murtagh jure que nunca quebrará a palavra.
— Não posso jurar… não vou…
A expressão de Uvek permaneceu impassível como pedra.
— Então não dou o amuleto.
Frustrado, Murtagh deixou a cabeça pender contra as barras. Ele não tinha forças,
só que não podia desistir, por mais doloroso que fosse continuar.
— Não posso… Não posso jurar para… a raça inteira… — Ele fez uma pausa,
tentando atravessar a névoa no cérebro. — Não ficarei… preso… preso
novamente… desse jeito.
Afinal, todo o motivo pelo qual Murtagh estava na cela foi porque ele e Thorn se
recusaram a se comprometer com Bachel.
— Humm.
Uvek fechou as mãos ao redor da pedra negra enquanto permanecia sentado e
curvado, pensando.
— Há outro jeito, se você quiser, Homem-Murtagh, mas… — O Urgal deu de
ombros. — Não é feito com frequência e nunca com os sem chifres. É o rito de
qazhqargla. Você se torna irmão de sangue de Uvek. Então sua palavra é minha, e a
minha é sua, e nós compartilhamos nossa honra.
Murtagh cerrou os dentes enquanto encarava o teto escuro. Suas escolhas eram
poucas, e se ele e Thorn não conseguissem se livrar de Bachel… Thorn. Murtagh
enviou a mente em busca do dragão e, com toda a energia que conseguiu reunir,
tentou transmitir para ele a natureza do dilema.
Em troca, ele recebeu uma resposta vaga e sem foco, com um toque de
compreensão e resignação. Murtagh sabia o que Thorn queria dizer. O dragão
aceitaria qualquer escolha que Murtagh fizesse. Confiava no Cavaleiro, e Murtagh
nunca, jamais queria quebrar essa confiança. Ele já se sentia culpado por ter
insistido em ir até Nal Gorgoth e continuar ali, apesar da sugestão feita por Thorn
de irem embora.
— O que você me diz, Homem-Murtagh?
Murtagh fez uma careta ao se erguer mais.
— Minha honra… é posta em… dúvida por… muita gente… Você… talvez…
não a queira.
Uvek franziu o lábio superior e mostrou as presas em um sorriso grotesco.
— Vou arriscar e aceitar o fardo, Homem-Murtagh. E você?
O ar fresco do subterrâneo acalmou a garganta de Murtagh enquanto ele enchia
os pulmões e tentava clarear seus pensamentos. Ele não confiava em si mesmo para
resolver o problema mais básico e, por mais que examinasse a questão, não
conseguia pensar em outra solução.
As muralhas que ele e Thorn construíram em volta de si mesmos não podiam
resistir. Não mais.
— Tudo bem — resmungou Murtagh. — Eu… farei o juramento.
— Não é tão fácil assim, Homem-Murtagh.
— Nunca é...
Uvek começou a murmurar em sua língua nativa, balançando para a frente e para
trás. Murtagh fechou os olhos e deixou que as palavras ríspidas o envolvessem em
ondas rítmicas. Depois de um minuto, Uvek grunhiu.
— É isso que você vai precisar dizer, Homem-Murtagh. — E ele falou várias
frases em língua Urgal, que, na opinião de Murtagh, poderiam muito bem ter sido
um complicado exercício projetado especificamente para impedi-lo de completar o
rito.
Pelo que pareceu quase uma hora, Uvek o treinou na pronúncia correta das
palavras. Murtagh teve que descansar com frequência e, com a mesma frequência,
esqueceu o que Uvek já havia lhe ensinado.
— Assim vai servir — disse o Urgal, depois de soltar um suspiro de frustração.
— Os deuses entenderão sua intenção.
Uma percepção tardia ocorreu a Murtagh.
— Espere… Você não vai me fazer jurar na… língua antiga?
Uvek inclinou a cabeça.
— Quer dizer palavras de sortilégios, Homem-Murtagh? Não. Elas não são
próprias dos Urgralgra, então por que usá-las? Se um homem ou Urgralgra não
mantiver um juramento em um idioma, não manterá em outro.
Alívio e uma leve sensação de graça fizeram Murtagh rir.
— Creio… que você tenha razão. — Ele pensara que Uvek o obrigaria a usar a
língua antiga, o que foi em grande parte o motivo de sua relutância.
— Humm. — Uvek bateu no antebraço e apontou para Murtagh. — Para terminar
qazhqargla, devemos unir sangue e falar as palavras. Entende?
Murtagh assentiu, cansado.
— Por que… Por que é sempre… sangue?
— O sangue é poderoso, Homem-Murtagh. Sangue é vida. Os sem chifre também
sabem disso, não sabem?
— Sim... sabemos.
Murtagh enrolou a manga do braço esquerdo e encarou a pele nua por um
momento.
— Não tenho… faca.
Uvek franziu a testa.
— Por que precisa de faca, Homem-Murtagh? Use as unhas. — Ele ergueu o
dedo indicador esquerdo e mostrou a unha grossa em forma de pá crescendo na
ponta.
Murtagh ergueu o próprio dedo.
— Muito... fraco.
— Ghra. Eu esqueço como os sem chifres são frouxos. E se…
— Espere.
Murtagh abriu o fecho que prendia a capa em volta do pescoço. Havia um
alfinete na parte de trás e, embora não fosse muito afiado, poderia funcionar.
— Vou usar... isso.
Uvek grunhiu.
— Bom. Corte aqui… — Ele traçou uma linha logo abaixo da mão. — Aí nos
tocamos e compartilhamos sangue.
Murtagh fez uma leve careta, mas assentiu. O corredor era estreito o suficiente
para que eles conseguissem se tocar.
— Pronto agora, Homem-Murtagh?
— Pronto...
Na cela dele, Uvek se curvou sobre o braço e raspou a unha do polegar esquerdo
no pulso direito com um movimento lento e controlado. O Urgal não demonstrou
nenhum sinal de dor quando uma linha de sangue negro brotou da carne cortada.
Murtagh desviou o olhar. Ele respirou fundo, franziu a mandíbula e então — o
mais rápido que pôde e com toda a força que parecia necessária — arrastou a ponta
do alfinete na pele do pulso esquerdo, criando uma faixa ardente de dor.
Xingou baixinho. O alfinete cortou apenas metade da pele. Ele franziu a
mandíbula mais uma vez e, sem hesitar por causa da dor que viria, passou o alfinete
no pulso uma segunda vez.
Mais sangue jorrou da ferida ardente e Murtagh soltou a respiração em um
suspiro.
Uvek passou o braço entre as barras da cela — precisou forçar bastante, mas ele
conseguiu — e Murtagh fez o mesmo, então ambos apertaram os pulsos
ensanguentados um ao outro. O braço do Urgal estava quente ao toque e o sangue
ardeu na pele de Murtagh.
Uvek falou a metade dele do juramento na língua Urgal, e então foi a vez de
Murtagh. Ele falou sem pressa, pronunciando as palavras como foi ensinado e se
esforçando para evitar erros. O significado das palavras era, segundo Uvek, algo no
sentido de: “Eu, Murtagh Cavaleiro de Dragão, me torno irmão de Uvek Voz do
Vento. Que o sangue dele corra em minhas veias e o meu, nas dele. Isso eu juro por
Svarvok do Grande Chifre. Se eu falhar em manter este vínculo sagrado, que todo
tipo de infortúnio recaia sobre mim e minha tribo.” O juramento podia não ter sido
falado na língua antiga, mas era um assunto sério mesmo assim. Murtagh sentiu o
peso das palavras ao pronunciá-las.
Após a conclusão, eles recolheram os braços e cuidaram dos ferimentos. Uvek
grunhiu.
— O qazhqargla está completo. Agora somos irmãos, Homem-Murtagh.
— Irmãos...
Era algo estranho de dizer. O único irmão — meio-irmão, na verdade — que
conhecia era Eragon, e o relacionamento deles estava longe de ser fraterno. Embora
Murtagh ainda se preocupasse com as obrigações impostas por aquele juramento,
também achou... reconfortante, de certa forma, se ligar daquela maneira a Uvek. Os
costumes dos Urgals eram diferentes dos costumes dos homens, mas ele tinha
certeza de que, se pedisse ajuda a Uvek, o Urgal responderia sem hesitação.
Primeiro, obviamente, os dois tinham que escapar de Nal Gorgoth.
— Aqui, Homem-Murtagh. O amuleto de cura. Talvez ajude você.
— Talvez... — murmurou Murtagh, aceitando a pedrinha negra de Uvek.
Ela estava quente e a tira amarrada em torno dela tinha uma textura agradável.
Murtagh tentou duas coisas então: primeiro, extrair qualquer energia remanescente
da pedra, o que não deu em nada. Uvek não tinha mentido: não havia o menor
fragmento de energia dentro do amuleto. Então tentou imbuir um pouco da própria
força na pedra negra. Mesmo que não pudesse conjurar um feitiço diretamente,
Murtagh esperava conseguir pelo menos usar a energia do corpo para alimentar o
amuleto.
A esperança provou ser em vão. Por mais que tentasse, Murtagh não conseguia
quebrar a represa dentro da mente que o impedia de soltar o poder que continha.
Uvek notou a frustração dele.
— Não funciona, Homem-Murtagh?
— Não... Não! — Murtagh fechou os olhos e sentiu lágrimas escorrerem. —
Não... Eu preciso de… força para o amuleto, mas...
— Pode não ter acontecido por causa do Sopro. — Uvek concordou com uma
expressão pensativa, parecendo perturbado. — Eu tive o mesmo problema. Não há
solução? Homem-Murtagh, você ainda está acordado?
Murtagh se obrigou a abrir os olhos.
— Sim... Solução?
Ele balançou a cabeça, deprimido, e se deitou no chão. Como as lajotas estavam
frias, puxou a capa sobre o corpo.
— Preciso… pensar… Dormir…
— Homem-Murtagh. Homem-Murtagh! Ouça! Você...
Mas Murtagh não ouviu mais nada e, pela primeira vez, teve uma trégua dos
pesadelos lívidos de Nal Gorgoth.

Quando Murtagh acordou, a princípio não sabia quem era ou onde estava. Ele
encarou o teto abobadado por um longo tempo antes que as memórias vagas e
encharcadas de sangue da matança no riacho fizessem o pulso disparar, então foi
tomado pela culpa.
Ele rolou de lado com a intenção de se sentar e sentiu algo duro embaixo do
quadril direito. Olhou, pensando que devia ser o amuleto de pedra negra, mas tudo o
que viu foi a ponta dobrada da capa.
Murtagh deu um tapinha nela.
Mais uma vez, ele sentiu um caroço duro do tamanho de uma avelã. Franziu a
testa.
— O que foi, Homem-Murtagh?
Uvek estava agachado na mesma posição em que se encontrava quando Murtagh
adormeceu. Não parecia que ele havia se movido durante aquele tempo todo.
Com a pergunta, Murtagh percebeu o latejamento no pulso esquerdo. Parecia que
havia sido marcado. O ombro também doía, e aquela dor em especial trouxe
lembranças indesejadas.
Murtagh balançou a cabeça. Ele estava se distraindo. Olhou de volta para a capa
e tateou a ponta… Passou os dedos na bainha… e puxou um diamante amarelo em
forma de lágrima que brilhava como uma gota de luz solar cristalizada na cela
escura.
Uvek contraiu o lábio inferior e soltou um som baixo ao vê-lo.
Levou um momento para Murtagh lembrar o que o diamante era... e onde o
encontrara... Wren… a porta de pedra… Murtagh começou a sentir uma
empolgação se formando e ergueu a joia para Uvek.
— Energia... — sussurrou ele.
O Urgal se inclinou para a frente com olhos brilhando com um fogo semelhante
ao do diamante.
— É suficiente, Homem-Murtagh?
Ele concordou com a cabeça.
— Deve… ser.
Murtagh abriu a mente e expandiu os pensamentos para o diamante. Sentiu o
redemoinho de energia contido na gema: tão perto, tão tentador. Por mais que
tentasse, no entanto, não conseguia… pegá-la e canalizá-la através do corpo para o
amuleto de pedra negra.
Ele gemeu de frustração e novamente projetou a mente no diamante. Parecia que
estava tentando agarrar gelo líquido. A energia não parava de escorregar por entre
os dedos mentais, deixando Murtagh tateando no vazio.
— Não… adianta — disse ao se sentar sobre os calcanhares, balançando a
cabeça. — Você quer… tentar?
Uvek estendeu a manzorra e Murtagh — confiando no juramento que haviam
feito — passou a gema para ele.
Por vários minutos, Uvek ficou imóvel, encarando o diamante com a testa
franzida e a respiração lenta e pesada. Os músculos dos braços se retesaram como
se ele estivesse lutando contra um grande peso. Então, finalmente, o Urgal disse:
— Guh. Eu não consigo tocar o fogo na gema. Ele fica escapando.
Uvek devolveu o diamante para Murtagh, que se sentou apoiado na parede da
cela. Os olhos se fixaram na gema. Depois de um momento, ele cerrou o punho,
apertando o diamante, balançou a cabeça e descansou a testa contra o braço.
— Tem que haver um jeito...
Por um tempo, os dois ficaram sentados em silêncio. O tempo todo, Murtagh
lutou contra a neblina constante que obstruía a mente. Se ao menos conseguisse
pensar com clareza…
Ele franziu a testa. O Sopro de Azlagûr confundia seus pensamentos e a
vorgethan o impedia de usar magia — embora talvez os efeitos de ambos fossem
piores quando combinados. Se pudesse remover um ou outro, ele e Thorn — e
Uvek — poderiam ter uma chance.
Murtagh se sentou ereto e olhou para Uvek, que ergueu as sobrancelhas pesadas.
— O que foi, Homem-Murtagh? Teve ideia?
— Talvez...
— É boa?
— Talvez… Espere…
Eles esperaram. Murtagh não sabia que horas eram. As celas não tinham janelas,
mas ele achava que não tinha dormido a noite inteira. O corpo lhe dizia que era
muito cedo ou muito, muito tarde.
Murtagh permaneceu no chão, de olhos semicerrados enquanto economizava as
forças, sabendo que precisaria muito delas.
Então… Passos no final do corredor.
Era Alín, vindo buscar a tigela que trouxera antes. Como ele esperava. A mulher
de robe branco lhe deu apenas um olhar breve e preocupado antes de se ajoelhar e
estender a mão entre as barras para pegar a tigela.
— Espere… — disse Murtagh, que se mexeu para tocar o pulso dela.
No último momento, um instinto deteve a mão dele, embora Murtagh não
pudesse dizer por quê.
Ela fez uma pausa com o braço estendido, os olhos arregalados e redondos, como
uma corça assustada.
— Você poderia… falar com Bachel… dar um jeito… de trazer… trazer todas as
minhas refeições?
Murtagh viu que Alín tremia.
— Por quê, Regicida? — sussurrou ela.
— Para que você… deixe de fora a droga. — Ele a olhou nos olhos, tão sério
quanto conseguia. — Para que… Thorn e eu possamos… escapar.
O tremor de Alín aumentou e ela balançou a cabeça, como se negasse as palavras
dele, mas ainda assim não recolheu o braço.
— E-eu não posso.
— Por favor… Bachel vai… lavar o mundo… com… sangue… se puder.
Alín balançou a cabeça novamente e se retirou, fugiu de volta pelo corredor com
o robe esvoaçando atrás dela.
Com um gemido, Murtagh desabou contra a parede.
— Foi uma boa tentativa, Homem-Murtagh — disse Uvek.
— Não… o suficiente.
— Humm. Veremos. Leva tempo para acalmar um animal selvagem. — O Urgal
lançou um olhar astuto por baixo da testa baixa. — Às vezes, é melhor deixar o
animal se aproximar da pessoa. Caso contrário, a pessoa assusta.
— Sem… tempo… para isso.
— Nem mesmo os deuses sabem o que o futuro reserva.
Murtagh olhou para Uvek. A expressão do Urgal era impossível de interpretar,
mas ele parecia tranquilo. Murtagh não conseguia decidir se aquela atitude vinha de
fatalismo, de fé ou de algum outro aspecto da cultura ou personalidade do Urgal,
mas achava impossível ficar tão calmo.
Calmo ou não, Murtagh não tinha escolha a não ser aguardar e esperar. E nos
recessos confusos da mente, aquelas mesmas palavras continuavam se repetindo:
por favor… me ajude…
CAPÍTULO XXI

Uma questão de fé

N ão demorou muito até que os cultistas fossem buscá-lo de novo e o escoltassem


até o santuário interno do templo, onde Bachel recebia os convidados.
O dia passou como tantos outros em Nal Gorgoth. Murtagh cumpriu o papel de
companheiro silencioso da bruxa — um objeto de escárnio, de ridículo e até de um
pouco de medo por parte dos convidados —, enquanto ela lançava ordens.
Ele viu Alín no meio da comitiva, mas a jovem de cabelos louros evitou o seu
olhar e se afastou depressa.
Os Draumar ainda estavam se preparando para o festival que se aproximava, e o
vilarejo inteiro fervilhava de atividade. Estandartes escuros foram pendurados entre
as construções, ao lado das esculturas que lembravam dragões, enquanto comida e
bebida — muitas das quais Murtagh sabia terem sido roubadas — eram preparadas
em enormes quantidades.
Bachel deixou Murtagh se sentar com Thorn no pátio duas vezes, o que foi um
alívio para ambos. Como se comunicar com a mente estava tão difícil, Murtagh teve
que recorrer à fala, lenta e desajeitada e totalmente inadequada à intensidade dos
sentimentos.
— Como você… está? — sussurrou.
O dragão colocou a cabeça ao lado da coxa de Murtagh, que pousou a mão na
testa escamosa do amigo.
Enquanto os Draumar se moviam pelo pátio, Murtagh o viu observando as
pessoas e identificou, no olhar do dragão, um ódio recém-descoberto, mas muito
enraizado. A raiva de Thorn emanava do corpo dele como o calor de uma forja.
Antigamente, isso teria preocupado o Cavaleiro, mas, naquele momento, acolheu o
sentimento. Murtagh compartilhava daquele ódio e achava que, se as emoções de
Thorn fossem fortes o suficiente, o dragão dissiparia a influência maligna da bruxa.
Era impossível saber do que dragões eram capazes.
Mas Thorn não fez nenhum uso inesperado de magia. Os dois ficaram sentados
ao lado do pátio, muitas vezes sendo observados, mas geralmente ignorados, e
Murtagh olhou fixamente para os pedaços de céu azul lá no alto e desejou…
desejou que ele e Thorn estivessem longe de Nal Gorgoth.

Naquela noite, os cultistas mal haviam levado Murtagh de volta à cela e partido
quando Alín veio de mansinho pelo corredor. O rosto dela estava terrivelmente
vermelho, a pele sob olhos estava inchada e o cabelo, emaranhado.
Ela ficou parada por um tempo, olhando fixamente para Murtagh. Lembrando o
conselho de Uvek, ele esperou que ela falasse, uma expressão convidativa em seu
rosto.
Alín se abraçou e, por fim, disse:
— Você não entende… Como poderia? Mas você não entende. Você não
consegue. — A expressão dela se tornou suplicante. — Eu acreditei em Bachel. Eu
acredito. Ela não é uma falsa profeta. Ela fala com a autoridade de Azlagûr, e como
alguém pode questionar Azlagûr quando vivemos nos sonhos dele? Todos nós
compartilhamos o sonho de Nal Gorgoth e a visão do que pode vir. E quando essa
visão se manifestar…
Ela estremeceu violentamente.
— O mundo será refeito de acordo com a vontade de Azlagûr. — Ela esfregou os
braços, como se estivesse com frio. — Sempre me perguntei o que havia além deste
vale. Bachel sempre nos fala dos males que habitam a Alagaësia, das guerras e das
injustiças.
Alín balançou a cabeça.
— Mas você não é mau, Regicida. Thorn também não. E a forma como Bachel
tratou o dragão… Vai contra tudo o que sei. Contra cada princípio em que acredito.
Contra tudo o que ela nos pregou no decorrer dos anos!
Ela se virou e andou de um lado para o outro entre as celas, perturbada. Ainda
assim, Murtagh permaneceu calado. Com uma expressão transtornada, a jovem se
virou para ele com os dentes pequenos à mostra, como os de um animal
encurralado.
— Os dragões são a força vital da terra, Regicida! Eles são a fonte de tudo o que
é bom, a fonte da vida e da magia e… e… Eles devem ser adorados.
Reverenciados. Honrados. Servidos. E, no entanto, Bachel diz que esse maltrato de
Thorn é necessário. Essencial. De acordo com a vontade de Azlagûr! Eu… eu… —
Ela se interrompeu e estremeceu como se estivesse com febre.
Murtagh se levantou com as pernas trêmulas e foi até a porta da cela.
— O que… você… quer? — perguntou ele, suave e devagar.
Uma película de lágrimas deixou os olhos de Alín reluzentes como prata.
— Quero ajudar Thorn. E… Não, é muito egoísta da minha parte.
— O quê?
— Quero ver a verdade do mundo antes que ele seja limpo por Azlagûr.
— Então… nos ajude.
— Não é tão simples, Regicida. Bachel é a Oradora. Ela é nossa mehtra! Fiz
juramentos a ela e a Azlagûr. Não posso quebrá-los! Se isso acontecesse... ah! Se os
quebrasse, minha alma seria abandonada para sempre. — A pele dela brilhava
graças a uma camada de suor, e Murtagh sentiu o cheiro azedo do medo de Alín. —
Você está me pedindo para jogar fora minha vida e condenar meu futuro eterno por
isso.
— Pelo que é certo...
As palavras atingiram o alvo. Ele notou isso na tristeza da expressão de Alín e
lutou para colocar os pensamentos em ordem.
— Juramentos... obrigam, mas você… pode mudar… se libertar… Eu… sei. Eu
fiz isso.
Alín olhou para ele com angústia.
— Como?
Ele não queria dizer, mas não tinha outro recurso senão o mais profundo
reservatório da verdade.
— Pelo bem… de outro.
Os olhos de Alín se arregalaram e Murtagh sentiu como se ela estivesse
enxergando seu lado mais íntimo. Então os ombros dela cederam e a jovem
balançou a cabeça e soltou um soluço baixinho.
— Não posso. Eu não tenho forças.
O chão pareceu se inclinar sob Murtagh e a cela girou. Ele cambaleou e agarrou
as barras de ferro para se apoiar. Respirou fundo, tentando manter uma aparência de
clareza.
— Família...?
Alín balançou a cabeça.
— Não. Eu fui encontrada quando criança. Como muitos Draumar.
Sangue no chão. Orthroc caídos em pilhas de corpos mutilados. Corpos grandes e
pequenos. Um calafrio tomou conta de Murtagh. Ele podia imaginar como as
crianças chegavam a Nal Gorgoth. Órfãos. Inocentes.
Foi dominado pela tristeza e estendeu a mão para o rosto de Alín, querendo
apenas confortá-la.
Ela se encolheu, mas não recuou.
A pele de Alín tinha um calor febril contra a palma da mão dele. Ela soltou um
gritinho ao ser tocada por Murtagh, que sentiu um tremor passar pelo corpo da
jovem. Ainda assim, ela não se afastou. De alguma forma, ele sabia que isso era
significativo. Uma linha foi cruzada e nunca mais poderia ser descruzada.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Alín.
— Eu quero… quero um sonho melhor, um sonho de alegria, esperança e amor
— sussurrou ela.
— Então... nos ajude.
Alín o encarou com uma esperança tão desesperada quanto a dele, e Murtagh não
sentiu nenhuma malícia no coração dela.
— Se você for embora, vai me levar junto, Regicida?
— Sim… Eu juro.
Um momento se passou e ela se afastou da mão de Murtagh e voltou a esfregar
os braços. A boca dela se abriu, como se fosse falar, mas, em vez disso, a jovem
saiu correndo antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
Murtagh virou um olhar desamparado para Uvek, que estava assistindo como
sempre.
— Eu assustei… ela?
O Urgal grunhiu e coçou o pescoço.
— Humm. Talvez sim, mas…
Mais passos soaram, e eis que Alín reapareceu carregando uma tigela e um jarro.
Ela evitou os olhos de Murtagh enquanto se ajoelhava e colocava os pratos do lado
de fora da cela. Então fez uma rápida reverência, como faria para Bachel, e saiu
correndo novamente.
— Essa aí está sempre correndo — disse Uvek.
Sem responder, Murtagh puxou os pratos para o interior da cela. Ele provou
cautelosamente o vinho aguado na jarra e depois o pão e a sopa na tigela. Nenhum
deles ardeu como conhaque.
Murtagh olhou para Uvek e assentiu.
O Urgal ficou muito quieto, como se estivesse se preparando para a ação.
— Acha que vai demorar, Homem-Murtagh?
— Eu não… sei. Um dia? Talvez mais… Depende… de quanto… me deram.
— Faltam apenas um ou dois dias para a festança da fumaça preta. Acho ruim se
ainda estivermos aqui quando acontecer.
— Tão pouco assim?
Ele não tinha percebido que o festival estava tão próximo.
— Humm. Cure-se mais rápido, Homem-Murtagh.

Depois disso, Alín lhe trouxe comida sem vorgethan em todas as refeições. Ele
esperava que o corpo conseguisse eliminar a droga em algumas horas, mas, para a
irritação e decepção de Murtagh, o processo foi muito mais lento.
Outros cultistas continuaram a alimentar Uvek, e o Urgal permaneceu sob os
efeitos da droga. Murtagh perguntou a Alín se ela também poderia ajudar Uvek,
mas ela balançou a cabeça e explicou que outro cultista, um homem chamado Isvar,
preparava a comida do Urgal, e que Isvar havia sido especialmente indicado por
Bachel e não abriria mão da honra.
Assim sendo, os dois esperaram e, sempre que Murtagh estava acordado, ele
tentava de poucos em poucos minutos acessar a energia contida no diamante
amarelo, de modo a transferi-la para o amuleto de pedra negra. Em algum
momento, ele teria de obter sucesso. A questão era se isso aconteceria antes da
fumaça negra.
Murtagh estava ficando cada vez mais apreensivo com aquele festival. Por certos
trechos de conversa que ouviu, tinha a impressão de que Bachel estava planejando
algo dramático, e se preocupava porque os planos dela poderiam envolver ele e
Thorn.
Embora não estivesse mais recebendo a vorgethan, a mente de Murtagh parecia
mais nublada do que nunca. A bruxa continuou a usar o Sopro nele sempre que os
dois se encontravam, e o fedor do miasma rodopiante parecia nunca sair de suas
narinas.
Na manhã seguinte, Murtagh notou que uma boa parte dos convidados de Bachel
estava partindo. Eles se reuniram no pátio, montados em seus belos cavalos com
flâmulas coloridas, e saudaram a bruxa.
— Adeus, Bachel — disse o homem que Murtagh achou que deveria reconhecer.
— Enviaremos notícias de nossos planos em breve.
A bruxa pegou na borda da taça amassada.
— Seria melhor se vocês ficassem para a hora da fumaça negra.
O homem de expressão séria inclinou a cabeça.
— Vamos deixar essas coisas para você e seus seguidores. — Ele olhou para
Murtagh com uma expressão de leve desgosto. — E para o que quer que você tenha
feito dele.
— Ah, mas eu e meus companheiros ficaremos e lhe faremos companhia,
ilustríssima Bachel — disse Lyreth.
Ele estava parado em um canto do pátio junto com outros quatro homens. As
bochechas de todos estavam rosadas, como se eles tivessem andado bebendo.
Bachel não pareceu impressionada. Para o primeiro homem, ela sorriu e
gesticulou, como se estivesse dando permissão.
— Vá então e navegue com segurança em sua jornada. Que o apogeu de nossos
planos chegue da maneira mais rápida.
— Minha senhora.
E com isso o grupo trotou para fora de Nal Gorgoth, indo para a Baía do Fundor e
o navio que Murtagh sabia que estava atracado lá.

A cada hora que passava, Murtagh sentia como se o corpo se tornasse mais leve,
mais reativo. Infelizmente, a mente não seguiu o exemplo. Cada pensamento dava
trabalho e era difícil mantê-los por muito tempo. No entanto, sentia que a droga
estava lentamente saindo de seus braços e pernas.
Mas não rápido o suficiente. Os aldeões estavam cada vez mais entusiasmados
com a perspectiva do festival, até mesmo Grieve, com sua cara feia, parecia
animado.
Bachel dispensou Murtagh mais cedo naquele dia, pois estava preocupada com os
preparativos para o festival. Ele não se importou. Quanto menos a visse, melhor.
Assim que voltou à cela, ele não se sentou nem se deitou. Apesar da mente lenta,
Murtagh se forçou a ficar de pé e andar de um lado para o outro. O movimento,
como Tornac lhe dissera, sempre limpava o sangue. Por isso, ele se moveu, com a
esperança de que a vorgethan saísse mais rápido das veias.
Uvek observou com paciência impassível. Perguntou apenas uma vez se Murtagh
tinha obtido sucesso com o diamante. Fora isso, parecia contente em esperar o
tempo que fosse necessário. Ao vê-lo agachado dentro da cela, com a luz
bruxuleante projetando sombras intensas dos chifres, Murtagh pôde imaginá-lo no
interior de uma caverna em uma montanha alta, imóvel e silencioso como uma
estátua, um oráculo esperando que os fiéis se reunissem diante de si.
O Cavaleiro continuou andando de um lado para o outro.
Estava quase conseguindo acessar a energia do diamante. Sentia isso, como uma
cócega delicada, uma coceira no nariz. Se ao menos…
Um barulho no início do corredor. Era Alín trazendo o jantar. Pão, sopa de carne
de javali e vinho aguado.
Antes de ela sair, Murtagh disse:
— Espere… Você pode me trazer… minha espada, Zar’roc?
Alín balançou a cabeça e o cabelo escondeu seu rosto.
— Não posso — sussurrou ela.
— Onde... está?
— Bachel mantém sua espada e armadura no templo, na câmara de audiência.
Fazia sentido. Ele assentiu lentamente.
— Estou quase… livre. Você consegue… ajudar a preparar Thorn? Água…
Sela… Grilhões?
Alín hesitou. O cabelo ainda lhe cobria o rosto, e ela não fez movimento algum
para afastá-lo.
— Vou tentar, Regicida — disse ela, suave como uma pétala caindo.
— Obrigado… Cairiam bem… suprimentos para… nós… também.
Novamente uma pausa, e a seguir Alín se virou e partiu.
Murtagh permaneceu onde estava, observando.
— Ela ainda está insegura, Homem-Murtagh. — Foi a primeira coisa que o Urgal
disse em horas.
Murtagh grunhiu enquanto se sentava nas pedras.
— Ela vai fazer… o que é certo.
Uvek balançou a cabeça.
— Depende do que ela acha que é certo.
— Sempre… depende.
Murtagh olhou para o Urgal. Sentia-se cansado de uma maneira inexpressável.
Preocupação, culpa e a luta constante para desanuviar os pensamentos consumiram
suas forças limitadas. Por um momento, ele queria esquecer Bachel e tudo a
respeito de Nal Gorgoth.
— Conte-me uma… história, Uvek.
A testa baixa do Urgal se enrugou quando ele ergueu a sobrancelha.
— Que tipo de história?
— Do... seu povo.
— Humm. Eu tenho muitos povos. Minha família. Meu clã, que deixei. Meus
companheiros Urgralgra.
Murtagh acenou com a mão. Estava cansado demais para se preocupar com
detalhes.
— Você… escolhe.
Por mais um minuto, Uvek ficou em silêncio, ruminando. Então o cenho franzido
clareou.
— Já sei. Vou falar a respeito do filho de Svarvok, Ahno, o Trapaceiro. Isso foi
na época do trevo vermelho, quando os rios tinham gosto de ferro. Ahno havia se
transformado em cervo, e Svarvok enviou lobos para persegui-lo, mordiscando seus
calcanhares, mas Ahno riu do pai e se transformou em lobo. Por sete invernos,
Ahno correu com lobos, viveu como lobo, comeu como lobo. Fazia parte da
alcateia. Liderou a alcateia. Está ouvindo, Homem-Murtagh?
— Estou...
— Bom. Hrr. O problema era que os lobos não escolheram Ahno. Não o queriam.
Mas não conseguiam expulsá-lo do bando. Ahno era muito forte, mesmo em forma
de lobo. Mas… — Os olhos de Uvek brilharam com deleite matreiro, e as pontas
das presas apareceram entre os lábios. — Lobos são astutos. Uma noite, uma loba
de pele negra conhecida como Presa Afiada foi para a reunião de lobos sob a lua
cheia. Estava claro como o dia, por causa do luar refletido na neve. Os lobos
uivaram e rosnaram, e Presa Afiada os convenceu a ajudá-la. No dia seguinte, a
alcateia de Ahno foi caçar cervos-nobres no interior da floresta, onde vivem
sombras e grandes chifres. Aí Presa Afiada foi até Ahno e o atraiu para longe da
alcateia.
A expressão de Uvek ficou um tanto travessa.
— Ele gostou da forma de Presa Afiada, dos pelos e dos dentes dela. Você
entende, Homem-Murtagh?
— Entendo...
— Hrr-hrr. Presa Afiada correu sem parar, e Ahno foi atrás dela até chegarem ao
penhasco. Todas as alcateias estavam esperando ali, escondidas no mato. No
penhasco, Presa Afiada deixou Ahno se aproximar. Aí ela o mordeu, e as outras
alcateias vieram, rosnaram, correram para cima de Ahno e o empurraram... — Uvek
fez um mergulho com a mão — pela borda do penhasco. A queda não o matou,
Homem-Murtagh. Os lobos sabiam disso. Ahno é filho de Svarvok, muito difícil de
matar. No fundo do penhasco havia uma caverna, e na caverna vivia ûhldmaq. Você
sabe o que é?
Murtagh balançou a cabeça.
— Não...
— É um Urgralgra que se tornou urso. Muito perigoso. É contado nas histórias de
tempos anteriores. Este ûhldmaq se chamava Zhargog e era muito velho, sentia
muita fome. Zhargog foi até Ahno, que estava ferido, e lutou com ele. O chão
tremeu, pedras caíram e, finalmente, Ahno teve que desistir da forma de lobo e
voltar a ser Chifrudo. Aí ele fugiu e Svarvok falou com ele: “Ho! Agora, Ahno!
Você desistiu de seus dentes, patas e pelos. O que você aprendeu com isso, meu
filho?” E Ahno riu apesar da dor e disse: “Que não é bom correr com uma alcateia
que não me quer. Vou encontrar a alcateia que me queira.” Aí ele se transformou em
águia e voou para longe. E como Svarvok lidou com o filho é outra história. Humm.
Murtagh voltou a olhar para o teto.
— Existem… muitas… histórias sobre Ahno?
— Ah, sim, Homem-Murtagh. Histórias para o inverno inteiro. Ahno era muito
esperto e se metia em muita confusão. No final, os deuses o colocaram no topo da
montanha e o amarraram à pedra para que não tivessem que ouvir sua conversa
interminável.
— Algum dia ele… encontrou sua alcateia?
— Por um tempo, Homem-Murtagh. Por um tempo.

Naquela noite, os sonhos que Murtagh teve romperam todos os limites das
restrições normais. Eles possuíam um imediatismo tão vívido e horrível que a
própria realidade parecia ter se partido em fragmentos ardentes: cada um era uma
imagem que continha significados de tamanho épico — significados que eram
compreendidos de maneira perfeita e total, sem palavras.
Ele passou por alucinações da mais alta ordem, onde o ar parecia se retorcer e
dobrar, e cada emoção, medo, esperança e alegria recebeu um instante para brilhar
sob o céu do sol negro.
A noite pareceu interminável, mas nem mesmo a própria eternidade poderia durar
para sempre e, por fim, as visões se firmaram em algo que Murtagh conhecia muito,
muito bem e que — se pudesse escolher — preferia ter esquecido.
O ar estava frio com o último suspiro do inverno, e ele viu o vapor subindo dos
excrementos do estábulo. Murtagh estava tentando fazer silêncio enquanto ele e
Tornac se apressavam para selar os cavalos. Os animais relinchavam e batiam com
as patas no chão, impacientes, ansiosos para partir. Eles não eram cavalgados
havia mais de uma semana e estavam empolgados para serem libertados da cidade.
— Calma aí — disse Murtagh, acariciando um cavalo.
A espada não parava de ficar no caminho, se enroscando nas pernas, enquanto
ele lutava para colocar a sela nas costas do cavalo de batalha. Tanto ele quanto
Tornac estavam armados, e, sob a capa, Murtagh usava uma cota de malha da
melhor qualidade.
Eles se moveram com medo apressado. Cobertores, selas, arreios, alforjes com
os suprimentos de que precisariam para se afastar de Urû’baen.
— E se ele vier nos procurar? — sussurrou Murtagh.
Ainda não conseguia acreditar que os dois estavam indo embora da capital de
uma vez por todas, deixando para trás tudo o que conhecera nos últimos quinze
anos.
Tornac olhou por cima do cavalo, uma égua ruana com uma estrela branca no
peito. O rosto magro e bronzeado do mestre espadachim estava sério, mas havia
algo na expressão dele que indicava expectativa e, talvez, uma dose de empolgação.
O perigo sempre acelerava o batimento cardíaco.
— Então nos escondemos. Olhos de dragão são aguçados, mas até mesmo eles
não conseguem ver através de folhas ou galhos, e o rei não pode perder tempo
vasculhando todos os bosques e matas do Império. Enquanto tivermos vantagem
suficiente, ele nunca nos encontrará.
Murtagh ainda estava preocupado.
— E se ele usar magia? O rei deve ter feitiços para procurar. E ouvi dizer que ele
consegue expandir os pensamentos e encontrar uma pessoa, mesmo que ela esteja
do outro lado de Urû’baen.
Tornac agarrou o ombro de Murtagh e o encarou com um olhar firme.
— Os amuletos que recebi daquela bruxa errante nos protegerão de qualquer
tipo de espionagem. O rei não é todo-poderoso, Murtagh. Ninguém é. Se todos os
sussurros ditos a respeito de Galbatorix fossem verdadeiros, os Varden teriam
sucumbido ao poder dele há muito tempo. O mesmo vale para elfos e anões.
Murtagh puxou a cilha do cavalo de batalha e apertou na medida apropriada.
— Você não deveria ter dito o nome dele — murmurou Murtagh.
Tornac parou o que estava fazendo.
— Você não quer ir embora?
— Quero...
Tornac assentiu ao voltar a ajustar os alforjes da ruã.
— Então chega disso. Precisamos estar longe daqui antes do amanhecer.
Murtagh grunhiu, e Tornac olhou para ele com uma expressão pensativa.
— Nós concordamos. Você não pode ficar. Se ficar, o rei…
— Se eu ficar, o rei vai me transformar em meu pai. Ele vai me transformar em
mais um de seus lacaios sanguinários, como Barst ou Yarek — disse Murtagh, sem
fazer nenhuma tentativa de esconder a amargura.
— Não é só isso — disse Tornac. — Mesmo que você não fosse filho de Morzan,
este não é um bom lugar para você, Murtagh. Aqueles sanguessugas na corte vão
arruiná-lo se você ficar.
O orgulho tomou conta de Murtagh.
— Eu nunca permitiria.
Tornac olhou sério para ele por cima da égua.
— Você diz isso agora, mas eles continuariam sendo cruéis, ano após ano. Esse
tipo de atenção acaba com a alma de um homem. Já vi acontecer. — Ele voltou a
atenção para a sela do cavalo. — Você precisa ser livre. Livre de Galbatorix. Livre
da corte. Livre para decidir por conta própria. Só então se tornará o homem que
sei que pode ser.
O carinho na voz do mestre espadachim surpreendeu Murtagh, mas o rosto de
Tornac estava escondido atrás do flanco do cavalo.
— Você merece uma chance de encontrar o próprio caminho, e eu não ficaria
parado, deixando eles o transformarem em algo parecido com Lyreth ou a laia dele.
Confie em mim. É melhor ir embora.
Só então Murtagh percebeu que a verdadeira motivação de Tornac não tinha
nada a ver com se opor ao rei e sentiu uma súbita sensação de gratidão.
— Eu confio em você.
Assim que as montarias ficaram prontas — com os cascos cobertos com trapos
para abafar o som —, eles partiram. O menino que dormia nos estábulos ainda
estava adormecido, e o vigia cujo dever era patrulhar aquela parte da cidadela
estava longe, no fim de sua rota. Tornac e Murtagh haviam planejado a fuga com
muito cuidado.
Os dois saíram pelo portão lateral da fortaleza da cidadela, aberto e sem guarda
durante a semana do festival, e se dirigiram para a muralha externa de Urû’baen.
A batida dos cascos dos cavalos era um acompanhamento suave enquanto
avançavam entre as fileiras de casas adormecidas. O céu estava quase negro e a
grande saliência de pedra que pairava sobre a metade leste da cidade bloqueava
qualquer visão dos primeiros raios do amanhecer.
A distância relativamente curta até as muralhas pareceu ser de pelo menos uma
légua, pois os nervos dos dois estavam à flor da pele. A cada leve lufada de vento,
Murtagh esperava que a forma negra de Shruikan irrompesse da cidadela quando o
rei viesse abordá-los.
Eles logo chegaram ao portão situado na parte de trás das defesas da cidade.
Murtagh havia subornado um vigia para deixá-lo aberto — e estava mesmo. Ele
segurou as rédeas enquanto Tornac o destrancava e, então, passaram correndo
pela saída escura, semelhante a um túnel, que conduzia através da enorme muralha
externa.
Então veio a consternação. O medo. A desesperança. Aguardando por eles no
campo do lado de fora estava um grupo de soldados. Doze lanceiros, com um
capitão altivo à frente, usando um capacete de plumas brancas que captava os
últimos resquícios do brilho das estrelas.
A princípio, Murtagh teve um pensamento transtornado e horrível de que tinha
sido traído por Tornac. Mas então viu o rosto do mestre espadachim. Tornac estava
tão aflito quanto ele. Talvez mais ainda.
— Então as ovelhas desgarradas foram encontradas — disse o capitão com
muita alegria. — O rei ficará satisfeito. Soltem suas montarias, Murtagh, filho de
Morzan, e Tornac, filho de Tereth. Larguem suas armas, e não serão feridos.
Quanto a isso vocês têm a minha palavra, e por decreto real.
Não havia escolha. Murtagh soltou as rédeas, assim como Tornac, e pegou a
fivela do cinturão da espada.
Se não conhecesse Tornac tão bem, não teria percebido a intenção do homem. A
mudança ligeira na postura do mestre espadachim quando ele firmou os pés no
chão, equilibrando o peso — foi todo o sinal que Murtagh recebeu.
Tornac fintou com a mão, primeiro parecendo agarrar o próprio cinto, mas
então, com velocidade mortal, desviou para pegar o cabo da espada e sacar a
lâmina.
O capitão mal conseguiu emitir a primeira nota de um guincho agudo antes de
Tornac acertá-lo no pescoço com uma investida executada com perfeição.
Os soldados gritaram e se dispersaram, pegos de surpresa, enquanto Murtagh
lutava para desembainhar a própria espada. A arma ficou presa na bainha e soltá-
la consumiu segundos preciosos.
Nesse tempo, Tornac feriu mais dois soldados e começou a avançar contra um
terceiro. Os homens encontraram coragem e começaram a cercar o mestre
espadachim com as lanças que formavam um círculo de pontas afiadas.
Enfim a bainha liberou a espada de Murtagh, que atacou os soldados pelo
flanco. Pela segunda vez em dois dias, Murtagh lutou e matou.
Nunca antes tinha se movido com tamanha combinação de crueldade fria e
selvageria desesperada. Mas ele não estava lutando apenas por si mesmo, estava
lutando para ajudar Tornac, e preferia levar um golpe antes de ver o mestre
espadachim ferido.
Os soldados eram todos veteranos: guerreiros treinados que foram
recompensados pela lealdade e bravura com um posto de guarda na cidadela de
Urû’baen. Mas foram surpreendidos, e a queda rápida de vários companheiros os
confundiu, fazendo com que recuassem, e toda vez que os soldados vacilavam,
Tornac ou Murtagh ceifavam outra vida em troca.
Na maior parte do tempo, os dois lutaram em silêncio, exceto por grunhidos e
batidas de metal e um ocasional grito rápido. Ninguém tinha fôlego para falar. Eles
estavam ofegantes e desesperados, e o suor escorria nos olhos.
No entanto… apesar de toda a habilidade de Tornac, e também de Murtagh, os
números estavam contra eles em larga escala. Doze contra dois. Mesmo com a
surpresa do lado deles, estava longe de ser uma luta justa. Murtagh vislumbrou
uma mancha de sangue no ombro direito de Tornac e mais sangue escorrendo de
um corte no couro cabeludo dele, e sentia uma linha ardente em algum lugar do
próprio quadril.
O mestre espadachim lutou como um gato encurralado, se contorcendo, saltando
e atacando com uma velocidade estonteante. Não havia tempo para as formas
estilizadas usadas nos duelos da corte. Não havia tempo para os ângulos e as
distâncias perfeitos dos treinos de esgrima. E, mesmo assim, foi uma exibição
deslumbrante, ousada e arrojada que teria conquistado aplausos até do público
mais saturado. Naquele momento, Murtagh acreditou que nenhum homem poderia
ter resistido frente a Tornac.
Mas, como todos os momentos perfeitos, mesmo em sonhos, aquele não poderia
durar.
Murtagh tropeçou e sentiu a ponta de uma lança atingir as costelas quando um
soldado avançou contra ele, então caiu. Antes que pudesse entender o que estava
acontecendo, Tornac estava diante dele com a espada enterrada no corpo do
soldado.
Outro soldado atacou Tornac por trás e, com uma faca de lâmina longa, estocou
entre as omoplatas dele e o jogou no chão.
Murtagh se libertou e matou o soldado antes que este pudesse retirar a faca das
costas de Tornac. Outro minuto de luta desesperada se seguiu enquanto ele
enfrentava os últimos quatro soldados.
Os homens poderiam ter fugido. Não eram páreo para Murtagh, mas ele sabia
que tinham jurado a Galbatorix o mais solene dos juramentos. Eles eram tão
incapazes de recuar quanto Murtagh de se render.
No final, na luz cinzenta do amanhecer, apenas ele permaneceu de pé em meio
aos corpos espalhados. A égua ruana saiu correndo do campo, mas o cavalo de
batalha de Murtagh ainda estava parado ao lado do portão, bufando e batendo
com as patas no chão.
Angustiado, Murtagh cambaleou até chegar a Tornac e o virou. Sangue
espumoso escorria dos lábios do mestre espadachim, mas os olhos ainda estavam
abertos. Ele sorriu ao ver Murtagh.
— Você acabou com eles da maneira correta? — perguntou Tornac.
Murtagh assentiu, lutando para encontrar fôlego suficiente para falar.
— Todos mortos.
Ele agarrou as mãos do mestre espadachim. Elas estavam surpreendentemente
frias.
Tornac sorriu.
— Eu te ensinei bem, Murtagh. — Então a expressão dele ficou tensa e o aperto
de mão enfraqueceu. — Peça… peça desculpas a Ola por mim… Se você tiver a
chance.
— Claro — disse Murtagh, que não suportava pensar em como a simpática
mulher de rosto redondo receberia a notícia.
— Ela vai me odiar por isso. — Os olhos de Tornac vagaram, mas o olhar se
aguçou novamente e, por um momento, ele ficou lúcido como Murtagh jamais tinha
visto. — Vá. Você tem que ir, maldição. Pegue meu amuleto e me deixe. Acabou
para mim. Vá e seja livre e me… esqueça…
Um último suspiro ruidoso soou dentro do peito de Tornac, o corpo ficou mole e
o brilho desapareceu dos olhos.
Então Murtagh chorou e não se envergonhou.

Uma disjunção, e Murtagh mais uma vez se viu encolhido de medo na planície
desolada, no fim de todas as coisas, com o sol negro ondulando com labaredas
finas de chama negra enquanto o dragão sem asas monstruoso, montanhoso e
corcunda se erguia no horizonte, eclipsando a luz e a esperança.

Outra disjunção. Um campo de grama dourada cobria a ondulação suave de
uma colina. Parada no meio da grama estava Nasuada usando um vestido de
veludo vermelho. Ela se virou para encarar Murtagh e estendeu a mão para ele,
mas estava com uma expressão triste. Por mais que Murtagh tentasse alcançá-la,
não conseguia diminuir a distância.
O céu escureceu, o sol perdeu o brilho e a terra e o céu ficaram da cor de
estanho manchado. Lágrimas marcavam o rosto de Nasuada, e Murtagh sentiu
lágrimas no próprio rosto, ardendo de arrependimento e dor pela separação.
Estrelas pontilhavam o céu enegrecido, e uma sensação de perdição iminente e
inevitável deixou um buraco em seu peito. E ao longe, uma massa corcunda se
mexeu no horizonte e começou a subir para devorar o sol minguante…

Murtagh acordou suando frio, desorientado, sem saber o que era real e o que não
era, e ainda assim consumido por uma súbita convicção de que o tempo era
desesperadamente curto e a perdição se aproximava.
A batida de sinetas, sinos e címbalos agudos soou fora do templo, alta o
suficiente para que a comoção penetrasse nas pedras da construção. E também
gritos selvagens e bárbaros: como se o vilarejo inteiro tivesse enlouquecido.
Do outro lado do corredor, com metade do corpo nas sombras, Uvek olhou para
fora com uma expressão séria e enrugada.
— A hora da fumaça negra chegou, Homem-Murtagh.
O medo estimulou Murtagh a agir. Ele tateou a capa até sentir o diamante
amarelo escondido na bainha. Onde estava o amuleto que Uvek lhe dera? Onde?
Onde? Onde? Por um momento, ele não conseguiu lembrar. Então lembrou: enfiado
no fundo da bota esquerda.
Murtagh agarrou o amuleto e tentou entrar em contato com a energia armazenada
no diamante. O vórtice rodopiante fez cócegas em seu cérebro, com uma
proximidade tentadora. Ele quase conseguiu tocar a energia. A droga devia ter sido
quase expurgada do corpo, porém, apesar das tentativas, ele não conseguiu
desbloquear o fluxo de energia.
Clang!
A porta invisível no final do corredor se abriu e botas marcharam em direção às
celas. Cultistas vindo buscá-lo.
Murtagh tirou a mão da bota e se levantou. Xingou baixinho. Demorara demais.
O tempo havia se esgotado. Ele tinha de enfrentar o que quer que os Draumar
tivessem planejado.
Fumaça negra. Sol negro. Perdição.
CAPÍTULO XXII

Fumaça negra

— Você— Você vai ao festival? — perguntou um dos cultistas, um anão de


barba ruiva que olhava de soslaio com maldade para Murtagh através das grades da
cela. — Claro que vai, Regicida. Claro que vai.
O anão e um companheiro arrastaram Murtagh do confinamento. Ele não
ofereceu resistência. Até que pudesse se mover e pensar por conta própria, estava à
misericórdia de Bachel… e ela possuía muito pouco dessa virtude em especial.
Uvek permaneceu agachado e observando enquanto os cultistas o levavam.
Murtagh não deu nenhum olhar ou sinal de reconhecimento ao Urgal. Era melhor
que os Draumar nem soubessem que eles haviam conversado.
Enquanto os cultistas o escoltavam pelos degraus desgastados e corredores
escuros até a frente do templo, ele notou que o cheiro sempre presente de enxofre
estava ainda mais forte. O miasma repousava sobre o vilarejo, pesado como um
cobertor, e fazia os olhos de Murtagh lacrimejarem e a garganta arder. Cada
respiração ameaçava fazê-lo vomitar.
Uma luz cor de sangue o atingiu quando o anão e o homem o guiaram entre os
pilares até o pátio do templo. Uma fumaça negra tomava conta do vale, subindo de
respiradouros no chão e cobrindo o céu como uma cortina: uma tela vermelha e
laranja que reduzia o sol a um disco opaco, menos brilhante do que uma brasa em
uma fogueira se apagando.
O pátio havia sido transformado. O trono de peles de Bachel foi movido para lá e
colocado em cima da plataforma, em uma das extremidades. Uma mesa comprida
ficava em ângulo reto com a plataforma e, no centro do pátio, diante da fonte em
ruínas, os cultistas haviam colocado o grande altar de cor cinza. Murtagh não
conseguia entender como eles haviam transportado um bloco de pedra tão enorme, a
menos que Bachel tivesse empregado magia na empreitada.
Estandartes pendiam dos pilares entalhados que ladeavam o templo, e flâmulas
de tecido trançado — semelhantes às feitas pelos Urgals — estavam penduradas nos
beirais das construções ao redor.
À mesa estavam sentados os convidados restantes. Lyreth tinha um cálice em
uma das mãos, enquanto a outra vagava pelas costas de uma aldeã sentada no colo
dele.
Todos os aldeões estavam reunidos em torno do pátio, amontoados nas ruas como
bergenheds em conserva dentro de barris. Eles estavam cantando, gemendo e
batendo em tambores, sinos e címbalos de latão que sacudiam a fumaça com seus
sons agudos. As roupas eram diferentes: trajes completos que Murtagh jamais
conheceu um plebeu que possuísse. Em vez dos robes de sempre, os aldeões
usavam gibões com mangas, feitos de escamas do tamanho de um prato, de couro
grosso fervido e tingido de marrom-escuro. O efeito era algo entre uma pinha
fechada e a barriga de um dragão. O padrão de escamas continuava pelas mangas e
calças, também de couro. Nos rostos, os Draumar usavam meias-máscaras
moldadas que lembravam a de Bachel, embora não possuíssem nada do poder
transformador dela. Até as crianças estavam vestidas assim; eram figuras furtivas
no meio da floresta de pernas.
Bachel estava sentada no trono, o cabelo erguido em um edifício de camadas
irregulares, as pálpebras e os olhos enegrecidos com fuligem, os lábios vermelhos
como sangue e as odiadas garras de ônix nos dedos.
Um bando de corvos inquietos estava empoleirado no beiral atrás da plataforma,
crocitando e grasnando em resposta à cacofonia produzida pelos aldeões. Eles
formavam uma coroa escura acima da cabeça da bruxa: um símbolo sombrio de sua
autoridade suprema.
À esquerda estava Grieve, e pela primeira vez o homem sisudo tinha uma
expressão quase alegre. O festival parecia agradá-lo.
Mas, de tudo, foi Thorn que mais atraiu seu olhar. O dragão estava acorrentado
ao lado da plataforma, as asas presas por cordas amarradas e uma focinheira de
ferro forjado. Murtagh sentiu os grilhões do dragão como se estivessem apertados
no próprio corpo, e o toque deles parecia arder com um frio gelado.
Em breve, Murtagh disse a Thorn, e a palavra era uma promessa, um juramento,
um pedido de desculpas. Mas foi como se estivesse tentando empurrar os
pensamentos por uma parede de lã. Ainda assim, as pálpebras do dragão piscaram,
como se ele entendesse. Murtagh torceu que sim.
Os dois cultistas o levaram até Bachel, que o inspecionou com uma expressão
lânguida, como se inspecionasse um cavalo premiado.
— Você parece ter tido uma noite péssima, Regicida. — Ela fez um gesto
elegante com a mão para a direita e Murtagh ocupou o lugar indicado, tão obediente
quanto um cão treinado.
O olhar de Murtagh não parava de voltar para Thorn. O dragão ainda estava
sofrendo os efeitos da vorgethan. Alín não podia levar comida ou água limpa para
ele sem levantar suspeitas. Murtagh percebeu uma sensação leve e dolorosa de
desgraça emanando do dragão. Desgraça. Como ele odiava aquela palavra…
Mais uma vez, Murtagh tentou acessar o poder do diamante amarelo. Quase. Mas
nunca era o suficiente.
Bachel se levantou e bateu palmas sobre a cabeça.
— Que comece a recitação! — proclamou ela depois que a multidão ficou quieta.
Uma fila se formou do lado de fora do pátio e, um por um, os cultistas se
apresentaram a Bachel e contaram a respeito das visões que tiveram naquela noite.
Os sonhos foram muito mais variados do que de costume; imagens e narrativas
fantásticas que Murtagh dificilmente teria considerado verdadeiras se ele próprio
não tivesse vivenciado algo semelhante. No entanto, havia similaridades de tema
entre as visões, promessas de derramamento de sangue e vinganças reivindicadas,
premonições de um mundo arrasado e reconstruído — um mundo onde toda criatura
viva adorava Azlagûr, o Devorador, ou então morria.
A recitação durou horas. Cada integrante da aldeia foi até Bachel e contou seu
relato. Na mesa diante do trono, Lyreth e os outros convidados ficaram inquietos e
constantemente se levantavam e saíam por um tempo, apenas para voltar mais tarde
e continuar comendo.
Em dado momento, Lyreth foi até Murtagh e parou diante dele enquanto
mastigava uma pata de cordeiro. O jovem nobre estava desgrenhado e com os olhos
agitados, e seus movimentos eram rápidos como os de um pássaro, como se
estivesse excessivamente empolgado.
— Você gostou daqueles sonhos ontem à noite, Murtagh? Hein?
Ele cutucou Murtagh no peito com a ponta da pata de cordeiro. A carne deixou
uma mancha de gordura no gibão de lã. Lyreth deu outra mordida, o olhar vagando
pelo pátio.
— Foi uma experiência única. Por isso que quis ficar, para ver se o que Bachel
disse é verdade. Sonhei com meu pai e… — Um sorriso estranho levantou um canto
da boca de Lyreth, que voltou a olhar para Murtagh. — Chega disso. O que acha
dessa situação, Murtagh? Aqui está você, um servo fiel ao trono novamente. Mesmo
que se sente no trono em Urû’baen, seu destino será sempre ser o escravo, e não o
mestre. Tanto você quanto seu dragão.
Ele riu da maneira mais desagradável.
— Você gosta de ver os alicerces do futuro, Murtagh? Esses Draumar podem ser
um meio pouco auspicioso para alterar o rumo da história, mas pequenas sementes
podem gerar árvores altas. — Lyreth cutucou Murtagh no peito novamente e a
seguir, com um sorriso malicioso, voltou ao lugar dele.
Já Murtagh se levantou e continuou tentando forçar a mente a acessar a energia
no diamante amarelo. A vorgethan não poderia estar mais em seu corpo!
O disco opaco do sol desenhou um arco no céu. A fumaça nunca diminuía e
nenhum sopro de vento surgia para aliviá-los. Embaixo do cobertor sufocante de
névoa ficou cada vez mais quente — como se a própria terra estivesse aquecida —,
e o vilarejo inteiro parecia trabalhar sob uma presença obsessiva. Murtagh não
conseguia se livrar da sensação que teve no sonho, de estar encolhido de medo na
planície devastada diante da abominação que se erguia ao longe…
As cerimônias continuaram. Rituais sem fim, obscuros e sem sentido para
Murtagh, mas claramente de grande valor para os cultistas. Bachel falou algumas
vezes, da mesma maneira que costumava fazer, a respeito das riquezas e
recompensas destinadas aos que seguiam a fé dos Draumar. A música dissonante
continuou o tempo inteiro e, somando a fumaça, uma dor de cabeça latejante se
formou na base do crânio de Murtagh. Os globos oculares latejavam a cada batida
de um tambor ou de um címbalo.
Então as observâncias terminaram e os aldeões começaram a festejar. Murtagh
estava familiarizado com isso. Grandes porções de comida foram trazidas das
cozinhas dos templos e das residências por toda Nal Gorgoth. Carnes de javali e
cervo e cogumelos preparados em variedade estonteante de pratos. Vinho também, e
hidromel, e bergenhed, e geleia de carne e pães recém-assados, e muito mais. Tortas
salgadas e doces. Pratos fundos de sopa cremosa, fatias de queijo (duro e macio),
tortas de frutas vermelhas. Todo tipo de comida.
Os servos de Bachel encheram o cálice de latão amassado com vinho e, com os
pensamentos mais claros, Murtagh reconheceu o cálice como aquele que ele havia
encontrado na torre de Ristvak’baen. Seu pescoço ficou tenso e ele cerrou a
mandíbula. A bruxa não parava de acumular atos presunçosos.
No decorrer da noite, Murtagh comeu quando ordenado. Ele sabia que isso
ajudaria a manter as forças, mas não tinha estômago para comida.
Viu Alín de vez em quando, andando pelo pátio, cuidando dos convidados,
ajudando a servir, atendendo Bachel quando solicitada. Assim como os outros
Draumar, ela usava uma roupa escamosa, que lhe dava uma aparência mais sombria
e séria do que Murtagh estava acostumado.

O festim se arrastou. O tempo inteiro, o bando de corvos permaneceu com os olhos


brancos fixos na fartura colocada diante deles. Bachel parecia não ter interesse em
alimentar os pássaros, mas eles não a desafiaram nem fugiram. Ela ordenou, eles
obedeceram.
Lyreth e os companheiros consumiram uma taça de vinho atrás da outra.
Pareciam encarar o festival inteiro como um evento alegre, não muito diferente das
festas temáticas tão comuns entre os nobres da corte de Galbatorix. Murtagh sabia
muito bem que não era assim, mas não os teria avisado mesmo que pudesse. Era
melhor adquirir certos conhecimentos através da experiência, pensou ele.
À medida que o disco do sol, alaranjado e escurecido pela fumaça, se aproximava
dos picos das montanhas ocidentais — visíveis apenas como silhuetas escuras
embaixo do orbe que afundava —, os aldeões retiraram a comida do pátio e
acenderam os braseiros.
— Tragam as oferendas! — disse Bachel.
Seguiu-se um desfile de presentes. Esculturas em madeira, pequenas e grandes,
sem cor e pintadas, simples e complicadas. Parecia que os aldeões haviam passado
o ano inteiro esculpindo pedaços de madeira no tempo livre. As esculturas teriam
horrorizado qualquer artista da Alagaësia, independentemente da raça, pois tinham
formas oníricas: distorcidas, angulosas, estruturadas de acordo com uma lógica
falha e incômoda. Mesmo sem aviso, Murtagh sabia o que elas eram, pois
reconhecia nas esculturas fragmentos dos próprios pesadelos nascidos do enxofre.
Bachel aceitou cada uma com gentileza e gratidão. Ela não fazia distinção de
qualidade; só ter participado parecia suficiente para satisfazer as tradições dos
Draumar.
Quando o último aldeão apresentou a última oferenda, os guerreiros de Bachel
juntaram as esculturas em uma pilha atrás do altar de basalto colocado diante da
fonte em ruínas.
Bachel se levantou.
— Por mais sete meses, Azlagûr nos presenteou com seus sonhos de profecia.
Agora, durante a hora da fumaça negra, retribuímos tamanha generosidade com
esses presentes. Com essas esculturas nascidas do sonho. Azlagûr está muito
satisfeito com seus esforços, ó Draumar! Vocês provaram sua devoção, e nós
fazemos agora esta oferta em chamas para que possamos continuar nas graças dele.
Em troca, nós o servimos com nossas vidas, e que a destruição nos atinja e aos
nossos entes queridos se quebrarmos este pacto sagrado — gritou a bruxa.
Ela ergueu o braço branco e apontou para as oferendas. A bruxa não disse uma
palavra, mas o corpo ficou tenso como uma corda esticada e, quando a tensão
diminuiu, um raio de fogo líquido saltou da mão dela e foi na direção das
esculturas.
Chamas amarelas as envolveram. Em um instante, um ano de esforço e
criatividade foi perdido no fogo, carbonizado, queimado e logo reduzido a cinzas.
Mas os aldeões não ficaram consternados. Ao contrário, eles aplaudiram. Bachel
parecia muito satisfeita com a exibição.
Então, mais uma vez, ela bateu palmas.
— Tragam os iniciados!
Murtagh esperava ver uma fila de aldeões mais jovens, prontos para assumir as
responsabilidades dos mais velhos. Em vez disso, os guerreiros de Bachel levaram
para o pátio os mesmos prisioneiros de aparência lamentável que haviam trazido
para Nal Gorgoth antes… antes que o Sopro de Azlagûr embaçasse o seu cérebro e
minasse a sua força de vontade.
Entre os prisioneiros estava Uvek. Os pulsos e tornozelos do Urgal estavam
algemados; os lábios, puxados para trás, mostrando as presas. A visão alarmou
Murtagh. Pelo que sabia, os cultistas não haviam tirado Uvek da cela desde que
Murtagh e Thorn chegaram à aldeia. O fato de terem feito isso naquele momento
não era um bom presságio.
Os prisioneiros foram agrupados em um bloco diante da plataforma. O monte de
estátuas em chamas os iluminou por trás em um emaranhado agitado de fogo e
enviou as sombras famintas esticadas para o norte.
Bachel examinou os prisioneiros com cuidado exagerado, então retirou um
pequeno frasco de cristal de dentro da manga do vestido, desceu da plataforma,
destampou o frasco e soprou o conteúdo rodopiante nos rostos dos prisioneiros
encolhidos de medo. Murtagh viu o vapor grudar na cabeça deles e entrar em
narizes e bocas quando os prisioneiros inevitavelmente inalaram.
Por instinto, ele prendeu a respiração, torcendo para que nenhum restinho de
vapor fosse soprado em sua direção.
Com um olhar satisfeito, Bachel voltou ao trono e se sentou.
— Sonhem agora, incrédulos, como todos os que vivem aqui em Nal Gorgoth —
disse ela, erguendo sua voz rouca. — Aqueles de vocês que estiverem preparados
para jurar lealdade a Azlagûr, o Devorador, e se juntar a nós como um integrante
fiel dos Draumar… deem um passo à frente agora.
Os prisioneiros se mexeram e se entreolharam com expressões confusas. Então,
três quartos dos integrantes do grupo avançaram de forma unida e cambaleante.
Uvek não estava entre deles. O Urgal permaneceu na parte de trás, com os dentes à
mostra, os braços forçando as algemas e as mãos presas em garras curvas.
Os cantos dos lábios de Bachel se curvaram.
— Excelente. Aplaudo sua sabedoria. Vocês serão apresentados aos mistérios de
nossa ordem, e o véu da vida comum será arrancado de seus olhos pela verdade que
compartilhamos. Venham. Jurem por mim e por Azlagûr.
Um por um, os prisioneiros que deram um passo à frente se ajoelharam diante de
Bachel e juraram fidelidade. Embora não usassem a língua antiga, a sensação
sufocante de presença aumentou, e os pelos dos braços e da nuca de Murtagh se
arrepiaram. Ele sentiu um zumbido no ar, como se um grande poder passasse de
Bachel para os novos seguidores.
Uma luz misteriosa iluminou os olhos de homens e mulheres enquanto
terminavam os juramentos. Um por um, Grieve removeu as algemas. Eles foram se
juntar ao resto dos cultistas reunidos, com uma expressão de admiração e, pensou
Murtagh, de medo.
— E quanto a esses retardatários recalcitrantes? — perguntou Lyreth, com a voz
ecoando pelo pátio, apontando para Uvek e os outros prisioneiros que se recusaram
a ceder.
— Um sacrifício para Azlagûr — disse Bachel. — No qual você também está
incluído, Uvek Voz do Vento! Seu tempo está acabando, e não vou mais desperdiçar
minhas energias com você. Não agora que tenho um Cavaleiro para fazer o que eu
mando.
Ela se levantou, colocou a mão no ombro de Murtagh e apertou com força.
Mesmo através das roupas, as pontas das afiadas garras de ônix provocaram dor.
— Venha, Regicida. Junte-se a mim para apresentar esta oferenda sagrada a
Azlagûr. Hoje, vamos apaziguar nosso terrível mestre, você e eu juntos. Você me
assistirá empunhar a adaga que tirei de Saerlith e depois será sua vez de empunhá-
la. O sangue irá fluir e encharcar a terra, assim como acontecerá quando Azlagûr se
levantar de Seu repouso e descarregar Sua vingança. — Os olhos dela estavam
ardendo de empolgação. — Venha. Agora.
O coração de Murtagh começou a martelar quando a bruxa o conduziu pela mão
até o altar. Os cultistas e prisioneiros se separaram para abrir caminho para os dois.
A visão o lembrou dos casamentos que aconteciam na corte, presididos por
Galbatorix, uma figura sombria e agourenta que aguardava no fim da grande câmara
de audiência para dar a bênção real.
Do outro lado do pátio, Thorn se remexeu nos grilhões, um protesto inútil de
movimento.
— Parado — disse Bachel, sem olhar para o dragão, que se acalmou, embora os
olhos brilhassem com fogo contido.
Não, pensou Murtagh quando viu a superfície manchada do altar. Ele não
conseguiria fazer aquilo, não poderia ser forçado a fazer aquilo. Ele não permitiria.
Não seria…
Bachel bateu palmas e os guerreiros arrastaram até ela o primeiro dos
prisioneiros restantes. O homem era um plebeu de rosto avermelhado, vestido com
um avental rústico feito em casa. Ele tinha uma barba curta e desgrenhada que fazia
o queixo e o lábio superior parecerem ter sido esfregados com terra. O maxilar
estava cerrado e a testa, franzida, mas o homem estava obviamente assustado, e o
Sopro de Azlagûr ainda o dominava e parecia tê-lo deixado sem vontade de lutar ou
fugir.
— Segure-o e desnude o peito dele — disse Bachel com a voz alta e clara.
Os guerreiros o imobilizaram. Um deles usou uma faca para abrir o avental e
expor o peito do homem, que soltou um pequeno gemido.
Murtagh agarrou a ponta da capa com a mão direita e começou a puxar o tecido
para cima com os dedos, procurando o diamante escondido na bainha.
Os cultistas entoaram um canto, e o poder combinado das vozes era como um
grande tambor batendo no ar e no solo. O som era sedutor, paralisante, avassalador,
e fez Murtagh querer se juntar à recitação ritmada, se perder no grito da multidão e
se unir ao grupo.
Movendo-se no ritmo do canto, Bachel sacou a adaga de lâmina negra da bainha
no cinto e a ergueu acima da cabeça. De onde Murtagh estava, a faca era uma
silhueta diante do disco do sol que se punha, tão afiada quanto a presa venenosa de
uma serpente.
O dedo tocou o diamante na bainha.
A adaga de Bachel desceu, rápida como uma flecha caindo.
O prisioneiro soltou um grunhido baixo quando a lâmina perfurou o coração, e o
corpo inteiro ficou rígido. Ele se debateu, mas os guerreiros o seguraram.
O sangue espirrou para o céu quando Bachel retirou a adaga. A seguir, ela se
inclinou e, enquanto o homem gorgolejava e engasgava em seu último suspiro,
começou a abrir a barriga dele.
Murtagh observou. Ele não tinha escolha. A sanguinolência em si não o
incomodava; havia abatido muitos animais enquanto caçava e tinha visto — e
realizado — muitos atos sangrentos no campo de batalha. Mas assistir a um homem
ser morto tão friamente, sem chance de se defender, foi horrível. Isso lhe trouxe
visões de Goreth de Teirm caído diante dele na arena de areia batida…
O toque do diamante foi sólido quando Murtagh o agarrou com força esmagadora
pela bainha.
Ele enfiou a mente na gema, tentando mais uma vez liberar a energia armazenada
dentro dela. O turbilhão de poder tremeu sob o aperto mental, um redemoinho
elétrico que enviou pequenos choques através da consciência de Murtagh. Ele se
empenhou com todas as suas forças, mas a barreira na mente continuava de pé.
Bachel espalhou os intestinos ensanguentados do prisioneiro sobre o altar
cinzento e os estudou de maneira ostensiva, depois ergueu as mãos manchadas de
sangue.
— Azlagûr nos abençoou! — gritou.
Os cultistas rugiram com aprovação.
— A hora dos Draumar está próxima! Ouçam com atenção! Eu vejo nosso povo
saindo das sombras e marchando pela terra! Vejo os filhos e as filhas dos traidores
de Azlagûr sendo subjugados! Vejo o dragão Thorn e o Cavaleiro Murtagh voando à
nossa frente! Sim... Eles derrubarão o falso herói Eragon e, com suas garras, presas
e espada, prenunciarão o fim desta era. Todos se curvarão diante do poder de
Azlagûr e seu reinado se firmará. Assim resistiremos, sim, até o fim dos tempos. Da
forma como é sonhado, assim será!
— Da forma como é sonhado, assim será — cantaram os aldeões.
Bachel recuou do altar e apontou para o cadáver do homem.
— Leve-o para as profundezas e deposite o corpo no Poço dos Sonhos, para que
Azlagûr saiba que O servimos.
Dois guerreiros arrastaram o cadáver para longe, deixando marcas escuras de
sangue no altar.
Com um sorriso perverso, Bachel avançou até Murtagh. Ele congelou e o coração
saltou quando a bruxa pegou sua mão direita. Ela ergueu a mão de Murtagh, e o
diamante escorregou entre os dedos dele e a capa caiu reta. O sorriso da bruxa
aumentou quando ela colocou a adaga de lâmina negra na palma da mão dele e
fechou seus dedos no punho. O sangue na pele dela manchou a dele.
— Agora é sua vez de provar que é um servo fiel de Azlagûr, o Devorador —
disse ela, e Murtagh odiou o tom de deleite doentio que permeou sua voz. — Traga
outro!
Os guerreiros agarraram uma prisioneira, uma mulher baixa de cabelos
castanhos, e a carregaram até o altar. Apesar dos efeitos neutralizantes do Sopro, ela
estava apavorada. As narinas dilatavam e os pulmões faziam um ruído estridente
como foles sobrecarregados. Uma fina camada de suor cobria a pele branca.
Murtagh ainda deveria ter sido capaz de extrair energia do diamante apesar de
não estar tocando nele. Em circunstâncias normais, teria sido. Ele tinha certeza de
que, se tentasse o suficiente… Mas mesmo naquele momento, com o coração
batendo forte e o cheiro de sangue e morte enchendo as narinas, ele não conseguiu
reunir suas forças.
Um dos guerreiros abriu a frente da túnica da mulher. Bachel saboreou a visão
antes de se voltar para Murtagh.
— Agora, Regicida. Você sabe o que deve ser feito. Por minha palavra, minha
vontade, meu comando, sacrifique esta incrédula a Azlagûr, o Devorador! Faça isso
e você será mais favorecido do que todos os outros.
Um restinho de fumaça preta soprou no rosto de Murtagh enquanto ele inalava, e
a fumaça o sufocou e desequilibrou os pensamentos. O mundo se distorceu e o
festival e a própria Nal Gorgoth pareceram diminuir e oscilar.
A mão que segurava o punho da adaga tremia.
Por um brevíssimo momento, ele imaginou aceitar. Ele e Thorn não seriam mais
párias. Pertenceriam aos Draumar, e os Draumar pertenceriam a eles. Aonde quer
que fossem, o que quer que fizessem, poderiam contar com a ajuda daquele povo,
assim como os cultistas poderiam contar com eles. Murtagh os conduziria à vitória
contra o resto da Alagaësia. Ele sabia que Bachel não estava errada quanto a isso. E,
na vitória, ele e Thorn poderiam finalmente estar seguros.
A perspectiva era tentadora.
No entanto, não conseguiu reunir coragem para dar o primeiro passo nesse
caminho. Os custos eram muito altos. Ele e Thorn ainda seriam fantoches de
Bachel, servos de sua causa sombria, e não havia garantia de que conseguiriam
superá-la. Além disso, perseguir a ausência de perigo além de qualquer outra
consideração era uma forma de loucura por si só. E por mais que desejasse fazer
parte de um grupo, o mais importante era a qual grupo. Murtagh considerava os
Draumar indignos de sua lealdade. Ele tinha rejeitado a oferta de Galbatorix — e
através dessa rejeição ganhou a liberdade. Da mesma forma, Murtagh rejeitou
Bachel.
— Mate-a, Regicida! — insistiu Bachel.
As chamas saltitantes da fogueira douraram as bochechas encovadas da bruxa
com ouro líquido. O canto dos cultistas aumentou repentinamente em reação às
palavras dela e atingiram um frenesi demente.
Murtagh ergueu a faca. Teve que fazer isso. As palavras de Bachel não lhe
deixaram escolha. Mas, na mente, Murtagh continuou a se rebelar. O tempo estava
quase acabando, mas ele ainda não conseguia romper a barreira e acessar a energia
do diamante.
Murtagh não podia fazer aquilo sozinho.
O pensamento o atingiu com força esclarecedora. Em um instante, ele desviou as
energias mentais para Thorn, e então para Uvek, e se jogou contra a névoa inatural
que separava as mentes deles e a perfurou usando sua pura força de vontade.
Eu preciso de ajuda!, disse.
A faca começou a descer.
Thorn pestanejou e Uvek rosnou, mas mesmo assim Murtagh não sentiu nada
vindo deles. Cerrou os dentes em desespero. Eles haviam perdido. Bachel havia
triunfado. Se ao menos…
Uma nova força se derramou sobre ele. Vindo tanto de Thorn quanto de Uvek. As
contribuições foram limitadas — nenhum deles era capaz de superar as restrições
do Sopro ou da vorgethan. Contudo, foi mais do que Murtagh possuía sozinho.
Com aquele apoio, voltou a mente para o diamante. Foi preciso todo o resto do
poder combinado dos três, mas por pouco ele conseguiu abrir a reserva engarrafada
de energia.
A torrente de potencial correu para ele.
Murtagh direcionou a energia para o amuleto de pedra negra. No mesmo instante,
murmurou a palavra no idioma Urgal que Uvek lhe ensinara: “Shûkva.” Cura.
Pareceu estranho fazer magia sem a língua antiga, mas a palavra serviu ao seu
propósito e o amuleto entrou em ação.
Uma sensação de leveza o tomou e uma nuvem pareceu se erguer de sua mente
enquanto a visão e a audição se aguçavam e os pensamentos se tornavam rápidos
como um garanhão agitado. Ocorreu a Murtagh que teve sorte de as proteções
mágicas restantes não terem bloqueado os efeitos do feitiço.
Ele parou o movimento descendente do braço. A ponta da adaga de lâmina preta
pendeu a um fio da pele do peito da mulher.
Bachel olhou para ele e seus olhos angulosos começaram a se franzir.
— Não hesite, Regicida. Termine o ato!
Murtagh sabia que as probabilidades estavam contra ele. As proteções mágicas
que o defendiam de danos físicos estavam esgotadas. Tudo o que tinha era a força
da mente e do corpo, e Bachel e todos os Draumar estavam dispostos diante dele —
todos muito bem protegidos magicamente por amuletos e encantamentos.
Os lábios de Murtagh se curvaram em um sorriso. Uma boa luta, então.
O rosto de Bachel foi tomado pelo primeiro lampejo de alarme, mas antes que ela
pudesse agir…
— Vindr! — gritou Murtagh, e estocou a adaga na direção do coração da bruxa.
CAPÍTULO XXIII

Fogo e vento

O s Draumar eram protegidos contra magia, mas não contra os efeitos da magia.
Diante da ordem gritada por Murtagh, uma torrente de vento feroz derrubou os
cultistas e prisioneiros e até fez alguns deles rolarem pelas lajotas. Atrás dele, a
fogueira rugiu repentinamente, as labaredas subiram mais de seis metros no ar e
uma nuvem de brasas rodopiantes encheu o pátio enquanto sombras agitadas se
estendiam para as construções ao redor.
Conjurar tanto vento assim deveria ter estado além das forças de Murtagh, mas
ele esvaziou o diamante amarelo e se valeu de Thorn e Uvek. Seu poder ficou maior
do que o de qualquer homem, até mesmo um Cavaleiro.
A ponta da adaga de lâmina negra ricocheteou no peito de Bachel, desviada por
um feitiço, e a arma voou da mão dele.
A bruxa gritou em uma língua gutural e desconhecida enquanto pulava para trás.
Uma das garras de ônix apontou para Murtagh.
— Skölir! — gritou ele.
Escudo. Era uma proteção mágica genérica, tão vaga que chegava a ser perigosa,
mas Murtagh só teve tempo para isso.
Gotas de escuridão intensa saíram do dedo da bruxa e fluíram em volta de
Murtagh como água ao redor de uma pedra teimosa, desviada pelo contrafeitiço
dele.
Mais uma palavra e Bachel poderia matá-lo. Aquela proteção improvisada
poderia ser contornada de várias maneiras. Então ele fez o que sempre deveria ser a
primeira coisa em um duelo entre mágicos: atacou a mente de Bachel. Agora livre
do Sopro e da vorgethan, ele sabia que tinha uma chance de vencê-la, se ao menos
conseguisse…
Bachel riu, e não havia humor ou leviandade no som, apenas zombaria cruel e
desdenhosa.
Ela deu um passo para trás e foi obscurecida por uma nuvem de asas e bicos e
olhos brancos no momento que o bando de corvos desceu para o pátio e a cercou.
Os pássaros dispararam na direção de Murtagh, que os ouviu e sentiu em todos os
lugares à volta. Eles bloquearam a luz.
À distância, Uvek berrou, e o medo lançou uma sombra sobre os pensamentos
dele.
No interior da tempestade de corvos, Murtagh sentiu a mente da bruxa escapando
como um fio de cabelo ao vento. Ele tentou encontrá-la novamente, mas não obteve
sucesso. As mentes dos pássaros esvoaçantes confundiram o olho interior de
Murtagh, que se sentiu perdido e desequilibrado.
Era uma posição insustentável. A qualquer momento, uma arma ou feitiço
poderia acabar com ele.
Desesperado, Murtagh pronunciou a palavra mais mortífera que conhecia, uma
que Galbatorix jamais teria ousado ensinar, mas que ele teve a sorte de encontrar no
compêndio. Era a mais simples e maior das palavras mortais.
— Deyja.
Morra.
Os corvos caíram como uma chuva pesada e escura.
Ele ficou sozinho ao lado do altar. A prisioneira havia rolado do bloco de basalto.
Ao redor de Murtagh, jazia uma roseta de corvos mortos, as penas caídas nas lajotas
como várias pétalas verde-escuras.
Bachel se fora. Desaparecera. Assim como Grieve e metade dos convidados na
mesa comprida.
Maldição. Ele precisava pegar Bachel antes que ela pudesse realizar um mal
ainda pior. Mas primeiro…
Os cultistas estavam se reunindo ao lado do pátio, tanto guerreiros quanto
Draumar comuns se juntando para uma investida.
— Vindr!
Murtagh os repeliu com a palavra e vento enquanto andava até Thorn.
Novamente a força do dragão serviu como dele.
— Kverst! — Com outro comando arcano, ele atingiu os grilhões e a focinheira
de Thorn, depois tirou o amuleto de pedra negra da bota, pressionou contra o
focinho do dragão e disse novamente: — Shûkva.
A mudança no comportamento de Thorn foi instantânea. Ele arqueou o pescoço e
rugiu, e uma onda reluzente passou pelo comprimento sinuoso de seu corpo.
Finalmente!, disse ele.
E a sensação da mente do dragão, novamente íntegra e sã, encheu os olhos de
Murtagh de lágrimas.
Foi um trabalho de segundos efetuar uma cura semelhante em Uvek e libertá-lo
dos grilhões.
O Urgal empertigou os ombros enormes e largos e soltou um rugido parecido
com o de Thorn.
— Que bom, Homem-Murtagh. Faz muito tempo desde que lutei. Acho que vou
gostar disso.
— Nada de crianças — disse Murtagh em tom severo enquanto devolvia o
amuleto de pedra negra ao Urgal.
Uma flâmula ondulante de chamas saiu da boca de Thorn e repeliu a massa
crescente de cultistas.
O mesmo vale para você, disse Murtagh com a mente. Deixe as crianças em paz.
Vou tentar.
Uvek levantou os chifres para mostrar a garganta.
— Como quiser, Homem-Murtagh. E peço que não mate mais corvos. É má sorte.
Murtagh assentiu.
— Eu prometo. Agora vamos…
Ele parou quando viu Alín surgir no meio dos pilares sombreados na frente do
templo, correndo em direção a eles com a sela de Thorn e alforjes empilhados nos
braços. Enquanto ela cambaleava sob o peso, Grieve e dois acólitos blindados
chegaram correndo por trás e a agarraram.
A sela e os alforjes caíram, e a jovem se debateu em uma tentativa frenética de se
libertar. Mas Grieve e os acólitos a arrastaram de volta para as profundezas do
templo e desapareceram de vista antes que Murtagh terminasse de preparar um
feitiço.
Ele gritou de raiva e foi atrás dela.
Depois de dois passos, Murtagh se voltou para Thorn e deu um tapa na lateral do
corpo do dragão.
— Vá! Quebre! Queime! Destrua este lugar.
As mandíbulas de Thorn se abriram em um rosnado cheio de dentes, e a ponta da
cauda se contraiu.
Pensei que você nunca fosse pedir.
Ele rugiu novamente e saltou no ar com um movimento estrondoso das asas. A
corrente de ar lançou redemoinhos de brasas, e cada um deles era uma tempestade
minúscula de fogo rodopiante.
Assim que Thorn passou por cima das construções que cercavam o pátio, colocou
uma parede de fogo entre Murtagh e a multidão reunida. Um punhado de flechas
perfurou a parede e passou pela cabeça do dragão, deixando um rastro de flâmulas
de chamas ondulantes.
Murtagh correu em direção ao templo enquanto as chamas se apagavam e os
cultistas avançavam. Atrás dele, ouviu Uvek soltar um bramido poderoso: um grito
de guerra capaz de fazer até o homem mais corajoso tremer.
Murtagh chegou às fileiras escuras de colunas facetadas, passou correndo pelas
portas abertas de carvalho enegrecido, desceu a passagem cheia de alcovas e entrou
no átrio com a estátua apavorante do sonho.
Um estrondo ensurdecedor soou atrás dele e um baque enorme fez o chão vibrar.
Murtagh se virou e viu uma nuvem de poeira subindo da frente do templo. Uma
sombra escura passou por cima quando Thorn voou sobre a sua cabeça.
Pronto, disse Thorn. Ninguém vai alcançá-lo vindo pela entrada. Eu bloqueei as
portas com pedra.
Enquanto falava, o dragão pousou sobre a Torre de Pederneira e começou a
arrancar as telhas de ardósia do telhado. Um fluxo interminável de corvos raivosos,
assustados e crocitantes voou pelos buracos e se dispersou na fumaça que escurecia
o vale.
Murtagh deu um sorriso tenso.
Obrigado. Tome cuidado.
Thorn rugiu em resposta.
Murtagh virou à esquerda e saiu do átrio em direção ao santuário interno do
templo, onde provavelmente encontraria Bachel, Grieve e Alín.
Ao longo do caminho, encerrou o feitiço de escudo. Era muito abrangente para
ser eficaz e, embora fosse uma proteção mágica, tinha um efeito contínuo pela
maneira como ele o conjurara, o que lhe custava uma energia que poderia — ou
melhor, temia — ser preciosa para derrotar Bachel. Melhor começar do zero com
proteções mágicas adequadas, que só seriam acionadas quando necessárias.
Ao passar entre os pilares da borda sul do átrio, ele se esforçou para lembrar as
palavras exatas das proteções mágicas mais antigas. Já fazia algum tempo desde que
havia conjurado os feitiços e não seria bom se amaldiçoar acidentalmente. Ah, é
isso, pensou, e abriu a boca para…
Um peso acertou nas costas dele entre as omoplatas. A cabeça de Murtagh foi
jogada para trás, a dor atingiu o pescoço, e ele caiu para a frente no chão
pavimentado. Faíscas brancas brilharam atrás dos olhos quando a testa ricocheteou
nas pedras.
Uma bota atingiu as costelas de Murtagh e arrancou o ar dos pulmões. E de novo.
E mais uma vez.
— Pronto! Isso mesmo! Você nunca foi mais do que lixo de sarjeta! — gritou
Lyreth.
O som da voz e a sensação dos golpes lembraram-no da emboscada na escada em
espiral da cidadela de Urû’baen. Uma sensação instintiva de pânico e desamparo
tomou conta dele, e Murtagh se encolheu como uma bola, tentando proteger a
cabeça e a nuca.
Magia. Essa era a resposta. Se ele pudesse conjurar um feitiço…
Algo duro atingiu sua têmpora e a visão vacilou. O chão pareceu se inclinar
embaixo dele. Atordoado, ele tentou se recuperar, mas era impossível pensar,
impossível se mover…
Perdeu o equilíbrio e rolou para o lado. Murtagh viu Lyreth diante de si, com um
cálice de latão manchado de sangue em uma das mãos e uma expressão feroz no
rosto, os dentes arreganhados. Lyreth ergueu a taça novamente e...
Alguma coisa o puxou para o lado e o jogou rolando pelo chão. O cálice caiu e
quicou com vários repiques agudos.
Uvek surgiu diante de Murtagh, oferecendo uma enorme mão cinza. Na outra, o
Urgal segurava uma lança tirada dos Draumar.
— Obrigado — Murtagh conseguiu falar, ofegante, enquanto se levantava com a
ajuda de Uvek, que o colocou de pé.
— Claro, irmão de sangue.
A vários pilares de distância, Lyreth se levantou, um tanto instável. Ele olhou
para Murtagh e Uvek e arregalou os olhos de medo. Fez menção de se virar, como
se fosse fugir.
— Nem pense nisso, Lyreth. Eu poderia matá-lo com uma palavra — disse
Murtagh.
O rosto do nobre perdeu a cor. Ele umedeceu os lábios.
— Absurdo. A magia de Bachel me protege.
Ah, ele tem um amuleto.
— Você acha que isso pode me impedir, Lyreth? A mim? Nem mesmo Galbatorix
conseguiu me impedir com os juramentos dele. Se não fosse por mim, você ainda
seria um escravo da vontade do rei.
Era um blefe, mas Murtagh de alguma forma acreditou nas próprias palavras. Se
fosse forçado, ele tinha certeza de que poderia encontrar uma maneira de passar
pelas proteções mágicas do amuleto. De alguma forma.
Lyreth empinou o queixo proeminente.
— Então me mate. O que está esperando?
Quando Murtagh não respondeu imediatamente, ele sorriu e começou a se afastar.
— Foi o que eu pensei. Uma bravata va…
— Não — disse Uvek, com uma voz que soou como pedras triturando, e apontou
para Lyreth com uma unha em forma de gancho. — Você fica.
Lyreth congelou. Não havia chance de ele correr mais do que um Urgal e todos
sabiam disso.
— Você quer que eu mate esse jovem sem chifres para você, Homem-Murtagh?
Murtagh ficou muito tentado, mas balançou a cabeça.
— Não. Deixe-o. Ele servirá melhor como prisioneiro. Vamos levá-lo de volta
para encarar os interrogadores de Nasuada.
O medo voltou ao rosto de Lyreth, mas ele assumiu a mesma expressão altiva e
desdenhosa que Murtagh havia aprendido a odiar enquanto crescia.
— Você acha que é tão fácil me fazer prisioneiro? Nunca conseguiu me derrotar
na corte, Murtagh.
— E você nunca conseguiria me derrotar na arena. Goreth de Teirm pode atestar
isso.
Em algum lugar do vilarejo, uma construção desabou em meio a gritos e
estrondos. Murtagh resistiu ao impulso de olhar. Ele não sentiu nenhuma dor vindo
de Thorn. O dragão estava seguro.
Lyreth fez um gesto desdenhoso com a mão.
— Você está sem uma espada agora, Murtagh, filho de Morzan. Se mandar esse
seu Urgal de estimação me pegar, é um covarde ainda maior do que eu pensava.
Aposto que não consegue me colocar de joelhos. Aposto a minha vida.
Murtagh sabia que era uma provocação, mas também não podia deixar o desafio
passar sem resposta.
— Pode muito bem custar a sua vida — disse ele em tom ameaçador e limpou
um filete de sangue da têmpora latejante. — Ninguém me chama de covarde sem
uma resposta apropriada.
Uvek assentiu com aprovação.
— Eu vou assistir, Homem-Murtagh. É bom lutar. Limpa o sangue, acrescenta
honra ao nome.
— E minha honra é sua honra. Sim.
O Urgal recuou vários passos enquanto Murtagh e Lyreth andavam em um
círculo entre os pilares. A coragem inesperada de Lyreth intrigou Murtagh. Ele
nunca o teria considerado corajoso. Astuto, sim. Charmoso, quando necessário, sim.
Cruel, sem dúvida. Mas Lyreth não era o tipo de homem que agarrava a
oportunidade de liderar uma investida em batalha.
Ele quer muito evitar ser capturado. O pensamento fez Murtagh hesitar. Se essa
fosse a verdadeira motivação de Lyreth, então…
Ele saltou para a frente. Se estivesse certo, demorar seria mortal. Com dois
passos, Murtagh encurtou a distância entre ele e Lyreth e, antes que o outro homem
pudesse recuar, o agarrou pelo ombro com uma das mãos enquanto dava um soco
no queixo dele.
Lyreth recebeu o golpe melhor do que o esperado e, um segundo depois, Murtagh
sentiu um soco em resposta no rim esquerdo. A dor fez seus olhos lacrimejarem, e
todo o seu corpo ficou rígido, exceto pelos joelhos, que cederam.
Lyreth se jogou contra ele e os dois caíram juntos no chão.
Um baque surdo ecoou com a colisão. Por um minuto, o único som foi de
respirações irregulares enquanto os dois se engalfinhavam por cima das lajotas. De
perto, Lyreth cheirava a vinho e a um perfume enjoativo de pêssego que Murtagh
achava desagradável.
O outro homem lutou com força desesperada, mas era muito mais fraco do que
Murtagh, que logo ganhou vantagem. Lyreth pareceu perceber a dificuldade da
situação, pois recorreu à mais baixa das táticas e enfiou os polegares nos olhos de
Murtagh.
A dor fez Murtagh jogar a cabeça para trás, a visão foi invadida por ondas de
branco e vermelho, e estrelas brilhantes explodiram nos pontos onde os polegares
de Lyreth fizeram contato.
Eles se separaram e, um momento depois, ambos estavam de pé, de punhos
erguidos, cabelos despenteados, dentes arreganhados. Murtagh pestanejou. O
mundo parecia pulsar com tons vermelhos e amarelos, cada linha e ângulo
contornado por um halo brilhante.
Vários socos rápidos se seguiram. Murtagh ficou impaciente e avançou contra
Lyreth. Ele não era mais criança e jamais seria maltratado por Lyreth novamente.
Murtagh o jogou contra um pilar e a cabeça do homem bateu na pedra esculpida.
Por um instante, Murtagh pensou que havia vencido. Então, um lampejo de prata
em seu cinto chamou sua atenção: Lyreth tentava atrapalhadamente tirar uma adaga
de lâmina curta de debaixo da bainha da túnica.
O susto provocou um pico no pulso de Murtagh. Ele deu um salto para trás, mas
era tarde: uma linha ardente cortou suas costelas quando Lyreth atacou.
Murtagh resistiu ao impulso de se afastar. Em vez disso, deu um passo à frente
novamente e prendeu o braço de Lyreth entre os corpos. Pegou o pulso do homem e
o dobrou para dentro, até que a adaga apontasse para Lyreth e, antes que ele pudesse
largar a arma, enfiou a faca bem fundo no peito dele.
Lyreth enrijeceu e soltou um grunhido, mas continuou lutando, aparentemente
sem vontade de reconhecer o ferimento. Murtagh sabia que tinha atingido seu
coração. Após algum tempo, ele morreria do sangramento, mas isso poderia levar
um minuto ou mais, e Lyreth lutava com a mesma tenacidade obstinada de um
cervo que levara uma flechada no peito e se recusava a cair.
Isso está demorando demais. O pensamento ocorreu a Murtagh com uma clareza
fria. Alín precisava ser resgatada. Mais importante, Bachel ainda estava à solta, o
que significava que Thorn estava em perigo, mesmo que as proteções mágicas do
dragão permanecessem ativas. Aquela disputa era uma distração desnecessária e,
além disso, perigosa.
Toda a raiva abandonou Murtagh, que deu um passo para trás e puxou a adaga do
peito de Lyreth. Um jato de sangue carmesim o atingiu, e a cor sumiu do rosto de
Lyreth. O homem se debateu e foi atrás de Murtagh, apenas para cair em seus
braços.
Mantendo uma das mãos firme na adaga, Murtagh o abaixou no chão. Ele já
podia ver a luz desaparecendo dos olhos do outro homem. Seu primeiro instinto foi
deixá-lo morrer, mas ele precisava descobrir tudo o que Lyreth sabia.
— Waíse heill — disse Murtagh, colocando a palma da mão esquerda na ferida
no peito do homem.
Foi um feitiço arriscado; ele poderia estar tentando curar algo que estivesse além
de sua força ou habilidade, mas Murtagh só teve tempo para isso.
O feitiço não teve efeito.
Lyreth riu. Ele parecia estar mesmo achando graça. Sangue manchava os cantos
da boca.
— Estou encantado, lembra? Seus feitiços… não vão… funcionar.
Murtagh rasgou a frente da túnica de Lyreth, convencido de que veria um dos
amuletos de caveira de pássaro de Bachel pendurado no pescoço do homem, mas
tudo o que encontrou foi a pele branca e a linha de lábios vermelhos que era a ferida
no coração de Lyreth.
— O que você fez? — disse ele, irritado.
Lyreth riu novamente, mais fraco desta vez.
— Proteções mágicas vinculadas… a mim… sem necessidade de… amuleto. —
O olhar vagou por um momento, e então ele se reanimou e olhou para Murtagh com
rancor indisfarçável. — Você sempre foi um… bastardo.
Então Lyreth ficou mole e o último suspiro deixou o corpo.
Murtagh se levantou e olhou para o cadáver.
— Não — disse ele. — Eragon é o bastardo. Eu, não.
— Um belo abate, Homem-Murtagh — disse Uvek.
Murtagh grunhiu e fez um gesto para o Urgal.
— É melhor nos apressarmos.
CAPÍTULO XXIV

Grieve

E nquanto corriam em direção ao santuário interno do templo, Murtagh


rapidamente conjurou uma proteção mágica básica contra dano físico e estava
apenas começando a formular outra que poderia defendê-lo (ou a outros) contra o
Sopro quando os dois chegaram à sala.
Lá, esperando por eles na câmara de audiência, estavam Grieve e sete acólitos
usando armaduras feitas de escamas de couro. Grieve carregava a clava com ponta
de ferro e os acólitos portavam lanças e escudos redondos de madeira.
Nem Bachel nem Alín estavam à vista.
Uvek bateu os pés e urrou. O som do grito de guerra ecoou uma dezena de vezes
no teto alto.
— Onde está Bachel? — perguntou Murtagh, falando mais alto que os ecos.
Ele agarrou novamente a adaga de Lyreth, que era a única arma física que tinha.
— Isso não é da sua conta, Forasteiro — respondeu Grieve em tom ríspido.
— Discordo. Diga-me também onde está Alín.
Grieve deu um sorriso sinistro.
— Com a Oradora. Ela cuidará da pequena traidora. Agora, renda-se, Forasteiro,
ou morrerá.
— Você sabe que nunca vou me render. — Murtagh já estava se preparando para
o ataque mental que acreditava estar a caminho.
Grieve bufou com desdém.
— Claro, mas as formalidades devem ser ditas. Estou contente pela chance de me
livrar de você, Cavaleiro. E de você também, Urgal.
Uvek soltou um rosnado baixo.
— Você me deve sangue, shagvrek, pela morte de Kiskû.
Uma expressão de escárnio passou pelo rosto de Grieve.
— Seu pássaro? Coisa irritante. Uvek Voz do Vento, o maior xamã de seu povo,
que escolheu ficar sentado no topo de uma montanha e conversar com um pássaro
por anos a fio. Que desperdício.
A raiva enrubesceu o rosto de Uvek. Ele abaixou a cabeça de uma forma que fez
Murtagh pensar, por um momento, que iria investir contra o homem.
— Você é escravo do sonho, shagvrek. É errado pensar em adorar Bachel ou
Azlagûr. Você rasteja diante deles, feliz por receber atenção. Como um cachorro.
Grieve rosnou com uma expressão odiosa.
— Eu não sou um escravo, Urgralgra. — Ele cuspiu a palavra como se fosse
uma injúria. — Eu sirvo àqueles que me aceitaram.
Uvek abriu os braços largos.
— Então vou te dar um abraço. Vamos ver quanto tempo você aguenta ser bem-
vindo. Hrr-hrr-hrr.
Grieve ergueu a clava e apontou para Murtagh e Uvek.
— Matem os incrédulos.
Ele tirou um frasco de cristal e jogou no chão de mosaico.
Murtagh esperava exatamente por isso.
— Drahtr! — gritou ele enquanto o frasco ainda estava no ar.
Com o feitiço, o frasco voou para cima, errando o chão por pouco, e foi parar na
mão esquerda de Murtagh. O rosto de Grieve se contorceu de raiva e ele berrou
quando os sete acólitos atacaram Murtagh e Uvek.
Murtagh não teve tempo de enfiar o frasco na bolsa pendurada no cinto antes que
o primeiro cultista fosse para cima dele. Desviou de uma estocada da lança do
homem, saltou para a frente e enfiou a adaga de Lyreth na têmpora do cultista.
Ainda bem que eles não estão usando elmos.
Ele deixou a adaga onde estava e agarrou a ponta da lança quando o homem caiu.
Murtagh segurou a arma com uma das mãos e a brandiu na direção dos outros
cultistas enquanto recuava, o que lhe deu tempo para guardar o frasco. Depois,
colocou as mãos no cabo da lança. Uma alegria feroz tomou conta dele.
Ao seu lado, Uvek agarrou a lança de um cultista e a usou para esmagá-lo contra
o braseiro no centro da câmara. Faíscas e carvões reluzentes se espalharam como
uma chuva de meteoros. Outro Draumar espetou Uvek no braço, mas a pele dele era
tão grossa que o corte não tirou sangue.
Pelo minuto seguinte, Murtagh e Uvek lutaram lado a lado. Eles combinavam. O
tamanho e a força bruta do Urgal — e a velocidade inesperada que ele tinha — lhe
permitiram romper a linha dos Draumar e manter os homens na defensiva, enquanto
Murtagh derrubava seus oponentes com a facilidade adquirida com a experiência.
Enquanto lutavam, Grieve espreitava o perímetro da batalha, erguendo a clava
com ponta de ferro. Mas se manteve afastado, contente em deixar os asseclas
lutarem sem ajuda.
Quando restavam apenas dois cultistas, e o mosaico reluzente estava manchado
de sangue, Grieve atacou e surpreendeu Murtagh.
O Cavaleiro focava o Draumar à frente — um homem moreno de ombros caídos
com uma mecha grisalha na testa — e quase não viu a clava de Grieve quando a
arma veio em sua direção.
Murtagh se contorceu e conseguiu desviar com a lança daquele golpe devastador.
Ao mesmo tempo, sentiu a mente do homem indo contra a sua. E não apenas a dele.
— Você não terá meus pensamentos, shagvrek! — disse o Urgal.
A adição de Grieve à luta jogou a vantagem de volta para os cultistas, pois o
conselheiro e braço direito da bruxa golpeou com um poder que Murtagh não havia
previsto — ele parecia quase tão forte quanto um Kull — e, embora desajeitado,
movia-se com rapidez. Afastá-lo era como tentar rechaçar um animal selvagem
feroz, livre, leve e solto.
Os cinco manobraram em volta dos pilares e do braseiro no centro do santuário,
cada um tentando desferir um golpe mortal. Murtagh enfiou a lança no braseiro e
jogou carvões em um dos acólitos restantes, que se abaixou. Ele avançou, mas foi
rechaçado por Grieve brandindo a clava pesada.
Um impasse doloroso se manteve enquanto eles lutavam. Golpes, defesas e gritos
ocasionais ecoaram pelo espaço e um par de corvos perdidos passou voando perto
do teto e gritou para os combatentes lá embaixo.
Uvek soltou um grunhido de frustração e, com uma das mãos, agarrou a borda do
braseiro quente e o virou. Carvões caíram em cascata pelo chão ensanguentado, e o
pesado prato de cobre caiu sobre os ombros de um cultista, esmagando o homem.
Um som parecido com o de um gongo ecoou.
— Profanadores! — gritou Grieve.
Murtagh aproveitou a oportunidade para avançar e atingiu o outro acólito no
pescoço. Enquanto o homem desmoronava gorgolejando e ofegante, Uvek enfiou a
lança sob o braseiro virado e estocou o homem lutando sob o peso do recipiente. O
cultista ficou mole, e o braseiro não se mexeu mais.
— Por Azlagûr, eu te amaldiçoo — disse Grieve, cuspindo no chão em seguida.
Dessa vez, foi Murtagh que se mostrou desdenhoso.
— Fui amaldiçoado por pessoas melhores do que você e vivi para vê-las se
tornarem comida de verme. — Ele apontou a lança para Grieve. — Venha, cão.
Hoje você vai morrer.
Grieve se empertigou, endireitando os ombros curvados. Os olhos reviraram e
mostraram o branco.
— Azlagûr, ouça o apelo de seu seguidor, Grieve, o Primeiro. Deixe-me derrotar
esses incrédulos, e eu irei…
Uvek não o deixou cumprir o pacto.
— Não! — gritou o Urgal, que avançou e atacou Grieve com o cabo da lança,
usando-a como se fosse um bastão.
A haste de madeira se rompeu em dois pedaços contra o robe de Grieve,
aparentemente quebrada pelo tecido imóvel. Mas Murtagh sabia que o homem
estava com uma proteção mágica. Não ficou surpreso, mas era uma pena.
Uma certeza pessimista recaiu sobre Murtagh: Grieve não seria um oponente
fácil de derrotar.
Murtagh tentou dominar a mente do homem, assim como Bachel e o próprio
Grieve tinham tentado dominar a dele. Mas as defesas mentais de Grieve eram
sólidas, e Murtagh teve pouco tempo para se concentrar, pois Grieve respondeu ao
ataque de Uvek com uma chuva de golpes da clava.
Uvek levou um golpe no antebraço. A força do ataque teria quebrado o braço de
um homem, mas o Urgal apenas grunhiu e caiu para trás enquanto brandia os restos
da lança a fim de ganhar espaço para se recuperar.
Murtagh tomou a frente, mas não obteve mais sucesso do que Uvek. Ele estocou
e Grieve aparou. Fintou… e Grieve quase o acertou na cabeça com a clava. O
homem parecia antecipar com perfeição cada investida.
O mesmo aconteceu quando Uvek tentou flanqueá-lo. Apesar de estarem em
maior número, nenhum deles conseguiu penetrar a guarda de Grieve, que continuou
acertando golpes com a clava. Os golpes não machucaram Murtagh, que tinha a
defesa da nova proteção mágica, mas ele estava ficando cansado e não sabia por
quanto tempo poderia mantê-la. Os golpes machucavam Uvek, porém, e o Urgal
estava mancando e com um hematoma do tamanho de um prato no antebraço.
Ocorreu a Murtagh que ele estava tratando Grieve como se o homem também
fosse um mágico. Mas não existia evidência alguma disso. Se Grieve não era capaz
de conjurar feitiços, não havia razão para Murtagh não o atacar com magia. Mas se
ele fosse… fazer isso poderia induzir a uma reação desesperada e incrivelmente
perigosa.
Crack! Grieve atingiu o meio da lança de Murtagh. A madeira estalou como
palha seca, e ele caiu para trás.
Sangue de Espectro! Bastava de cautela! A magia valia o risco!
— Kverst — disse Murtagh, concentrando-se em Grieve.
Ele sentiu uma rápida perda de força, como se tivesse subido uma colina
correndo, mas o feitiço não teve efeito sobre o homem.
Grieve riu. Foi um som desagradável.
— Você não consegue quebrar o poder da minha senhora, profanador!
Com Thorn, Murtagh tinha certeza de que conseguiria, mas o dragão estava
ocupado. Murtagh não ousava abrir a mente para chamá-lo. De qualquer forma,
Grieve havia lhe dado a resposta: teriam que derrotar as proteções mágicas que o
defendiam. E isso exigia energia, mágica ou física. No final não havia diferença.
Quando a esperteza falhava, esforço era a chave para vencer feitiços.
Murtagh jogou a lança quebrada em Grieve.
— Mantenha-o afastado! — gritou ele enquanto disparava em direção ao fundo
da câmara.
Uvek rugiu e seus passos ressoaram quando ele se aproximou de Grieve.
O trono de Bachel não estava na plataforma — tinha sido removido para que ela
pudesse presidir o Festival da Fumaça Negra. No lugar dele, o chão estava opaco e
fundo devido aos incontáveis anos em que sustentou o pesado móvel de pedra.
Nos fundos da plataforma havia um par de degraus baixos que levavam a uma
área recuada onde vários itens cerimoniais eram armazenados: robes, círios,
incensários de latão, o adereço de cabeça que a bruxa usava… E havia também um
baú de nogueira escura, onde Murtagh torcia para encontrar...
Ele abriu a tampa do baú.
Sim!
Zar’roc jazia diante dele, um pedaço comprido e reluzente de beleza metálica,
vermelha como sangue, forte como ódio, afiada como a força de vontade de
Murtagh. Ele a pegou pelo cabo, como um velho amigo, e arrancou a lâmina da
bainha com um som de aço deslizando.
Finalmente, Murtagh se sentiu pronto para enfrentar aqueles inimigos.
A espada não era apenas uma espada. Era também um repositório: um depósito
de energia que Murtagh havia reunido aos poucos, acumulando bocadinhos no
grande rubi que servia como pomo.
Ele recorreu a essa energia.
— Brisingr! — Ao comando de Murtagh, a lâmina se acendeu em uma profusão
de chamas carmesins.
Com a espada ardente ao lado, ele caminhou até Grieve, cada passo carregando o
peso da destruição iminente. Ele golpeou e o gume ardente e incandescente desceu
sobre a testa de Grieve — e parou a um fio de cabelo das proteções mágicas do
homem.
Murtagh segurou Zar’roc contra a proteção mágica e pressionou com mais força
enquanto despejava ainda mais energia no fogo que subia do aço colorido. O calor
era escaldante, e ele franziu os olhos quando o fedor de cabelo queimado encheu a
câmara.
— Agora, Uvek! — gritou Murtagh.
O Urgal baixou os chifres, avançou e recebeu um golpe forte da clava de Grieve
na testa blindada. O impacto, que teria matado um humano, nem o feriu. Ele
agarrou a clava com sua mão enorme e manteve a arma imóvel no ar enquanto batia
em Grieve nas costelas e no ombro com o cabo da lança quebrada.
Grieve gritou de raiva, o rosto uma massa de sombras agitadas sob a lâmina de
fogo. Ele puxou a clava, tentando inutilmente libertá-la da mão de ferro de Uvek.
Como não conseguiu, a largou e fez menção de se esquivar para sair dali.
— Brisingr! — gritou Murtagh de novo, e redobrou a força do feitiço.
A espada flamejante brilhou com uma luz ofuscante e gotas de fogo líquido
caíram sobre a proteção mágica de Grieve, onde dançaram como gotículas de água
em uma frigideira quente.
Uvek atingiu mais uma vez as costelas de Grieve: um golpe poderoso que
sacudiu o homem e foi sentido por Murtagh através do punho de Zar’roc. Diante
disso, a pele de Grieve ficou cinza e a proteção mágica desmoronou.
Murtagh sentiu um instante de terror avassalador vindo da mente do homem. A
lâmina encantada de Zar’roc cortou a cabeça de Grieve, abrindo caminho através da
carne e dos ossos como se não fossem mais duros do que queijo fresco.
A remoção repentina da proteção mágica tornou difícil para Murtagh controlar o
trajeto da espada. Ele lutou para deter a descida rápida da lâmina no momento exato
em que Uvek soltou Grieve e se afastou, mas o gume afiado e ardente de Zar’roc
cortou a ponta do chifre direito do Urgal e resvalou o ombro dele, perto da
clavícula.
A respiração de Uvek sibilou entre os dentes. Ele rosnou como se pretendesse
atacar, mas recuou e colocou a mão sobre a ferida cauterizada.
O que restou de Grieve caiu no chão.
A escuridão se fechou em volta deles quando Murtagh encerrou o feitiço e
apagou Zar’roc.
— Gzja — disse Uvek, e cuspiu no corpo de Grieve. — Não jogue mais pedras
nos pássaros. Agora Kiskû descansa em paz.
Murtagh apontou para o ombro do Urgal.
— Deixe-me ver. Eu posso ajudar.
Uvek grunhiu e fez que não com a cabeça.
— Não está ruim, Homem-Murtagh. Um Urgralgra expõe as feridas com orgulho.
Vou sobreviver.
— Tem certeza?
O Urgal pareceu ofendido por Murtagh duvidar.
— Claro, claro. Não dói tanto. Já sofri coisa muito pior com urso. Vou
sobreviver.
— Bom.
Com os dedos do pé descalço, Uvek cutucou a ponta caída do chifre.
— Não é bom perder o chifre, mas vai crescer de novo.
Murtagh voltou para o baú atrás do estrado.
— Creio que você terá que viver em uma caverna até estar apresentável
novamente.
— O que significa apresentável, Homem-Murtagh?
— Com boa aparência.
Murtagh ficou aliviado ao encontrar a armadura no baú. E também o compêndio
de línguas antigas, que era mais valioso do que qualquer quantidade de ouro ou
pedras preciosas.
O Urgal riu enquanto Murtagh vestia a cota de malha.
— Eu não procuro mais uma companheira para viver, Homem-Murtagh. O chifre
quebrado não será um grande problema.
Com pressa, Murtagh colocou a touca de proteção e o elmo, depois amarrou as
grevas e braçadeiras. Decidiu não usar o peitoral, porque a mobilidade era mais
importante do que a proteção contra martelos de guerra ou similares. A proteção
mágica existia para isso. Ele colocou o cinturão com a bainha de Zar’roc e guardou
o compêndio junto com o frasco que continha o Sopro de Azlagûr.
Murtagh vasculhou o chão de mosaico até encontrar um dos escudos dos acólitos.
Ao pegá-lo, virou-se para Uvek, parado ao lado dos restos mortais de Grieve.
— O que é shagvrek? — perguntou Murtagh.
— Difícil de dizer. São sem chifres de antes.
— De antes do quê?
— Antes de a terra se encher de sem chifres. Antes de os elfos terem orelhas
pontudas. Antes de os anões serem baixos. Antes de os dragões terem asas. Antes
disso.
Espantado, Murtagh olhou para ele.
— Nunca ouvi falar de tal coisa.
Uvek assentiu.
— Shagvreks são velhos. Vivem em cavernas. Queimam carne e comem os
mortos.
Antes que Murtagh pudesse fazer mais perguntas, baques surdos soaram do lado
de fora do templo, e um véu fino de poeira caiu do teto. Abrindo a mente mais uma
vez, ele sentiu a raiva satisfeita e sedenta de sangue de Thorn enquanto o dragão
destruía as construções de Nal Gorgoth. Era uma pena, pensou Murtagh, perder
estruturas tão antigas (os entalhes valiam a pena ser estudados), mas não deixaria
que isso impedisse Thorn ou ele mesmo de demolir o local. Nal Gorgoth e aqueles
que lá viviam eram uma abominação que Murtagh estava determinado a ver
extintos.
Ele sentiu uma dor vindo de Thorn — flechas atravessando as asas —, mas fora
isso o dragão parecia ileso.
Você precisa de ajuda?, perguntou ele.
Só se você quiser.
Uvek lançou um olhar inquieto na direção dos sons.
— Homem-Murtagh, existem outros Urgralgra em Nal Gorgoth. Alguns
prisioneiros. Alguns Draumar. Talvez os Draumar não me ouçam, mas tenho o
dever de tentar.
— Vá. Se precisar de ajuda na batalha, chame Thorn.
Uvek grunhiu e, antes de sair, voltou-se para Murtagh, abaixou-se e gentilmente
bateu a testa na dele.
— É bom ter você como qazhqargla, Homem-Murtagh.
Uma onda inesperada de camaradagem tomou conta de Murtagh.
— E você também, Uvek Voz do Vento.
— Humm.
O Urgal saiu apressado, com passos surpreendentemente silenciosos para o seu
tamanho, deixando Murtagh sozinho entre os cadáveres espalhados.
Ele fechou os olhos e vasculhou o vilarejo com a mente atrás de Bachel,
determinado a encontrá-la e puni-la, de uma vez por todas. Romper o poder de
Bachel tinha um apelo sombrio. Como ela havia feito com ele, ele faria com ela. A
bruxa o humilhara e Murtagh queria vingança.
Isso, e queria ajudar Alín. Não, precisava ajudá-la.
Por toda a Nal Gorgoth, Murtagh sentiu um coro confuso de dor e terror enquanto
os cultistas fugiam de Thorn ou tentavam, em vão, deter a fúria do dragão. No
entanto, não conseguiu identificar a forma familiar dos pensamentos de Bachel
entre as mentes em pânico dos Draumar.
Ele se concentrou ainda mais. Expandiu a consciência até as profundezas e
procurou sob as construções, lá embaixo entre a podridão dos túneis que
corrompiam as raízes das montanhas.
Lá. Um aglomerado de faíscas, como vaga-lumes errantes presos bem abaixo da
superfície. Ele quase tocou a centelha mais brilhante, que brilhou em resposta,
recolheu-se e encolheu quando Bachel protegeu os pensamentos dos de Murtagh.
Uma certeza terrível se solidificou dentro dele. A bruxa sabia que ele estava indo
e não estava sozinha. Estariam prontos para atacá-lo. O ideal era fazê-la prisioneira
para que pudesse obter respostas — mais especificamente a respeito das atividades
dos Draumar no reino de Nasuada —, mas ele suspeitava que a bruxa preferiria
morrer a se submeter. Isso não seria um problema para Murtagh. Bachel era tão
perigosa que mantê-la cativa seria como tentar conter uma fera raivosa com as
próprias mãos. Não que matá-la fosse mais fácil, e talvez nem fosse possível.
Por um momento, Murtagh foi tomado por uma dúvida. Ainda podemos ir
embora. Não havia nada que impedisse a ele ou a Thorn de voarem para longe. Os
dois poderiam buscar reforços e, com Eragon ou Arya ao lado, a bruxa não teria
chance. Mas não havia garantia de que Bachel ou os Draumar permaneceriam em
Nal Gorgoth durante sua ausência.
E, de qualquer forma, Murtagh não abandonaria Alín. Tinha feito uma promessa
a ela.
Pelo menos, Bachel não consegue abalar as montanhas enquanto estiver no
subterrâneo, pensou ele, e se sentiu grato por essa pequena bênção.
Com escudo em uma das mãos e espada na outra, ele saiu a passo rápido do
santuário do templo e foi em direção aos fundos do edifício. Lá, encontrou a porta
que dava para a relva aparada adjacente ao lado oeste do templo. Colunas espessas
de fumaça negra subiam de respiradouros no solo.
Um estrondo terrível fez Murtagh se encolher e virar. Um lado da Torre de
Pederneira havia acabado de implodir, reduzindo a estrutura a um monte de
escombros.
Atrás da torre, chamas iluminavam Nal Gorgoth. Metade das construções tiveram
os telhados arrancados. Pedras soltas e corpos cobriam as ruas.
Thorn passou voando, as escamas brilhando e filetes de sangue quente
escorrendo das asas.
Murtagh fez uma saudação e recebeu um rugido em resposta, então começou a
atravessar o gramado, dirigindo-se para o bosque de pinheiros mais adiante.
Vou encontrar Bachel, disse ele.
O primeiro pensamento de Thorn foi preocupação.
É muito perigoso.
Eu sei, mas é preciso.
Não vá sozinho. Leve Uvek com você.
Ele tem outras obrigações e preciso que você mantenha os Draumar ocupados.
Do outro lado da aldeia, Thorn rugiu novamente, dessa vez com frustração.
Você não me pede porque sabe que tenho medo demais.
Murtagh parou por um momento, as próprias emoções em um rebuliço
conflitante.
Eu não queria incomodar você. Só isso. Você é tão corajoso quanto qualquer
outro ser que eu conheço. Então, com mais delicadeza: Você nem ia caber nos
túneis lá embaixo.
Você não tem como saber.
Se quiser, venha! Não estou tentando impedi-lo.
Seguiu-se um silêncio incômodo, e Murtagh sentiu a mente de Thorn se agitar
com uma mistura de vergonha e raiva.
Eu tenho que ir. Proteja-se bem, Thorn, disse Murtagh
E você também. Um rosnado ecoou pelos telhados derrubados. Faça a bruxa se
arrepender de ter pensado em nos acorrentar.
— Vou tentar — murmurou o Cavaleiro, voltando a avançar.
Dois Draumar empunhando espadas correram na direção dele, vindos do bosque.
Murtagh os abateu, um após o outro, com golpes precisos. A lâmina forjada pelos
elfos quebrou a espada do segundo cultista em cacos de prata.
Murtagh soltou um berro enquanto avançava correndo. Era um grito de guerra,
uma liberação da energia furiosa que corria dentro dele. Conhecia bem a sensação,
era uma velha companheira. Alguns homens lutavam sob o domínio de uma calma
gelada, e ele apreciava o valor disso, mas não queria estar assim naquele momento.
Tinha sido aprisionado, e agora estava livre, e cada resquício de raiva reprimida
todo aquele tempo fervia e jorrava dele como vapor saindo de uma rocha aquecida.
Mais Draumar atacaram quando ele entrou no bosque. Cinco deles, armados com
lanças, espadas e um único arco. Uma flecha foi aparada pelo escudo e Murtagh se
pôs entre os cultistas, golpeando, cortando e estocando com intenção mortal.
Por mais perigosa que fosse, Murtagh achou a luta estimulante e riu do medo dos
homens. Bom. Era justo que os cultistas se acovardassem diante dele.
A escaramuça não durou nem um minuto. Quando o último corpo caiu no chão,
ele já estava se afastando com o coração martelando, os pulmões arfando. Os lábios
estavam contraídos, os dentes à mostra em um sorriso feroz. Murtagh sentia poder
em volta de si, como uma capa invisível.
Mesmo assim, sabia que aquela confiança era falsa. Bachel não seria superada de
forma tão fácil. Astúcia era tão necessária quanto força se quisesse ter alguma
chance de vencer aquele duelo. Assim sendo, ao sair do bosque e avançar pela
caverna escancarada na base da colina, Murtagh procurou no compêndio as palavras
de que precisava para compor um feitiço que o protegesse contra o Sopro de
Azlagûr. A magia filtraria o ar como uma gaze absorvia a água e impediria que o
vapor venenoso entrasse nos pulmões.
Assim que ficou satisfeito com o fraseado da proteção mágica, Murtagh a
conjurou, e um sorriso cínico surgiu em seus lábios.
— Vamos ver se você vai gostar disso, ó Oradora de mentiras — murmurou ele.
Tochas novas ardiam em ambos os lados da caverna sinistra, e havia muitos
rastros que conduziam à abertura. Murtagh os considerou prova de que Bachel
havia trazido um contingente de guerreiros com ela.
Ele ergueu Zar’roc, preparando-se, então avançou e permitiu que a escuridão o
engolisse.
CAPÍTULO I

Criaturas da escuridão

O ar na caverna era quente e abafado, e o calor aumentava à medida que Murtagh


descia os degraus de pedra trabalhada. Ele não se lembrava de ter estado tão quente
na primeira vez que se aventurou pelo labirinto escondido sob Nal Gorgoth. Deve
ser por causa da fumaça preta, pensou. Mas isso não respondia à pergunta a
respeito do que causava a fumaça preta em si.
Enquanto descia correndo, Murtagh mergulhou a mente no rubi montado no
pomo de Zar’roc. Ainda tinha uma boa quantidade de energia armazenada na gema
facetada. Menos do que ele esperava, porém mais do que temia.
Murtagh pensou em conjurar um feitiço para iluminar o caminho, mas não queria
se tornar um alvo óbvio. Além disso, ele se lembrou do fungo brilhante que
povoava as profundezas das cavernas. Podia esperar por aquela iluminação
duvidosa. Melhor ser um caçador à espreita no escuro do que uma presa parada em
uma clareira iluminada pelo luar.
Gotas de suor começaram a escorrer pela testa e entrar nos olhos. Ele as enxugou
com a parte interna do antebraço e sentiu os anéis da cota de malha duros na pele.
Lutar era um trabalho que produzia calor, e a temperatura sufocante da caverna
apenas exacerbou o suadouro da superfície, assim como o corselete de cota de
malha. Anéis de ferro eram o oposto de um tecido refrescante.
Com a consciência expandida, Murtagh detectou uma centelha de vida à frente,
ao lado da escada. Um homem, pensou ele, mas...
Um zumbido atravessou a caverna e uma flecha ricocheteou no ar bem na frente
do nariz dele.
Murtagh se encolheu. Mesmo depois de conhecê-la há muito tempo e possuir
uma intensa familiaridade com a magia, o instinto ainda o fazia reagir como se a
flecha estivesse prestes a atingi-lo. Compreendeu que, se não fosse um conjurador,
teria morrido.
Murtagh não pensou muito nisso.
Ele se ajoelhou, pousou Zar’roc na escada e tateou até os dedos encontrarem uma
pequena lasca afiada de rocha. Então a segurou na palma da mão.
— Thrysta — sussurrou.
A pedra disparou pelo ar, mais rápido do que qualquer olho poderia ver, e —
apontada pela determinação de Murtagh — cruzou com a consciência do cultista
que a havia atirado.
Um baque surdo ecoou pela caverna, seguido pelo som inconfundível de um
corpo caindo.
Tomado por uma satisfação cruel, ele seguiu em frente.

Quando Murtagh chegou à imensa caverna iluminada por limo no pé da escada de


pedra, mais três Draumar saíram correndo das sombras para atacá-lo.
O cultista à frente estocou o seu quadril com uma lança. Murtagh aparou, investiu
e trespassou o homem. Zar’roc perfurou a armadura de escamas de couro dele como
se não fosse mais grossa do que uma teia de aranha.
Ele arrancou a lâmina da carne, girou o corpo e cortou a cabeça de outro
Draumar, que caiu no chão em meio a uma chuva de sangue verde e ricocheteou, o
cabelo todo emaranhado.
Um clangor estridente preencheu a audição de Murtagh quando ele bloqueou a
lança do cultista número três com o escudo. O homem golpeou novamente, o rosto
em um ricto de raiva. Murtagh deu um passo para o lado e lhe cortou o braço direito
com precisão.
O cultista uivou e cambaleou para trás.
Murtagh não lhe deu trégua. A seguir, investiu com dois golpes rápidos: um entre
as costelas do homem e outro embaixo do queixo.
— Patético — disse Murtagh enquanto o homem desabava.
Grieve tinha sido um combatente formidável, mas se essa fosse a qualidade dos
guerreiros comuns de Bachel, Murtagh estava longe de ficar impressionado. Eles
não tinham técnica nem magia, apenas fé cega para alimentar a violência. Tornac
não teria aprovado.
Murtagh franziu a testa. Por que os cultistas estavam se dando ao trabalho de
atacar em números tão limitados? Sabiam que não tinham chance contra ele.
Os cultistas estão tentando me atrasar, percebeu. Ou para que Bachel pudesse
escapar, ou para que a bruxa e seus asseclas pudessem se preparar para a chegada
dele.
Com uma girada do pulso, ele tirou o sangue da lâmina de Zar’roc. Com
desinteresse, notou o aspecto inusitado do líquido; o sangue tinha o tom verde-
escuro e iridescente, parecido com o dos besouros aquáticos que ele via no entorno
de Urû’baen. De alguma forma, o brilho enjoativo que emanava do lodo
membranoso nas rochas da caverna havia alterado a cor do sangue. A pele também
não parecia normal: tinha uma aparência terrivelmente doentia, como se o brilho do
limo tivesse sugado toda a vitalidade.
Ele correu pelo caminho de lajotas, ansioso para chegar ao Poço dos Sonhos.
Logo alcançou os três túneis escavados na parede da caverna enorme. Como
antes, Murtagh entrou na passagem central e correu pelo túnel coberto de ladrilhos
semelhantes a escamas.
Ele expandiu a mente e procurou por Bachel e a comitiva dela. Mas não sentiu
pensamentos, e o olho interior não encontrou nenhuma centelha brilhante de algum
ente no meio da escuridão que o cercava.
Quando invadiu a câmara revestida de mármore que abrigava o Poço dos Sonhos,
encontrou-a vazia, desprovida de movimento, exceto pelas chamas bruxuleantes nas
alcovas das paredes. A tampa gradeada do poço tinha sido puxada para o lado e
expunha o interior que mergulhava em profundidades desconhecidas.
O fedor de enxofre emanava dali com uma força repugnante. No momento em
que Murtagh deu um passo na direção do poço, uma coluna de fumaça negra
irrompeu das profundezas até o teto abobadado e entrou por fendas estreitas que ele
não havia notado antes.
Eles construíram isso à espera da fumaça, pensou Murtagh, que tentou imaginar
o que havia lá embaixo. Respiradouros aquecidos cheios de pedra derretida, ou algo
parecido. Ele tinha ouvido falar de coisas assim no meio das Montanhas Beor: elas
sopravam fogo, e a fumaça quente e as cinzas muitas vezes tornavam o ambiente ao
redor insuportável.
Murtagh arriscou uma olhada rápida por cima da borda do poço. O buraco
parecia sem fundo. Por um momento, o equilíbrio dele vacilou, e ele se imaginou
caindo sem parar… perdido para sempre nas entranhas da terra.
Com um xingamento, afastou-se e olhou em volta.
— Onde você está? — murmurou ele.
Mais uma vez, expandiu a mente. Quando teve certeza de que ninguém (e
nenhuma coisa) estava perto o suficiente para emboscá-lo, fechou os olhos e se
concentrou no olho interior.
Teve de explorar mais longe e mais fundo do que esperava até localizar
novamente a centelha incandescente que era a consciência de Bachel. A bruxa
estava abaixo dele — quase diretamente abaixo — e tão longe que Murtagh pensou
que uma pedra cairia por muitos segundos antes de alcançá-la.
— Maldição.
Ele olhou para as portas de tamanho humano que conduziam para fora da câmara.
A perspectiva de se perder no subterrâneo não o atraía mais do que fizera em
Gil’ead. Mas não havia como evitar: Murtagh tinha de encontrar Bachel e não
deixá-la escapar.
Certo. Ele começou a avançar em direção à porta correspondente. Como a
maioria das pessoas era destra, então se qualquer uma das passagens levasse a
algum lugar importante, ele imaginou que seria a da direita. E se estivesse errado…
Murtagh se perguntou como seria difícil usar magia para abrir caminho direto
através da rocha. Até mesmo Thorn lutaria para reunir energia suficiente a fim de
escavar mais do que uma curta distância. Rochas eram pesadas, e nenhuma
quantidade de cântico na língua antiga mudaria isso.
Ele passou pelo portal.

O labirinto de túneis sob a câmara revestida de mármore era muito mais complicado
do que ele temia. Se não fosse capaz de sentir a mente de Thorn — mesmo à
distância —, logo teria perdido as esperanças e dado meia-volta.
Não muito longe da câmara, ele novamente se viu em passagens largas o
suficiente para acomodar o dragão. Os túneis sinuosos corriam em direções
aparentemente aleatórias, sempre levando mais para baixo, através de câmaras
naturais e construídas. Muitas vezes, Murtagh se deparou com o que pareciam ser
santuários, altares ou salas de guarda abandonadas.
Embora o brilho do lodo fosse muitas vezes intenso o suficiente para iluminar o
caminho, muitos espaços eram tão escuros quanto o vazio entre as estrelas. Para
impedir que os trechos de escuridão cegante retardassem o avanço mais do que o
aceitável, Murtagh cedeu e criou uma luz mágica vermelha que flutuava a uma
curta distância acima e à frente da sua cabeça. A combinação de cores da luz
mágica e do lodo pintava os objetos nos tons mais hediondos. Tanto que às vezes
ele tinha dificuldade em reconhecer a substância do que via. Murtagh quase alterou
a luz mágica para que emitisse o branco puro do brilho do sol do meio-dia, mas
valorizava demais a visão noturna.
O ar se tornou mais espesso à medida que ele descia, até ficar pesado e úmido ao
ser inspirado. Foi necessário um esforço consciente para respirar. Às vezes, nuvens
de fumaça passavam voando sobre ele, e Murtagh ficou grato pelas proteções
mágicas, pois elas pareciam filtrar um pouco do fedor.
A presença que Murtagh havia sentido na aldeia era ainda mais forte nas
cavernas. Ela o envolvia como mel velho, e ele teve um desejo inexplicável de se
agachar e se esconder ou fugir para muito, muito longe. Não havia nada de concreto
a que Murtagh pudesse atribuir essa sensação, mas era tão inescapável quanto o ar
sufocante.
A atenção dele começou a divagar, e a visão também. Concentrar-se em qualquer
coisa por mais de alguns segundos parecia… não impossível, mas seu olhar ficava
se perdendo e, alguns passos depois, Murtagh se pegava sem saber o que estivera
olhando e no que estivera pensando.
Estranho…
Murtagh balançou a cabeça para clarear a mente. O movimento foi um erro. O
chão se inclinou. Ele caiu apoiado em um joelho e precisou apoiar o escudo no chão
para se equilibrar.
Depois de um momento, ele se sentiu estável o suficiente para ficar de pé.
Será que havia bebida no ar? Hidromel ou outra coisa forte borrifada em uma
névoa fina? Ele provou o ar: enxofre e nada mais. Mesmo assim, conjurou outra
proteção mágica para purificar o ar em volta.
Não ajudou.
Preocupado, ele seguiu cambaleando.
Fantasmas começaram a atormentá-lo: lampejos de cores cintilantes do arco-íris;
gemidos dolorosos que serpenteavam pelos túneis; e — raras no início, mas depois
com frequência crescente — visões que surgiam diante de seus olhos e que
pareciam tão reais quanto as rochas.
Tornac estava parado diante dele, com uma espada de treino de madeira na mão.
O mestre espadachim tinha acabado de ser designado para Murtagh, e os dois
estavam prestes a começar o treino… O confronto foi rápido, e o resultado foi
Murtagh caído de costas com um hematoma se formando no lado esquerdo do
tronco. Ele esperava desprezo e escárnio de Tornac. Essa sempre tinha sido a sua
sina na corte. Mas não houve zombaria. Em vez disso, Tornac foi até ele e estendeu
a mão.
— É um começo — disse, em um tom prosaico.
A ausência de rancor abriu o coração de Murtagh. Ele demorou a admitir para
si mesmo, mas naquele momento aprendeu a confiar em Tornac e se agarrou às
instruções do mestre — não, à liderança dele — como a única rocha firme em uma
vida agitada por tempestades.
Murtagh pestanejou, desorientado. O que quer que fosse aquilo, ele não ia recuar.
— É com isso que você conta para se proteger, Bachel? — perguntou ele com a
voz baixa na vastidão da caverna. — Bem, não vai conseguir. Isso eu juro.
Com passos obstinados, Murtagh continuou.
… planície de sol negro varrida por um vento uivante que gelava a carne até os
ossos… Um homem estava curvado na terra estéril, com os braços em volta da
cabeça enquanto se balançava para a frente e para trás, gritando em um tom alto e
estridente…
O túnel que Murtagh estava seguindo fazia um ângulo íngreme para baixo. Os
passos se apressaram quando, aliviado, ele se deixou levar pela descida. Ele
manteve o olhar fixo à frente, torcendo para ver o fim do túnel, pois deveria levá-lo
para perto de onde Bachel estava esperando, se não para o local em si.
… uma revoada de dragões passou voando, tantos que até obscureceram o céu.
As escamas de todas as cores concebíveis brilhavam, uma profusão de beleza
aterradora. O ar batia como um tambor pela força das poderosas asas…
Murtagh acelerou o passo. Tentou bloquear as visões recitando um verso. Aquilo
ajudou por um tempo, mas sua atenção vagou por um instante.
… Nasuada jazia diante dele, acorrentada à laje cinzenta do Salão da Profetisa,
assim como os prisioneiros foram mantidos no altar em Nal Gorgoth. A súplica nos
olhos dela era perceptível, mas cada um tinha um papel a desempenhar, e ele não
podia ajudá-la. O rei ordenou, ele obedeceu e ela sofreu por causa disso. Todos
eles sofreram.
— Não, não, não — murmurou Murtagh.
Ele bateu com a borda do escudo na testa. O impacto ajudou a dissipar as
imagens que ainda passavam por trás dos seus olhos.
O túnel se abriu em outra caverna. Como as anteriores, aquela era iluminada pelo
lodo e havia fileiras de cogumelos roxos margeando um laguinho bem à direita.
Anéis se espalhavam pela superfície da água, como se algo tivesse acabado de pular
para fora — ou para dentro.
Havia um conjunto de cogumelos maiores diante dele, parecidos com árvores
atrofiadas e anãs.
Enquanto abria caminho entre as hastes lenhosas, um chiado agudo chamou a
atenção de Murtagh. Ele andou silenciosamente entre os cogumelos e logo viu…
uma forma branca agachada sobre o corpo de um cultista caído.
Quando o brilho vermelho da luz mágica tocou a criatura, ela se contorceu para
olhar na direção de Murtagh. Seu rosto parecia um pesadelo. Uma língua negra
reluzente, tão longa e grossa quanto o braço do Cavaleiro, pendia de mandíbulas
estreitas e pontudas, que eram finas demais para conter inteiramente o músculo. A
pele frouxa e flácida, tão rosada quanto a de um leitão — sem pelos, exceto por
uma penugem branca aqui e ali, brotando de protuberâncias verrugosas —, pendia
em rugas repulsivas sobre ossos protuberantes. Do crânio estreito espreitavam olhos
cor-de-rosa, sem pálpebras, menores do que uma ova de peixe e, aparentemente,
com muita sensibilidade, porque o brilho suave da luz mágica fez a criatura franzi-
los e recuar, como se sentisse dor. O mais perturbador de tudo eram as patas
dianteiras da fera, ou melhor… mãos. Os dedos eram longos e parecidos com dedos
humanos, abrindo e fechando como se fossem espremer a vida de uma vítima. As
unhas estavam quebradas e sujas com o sangue do cultista morto. A fera tinha
também uma cauda grossa como uma corda, tão mole quanto uma minhoca morta,
se arrastando pelo chão.
A repulsa tomou conta de Murtagh. A criatura — pensava nela como um rato-
com-dedos — parecia errada de uma maneira fundamental, como se sua existência
fosse uma perversão de tudo o que era bom e certo.
Ele expandiu a mente para entrar em contato com a do rato-com-dedos. O que
descobriu apenas aumentou a aversão que sentia: uma fome atroz dominava a
consciência do animal, e tudo o que o rato-com-dedos parecia pensar era no prazer
de comer a carne quente daquele homem recém-morto e na raiva por ter sido
interrompido. Os outros viriam logo e...
Outros?
Chiados soaram nas sombras. Uma horda de ratos-com-dedos pálidos se
aproximou de mansinho, tateando o caminho com os dedos compridos. As caudas
deslizavam pelo chão da caverna como cobras sem escamas.
A criatura agachada sobre o cadáver soltou um gemido descendente — Murtagh
reconheceu o grito como um dos muitos sons que tinha ouvido ecoando pelo
complexo subterrâneo — e voltou a dilacerar o corpo, usando a língua para arrancar
a pele e os músculos do peito do homem.
— Vá embora, criatura imunda! — gritou Murtagh e saltou para a frente,
brandindo Zar’roc.
O rato-com-dedos guinchou como um bebê sentindo dor enquanto se encolhia de
medo. Depois sibilou, mostrando fileiras de dentes translúcidos e finos como
agulhas. Com velocidade e agilidade chocantes, saltou na direção do pescoço de
Murtagh.
Ele recuou e cortou o ar à frente, torcendo para atingir a criatura.
Zar’roc acertou, mas o alinhamento do gume de Murtagh estava errado, e o
punho se torceu na mão dele, que quase deixou cair a espada.
Cambaleou quando o rato-com-dedos se chocou contra ele, e sangue quente
jorrou sobre o corselete de cota de malha. Dentes tentaram morder o seu pescoço,
mas foram detidos pelas proteções mágicas. Ele jogou longe a criatura, que caiu no
chão, quase cortada ao meio, gritando e se debatendo nos estertores da morte.
O fedor de vísceras fez Murtagh sentir ânsia de vômito. Quanto a isso, os feitiços
não ajudavam.
Os guinchos da fera ferida não fizeram nada para deter a aproximação das
demais. Elas continuaram a se aproximar de mansinho através do conjunto de
cogumelos enquanto emitiam gargalhadas roucas que causaram um arrepio em
Murtagh. Algo estava errado; aquelas criaturas pareciam meio malucas por viver no
subterrâneo, ou estavam tão enlouquecidas pela fumaça constante que não tinham
senso de autopreservação.
— Não façam isso — disse Murtagh, mantendo Zar’roc em prontidão. — Eu vou
matar todos vocês.
Mais ratos-com-dedos saíram da escuridão. Quantos eram agora? Trinta?
Quarenta? Ele tentou contar, mas era impossível ficar de olho em cada um enquanto
se moviam entre si.
— Naina — disse Murtagh, e a luz mágica acima dele aumentou em intensidade
até ficar tão brilhante que baniu todas as sombras abaixo.
Os ratos-com-dedos guincharam e giraram em círculos, como se uma abelha
tivesse picado seus flancos encovados.
— Fora! — berrou Murtagh de novo.
Isso foi um erro. O som da sua voz chamou a atenção das criaturas. Elas se
viraram para ele, com línguas se estendendo como órgãos sensoriais, bigodes
esbranquiçados se contraindo, mãos nodosas se estendendo.
— Kv…
A horda avançou contra Murtagh, com mãos e patas arranhando a terra e as
pedras do chão da caverna.
Murtagh abateu o primeiro rato, mas as demais criaturas o cercaram, mordendo,
arranhando e açoitando com as línguas pesadas. As proteções mágicas dispararam, e
a força dele diminuiu com uma velocidade alarmante enquanto os feitiços lutavam
para defendê-lo.
Ele tentou falar, mas a pele quente de um rato-com-dedos colou em seu rosto e o
impediu de emitir um som. Ele também não conseguia respirar.
Os animais cheiravam a bolor, almíscar e excremento quente.
Chega! Ele concentrou a determinação e, com os pensamentos, disse: Kverst!
Os corpos dos ratos-com-dedos caíram em cima dele como se fossem sacos de
farinha.
Murtagh estremeceu. Não teria demorado muito mais para esgotar suas reservas
imediatas de força e as proteções mágicas falharem, incapazes de impedir que ele
perdesse a consciência. Se os ratos-com-dedos tivessem insistido um pouco mais,
ou se ele tivesse hesitado por mais alguns segundos, as criaturas teriam vencido.
Murtagh foi tomado por uma sensação de satisfação enquanto olhava para o
monte de corpos. Não gostava de matança assim, mas, se tivesse tempo, caçaria o
resto dos carniceiros e cuidaria para que aquela laia nunca mais incomodasse outra
pessoa.
Mais chiados soaram nas sombras distantes.
Mas não agora. Ele reduziu o brilho da luz mágica ao nível anterior e saiu
correndo. Talvez os cadáveres dos parentes distraíssem os perseguidores inumanos,
proporcionando comida suficiente para que não se dessem ao trabalho de segui-lo.
Era uma esperança.
Enquanto avançava com passos rápidos, Murtagh pensou em todos os animais
que conhecia na Alagaësia. Ele nunca tinha ouvido falar de feras tão grotescas. Se
tivessem um nome na língua antiga, Murtagh nunca havia encontrado, e nenhuma
das velhas histórias falava delas.
Será que elas vivem apenas aqui ou em todos os lugares onde os Draumar
cultuam? Poderia ter encontrado os ratos-com-dedos em algum lugar embaixo de
Gil’ead? A possibilidade o perturbou.
Ele continuou correndo. Apesar de os chiados terem diminuído, nunca
desapareceram por completo. Dois ratos-com-dedos saíram da escuridão, um de
cada vez, e tentaram mordê-lo. Em ambas as vezes, Murtagh matou as criaturas
com um único golpe de Zar’roc.
Ele não conseguia se livrar da sensação de estar preso em um pesadelo acordado.
Os sons constantes ecoando em volta — e ele começou a questionar se alguns
vinham de outras criaturas à espreita no labirinto subterrâneo inteiro —; os túneis
que pareciam sem fim; as distorções cintilantes flutuando diante dos seus olhos; e o
calor, o suor e a esmagadora sensação de presença… tudo isso combinado causava
uma pressão latejante na parte de trás da cabeça e uma convicção de que ele não
podia confiar em nada ao redor.
… um corpo de dragão espalhado pela terra, com espinhos tão altos quanto
montanhas, dentes tão longos quanto torres, sangue fluindo como rios pelas
planícies devastadas…
Murtagh balançou a cabeça e continuou.
Em meio a chiados e gemidos, um novo conjunto de sons apareceu: cortes
semelhantes aos de uma tesoura e batidas baixas como pregos batendo em pedra.
Ele congelou quando algo grande e anguloso saiu de uma passagem lateral e
disparou até o meio da parede curva de um túnel. A coisa se agarrou lá,
estranhamente imóvel.
— Naina — murmurou Murtagh, embora não tivesse certeza de querer descobrir
que criatura era aquela.
A luz mágica brilhou e revelou… o quê, Murtagh não sabia. A criatura era do
tamanho de um lobo grande. Um lobo muito grande. Porém, parecia mais um inseto
do que qualquer animal peludo ou emplumado. Tinha quatro pernas articuladas com
espinhos nas juntas e mais outro par de pernas — ou melhor, braços — mantidos
junto ao peito estreito, logo abaixo da boca, que continha uma coleção de facas
cortantes de açougueiro. Da mesma forma, os braços terminavam em pinças afiadas
como navalhas, e a criatura as abria e fechava com o mesmo som cortante que
Murtagh tinha ouvido momentos atrás. Cabeça chata, semelhante a um carrapato,
corpo segmentado, braços e pernas irregulares: tudo coberto por placas pretas de
armadura natural, não muito diferentes da casca de um besouro. A criatura não tinha
olhos dignos de nota: apenas uma fileira dupla de caroços — do tamanho de
sementes — ao longo dos dois lados da cabeça.
No todo, a criatura parecia ser feita de trechos serrados e soldados em um
conjunto desagradável que lembrava até demais uma aranha.
Murtagh se endireitou da posição agachada. Ele não queria se encolher diante de
tamanho horror.
— Eu não gosto de você — disse em uma voz baixa e objetiva. — Se me atacar,
vou te matar.
A criatura ergueu a cabeça e bateu as lâminas da boca. Em seguida, disparou pela
parede do túnel e — antes que Murtagh pudesse fazer mais do que dar meio passo
para trás — desapareceu de vista.
— Sangue de Espectro — murmurou ele.
Quantos horrores sobrenaturais andavam à espreita embaixo de Nal Gorgoth?
Um arrepio formigou na nuca e nos braços de Murtagh enquanto ele voltava a
correr.
CAPÍTULO II

Liberdade da desgraça

A menos de trinta metros do túnel, o inseto gigante atacou Murtagh por trás.
Ele ouviu o tilintar metálico das patas batendo segundos antes de a criatura
atacar. Virou-se bem a tempo de bloquear uma pinça afiada como lança que mirava
em seu coração. A lâmina de Zar’roc retumbou ao resvalar na carapaça do inseto,
como se tivesse se chocado com outra espada.
O inseto atacou novamente. Era mais rápido do que qualquer humano. Mais
rápido do que qualquer elfo. As proteções mágicas bloquearam os ataques, mas o
inseto arrastou um membro no chão e deu uma rasteira em Murtagh.
Ele caiu. Por instinto, se cobriu com o escudo e, ao atingir o chão, conjurou mais
uma vez o feitiço mortal:
— Kverst!
A magia não surtiu efeito.
Ele ficou tão surpreso que, por um momento, não conseguiu agir. Então usou o
escudo para tirar o inseto de cima de si. A criatura era pesada, como se tivesse
metal na carapaça. Ainda assim, Murtagh a jogou para trás e, quando ela engatinhou
sobre as patas ossudas para atacar novamente, deu um golpe com Zar’roc com
muito mais força do que usaria contra qualquer inimigo humano.
Ele atingiu o inseto na parte chata da cabeça. A carapaça rachou sob a lâmina
carmesim de Zar’roc e sangue negro e espesso como alcatrão quente escorreu. O
inseto emitiu estalos, angustiado, e as superfícies cortantes na boca morderam e
rangeram.
Murtagh atacou novamente e, dessa vez, Zar’roc partiu a cabeça da criatura ao
meio. As pernas cederam e o inseto desabou no chão.
Murtagh encarou o monstro enquanto recuperava o fôlego. Por que o feitiço não
o matara? Uma proteção mágica? Em um animal que vivia em tamanha
profundeza? Não era impossível, mas a única explicação que fazia sentido era que a
própria Bachel havia encantado o inseto. A pergunta era: por quê? Para que a
criatura pudesse machucá-lo ou atrasá-lo, assim como os cultistas? As criaturas
também eram escravas da bruxa?
Estalidos ecoaram ao longe.
Ele se endireitou, sério. Não importava que lacaios imundos Bachel tivesse
dentro das cavernas, não iriam detê-lo. Murtagh tinha certeza disso.
Determinado, ele retomou o rumo.
Enquanto percorria as câmaras subterrâneas, os ratos-com-dedos e os insetos das
sombras continuaram a atacar. Um aqui. Dois lá. Um rato caiu sobre ele vindo de
uma fenda escondida no alto de uma parede infestada de lodo. Um inseto saltou em
cima dele de dentro de um abismo escuro. E mais. Muito mais.
Murtagh resistiu a cada ataque, respondendo à fúria selvagem com força igual. A
lâmina de Zar’roc ficou encharcada de sangue e as botas, molhadas de vísceras. Os
olhos ardiam de tanto suor. A fadiga retardou os passos de Murtagh, que começou a
se preocupar com o que aconteceria se não pudesse mais manter as proteções
mágicas.
Era difícil ter noção do tempo ou da distância. A consciência de Thorn havia
desaparecido da mente dele e, quando tentou entrar em contato, percebeu que não
conseguia mais sentir os pensamentos do dragão. Havia muita pedra entre eles.
Alarmado, Murtagh procurou Bachel. Se não conseguisse localizá-la, estava
perdido… Mas o Cavaleiro sentiu a força da bruxa. Só que ela não estava apenas
abaixo dele, mas também atrás, pelo que parecia ser uns bons quinhentos metros.
Murtagh foi atingido pelo desespero. Ele devia ter dado meia-volta durante os
combates.
O caminho parecia interminável. Sempre atormentado por chiados, estalidos e
sons de tesouras cortando. Ele não ousava baixar a guarda nem por um segundo, e o
constante estado de vigilância por si só era exaustivo.
Mesmo com a magia e a espada, Murtagh se sentia como uma criança sozinha no
escuro, com medo de monstros invisíveis à espreita. Mas dessa vez os monstros
eram reais e não menos aterrorizantes por isso.
Visões e fantasmas continuaram a atormentá-lo. Ele conseguiu ignorar a maioria
— mesmo quando ocorriam em momentos inoportunos, como no meio de uma luta
—, mas por fim:
Teto escuro, paredes escuras, piso de madeira formando desenhos… um fogo
rugindo na lareira de pedra em uma das paredes do grande salão. Pratos
espalhados pela longa mesa do banquete, mas todos os convidados já haviam
fugido… Na cabeceira da mesa, a silhueta do pai de Murtagh, ainda envolto na
capa de viagem, curvado, taciturno, com a taça de vinho sempre presente e
firmemente segura na mão. Pairando atrás dele, a figura esguia da mãe de
Murtagh, falando em tom baixo e tenso.
Murtagh estava sentado à beira da lareira. Os sons dos pais conversando às
vezes o distraíam — a voz do pai era alta, brusca —, mas a atenção dele se voltou
para o cavalo de madeira com o qual estava brincando. Era pintado de marrom e
branco, com cascos pretos viçosos e crina e rabo feitos de crina de cavalo de
verdade. Ele fez o cavalinho correr de um lado para o outro na lareira, imitando
pequenos sons. Fez o cavalo saltar sobre rochas e sebes imaginárias e, então, por
acidente, trouxe o cavalo muito perto do fogo e uma faísca pousou na cauda.
Uma chama acendeu no pelo. Assustado, Murtagh sacudiu o cavalo e a chama se
apagou, mas o cheiro de pelo queimado ardeu no nariz e a cauda estava arruinada.
Ele começou a chorar. Murtagh se lembrava disso. O cavalo era tão bonito antes
e estava arruinado. Ele não tinha outro igual.
A voz do pai se elevou em um grito raivoso.
— … não fizer aquele pirralho parar de choramingar, então eu vou!
E houve o som de uma cadeira sendo empurrada para trás, seguido pelo grito de
terror da mãe. Algo pesado atingiu Murtagh nas costas e o derrubou na lareira.
Zar’roc caiu ao lado dele com um estrondo, com o fio da lâmina tão afiado que
era invisível.
Murtagh sabia que tinha gritado, mas não sentiu dor, apenas uma sensação de
frio e fraqueza conforme o sangue se espalhava em uma poça em volta. O rosto da
mãe apareceu sobre ele, a expressão marcada pelo medo, e isso o perturbou mais
do que tudo. Murtagh não queria que ela se preocupasse, não queria que ela tivesse
medo.
Então, o salão ficou nebuloso, e a última coisa que Murtagh percebeu foi a mãe
murmurando em uma língua desconhecida enquanto o frio terrível se instalava nos
ossos dele.
Murtagh parou perto de um monte de cogumelos e arfou como se tivesse levado
um golpe no estômago. Ele cerrou a mandíbula e olhou para o teto rochoso por um
tempo enquanto lágrimas escorriam dos olhos arregalados.
— Você não tem direito a isso — murmurou Murtagh para qualquer força que
habitasse as cavernas.
Por que foi compelido a reviver aquele momento em especial? Murtagh fazia um
grande esforço para não pensar naquilo, embora a cicatriz nodosa nas costas tivesse
sido sempre um lembrete suficiente: uma lembrança tanto da crueldade do pai
quanto do amor da mãe. Ele manteve a cicatriz todo esse tempo por causa desse
amor. Removê-la teria sido fácil com um feitiço, mas fazer isso parecia repudiar o
passado a tal ponto que ele poderia muito bem ter se declarado sem nome e sem
parentes. Talvez devesse. O legado de Morzan não lhe trouxe nada além de dor.
Mas o de sua mãe… era mais complicado. Dela Murtagh tinha vida e amor, e só
porque a vida dele tinha sido difícil, isso não negava o amor dela.
Sons de passos rápidos rodearam Murtagh ao longe, nas sombras. Ele ouviu, mas
não se importou.
Olhou para Zar’roc, fez uma careta com aversão mal contida e a mão tremeu.
Cicatriz ou não, ele odiava a espada, odiava o que ela representava. Zar’roc.
Desgraça. A escolha do nome foi feita por seu pai e foi adequada, dada a história de
Morzan. Isso não era o que Murtagh queria para a própria vida. No entanto, havia
tirado a espada de Eragon para reivindicá-la como sua, como se de alguma forma
ela fosse protegê-lo.
Em vez disso, achava que estava sendo definido pela espada. Zar’roc. Desgraça.
Nomes eram importantes, mesmo para as menores coisas. Ao dar um nome, era
possível ganhar compreensão. Além disso, era possível reformular a própria
natureza de uma coisa. Ele mesmo não vivenciou isso na cidadela de Urû’baen,
quando seu verdadeiro nome mudou?
Uma ideia lhe ocorreu. Uma ideia brilhante e promissora que trouxe consigo uma
determinação intensa. Ele conhecia o Nome dos Nomes, a chave para a língua
antiga e seu poder arcano. Através do Nome dos Nomes, Murtagh poderia usar ou
definir ou mesmo mudar as palavras da língua.
O que significava… que ele poderia renomear Zar’roc. Se assim quisesse.
Murtagh não precisou parar para pensar. Ele queria.
Mas qual seria o novo nome? Se não fosse Desgraça, então Felicidade? Esse
estava longe de ser o significado certo para qualquer espada. Além disso, Murtagh
nunca teve uma tendência para a felicidade — ele não tinha certeza se sabia o que
era isso, de verdade — e teria se sentido ridículo carregando uma espada chamada
Felicidade.
Mesmo sabendo que o tempo era curto, ele ficou parado no escuro e deixou a
mente vagar enquanto classificava dezenas de nomes possíveis. No fundo, a questão
era simples: o que ele queria que Zar’roc representasse? Ou seja, o que queria
valorizar no âmago de sua personalidade?
Ao redor, continuou a ouvir as batidas das criaturas das sombras que desejavam
atacá-lo. Mas elas mantiveram distância e Murtagh lhes deu pouca atenção, pois o
problema com o qual estava lutando era abrangente e, segundo achava, crucial para
sua sobrevivência.
No final, a resposta veio de dentro, como deveria — da lembrança de ser ferido
por Morzan e do próprio nome verdadeiro, que ele enxergou com uma nova clareza:
o que tinha sido e o que se tornou. Murtagh era uma pessoa mudada. A dor à qual
tinha se agarrado com tanta perseverança já não o dominava mais. Tinha novas
preocupações e novos valores, e estava determinado a segui-los.
Impulsionado pela inspiração, Murtagh abriu a bolsa pendurada no cinto, tirou o
compêndio e, com uma das mãos, folheou as páginas de pergaminho até encontrar o
que procurava.
Estudou a linha curta de runas. Tinha certeza? Sim. Mais do que nunca.
O feitiço exigia energia que ele não tinha de sobra, mas, mesmo assim, Murtagh
extraiu forças do corpo e, tão suave quanto uma pena caindo, falou a Palavra. Com
ela, renomeou a espada.
— Ithring.
Liberdade.
Enquanto falava, o glifo farpado estampado na lâmina e na bainha brilhou e
mudou para uma nova forma, uma nova compreensão. Murtagh reconheceu o glifo
como aquele que os elfos usavam para o novo nome da espada.
O ódio e a raiva que estavam fervendo dentro dele esfriaram e viraram uma
determinação calma. Murtagh assentiu. Liberdade. O pai havia escolhido espalhar
desgraça pela vida e pelo reino. Talvez Murtagh pudesse fazer algo melhor.
Ele deu um sorriso torto. Não se enganava, sabia que tinha responsabilidades que
o prendiam. A Thorn, se não a mais ninguém. Mas eram responsabilidades que
Murtagh havia aceitado por si mesmo, não impostas de fora. Ele sempre aspirou à
liberdade, e sempre a estimaria. A espada poderia ser um símbolo disso. Quando
lutasse, como logo precisaria fazer, caberia a ele conceder aos inimigos a liberdade
final. Além disso, poderia usar Ithring para ajudar aqueles que, como Alín, não
podiam ajudar a si mesmos. Para cortar as amarras e libertá-los, assim como ele e
Thorn se libertaram dos juramentos de Galbatorix.
A mãe teria ficado orgulhosa dele por isso, pensou Murtagh.
— Ithring.
A palavra parecia estranha na língua, mas também adequada. A própria espada
parecia diferente: uma mudança inefável que deixou a lâmina mais brilhante e
limpa.
Murtagh também se sentia diferente. Ele guardou o compêndio e retomou a
jornada com uma nova sensação de leveza, como se renomear a espada tivesse de
alguma forma ajudado a afastar a presença opressiva das cavernas. Quando os
habitantes tenebrosos do subterrâneo voltaram a atacá-lo — as aranhas sombrias
com lâminas rangentes e os ratos-com-dedos tentando morder seu pescoço —,
Murtagh os despachou com uma eficiência calma que havia lhe escapado antes.
Pois ele sabia quem era e por que estava ali, e não buscava mais lutar em nome da
desgraça, mas em busca da liberdade.
CAPÍTULO III

Defendendo o centro

U m brilho claro apareceu à frente de Murtagh — saindo por trás de uma dobra de
rocha —, e o pulso dele acelerou. Finalmente! Bachel estava próxima. Murtagh
podia senti-la logo adiante. E não só ela, outras pessoas também. Treze, pelas contas
dele.
Murtagh se preparou, respirou fundo e lentamente recolheu a mente. Bachel
podia não ter uma legião de Eldunarí sob seu comando, como Galbatorix, mas não
era menos perigosa. Não tinha intenção de subestimá-la. A bruxa já havia levado a
melhor sobre ele antes, mas isso não aconteceria de novo, não importava qual fosse
a fonte do poder dela. Murtagh jurou isso para si mesmo.
Ele disparou um pensamento rápido para Thorn e foi em frente.
Os passos de Murtagh ecoavam baixo na pedra quando ele contornou a rocha.
Depois da passagem, ele viu uma câmara circular enorme que parecia ter sido
escavada no granito por uma grande mó. Mal notou as paredes com veios de lodo,
pois um emaranhado de cristais brancos brotava do solo em vários ângulos. Eram
cristais semiopacos e translúcidos, com bordas afiadas. Tinham tamanhos variados,
indo desde pequenas protuberâncias menores que o espinho de uma rosa até pilares
enormes, tão grossos quanto um carvalho antigo. Grandes ou pequenos, os cristais
reluziam com um brilho natural, branco, puro e bonito.
No centro da câmara havia uma clareira larga com um buraco escancarado no
centro: um vazio de vinte passos de largura que se abria para profundidades ainda
maiores.
No alto da câmara havia outra abertura e Murtagh teve a sensação de que ela
subia sem parar até o Poço dos Sonhos. Depois de toda aquela caminhada, ele
acabou logo abaixo de onde havia começado.
Bachel estava esperando por Murtagh no vazio.
Ele mal a reconheceu. A bruxa ainda usava a meia-máscara encantada que
transformava seu aspecto em um ser sombrio e dracônico, mas havia trocado o
vestido por uma armadura que blindava cada centímetro do corpo e não era feita de
couro ou metal, mas sim de escamas de dragão.
As escamas eram preto-avermelhadas e reluziam com um lustro oleoso. Elas
emitiam um brilho fraco, como brasas moribundas ainda pulsando com calor
contido. As escamas deviam ter vindo de um dragão antigo, pois algumas pareciam
ter sido cortadas de pedaços ainda maiores. Vendo a armadura, Murtagh percebeu
que o traje de couro que os cultistas usaram para o festival da fumaça negra tinha
sido feito para se parecer com a veste fantástica de Bachel.
Na mão, a bruxa segurava a Dauthdaert Niernen. A lâmina combinava com a luz
do lodo nas paredes.
Seis acólitos estavam à esquerda de Bachel e outros seis à direita, como se duas
grandes asas se estendessem da bruxa, que servia como o corpo central. A
impressão foi prejudicada pelo par de acólitos que mantinham Alín entre eles, com
mãos firmes em torno dos braços e pulsos dela enquanto a seguravam ajoelhada
sobre a pedra.
Um hematoma avermelhado marcava a bochecha da jovem e sangue manchava
um canto da boca. O pescoço estava erguido e uma esperança desesperada encheu
seus olhos quando ela viu Murtagh.
— Meu Senhor! — berrou Alín.
Uma raiva tenebrosa tomou conta dele ao ver a péssima situação da moça. Ele
acolheu a emoção, sabendo que o serviria na luta que estava por vir.
Os acólitos não carregavam espadas nem lanças, mas sim bastões altos de
madeira nodosa, cada um enfeitado com entalhes esquisitos. Por um momento
estranho, Murtagh se lembrou de Brom. Os cultistas bateram com as pontas dos
bastões no chão, o som ecoando sem parar no teto abobadado, e começaram a
cantar em um coro baixo que encheu a câmara com uma urgência crescente.
Murtagh abriu caminho entre os cristais, tomando cuidado para evitar as bordas
afiadas.
Ao se aproximar, Bachel ergueu Niernen e apontou a lança para ele. Não parecia
assustada.
— Estou impressionada, Murtagh, filho de Morzan. O poder dos sonhos de
Azlagûr leva à loucura a maioria dos que se aventuram nas profundezas abaixo de
Nal Gorgoth.
— Mas não você ou seus servos.
— Eu sou a Oradora. Sou a porta-voz escolhida. A proteção de Azlagûr concede
certos privilégios a mim e àqueles que escolho como meus assistentes.
Murtagh não tinha tanta certeza disso. Ele fingiu uma expressão casual e girou
Ithring na mão enquanto avançava, observando com atenção os cultistas.
— E aquelas… coisas nas cavernas? São suas também?
Sob a máscara, a boca de Bachel se contorceu, achando graça.
— Não são minhas, Regicida. São ácaros e pulgas de Azlagûr. Ferramentas úteis,
nada mais.
Ele assentiu, fingindo compreensão. Os doze acólitos inclinaram os bastões na
direção de Murtagh quando ele parou a uns dez passos de Bachel. Se conseguisse se
deslocar para trás deles, poderia conduzir a bruxa na direção do buraco no chão, e
isso limitaria o movimento dela…
Uma coluna de fumaça negra e espessa disparou buraco acima, tão alta e rápida
como uma cachoeira gigante, só que subindo. Em seguida, veio um calor intenso e
um fedor de enxofre tão insuportável que fez Murtagh recuar um passo.
Bachel não parecia afetada. Ela estendeu Niernen e deixou a ponta da lança
entrar no fluxo de fumaça. O brilho da lâmina iluminou a névoa densa por dentro e
lhe conferiu uma tonalidade sobrenatural.
Então, tão repentinamente quanto havia começado, a torrente cessou e o que
restou continuou subindo, levado pelas correntes aquecidas de ar. A fumaça negra
desapareceu nas sombras acima, mas Murtagh sabia que, em alguns minutos,
chegaria à superfície e dali se infiltraria no solo e no ar poluído ao redor de Nal
Gorgoth.
— Que lugar é este, bruxa?
Bachel se empertigou, os olhos brilhando de fúria, e a máscara emprestou à sua
voz um poder aterrorizante.
— Você vai se dirigir a mim pelo meu título legítimo, profanador! Este lugar é
Oth Orum, o coração oculto do mundo, o próprio centro de toda a existência. A sua
presença é uma afronta ao próprio Azlagûr. Nenhum forasteiro pôs os pés aqui em
todos os milhares de anos que os Draumar o guardaram. Vir aqui sem ser
consagrado é convidar a morte, e a morte você terá, a menos que perceba seu erro e
se ajoelhe diante de mim.
— Eu não vou me ajoelhar. Não para você. Não para Azlagûr. Para ninguém.
A fúria de Bachel aumentou, mas a bruxa se controlou.
— Por quê, Regicida? Eu lhe ofereci tudo e ainda assim você me despreza —
disse ela em tom frio.
— Não, você pegou, não ofereceu. — Murtagh não pestanejou ao encarar o olhar
dela. — Eu sou dono de mim. Pela minha vontade, sigo o meu caminho. Não
deixarei ninguém me tirar isso, muito menos você, bruxa. Renda-se agora, ou juro
que os vermes vão se alimentar de você hoje mesmo.
— Profanador! — declarou ela. — Profanador! Você vai se arrepender dessas…
O chão tremeu embaixo deles e um estrondo retumbante ecoou por cavernas e
túneis. Lascas de pedra caíram de cima e nuvens de poeira cinzenta nublaram a
câmara.
Murtagh ficou meio agachado, alarmado. Era mais uma demonstração da magia
de Bachel?
Não, a bruxa e os asseclas cambalearam, como se estivessem surpresos, e ela
soltou uma risada baixa, gutural, encantada.
— Sentiu isso, Regicida?! Sentiu? Isso é Azlagûr vindo para expurgar os
incrédulos! Ele varrerá os indignos como larvas diante das chamas! Entregue-se!
A preocupação consumia a confiança de Murtagh. Ele ainda não compreendia as
forças com as quais estava lidando. A coisa no fundo do buraco era preocupante.
Murtagh ergueu Ithring e a apontou para Bachel, assim como ela havia apontado
Niernen para ele.
— Solte Alín — disse ele, a voz soando alta. — Ela não tem nada a ver com a
nossa briga.
— Ah, tem sim. Ela é minha vassala, e você a colocou contra mim e contra o
próprio Azlagûr. Ela pagará por seus pecados, Cavaleiro. Pagará um preço muito
caro. O sangue dela será um sacrifício bem-vindo ao nosso deus terrível.
— Mentirosa! — gritou Alín. — Hipócrita! Você quebrou nosso credo! Foi
contra tudo o que nos disse que era sagrado!
Ela cuspiu no chão na direção de Bachel.
— Você é a profanadora! Você é a profanadora!
Bachel se virou, com um sorrisinho leve nas feições distorcidas.
— Menina tola. Existem verdades mais ocultas do que você imagina. Tudo o que
fiz foi a serviço de Azlagûr. Você ousa me questionar? A quem Ele escolheu como
Sua Oradora?
O cabelo voou sobre o rosto de Alín enquanto ela balançava a cabeça.
— Como pode dizer isso? Durante toda a minha vida adoramos os dragões, você
nos ensinou isso. Você disse…
— Os dragões? — perguntou Bachel, a voz tão alta que Alín tremeu em
submissão, e a bruxa riu. Não havia nada de agradável no som. — Você deseja
entender aquilo que está acima de sua classe social, miserável, mas farei a sua
vontade. Azlagûr não tem consideração pelos vermezinhos. Eles podem servi-Lo ou
não e, se não servirem, a calamidade de Sua chegada os varrerá de lado. É assim
que Ele deseja, e assim será. Os vermezinhos não são deuses. São instrumentos
úteis e nada mais.
Os doze Draumar com bastões não pareceram surpresos. Murtagh se perguntou se
eles eram do círculo interno de Bachel, a par de informações escondidas do restante
do culto.
— Não — disse Alín em voz baixa, tremendo. — Não pode ser. Por que…
Bachel bateu Niernen contra a pedra.
— Porque sim! Os vermezinhos são aspectos de Azlagûr, mas não o Próprio
Azlagûr. É o Grande Devorador que nós adoramos acima de tudo. — A bruxa
balançou a cabeça, como se estivesse enojada, e estendeu a mão em direção ao
Draumar mais próximo. — Dê-me sua faca.
O acólito obedeceu e tirou uma adaga de lâmina curta de dentro da manga do
gibão. A lâmina de ferro parecia um veludo cinza à luz dos cristais.
Bachel pegou a adaga e caminhou na direção de Alín.
— Não! — gritou Murtagh, lançando os pensamentos na mente de Bachel em um
ataque furioso.
Os passos da bruxa vacilaram e ela parou. Murtagh se esforçou para mantê-la
quieta enquanto avançava.
Bachel fez um gesto para os Draumar. O cântico deles aumentou e Murtagh
tropeçou, caindo apoiado em um joelho quando a força somada de mais doze
mentes colidiu com a dele. As vozes dos cultistas encheram seus ouvidos com um
ritmo pulsante. A cabeça de Murtagh parecia pulsar no mesmo compasso, e a
escuridão se insinuava nas bordas da sua visão.
Mover-se era impossível. A consciência de Murtagh encolheu quando ele se
concentrou no íntimo e se protegeu contra o ataque violento. Seu senso de
identidade se tornou o centro de sua existência: era tudo em que ele se permitia
pensar, tudo que ele se permitia imaginar. O que Murtagh viu, observou sem
julgamento ou reação, como se estivesse assistindo a eventos sem sentido.
Bachel levantou um braço e jogou um frasco na direção dele.
O vidro quebrou na pedra perto da mão de Murtagh. Uma nuvem de vapor branco
perolado flutuou até o rosto dele e o envolveu, mas Murtagh não sentiu o cheiro e
nenhum efeito o atingiu — as proteções mágicas estavam trabalhando.
A bruxa arreganhou os dentes.
— Suas magias não vão…
Outro tremor passou pela montanha e, por um momento, o chão pareceu se
erguer abaixo dele.
A confusão forneceu uma distração útil. Dois dos Draumar perderam a
concentração e Murtagh aproveitou a oportunidade para penetrar no fundo da mente
deles. Mas apenas por um segundo. O poder combinado dos cultistas o forçou a
recuar para o próprio íntimo.
Bachel abandonou Alín e avançou contra ele. A ponta do cabo de Niernen batia
no chão no ritmo de cada passo da bruxa. Os guardas a seguiram, dois deles
arrastando Alín.
A bruxa parou na frente de Murtagh e os acólitos se aproximaram, formando um
círculo ao redor dele. O volume do cântico aumentou, doze vozes martelando nos
ouvidos, doze mentes golpeando a consciência de Murtagh.
— Por que você luta tanto? — perguntou Bachel, ronronando baixo. — Renda-se
a mim, meu filho. Junte-se a nós. Junte-se a nós a serviço de Azlagûr e nunca mais
será atormentado pela dúvida. Seu lugar no mundo será assegurado e seu nome,
cantado por mil gerações.
Junte-se a nós, entoavam os pensamentos dos cultistas, um refrão constante e
enlouquecedor.
Murtagh se sentiu fisicamente preso, incapaz de se mover ou mesmo de pensar.
Havia corpos ao redor dele e vozes também, e cada integrante do grupo o atacava
da mesma maneira, de modo que parecia que estava lidando com uma criatura
enorme determinada a derrotá-lo e contê-lo.
A mão tremia no cabo de Ithring. A mera ideia de ficar de pé e atacar foi o
suficiente para os cultistas se agarrarem à consciência dele. O peso das mentes o
derrubou, achatando sua personalidade até que a identidade dele se diluiu e quase
desapareceu. Era difícil dizer quais pensamentos pertenciam a quem.
Mesmo assim, Murtagh não se rendeu. Ele era o senhor de si mesmo e preferia
morrer a deixar de sê-lo.
Um movimento súbito: Alín se contorceu e se livrou dos captores. Ela arrancou
alguma coisa do pescoço do homem à direita e correu na direção de Murtagh.
Bachel gritou e apontou para Alín. Uma lança de fogo saltou do dedo com garras
da bruxa e atingiu a jovem no peito.
Mas o fogo passou inofensivamente em volta dela.
Com um grito desesperado, Alín desabou em cima de Murtagh com os braços em
volta dos ombros dele. Os dedos de Alín se atrapalharam em sua nuca e…
Clareza. Alívio repentino. A pressão sobre a mente desapareceu e Murtagh se
levantou de um salto.
Um amuleto de caveira de pássaro quicou no seu peito.
Ithring cantou no ar enquanto atacava o cultista mais próximo. O homem não
tinha proteções mágicas e a lâmina carmesim passou por ele quase sem resistência.
O cântico se dissolveu e virou uma dissonância apavorada.
Murtagh deu um passo rápido até o Draumar seguinte e cortou-lhe a cabeça. Os
cultistas estavam amontoados perto dele, que se movia com uma eficiência
implacável, cortando braços e pernas e esfaqueando onde podia, determinado a
mantê-los tão ocupados que não pudessem imobilizá-lo novamente.
Bachel rosnou. Uma torrente de chamas disparou dela para Murtagh. Como
aconteceu com Alín, as chamas o envolveram sem causar danos. O fogo arcano
também tocou em dois dos três Draumar atrás dele. No entanto, o terceiro cultista
era o homem de quem Alín havia roubado o amuleto e o fogo o consumiu, a pele
rachou e o cabelo desapareceu em uma explosão de faíscas alaranjadas. Ele fugiu
gritando enquanto era envolvido por uma manta de chamas.
Tomado pela cegueira, ele passou correndo pela borda do grande buraco no
centro da câmara e caiu no vazio negro, com as labaredas deixando um rastro do
corpo dele como bandeiras tremulando.
Murtagh não parou para assistir, mas acelerou a carnificina, ansioso para abater o
resto dos guardas de Bachel antes que pudessem recuperar a vantagem.
Vários cultistas tentaram bloquear ou aparar os ataques, e alguns até o
golpearam, mas não eram guerreiros treinados — não como ele —, e Murtagh se
defendeu com facilidade.
Ao se virar, viu Alín lutando com um cultista. O homem a golpeou com o bastão
e ela caiu sobre a pedra, com o corpo mole e imóvel.
Ver aquilo estimulou Murtagh a acelerar ainda mais. Guiada pela mão dele,
Ithring traçou uma linha de corte fatal de corpo a corpo, um borrão sangrento rápido
demais para acompanhar. Os Draumar tombaram como talos de grama cortados por
uma foice.
Um estrondo passou pelo chão da caverna. Mais poeira caiu de cima enquanto
fragmentos se soltaram dos cristais e cascatearam, tilintando, por toda parte.
Murtagh tropeçou e parou com os braços estendidos.
Antes que o tremor diminuísse, Bachel veio correndo na direção dele — uma
forma escura varando as cortinas de poeira, com a antiga lança empunhada diante
de si.
Ele reagiu rápido, mas a bruxa foi ainda mais veloz, pois tinha os reflexos de um
elfo. A ponta de Niernen atingiu a lateral do corpo de Murtagh e, para espanto dele,
perfurou a cota de malha e o estocou entre as costelas.
Bachel puxou a lança e Murtagh caiu para trás, fazendo pressão na lateral do
corpo. Fogo ardeu em seu peito e sangue espirrou dos lábios quando ele tossiu.
Murtagh ficou gelado de medo e os pensamentos tornaram-se sérios e simples. A
lâmina havia tocado um pulmão. Era um ferimento potencialmente fatal, embora
não de maneira imediata. Ele tinha visto ferimentos assim no campo de batalha. O
pulmão entraria em colapso ou se encheria de sangue. De qualquer maneira, ele
morreria por falta de ar, a menos que pudesse se curar.
A bruxa exultou.
— Você não vai triunfar aqui, Regicida. Eu reino suprema neste lugar, pois sou a
campeã de Azlagûr.
Um acólito atacou Murtagh pelo flanco. Ele se esquivou de um golpe do bastão
do homem e varou o pescoço dele.
O cultista caiu, gorgolejando e batendo as pernas.
Murtagh olhou em volta, esperando outra emboscada. Não havia mais ninguém
de pé na câmara, exceto ele e Bachel. Manchas escuras de sangue cobriam as pedras
em volta dos corpos dos onze cultistas caídos — o décimo segundo tinha se jogado
no buraco.
A bruxa ergueu a mão esquerda e fez um gesto de esmagamento. O amuleto de
caveira de pássaro em volta do pescoço de Murtagh rachou e se desintegrou em um
pó branco que escorreu pela frente da cota de malha. Ao ser destruído, a proteção
do amuleto desapareceu, e Murtagh sentiu Bachel lançar um novo ataque à mente
dele.
Ele se preparou contra a tentativa de invasão.
Um sorriso deixou a boca de Bachel ainda mais torta.
— Você pensou que meus próprios encantamentos resistiriam a mim, Regicida?
Enquanto falava, ela caminhou na direção de Murtagh, como um grande felino
indo até a presa.
Apesar da dor, ele manteve a mente calma, clara — sem emoção. O pânico não o
ajudaria. A bruxa investiu novamente e ele aparou. A ferida na lateral do corpo
tornava impossível se mover com facilidade. Ele mancou ao desviar da Dauthdaert,
o que proporcionou a Bachel uma grande oportunidade de escapar do contra-ataque.
— Essa resistência trará apenas a morte! Ajoelhe-se diante de mim!
— Não.
A bruxa avançou de novo contra ele, que recuou em volta do buraco escancarado
no chão, tentando manter a distância entre os dois enquanto também a afastava de
Alín. Gotas brilhantes de sangue caíram da lateral do corpo, deixando um rastro de
manchas salpicadas como uma linha de moedas vermelhas espalhadas atrás dele.
Nunca antes Murtagh havia vivenciado uma sensação tão grande de luta
desesperada. Nem mesmo durante o combate contra Galbatorix e Shruikan. Pelo
menos naquela ocasião havia outras pessoas para ajudá-lo. Ali, ele estava sozinho,
sem Thorn, e o menor erro significaria a morte.
Talvez já estivesse morto.
A respiração chiava através do pulmão perfurado. Era difícil inspirar ar
suficiente.
Bachel avançou e atacou com intenção furiosa: meia dúzia de estocadas rápidas,
que deixaram Murtagh com um pequeno corte na panturrilha, logo acima das
grevas.
As proteções mágicas não conseguiam deter a Dauthdaert. Nenhuma conseguiria.
Galbatorix afirmara que as lanças eram as únicas armas que os dragões temiam.
Murtagh acreditou. Ele próprio tinha aprendido a temê-las.
Murtagh fingiu um tropeço e, quando Bachel avançou para aproveitar a suposta
abertura… ele desviou e cortou sob o braço estendido da bruxa.
Ithring resvalou em um feitiço de proteção. Mesmo sem a armadura, Bachel
estaria bem protegida contra a espada dele.
Murtagh reavaliou. Não derrotaria a bruxa pela força das armas, a menos que
pudesse de alguma forma quebrar suas defesas mágicas.
Quando Bachel se virou para encará-lo novamente, Murtagh dirigiu a mente
contra a da bruxa com toda a força que pôde reunir. O ataque invisível foi tão forte
que deteve Bachel imediatamente. O rosto dela ficou rígido com a tensão enquanto
lutava para afastar os pensamentos intrusivos.
Nenhum dos dois se mexeu. Eles não tinham atenção para dispensar.
A mente de Bachel era incomodamente familiar. Quantas noites tinha passado o
torturando, tentando quebrar a determinação dele na sala dos horrores sob o templo?
Mas dessa vez foi diferente. Murtagh estava de volta a si e, embora não fosse um
elfo, sua força mental era equiparável, assim como sua determinação. Bachel não
conseguia afastá-lo com facilidade, e cada triunfo que tivera contra ela — não
importava quão pequeno — alimentava ainda mais o ataque dele.
Ainda assim, a bruxa era forte e ardilosa. Tentar conter sua consciência era como
tentar segurar uma fera que ficava se contorcendo e mordendo. A menor das
aberturas permitiu que ela o atacasse. Murtagh ficou na defensiva até que pudesse
imobilizá-la de novo.
Embora não se mexessem, suas respirações ficaram pesadas e o suor escorria de
seus rostos e pingava no chão. E Murtagh sentia e ouvia o rápido tamborilar do
sangue que caía em gotas. Cada inalação era mais difícil que a anterior.
Por mais difícil que fosse, ele avançou contra Bachel. Cada vez que ela se
contorcia para fora de seu alcance mental, o espaço que ele lhe concedia diminuía.
Pouco a pouco, apertava com ainda mais força os grilhões que estava amarrando
sobre o ser dela.
Quando Bachel percebeu o que estava acontecendo, entrou em pânico. Era o que
Murtagh havia esperado. Mas, em vez de se debater, estocar ou fazer qualquer coisa
razoável, a bruxa ergueu a mão e apontou para ele. Murtagh ficou surpreso ao sentir
uma onda de energia na mente dela e...
… cacos pontiagudos de gelo dispararam na direção dele de um chão
repentinamente coberto de geada. As pontas afiadas como agulhas se quebraram
contra as proteções mágicas, mas o ar nos lábios de Murtagh ficou dolorosamente
frio.
Ele rosnou. A bruxa se recusara a aderir à única regra de um duelo de
conjuradores: não usar magia até que alguém tivesse estabelecido o controle sobre a
mente do oponente.
O primeiro instinto de Murtagh foi atacar com os feitiços mais terríveis que
conhecia — feitiços que extrairiam tanta energia dele que poderiam matá-lo, mas
que também poderiam ser a única chance de deter Bachel antes que ela o matasse.
Ainda assim, Murtagh hesitou. A ideia do suicídio não o seduzia — e lembrou que
Bachel era indisciplinada, destreinada. Ela não usava a língua antiga porque não a
conhecia e não aderia ao protocolo correto de duelo porque também o ignorava.
Isso não tornava a posição de Murtagh mais segura, mas significava que, se ele
usasse magia, Bachel não reagiria com força suicida como qualquer mágico
treinado faria.
Pelo menos, assim ele esperava.
— Brisingr! — gritou Murtagh, mantendo a pressão na mente dela, e permitiu
que uma corrente de chamas carmesins cintilantes brotasse da ponta de Ithring.
O fogo arcano derreteu rapidamente os pingentes de gelo antes de envolver
Bachel com intimidade intrusiva.
Ele encerrou o feitiço e viu que a bruxa estava ilesa e rindo.
— Curve-se, infiel! — gritou ela.
Outro tremor sacudiu o chão. A distração permitiu que ela afastasse ainda mais a
mente da de Murtagh. A bruxa apontou Niernen para ele, que sentiu uma
diminuição repentina e drástica de força quando as proteções mágicas defenderam
um ataque que ele não sentiu nem viu.
— Thrysta! — foi a resposta de Murtagh, e o feitiço teve um efeito semelhante
em Bachel, que caiu quando o ataque dele esgotou as reservas dela.
Os dois conjuraram feitiços com uma desinibição desenfreada, cada um tentando
dominar o outro. Murtagh pronunciou palavras na língua antiga o mais rápido que
pôde: uma vez esgotadas as vias de ataque mais óbvias, a quantidade se tornou mais
importante do que a qualidade. A velocidade era essencial.
Nisso, Bachel levava nítida vantagem. Murtagh nunca havia apreciado de
verdade o poder da magia sem palavras. A bruxa não precisava parar para pensar
em como formular os encantamentos; ela simplesmente determinava que eles
existissem, e os encantamentos existiam. Conceitos que teriam sido tediosos ou
impossíveis de expressar na língua antiga eram uma questão trivial para Bachel e,
de fato, muitos dos ataques que ela lançou contra Murtagh eram de um tipo que ele
teria tido dificuldade para replicar.
A limitação para ambos, obviamente, era a energia de que dispunham. Murtagh
esgotou o que restava do rubi de Ithring e ficou apenas com as reservas do próprio
corpo. E foi fácil sobrecarregá-las.
Se Bachel tinha estoques de energia escondidos, ele não sabia. Mas os lábios da
bruxa logo ficaram cinzentos e ela cambaleou ligeiramente enquanto avançava para
cima dele, que não estava se sentindo muito melhor. Cada feitiço consumia outra
porção de vitalidade, e uma letargia mortal se arrastava pelos braços, pelas pernas e
pela mente de Murtagh.
Entre os dois vibraram golpes estonteantes de calor e frio, luz e escuridão. O
vento uivava em rajadas brutais e desapareceria um segundo depois, substituído por
tentáculos de noite líquida, ou então forças invisíveis que procuravam cortar,
esmagar ou penetrar na carne frágil do inimigo. Em dado momento, uma sósia de
Bachel surgiu ao lado de Murtagh — realista em todos os aspectos, até mesmo nos
poros da pele —, e a ilusão o assustou tanto que a verdadeira bruxa quase conseguiu
estocá-lo mais uma vez.
Murtagh passou muitas horas, durante muitos dias, pensando em ataques e
contra-ataques para usar ao lutar contra outro mágico. Mas nenhum dos esquemas
planejados deu certo contra Bachel. Nem os feitiços que utilizara com sucesso no
passado foram eficazes. Ele até tentou atacar a bruxa como Eragon havia feito com
Galbatorix: ajudando Bachel. Isso também falhou.
Ataques indiretos pareciam ter o maior efeito. Se um feitiço não fosse
direcionado a Bachel em si, e sim ao ambiente em volta dela, ele cansava de forma
mais consistente as proteções mágicas da bruxa e, às vezes, chegava a contorná-las
até certo ponto.
Ter percebido isso lhe deu uma ideia.
Murtagh olhou em volta. Do outro lado da clareira, um enorme cristal branco se
debruçava sobre o espaço aberto, como uma árvore prestes a cair derrubada pelo
vento. Dependendo do peso do cristal, ele imaginou que até Thorn teria dificuldade
para erguê-lo.
O mais rápido que pôde, Murtagh revirou o cérebro confuso em busca das
palavras de que precisava e então murmurou:
— Ílf kona thornessa thar fïthrenar, thae stenr jierda.
Foi uma aposta, mas talvez…
Bachel rosnou, a boca ainda mais repuxada para o lado.
— Sua magia não tem efeito contra mim, Regicida. Abandone o orgulho e
ajoelhe-se! Você ainda não entende que não pode resistir a Azlagûr ou a Seus
discípulos? Renda-se!
Outro jato de fumaça preta subiu pelo buraco no centro da caverna.
— Prefiro morrer.
Murtagh começou a recuar em direção ao cristal inclinado. Ele fingiu mancar e se
moveu como se suas forças estivessem quase acabando e ele estivesse prestes a
desmaiar. Não era um exagero.
— Bah!
O rosto de Bachel se distorceu em uma expressão odiosa enquanto ela caminhava
em direção a ele de cabeça erguida, metendo a ponta do cabo de Niernen com força
no chão de pedra a cada passo.
Bom. Ela estava confiante. Muito confiante.
Conforme a bruxa se aproximava, Murtagh conjurou outro feitiço: uma tentativa
de cegá-la, dobrando a luz em volta do rosto dela. A magia teve sucesso, mas
apenas por um segundo. Bachel fez um gesto com a mão e lançou sua força contra a
de Murtagh. Ele não se defendeu. Liberou o feitiço. Mas o encantamento serviu ao
propósito de distrair a bruxa e satisfazer a expectativa dela de que ele continuaria a
lutar até o amargo fim.
O brilho suave do cristal apareceu acima de Murtagh quando ele passou por
baixo da estrutura.
Ele parou por um momento, apenas tempo suficiente para Bachel chegar a
poucos metros de sua posição.
Ela avançou com um sorriso cruel e triunfante nos lábios.
Murtagh deu um passo para trás.
Quando o pé de Bachel tocou a pedra sob o cristal, um grande estalo soou e os
joelhos de Murtagh se dobraram quando o feitiço agiu.
O cristal quebrou perto da base e desabou.
Bachel fez menção de sair do caminho, porém, por mais rápida que fosse, o
enorme tronco de pedra facetada acertou seu quadril e suas pernas, jogando a bruxa
no chão.
Um clarão semelhante a um raio a cercou e, no mesmo instante, as proteções
mágicas cederam e os milhares e milhares de quilos de cristal esmagaram a metade
inferior do corpo dela.
O impacto sacudiu e derrubou Murtagh. Ele caiu de costas com um golpe
doloroso, meio surdo com o som da queda.
Bachel gritou. Ela estava imobilizada, presa, e manchas de sangue que pareciam
asas de borboletas carmesim se espalhavam em volta. Um pedaço do cristal tinha
atingido a bruxa na cabeça, entortando a máscara e, aparentemente, interrompendo
seu efeito. O encantamento dracônico não mais a encobria com o aspecto terrível.
Ela voltou a parecer uma mulher — menor e diminuída, mas ainda tão furiosa como
sempre e longe de ser dissuadida.
Os dois falaram ao mesmo tempo.
— Kverst! — disse Murtagh.
— Pare! — gritou a bruxa em tom malévolo.
Os feitiços se chocaram. Um contra o outro. Nenhum dos dois estava disposto a
ceder. Um véu negro se formou em torno da visão de Murtagh enquanto o calor
fugia do corpo. No entanto, ele se levantou com dificuldade e deu os dois passos
necessários para diminuir a distância até Bachel.
O rosto da bruxa estava contorcido pelo esforço, os lábios cinzentos repuxados
em um rosnado. O pescoço de Bachel estava retesado e as veias se destacavam
como uma corda emaranhada sob a pele. Ela ainda segurava Niernen e, quando
Murtagh se aproximou, a bruxa recuou o braço e estocou com a lança.
Ele não tinha força ou velocidade para se desviar.
A ponta da Dauthdaert resvalou no elmo com um guincho metálico, e a cabeça de
Murtagh foi jogada para trás enquanto ele absorvia a força do impacto.
Então Murtagh adentrou o espaço pessoal de Bachel, onde ela não tinha mais
como atacá-lo com a lança.
Os olhos dos dois se encontraram, um instante de calma em meio a uma
tempestade, e Murtagh viu no olhar dela reconhecimento e, pensou, aceitação.
Experimentou uma sensação de intimidade com Bachel, como se ela fosse tão
querida para ele quanto Tornac ou Thorn, pois a chegada da morte destruía todos os
limites e fingimentos.
Com o último átimo de força, Murtagh brandiu Ithring. Um único golpe perfeito,
que atingiu Bachel no topo da cabeça e partiu o crânio.
A resistência da bruxa desapareceu. O feitiço dele, kverst, teve efeito, e a cabeça
da bruxa caiu para trás, fazendo o cabo de Ithring escapar da mão dele.
Uma escuridão fria tomou conta de Murtagh e ele desmoronou, inconsciente.
CAPÍTULO IV

Islingr

U m estrondo grave e estridente e o som de fumaça subindo foram as primeiras


coisas que Murtagh percebeu.
Depois dor, um frio tão intenso que chegava a seus ossos e uma imensa fraqueza.
Precisava de comida e bebida e tempo para se recuperar. Mas não teria nada disso.
Ele abriu os olhos. O teto abobadado estava escuro de fumaça. Ela havia ficado
mais espessa desde que Murtagh desmaiara.
Cerrando os dentes, ele rolou para o lado direito — onde doía menos — e se
ajoelhou.
Olhou para o que restava de Bachel: as costas meio presas sob os escombros
cristalinos, o pescoço torcido em um ângulo não natural, Ithring ainda cravada no
crânio, olhos cor de mel arregalados e sem vida. Ele não sentiu nada, não pensou
em nada, apenas olhou para o que havia feito. Era importante.
Lá de cima, Thorn tocou sua mente, um contato distante, mas urgente. À medida
que as forças de Murtagh diminuíam, os pensamentos dos dois se fundiam e, por
um instante, as diferenças entre eles se dissolveram. Murtagh pôde contemplar o
mundo como Thorn.
O ninho-dos-bípedes se inclinou lá embaixo enquanto ele virava as asas em
direção às montanhas denteadas onde o sol se punha. Muitas das construções
estavam quebradas e pegando fogo, e as chamas lançavam sombras trêmulas nas
colinas em volta. Corvos de olhos brancos gritavam, e cabras também, e uma
correnteza de bípedes-dos-pesadelos fugia a pé pelas margens do rio, indo em
direção à Baía do Fundor. As asas doíam por causa de muitos ferimentos pequenos,
mas a dor não importava.
Murtagh sentiu a preocupação de Thorn. O dragão disse algo que era ao mesmo
tempo um apelo e uma ordem.
Cure-se!
Eu…
Outro estrondo sacudiu Murtagh, e do buraco no centro da caverna vieram sons
como rocha sendo esmagada e quebrada. Ele foi tomado por apreensão e lhe
ocorreu que a pressa pudesse ser necessária.
Ficar de pé exigiu um esforço concentrado da mente e do corpo, e Murtagh quase
desmaiou de novo ao se levantar. Ficou parado por um momento, cambaleando, até
que a visão desanuviou e o equilíbrio se firmou. Ele tinha deixado cair o escudo em
algum momento. Pegá-lo parecia ser mais problemático do que valia a pena.
Os onze Draumar jaziam do outro lado do buraco. Eram corpos caídos como
bonecos quebrados em meio à enorme mancha escorregadia de sangue. Lá também
jazia Alín, ainda imóvel.
Murtagh! A frustração de Thorn era palpável.
— Não posso. Alín. Eu preciso…
Pressionando a mão no ferimento, ele cambaleou até a bruxa. Murtagh apoiou o
pé esquerdo na cabeça dela e puxou Ithring. A lâmina estava emperrada, e ele teve
que puxar mais duas vezes.
Aversão e pena o fizeram se afastar dos restos mortais de Bachel.
— Que você sonhe para sempre — murmurou ele.
Mais rangidos soaram do interior do buraco e outro jato de fumaça preta disparou
pela abertura.
Com passos vacilantes, Murtagh deu a volta até Alín. Quando caiu de joelhos ao
lado dela, o solavanco causou dor na lateral do corpo, e ele soltou um grito.
Sangue emaranhava o cabelo da mulher, mas ela ainda respirava.
Murtagh colocou Ithring no chão e pressionou a palma da mão na cabeça de Alín.
— Waíse heill — sussurrou.
Sua visão escureceu quando o feitiço fez efeito. Murtagh balançou e caiu de lado,
mal conseguindo se segurar antes de a cabeça bater na pedra. Os olhos se fecharam.

O ar assobiou pela cabeça enquanto ele mergulhava em direção ao solo preto
queimado, com as patas dobradas e recolhidas perto do peito e da barriga. Ele
pousou com o estrondo de um trovão. O bípede-chifrudo-sem-espada se virou para
olhar para Thorn, surpreso, com medo.
Me ajude.
Bípede-chifrudo entendeu e correu para ele. Subiu nas costas.
Ele correu em direção ao sopé da montanha de rocha cinza.

Murtagh levou um susto ao acordar, desorientado.
Junto aos joelhos dele, Alín gemeu, e as pálpebras dela tremeram.
Mais sons de pedra quebrando emanaram do buraco, como se a montanha
estivesse se despedaçando, e houve uma grande comoção rangente e dolorosa de
ouvir.
O chão estremeceu quando Murtagh agarrou Ithring e se forçou a ficar de pé. Ele
tossiu. Gotas de sangue esguicharam, molhadas e pegajosas.
Ele queria se curar, mas não tinha forças. Ainda não. Mas sabia que se não
cuidasse logo da ferida perfurante, perderia a oportunidade.
Um tremor violento o fez cambalear. Pela caverna inteira, cristais racharam e
quebraram, caindo no chão com notas semelhantes a sinos: uma cacofonia de
música desconexa.
A apreensão se transformou em medo enquanto Murtagh tentava imaginar o que
poderia fazer as montanhas tremerem. Bachel estava morta, então… Será que havia
alguma realidade nas crenças dos Draumar, algo que ia além dos vapores fétidos
que vazavam das rochas em volta de Nal Gorgoth?
Murtagh encarou o buraco. Ele tinha que saber.
A ponta de Ithring se arrastou na pedra enquanto ele se dirigia para o vazio
escancarado. Cada passo lhe custava caro, e ele sentia uma relutância crescente em
olhar por cima da borda rochosa e ver o que havia lá embaixo.
Ainda assim, se aproximou, com o corpo todo contraído de dor e pavor.
O chão tremeu. Ele empurrou Ithring para longe ao cair de lado. Uma dor quente
pinçou os braços e as pernas, e a visão ficou branca e depois preta.

A boca da montanha de rocha cinza se escancarou diante dele. Thorn hesitou.
Dentro havia dor e medo, redes frias de correntes e grilhões justos. Mas Murtagh-
Cavaleiro estava em perigo e precisava de ajuda.
Ele deu um passo à frente, mas parou e ganiu. O medo era muito grande. O
estômago sentiu uma queimação de comida ruim.
— O que você está esperando? — berrou bípede-chifrudo.
Ele rosnou e rugiu, depois balançou a cabeça e se virou para longe do buraco
odioso. Com dois saltos, lançou-se no ar e subiu circulando acima do interior da
montanha escancarada.
E se odiou por isso.

Murtagh engasgou. Onde estava?
Um pedaço de cristal do tamanho de um punho deslizou pelo chão perto da sua
cabeça. Ele se encolheu. Usando Ithring como muleta, Murtagh se levantou,
segurando a lateral do corpo. Thorn não estava vindo. O pensamento era quase tão
doloroso quanto o ferimento. Ele desejou poder acalmar a aflição do dragão, mas
havia uma preocupação maior e imediata. Ainda assim, o pensamento permaneceu
como uma agulha farpada na sua mente.
Ele se arrastou para a frente, desesperado, ofegante.
Um brilho prismático passou por seus olhos. Por um momento, Murtagh sentiu
que estava em outro lugar, em outro tempo, em uma planície devastada e varrida por
um vento sem fim…
Ele balançou a cabeça. Não. Com o que restava de suas forças, Murtagh
cambaleou pelos últimos metros até o buraco e caiu de joelhos diante dele.
Espiou por cima da borda, cauteloso.
A escuridão se escancarava abaixo, suave como asas de dragão e com a
impressão de ter uma profundidade imensa. A princípio, seus olhos não
conseguiram enxergar no vazio, mas então Murtagh conseguiu discernir
movimento, quase invisível, como se um rio grande e sombrio passasse ali.
A fumaça subiu em uma coluna.
Apesar dos esforços, a nuvem quente o envolveu, ardendo nos olhos e entupindo
nariz e garganta.
Murtagh caiu para trás e bateu na pedra. Novamente, perdeu os sentidos.

Bípede-chifrudo gritava com ele e batia em seu ombro. Thorn não prestou
atenção ao bípede enquanto mantinha o olhar fixo na boca da montanha. Murtagh-
Cavaleiro estava sofrendo, e isso fazia Thorn sofrer.
— Que tipo de fera é você? — gritou o bípede, e, dessa vez, Thorn o ouviu. —
Você é um dragão ou um verme rastejante?! Volte! Vamos!
As escamas se eriçaram e ele rugiu quando a indignação disparou a raiva. Thorn
dobrou as asas, mergulhou e pousou no sopé da montanha.
Antes que a coragem pudesse falhar, ele correu para o buraco preto e úmido com
cheiro de ovo.
Cercado por paredes de pedra cinza. Ar espesso, sufocante. O espaço era muito
pequeno, não se mexa, não pense, perto demais. Como a prisão em Urû’baen.
Mata-dragões curvado sobre ele, mostrando dentes pequenos, anéis de ferro,
ferroada de chicotes…
Ele não conseguia continuar. Sacudiu o toco de rabo e choramingou.
Então o bípede-chifrudo acariciou seu pescoço.
— Seu Cavaleiro precisa de você, dragão. Pense nele. Faça por ele, não por
você. Pelos outros, conseguimos ser fortes.
As palavras penetraram em sua mente e se fixaram ali. Ele se agarrou a elas com
uma força desesperada. Murtagh-Cavaleiro precisava de ajuda. E Murtagh-
Cavaleiro sempre o ajudou.
Só havia uma escolha. Era a única escolha que sempre houve, na verdade, mas
ele temia enfrentá-la para valer até aquele momento.
O primeiro passo foi impossível.
O segundo foi quase isso.
O terceiro foi apenas terrivelmente difícil.
O quarto veio rapidamente, e a seguir Thorn estava rastejando adiante como
quadrúpede-sem-asas, farejando uma presa. O medo da caverna não passou, ainda
parecia que seu coração de sangue quente quebraria, mas ele conseguia se mover.
Conseguiria lutar. Conseguiria ajudar.
Ele rugiu novamente.

Um gosto amargo preencheu o fundo da garganta de Murtagh, intenso, pungente,
venenoso. Ele voltou a si, tossindo e engasgando, e cada convulsão purgativa
causou uma agonia no peito.
Pestanejou para conter as lágrimas, mal conseguindo se concentrar. Thorn estava
a caminho. A constatação trouxe medo, orgulho e alívio. Se o que estava dentro do
buraco pudesse machucar o dragão, Murtagh não seria capaz de protegê-lo.
Ele rolou e novamente espiou por cima da borda do poço, temendo o que poderia
ver. Como antes, teve uma vaga impressão de movimento dentro do espaço escuro e
cheio de fumaça sob a montanha.
Expandiu a mente. Nenhum ser vivo jazia abaixo. No entanto… Murtagh
ampliou a busca, disseminando a consciência o mais longe que pôde pelas
profundezas. Foi, foi... até ficar tão espalhado quanto uma película de sabão, então
sentiu…
Uma mente.
Uma mente tão extensa quanto as próprias montanhas. Uma consciência tão
distante da sua que Murtagh poderia muito bem ser uma formiga agarrada ao flanco
de uma fera inimaginavelmente grande. Os pensamentos eram frios e lentos — ilhas
escuras de gelo flutuando em uma corrente lânguida. Uma intenção terrível
permeava tudo, uma malevolência antiga e calculista que pulsava como a batida de
um coração enorme. Murtagh sentiu uma fome imensa e interminável vindo daquela
mente, além de uma fúria reprimida que não conhecia limites.
Medo congelante percorreu os membros de Murtagh em ondas, como um choque.
Diante do toque, a mente lá embaixo se mexeu. Os tremores e estrondos sob a
caverna se intensificaram. Murtagh a sentiu se voltando para ele, concentrando a
enormidade de sua consciência no único ponto do seu ser. Quando o encontrasse,
quando o tivesse em suas garras, Murtagh sabia que estaria indefeso.
Ele não pensou. Não esperou. Usou o que restava da força e gritou o feitiço que
havia usado uma única vez antes, nas planícies varridas pelo vento entre Gil’ead e a
Espinha.
— Vindr thrysta un líjothsa athaerum!
O ar acima dos cristais brilhantes pareceu vidro e, em um instante, toda a luz na
caverna se enfiou no buraco e formou uma única barra de iluminação ofuscante e
incandescente: uma lança de fogo forjada do próprio sol.
Uma rajada de ar superaquecido atingiu Murtagh com a força de mil martelos e o
jogou no chão. Ele sentiu os órgãos se mexerem quando o mundo explodiu abaixo
de onde estava.

Ele pestanejou.
Tudo tinha ficado frio e silencioso. Cinzas caíam do teto de pedra, flocos
delicados e cinzentos lembrando neve.
Murtagh se apoiou nos antebraços.
O buraco no centro da caverna estava duas vezes maior do que era antes, e as
bordas reluziam com um brilho vermelho opaco. Dentro do buraco, no fundo…
nada era visível. Nenhum indício de movimento, a não ser os flocos caindo. Vazio.
Um pedaço de pedra caiu do teto e ricocheteou no chão a uma curta distância de
Murtagh, que não ouviu nenhum som.
Ele tentou se levantar, mas suas pernas não aguentavam o peso.
Tentou expandir a mente, mas isso também estava além de sua capacidade. A
garganta estava apertada, como se estivesse sufocando. A escuridão tomava as
bordas da sua visão.
Ele tentou.
Tentou tentar…
Não podia…

Enquanto a consciência se esvaía como água entre os dedos, a pedra embaixo de


Murtagh tremeu com o passo apressado de alguma coisa enorme e pesada se
aproximando…
O último pensamento dele foi de arrependimento. Se ao menos…

Uma vermelhidão reluzente se moveu acima dele e pontas brancas se


transformaram em garras e dentes.
Thorn. Murtagh tentou se levantar, mas não teve forças.
Então, a silhueta chifruda de Uvek estava ajoelhada ao lado dele. O Urgal
murmurou na sua língua gutural e pressionou a dureza fria da pedra negra na testa
de Murtagh.
Veio um alívio bem-vindo quando a dor nas costelas desapareceu, mas a
respiração não parecia mais fácil, e ele permaneceu tão fraco e desamparado quanto
antes.
A voz do Urgal soou como se estivesse sendo abafada por mantas de lã.
— Ele tem muito sangue nos pulmões, e não o suficiente no corpo. Você deve
levá-lo a um de seus curandeiros, dragão. E rápido!
Houve solavancos e movimentos, e as formas da câmara se inclinaram quando o
Urgal pegou Murtagh e subiu nas costas de Thorn.
Ele lutou contra a pegada do Urgal, queria falar, mas as palavras não se
formavam. Gemeu, frustrado, pois havia algo que precisava ser dito, algo
importante.
O mundo se ergueu embaixo dele quando Thorn levantou voo, e os olhos de
Murtagh reviraram.

O ritmo conhecido do trote pesado de Thorn o despertou.


Um teto de pedra escura passou por cima, mais rápido do que um homem seria
capaz de correr. Estrondos graves ecoaram pelo túnel — como se viessem de um
tambor enorme — e também estalos assustadoramente altos. A montanha tremeu
em volta deles.
Lascas de pedra caíram espessas como neve.
— Mais rápido! — rosnou Uvek enquanto as pedras batiam na cabeça e nos
chifres dele.

Chamas ondularam diante deles enquanto Thorn varria o interior de uma caverna
dentada com estalactites e estalagmites. Centenas de ratos-com-dedos guincharam
ao serem queimados pelo fogo. O fedor repugnante de pelo queimado encheu o
túnel, espesso como fumaça.
Mais daquelas criaturas grotescas subiram pelos flancos de Thorn. Uvek as
golpeou com o punho grande feito um martelo, e elas caíram quebradas no chão
cheio de lodo.
Thorn mordeu e dilacerou, e a seguir estava avançando novamente.
Em meio aos guinchos dos ratos-com-dedos, Murtagh se lembrou do que
precisava ser dito.
— Alín — murmurou ele, mas ninguém pareceu ouvir ou se importar.

O tempo tinha pouco significado. Murtagh estava acordado, mas a realidade surgia
e desaparecia ao seu redor: uma série de impressões desconexas que não lhe davam
nenhuma noção de lugar ou progresso, como se tivesse estado e fosse estar preso
para sempre nas costas de Thorn, sujeito a eventos sem razão ou explicação.
Ele sentiu como se estivesse sufocando. Cada respiração era uma luta, e, quando
não conseguia inspirar, a escuridão o invadia e outra ilha de realidade desaparecia.
Nos breves momentos de consciência, ele continuou tentando falar com Thorn,
mas não conseguia chamar a atenção do dragão. Foi angustiante.
Ele viu cavernas e túneis sem fim. Câmaras abobadadas cheias de cogumelos
podres. Aranhas feitas de sombras disparando pelas pedras rachadas, evitando o
fogo de Thorn. Pilares de cristal e paredes com entalhes estranhos que pareciam
mais velhos do que as antigas obras dos anões.
Os caminhos que Thorn estava seguindo eram diferentes dos que Murtagh havia
percorrido, e ele não reconhecia o ambiente.
A montanha continuava a tremer. Houve dois enormes desabamentos de pedras.
— Vire, vire! — gritou Uvek.
E sempre a respiração rouca de Thorn, como se o próprio dragão estivesse
lutando para respirar.

A luz mais fraca apareceu acima deles, laranja e fuliginosa, como uma fogueira no
alto de uma colina. Murtagh franziu os olhos e tentou erguer a cabeça.
Uma linha de degraus rústicos subia o paredão de pedra diante de Thorn, indo em
direção à boca avermelhada da caverna. Salvação. Liberdade.
Uvek berrou alguma coisa e Thorn disparou para a frente, grunhindo enquanto
subia às pressas para sair das profundezas da montanha. Estrondos abafados
ecoaram por toda a caverna que se alargava, mais altos do que nunca — trovões
ensurdecedores que vibraram nos ossos de Murtagh.
Ele arfou e tossiu. Sangue coagulado entupia a garganta; ele não conseguia cuspi-
lo, não conseguia o ar de que precisava.
Os degraus quebraram sob o peso de Thorn. A caverna estremeceu e pedregulhos
despencaram do teto bruto e racharam e quicaram em volta deles. Um pedaço de
pedra tão grande quanto uma carroça resvalou no ombro esquerdo de Thorn e
derrubou o dragão de lado. Ele cambaleou, e a cabeça de Murtagh balançou de um
lado para o outro com o impacto.
Estrelas reluziram na visão de Murtagh enquanto uma gaze preta se enrolava nas
bordas.
A caverna inteira parecia estar desmoronando. Trechos inteiros de pedra se
soltaram e desabaram até se desintegrarem em uma chuva de estilhaços e
escombros. O som era entorpecente, surpreendente, impossível de compreender.
— Mais rápido, dragão! — gritou Uvek.
Os coágulos na garganta de Murtagh foram para o lado errado, e ele os inalou. A
respiração parou no peito. Ele não conseguia tossir, não conseguia emitir nenhum
som, não conseguia…
Sua cabeça foi jogada para trás quando Thorn saltou para a frente novamente. A
boca da caverna estava encolhendo à medida que o teto desmoronava, e a luz
laranja da liberdade diminuía.
Um pedregulho grande caiu na frente deles, e Thorn escorregou e caiu para a
frente sobre o peito.
O impacto foi brutal. A visão de Murtagh ficou branca, o peito se contraiu. Ele se
sentiu afundando no esquecimento no momento que o trovão descia em volta deles.
Não!, pensou ele.
O mundo deixou de existir.
CAPÍTULO I

Aceitação

M urtagh estava quente e havia um peso macio sobre ele, mantendo-o deitado
com uma intimidade reconfortante. Disso ele sabia.
Uma névoa de brilho leitoso se formou diante dele. Murtagh pestanejou, incapaz
de distinguir quaisquer detalhes dentro da mancha de luz.
Parecia importante levantar, mas seus braços e pernas se recusaram a responder.
Ele jazia de corpo mole e inativo, exceto pela respiração.
O fluxo de ar nos pulmões era suave e sem esforço.
Tentou se mover mais uma vez. Os braços se mexeram um pouco e um pequeno
gemido escapou dele.
Uma mão — escura e delicada — desceu para pressionar o peito de Murtagh.
— Calma. Você estava gravemente ferido. Descanse enquanto pode. — A voz era
gentil, reservada, mas ainda assim firme.
Ele conhecia aquela voz. Quantas vezes a tinha ouvido nos sonhos? Quantas
vezes desejou (e temeu) ouvi-la novamente? No entanto, ele se perguntou: aquilo
era outro sonho?
Mais uma vez, tentou se sentar, mas o esforço o derrotou. Murtagh afundou na
maciez. Apesar do protesto interno, as pálpebras baixaram e a escuridão que o
esperava o abraçou.
E ele perdeu a consciência.

A luz dourada do final da tarde se espalhava pelo teto de gesso. Um cheiro


agradável de flores impregnava o ar e água escorria por perto, como um pequeno
riacho. Arrulhos delicados de pombas sonolentas soavam entre as folhas
farfalhantes.
Uma brisa suave agitava um par de cortinas de musselina branca.
Murtagh estava deitado sob um cobertor pesado, em uma grande cama de dossel.
Não sentia vontade de se mexer. O cobertor era reconfortante, e o corpo inteiro
estava relaxado a ponto de estar imóvel.
Ele franziu a testa ao encarar o teto. Conhecia aquele teto. Crescera olhando para
um como aquele, e revê-lo o fez sentir como se nada nos últimos anos tivesse
acontecido.
Quase acreditou nisso.
Ilirea. Estou em Ilirea. O estômago deu um nó com o pensamento de encará-la
novamente… Mas como?
Ele começou a se levantar.
— Ah, ah! Por favor, tome cuidado, Regicida — ouviu alguém dizer.
Os olhos de Murtagh se arregalaram. Ele virou a cabeça e viu uma jovem sentada
ao lado da cama. Cabelos louros presos em uma trança elegante e um simples
vestido verde de criada. Pele branca em volta de olhos da cor de um céu de verão.
Um hematoma roxo e um par de arranhões com casquinha marcavam a bochecha e
têmpora esquerdas, mas fora isso ela parecia saudável e bem alimentada, embora
um pouco preocupada.
— Alín... — sussurrou ele.
Atrás dela, Thorn estava agachado no parapeito de uma grande lucarna, larga o
suficiente para o dragão passar. Assim que Murtagh o viu, o dragão se levantou do
chão e caminhou sobre os tapetes de estilo anão até o pé da cama.
Alín se levantou e ajeitou o vestido.
— Você deve estar faminto, Regicida. Descanse enquanto vou buscar algo.
Antes que Murtagh pudesse se opor, ela saiu correndo do quarto com a saia
balançando a cada passo. As portas maciças de carvalho do aposento rangeram ao
se abrirem e se fecharem. No corredor do lado de fora, ele vislumbrou um par de
guardas em posição de sentido.
Thorn esticou o pescoço até o focinho tocar a mão estendida de Murtagh.
Você vive, disse o dragão.
Você também… Você foi me buscar. Dentro da caverna.
Thorn zumbiu, os olhos brilhando com uma luz da cor do rubi.
Claro. Você precisou de mim.
Lágrimas ameaçaram escorrer pelo rosto de Murtagh.
Obrigado.
Thorn baixou a cabeça.
Você nunca mais terá que entrar sozinho em uma caverna. Não enquanto for meu
Cavaleiro e eu, seu dragão.
E então Thorn falou seu verdadeiro nome, e Murtagh ouviu e sentiu como o
dragão havia mudado. O coração de Murtagh quase se partiu de alívio — e orgulho
também —, porque, depois de tanto tempo, seu amigo mais próximo e parceiro com
quem tinha um vínculo finalmente vencera o medo.
As lágrimas rolaram e Murtagh abraçou com força a cabeça de Thorn.
Ah, isso me deixa feliz. Tem uma coisa que você deveria saber também.
É?
Eu também não sou quem ou o que eu era.
Murtagh falou seu verdadeiro nome, em toda sua extensão imperfeita, e assim a
própria essência foi revelada.
As pálpebras internas de Thorn se fecharam, e ele lambeu o braço de Murtagh,
bem de leve.
Você está livre.
Nós dois estamos… Desculpe. Eu deveria ter sido mais cuidadoso ao nos levar
para Nal Gorgoth.
Um leve rugido soou no peito de Thorn.
O ato está feito, a luta terminou e ainda temos nossa liberdade. Não é tão ruim.
Murtagh estava agradecido e saboreando a sensação de intimidade entre os dois.
A testa escamosa de Thorn estava encostada em seu peito. Tudo parecia bem entre
eles, e isso, mais do que tudo, era o que importava.
Por fim, ele soltou Thorn e observou o quarto.
Era um dos grandes aposentos na ala norte da cidadela, onde a estrutura tinha
sido relativamente poupada pela autoimolação explosiva de Galbatorix há mais de
um ano. Murtagh se lembrava vagamente de o quarto ter sido usado pelo chefe da
casa da moeda real, mas não conseguia lembrar com certeza.
Então examinou a si mesmo. Ele vestia uma camisa de linho branco, lisa nas
costas. Não havia bandagens enroladas no peito e, embora se sentisse cansado, não
sentia dor.
Quando... Murtagh começou a falar.
As portas do aposento se abriram e Alín entrou trazendo uma bandeja com pão,
frutas e queijo, além de um jarro de barro ao lado de um cálice de cristal. Ela
contornou Thorn, colocou a travessa na mesinha ao lado da cama e se sentou
novamente.
A jovem pegou o jarro, despejou vinho aguado no cálice e o entregou a ele.
— Aqui. Uma bebida lhe fará bem, meu senhor.
Murtagh obedeceu. Ela tinha razão. Sua garganta estava muito seca.
— Quatro dias. É o tempo que você está em Ilirea, Regicida. — Alín deu um
sorrisinho. — Achei que gostaria de saber.
Ele colocou o cálice vazio na mesa lateral.
— Seria melhor se não me chamasse de Regicida aqui, Alín. Como título, não me
renderá nenhum favor.
As bochechas da jovem coraram, e ela abaixou a cabeça.
— Peço desculpas.
— Não é isso… Como chegamos aqui? Como você chegou aqui? Achei que
tivesse ficado para trás em Oth Orum.
— Não, não fiquei — disse Alín. — Uvek me encontrou e me fez subir em Thorn
atrás dele. Eu estava com você o tempo todo.
— Eu não te vi.
Ela balançou a cabeça.
— Não teria como, meu Senhor. Você estava delirando por causa do ferimento.
Murtagh olhou em volta. Em parte, esperava ver o Urgal sair de trás de uma
tapeçaria.
— E Uvek? Ele está aqui?
Não, disse Thorn, e Murtagh percebeu que o dragão estava falando com os dois.
Ele foi ajudar seu povo, mas disse que seremos bem-vindos em seu lar sempre que
quisermos aparecer.
Uma pontada de pesar surpreendeu Murtagh. Ele teria gostado de agradecer
pessoalmente ao Urgal.
— Entendo.
Da saia, Alín tirou um pedacinho de uma corda com nós, rústica, marrom e
puída, mas trançada com evidente destreza. Ela a entregou a Murtagh, que,
intrigado, virou a corda.
— Uvek me deu isso para que eu guardasse em segurança para você — explicou
ela. — Disse que significa irmão na língua dele.
— Irmão.
O olhar de Murtagh foi da corda com nós para a parte interna do pulso esquerdo.
O corte que marcara o juramento de sangue com Uvek tinha sido curado, mas não
inteiramente. Uma pequena cicatriz branca permanecia como um lembrete
permanente. Uma nova cicatriz para combinar com uma antiga, pensou, e não foi
um pensamento desagradável.
Com um sentimento de gratidão, Murtagh enfiou a corda com nós dentro da
camisa. Ele sabia que a manteria em segurança pelo resto da vida. Família, ao que
parecia, vinha em muitas formas e, por mais estranho que fosse, ele pensava no
Urgal como tal. Murtagh voltou a atenção para Alín.
— Você foi muito corajosa em Oth Orum. E antes também. Se não fosse por
você, nenhum de nós teria escapado.
— O senhor é muito gentil. — Ela franziu os lábios. — Bachel traiu nossas
crenças. Mesmo que estivesse sendo fiel a Azlagûr, mesmo que ainda estivesse
servindo à vontade Dele, eu não queria fazer parte daquilo.
— Ainda assim, o que fez não foi fácil. Obrigado.
As bochechas dela coraram novamente.
— O que teve que suportar foi muito mais difícil, meu Senhor.
Incomodado, Murtagh mudou o rumo da conversa.
— Você tem passado bem aqui? Eles trataram você de maneira justa?
Ela tratou? Mas ele não expressou o pensamento.
Alín assentiu, séria.
— Ah, sim. Muito bem.
— E a Alagaësia é tudo o que você esperava que fosse?
— Tudo e mais. Só que…
— Só que o quê?
A expressão dela ficou inquieta.
— Eu me preocupo com os Draumar. Eu sei que Bachel está morta, mas um novo
Orador será escolhido e…
Murtagh conhecia a verdadeira fonte da inquietação de Alín, pois compartilhava
dela.
— E o quê?
Ela olhou para Murtagh com uma sinceridade evidente.
— Eu temo… — Alín engoliu em seco e baixou a voz para um sussurro. — E se
Azlagûr ressuscitou?
Um calafrio percorreu os ossos de Murtagh.
— Não se preocupe. Thorn e eu cuidaremos para que a questão dos Draumar seja
resolvida. Quanto a Azlagûr…
Um rangido de dobradiças de ferro o interrompeu quando as portas do aposento
se abriram — empurradas por um par de aias — e Nasuada entrou.
Como sempre, a visão dela provocou um efeito físico em Murtagh: o pulso
acelerou e os músculos ficaram tensos. Ele sentiu uma alegria apreensiva. A luz das
janelas emoldurou o rosto de Nasuada enquanto ela o olhava com uma expressão
séria e vigilante. O vestido era de veludo vermelho com detalhes dourados — uma
roupa tão elegante quanto qualquer outra que já enfeitara a corte de Galbatorix —,
com mangas curtas feitas sob medida para mostrar as cicatrizes enrugadas nos
antebraços. E, ao contrário da última vez que ele a tinha visto, no pátio diante da
cidadela semidestruída em Ilirea, havia uma coroa brilhante e lindamente trabalhada
na cabeça dela.
Velhos hábitos o fizeram afastar o cobertor e descer da cama para ficar de pé,
sustentado por pernas instáveis. Ele estava, como ficou aliviado ao perceber,
vestindo uma calça delicada. Curvou-se o melhor que conseguiu.
— Vossa Majestade. — As palavras eram um eco perturbador das formalidades
que ele tinha praticado com Galbatorix.
— Murtagh.
A expressão de Nasuada estava inescrutável. Ela gesticulou para as criadas.
— Saiam agora.
As aias fizeram uma mesura e partiram. Da mesma forma, Alín se levantou da
cadeira e, com um leve olhar de desculpas para Murtagh, saiu apressada do quarto.
As portas se fecharam com um som maciço.
Você não espera que eu vá embora, não é?, disse Thorn, compartilhando os
pensamentos com Nasuada.
A expressão da rainha não mudou.
— Claro que não. Você é um convidado bem-vindo, Thorn.
Murtagh se perguntou se a mesma afirmação se aplicava a ele.
Uma onda de tontura fez com que cambaleasse.
— Sente-se antes que caia — disse Nasuada.
Com um pouco de gratidão, ele se acomodou na beirada da cama.
Observou, cauteloso, enquanto Nasuada se aproximava com passos perfeitamente
calculados e se acomodava no assento recém-desocupado por Alín.
— Você deve ter cuidado. Não havia certeza de que sobreviveria. Você estava
cego de febre e delirante quando Thorn o trouxe aqui. Meus conjuradores tiveram
que trabalhar muito e por bastante tempo para salvá-lo.
Ele estremeceu. Não ficava feliz pelos cuidados da Du Vrangr Gata, mas, por
outro lado, estava vivo e, por isso, era grato.
— Então, estou em dívida com eles. E com você.
Mais tarde, Murtagh teria que usar o Nome dos Nomes para remover quaisquer
encantamentos indesejados que os mágicos de estimação da rainha pudessem ter
colocado nele. Assim como Bachel, pensou, com súbito temor.
Nasuada inclinou a cabeça.
— O trabalho não foi inteiramente deles. Fui informada — os olhos dela se
voltaram para Thorn — que seu companheiro, o Urgal Uvek, usou um feitiço que
foi suficiente para evitar que você morresse na hora.
— Ele fez muito mais do que isso. — Murtagh se preparou para dizer as
próximas palavras com cuidado. — Quem mais sabe que Thorn e eu estamos em
Ilirea?
Ela se virou, pegou um damasco seco da travessa na mesinha lateral e deu uma
mordidinha.
— Se você está perguntando se as pessoas da cidade estão neste exato momento
reunidas do lado de fora dessas muralhas clamando por sua cabeça… pode ficar
sossegado, pois não estão. Thorn foi cuidadoso ao se aproximar. Ele encontrou
minha mente, à noite. Cuidei para que ninguém conseguisse ouvir as asas dele
batendo enquanto ele o trazia para este quarto. — Nasuada esperou enquanto
Murtagh tomava outro gole. — Só eu, minhas aias e alguns poucos conjuradores
sabem que você está aqui, e todos eles me juraram o máximo sigilo na língua
antiga.
Isso fez Murtagh se sentir melhor. Mas só um pouco.
— E quanto a você? — perguntou ele. — Deseja reivindicar minha cabeça, Vossa
Majestade?
Murtagh tremeu ligeiramente e não tinha certeza do motivo. Esperava que isso
tivesse passado despercebido.
A rainha demorou a responder.
— Depende.
A atitude de Nasuada ficou um pouco mais branda e, pela primeira vez, um poço
fundo de preocupação apareceu nos olhos dela. Perceber isso o abalou. Ele não
estava acostumado a uma consideração assim.
— Murtagh… o que aconteceu? Thorn me contou um pouco, mas nem tudo o que
ele disse fez sentido, e Alín insistiu que não cabia a ela dizer. Quero ouvir de você.
A verdade.
— A verdade… — Murtagh estendeu a mão, pegou a travessa de comida da
mesinha lateral e colocou sobre o colo. — Com licença.
— Fique à vontade.
Ele partiu um pedaço de pão e combinou com o queijo de ovelha duro. Mastigou
sem pensar, sem sentir, simplesmente buscando forças para dizer o que era preciso.
Nasuada esperou sem reclamar. Ela continha uma calma não muito diferente da
de Uvek: uma atenção paciente e cuidadosa, como a de um caçador observando um
animal perigoso.
Murtagh sabia que ele era o animal perigoso.
Ele engoliu.
— Você recebeu a minha carta? Enviei de Gil’ead.
Nasuada assentiu.
— Chegou dois dias antes de você. E devo dizer que levantou mais perguntas do
que respondeu.
— Ah. Bom, então... Por onde começar?
Murtagh começou do início, o dia em que os dois se separaram — o dia em que
Galbatorix morreu —, quando Umaroth o advertiu a respeito de enxofre e fogo e a
não penetrar demais nas profundezas. Ele falou devagar, hesitante no começo,
achando difícil narrar as coisas com as palavras adequadas. Nasuada não
pressionou, e as palavras saíram com mais facilidade à medida que Murtagh
avançava. Pelo menos por um tempo. Ele contou à rainha a respeito das suspeitas e
dos motivos pelos quais foi atrás delas, e como essa busca o levou a Ceunon e de lá
a Gil’ead.
Contou a ela tudo o que havia ocorrido em Gil’ead, a respeito de Carabel, Boca
de Lodo, do capitão Wren e dos traidores dentro da Du Vrangr Gata — a respeito de
Lyreth e da caixa de confusão, e da destruição que resultou disso.
Nasuada ouviu sem interrupção, mas Murtagh viu a expressão dela se alternar
entre branda e séria, e muitas vezes não soube o motivo.
Falou a respeito da grande fuga dele e de Thorn para o norte. Das montanhas e
dos rebanhos de cervos-nobres e das aldeias dos Urgals. Ele bebia e comia quando
podia, mas o apetite o abandonou quando chegou a hora de falar de Nal Gorgoth.
Murtagh vacilou naquele momento, e as palavras se tornaram novamente difíceis.
Mesmo assim, persistiu. Falou sem poupar detalhes a respeito da aldeia, de Bachel e
de seus erros que resultaram na captura e no aprisionamento dele e de Thorn por
parte da bruxa.
Não fez nenhuma tentativa de esconder o que havia acontecido com os dois
enquanto estavam sob o domínio de Bachel. Contou a Nasuada todos os detalhes
sórdidos e, enquanto falava a respeito da tortura, ela colocou a mão sobre a dele. A
compreensão nos olhos da rainha lhe causou ainda mais dor do que a lembrança.
— Você deve me odiar pelo que fiz com você — disse ele com uma voz
embargada.
— Odiei no começo, mas só no começo. Não foi escolha sua.
Ele apertou os dedos de Nasuada em um agradecimento silencioso. Ainda assim,
a culpa permaneceu.
— Não sei como você aguentou. Eu… eu não conseguiria.
— Ajudou saber que você se importava.
Lágrimas voltaram aos olhos de Murtagh. Ele virou o rosto para a janela, incapaz
de suportar o olhar de Nasuada.
— Ela me dominou. E não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Eu… — A
voz dele falhou, e a garganta se apertou como um punho cerrado.
A seguir, Murtagh falou do ataque aos Orthroc. As imagens que encheram sua
cabeça eram piores do que qualquer pesadelo. Quando tentou explicar quem havia
matado — quando tentou descrever os corpos caídos, grandes e pequenos —, as
emoções explodiram e ele chorou, sem vergonha alguma.
Nasuada se remexeu. Ele sentiu a mão da rainha em sua nuca e foi consolado por
ela enquanto a dor seguia seu rumo. Ela o abraçou, e sua presença reconfortou a
alma de Murtagh.
Com o tempo, ele encontrou forças para continuar.

— Você acha que a criatura que sentiu era Azlagûr?


Eles estavam sentados perto da lucarna, olhando para um pequeno átrio com um
freixo crescendo no centro e um córrego artificial que serpenteava entre canteiros
de plantas perenes. Havia pombos-das-rochas empoleirados entre os galhos do
freixo, e um esquilo atrevido de cauda vermelha corria para cima e para baixo no
tronco, tagarelando enquanto subia e descia.
Depois de falar por tanto tempo, Murtagh não quis permanecer na cama. Eles
foram até o parapeito e ficaram ao lado de Thorn. As pernas do Cavaleiro estavam
dormentes e fracas, mas Nasuada o ajudou, sem comentários, ao passar um braço
em volta da cintura dele.
O cheiro da rainha era completamente diferente do de enxofre: agradável, limpo e
saudável. Isso dificultava a concentração dele.
— Eu não sei. No mínimo, acredito que seja o que os Draumar acreditam ser
Azlagûr.
Nasuada olhou por cima das paredes do átrio em direção ao horizonte a oeste. O
sol estava se pondo e os prédios projetavam sombras compridas na direção da
cidadela. A serenidade da cidade contrastava muito com a última imagem que
Murtagh tinha dela: coberta de fumaça, iluminada com fogo e ecoando com o
clamor discordante da batalha. Não muito diferente de suas visões finais de Nal
Gorgoth…
— Você acha que o matou? — perguntou Nasuada.
— Espero que sim, mas… temo que não.
Murtagh viu a preocupação refletida nos olhos da rainha.
— Como uma criatura tão grande pode ter passado despercebida por tanto
tempo?
— Não sei se passou. Os Draumar sabem a respeito dela e os dragões também, ao
que parece. Alguns deles, pelo menos. — Murtagh coçou a barba, que estava
ficando mais comprida do que ele gostaria. — Preciso falar com Eragon e avisá-lo.
Também quero interrogar Umaroth e descobrir o que ele e os outros Eldunarí
sabem. Eu pediria que você enviasse um mensageiro em meu nome, mas não
confiaria essas informações a um pergaminho ou à mente de alguém. Além disso,
um mensageiro seria muito lento e… Não, assim que eu estiver recuperado, Thorn e
eu iremos ao monte Arngor.
— Isso pode não ser necessário.
— Hã?
Nasuada apontou para a parte principal da cidadela.
— Antes de partir, Eragon encantou um espelho de vidência para que eu pudesse
me comunicar com ele mais facilmente do que com mensageiros. Ele fez o mesmo
com todos os reis e rainhas da Alagaësia.
Murtagh se permitiu um sorriso magoado.
— Claro que fez. Ele está ficando esperto… Você falou com Eragon a meu
respeito?
— Não desde que você chegou.
Ele assentiu.
— Entendo. Bem, talvez seu espelho seja suficiente. Eu preferiria evitar voar até
Arngor. Ainda mais se esta criatura estiver à solta na Alagaësia.
A preocupação tornou séria a expressão de Nasuada.
— Qual é o tamanho real dessa ameaça, na sua opinião?
— Eu não sei, mas… — Murtagh balançou a cabeça. — Se pelo menos metade
do que vi for verdade, Azlagûr pode ser mais perigoso do que Galbatorix jamais foi.
Nasuada franziu os lábios, e, por alguns minutos, os dois observaram o pôr do sol
em silêncio. Ela, mais do que ninguém, tinha uma compreensão verdadeira da
crueldade e depravação de Galbatorix, e testemunhara em primeira mão a incrível
extensão do poder dele. O rei havia humilhado todos eles. Foi apenas com muita
sorte — e não pouca habilidade — que o venceram.
A rainha se virou para Thorn.
— E você? Sentiu alguma coisa desse Azlagûr?
Não. Eu estava muito ocupado destruindo Nal Gorgoth e, quando encontrei
Murtagh, as cavernas estavam vazias a não ser por bichos daninhos.
— A coisa a fazer é encontrar El-harím e as catacumbas dos Anghelm, e qualquer
outro lugar onde fumaça negra brote do chão — disse Murtagh. — Talvez possamos
encontrar Azlagûr em um deles ou, pelo menos, aprender mais coisas importantes.
— El-harím — refletiu Nasuada. — Que estranho.
— Você conhece?
— Um nome em uma rima antiga.
Ela parou por um momento, refletindo, e então recitou:

Em El-harím vivia um homem de olhos amarelos.


Ele disse: “Cuidado, sussurros mentem.
Não lute com os demônios da escuridão,
Senão uma marca em sua mente eles porão;
Não ouça as sombras das profundezas,
Senão elas a assombrarão quando você dormir.”

As palavras atingiram Murtagh com uma familiaridade assombrosa. A princípio,


ele não as reconheceu, mas então lembrou: o Salão da Profetisa, quando Nasuada
permitiu que ele tocasse a mente dela, para que pudesse provar suas intenções.
— Ah! Você usou esse poema para proteger seus pensamentos.
Nasuada assentiu e Murtagh enxergou uma sombra da memória nos olhos dela.
— Aprendi a rima quando era criança, em Surda, mas não consigo me lembrar de
nada a respeito de sua origem.
Murtagh fez uma careta.
— Eu só tinha ouvido trechos dela. Havia esquecido até agora. — Ele balançou a
cabeça, sério. — Mais uma prova de que se sabe alguma coisa a respeito dos
Draumar há muitos anos. Se ao menos tivéssemos tido olhos para ver e ouvidos
para ouvir, poderíamos ter descoberto a existência deles há muito tempo.
— Sua menção aos olhos me faz pensar — disse Nasuada. — Por acaso os de
Grieve eram amarelos?
— Não, não eram. Uma coisa é certa, os Draumar precisam ser erradicados e as
crianças que eles roubaram, resgatadas. Eu também quero ter uma conversa com o
capitão Wren e acabar com todo aquele negócio com os filhotes do povo-gato, seja
lá o que for. Assim que eu puder, nós partiremos.
Nasuada ergueu o queixo. O diamante cravado no centro da coroa brilhava na luz
avermelhada do pôr do sol.
— Você esqueceu que eu não lhe dei permissão para partir de Ilirea.
Murtagh avaliou a rainha, sem saber que jogo ela estava jogando. De uma
maneira aparentemente casual, ele permitiu que o olhar vagasse pelo aposento. Será
que havia soldados ou conjuradores escondidos atrás das paredes? Quase procurou
com a mente, mas decidiu que não queria saber. Se Nasuada fosse se voltar contra
ele, preferia deixar isso para o futuro. Mesmo assim…
Thorn, você conseguiu resgatar Ithring quando me resgatou?
Consegui.
Trouxe a espada aqui?
Trouxe.
Murtagh voltou o olhar para Nasuada e, em tom desinteressado, disse:
— Por acaso não vejo minha espada. Você sabe onde ela está?
Um sorrisinho surgiu nos lábios de Nasuada.
— Eu achei que você poderia perguntar. — De dentro de uma dobra do vestido,
ela tirou um sininho de prata e o tocou duas vezes antes de guardá-lo.
Mais uma vez, as portas de carvalho se abriram e Alín entrou. Ela carregava,
apoiadas nos antebraços, Ithring e Niernen. E não apenas elas. Em cima das armas
estava o embrulho de pano que continha a escama de Glaedr e, ao lado dele, um
conhecido cálice de latão amassado.
Um por um, Alín os entregou a ele e depois fez uma reverência para Nasuada.
— Vossa Majestade — disse.
Ela começou a se afastar, mas a rainha estendeu a mão em um gesto de comando.
— Um momento, Alín. Diga-me: você teve algum motivo de reclamação aqui em
Ilirea?
Alín fez uma leve reverência.
— Ah, não, Vossa Majestade. De jeito nenhum.
— E estaria disposta a me aceitar como sua rainha e me servir como um dos
meus fiéis súditos?
Murtagh captou um olhar rápido e incerto de Alín.
— Se me aceitar, Majestade — respondeu a jovem.
— Excelente — disse Nasuada com desenvoltura. — Então está resolvido.
Amanhã você pode jurar fidelidade a mim formalmente na corte. No entanto, há
outra questão. Murtagh me contou muito a respeito de sua história. Me parece que
você é uma pessoa de espírito e força incomuns. Seria tolice minha, como rainha,
ignorar tais virtudes. Assim, eu pergunto: você também estaria disposta a aceitar um
posto como uma das minhas aias reais?
Alín ficou muito quieta.
— Esta é uma grande honra que a senhora me oferece, Vossa Majestade —
respondeu ela em voz baixa.
— É.
Um leve tremor passou pelo corpo de Alín.
— E se eu recusar, Majestade?
— Então, desejo-lhe boa sorte. Você pode seguir o desejo do seu coração aonde
quer que ele a leve.
Alín ergueu a cabeça com os olhos brilhando.
— Nesse caso, eu ficaria orgulhosa de aceitar.
Nasuada inclinou a cabeça.
— A chefe da minha comitiva, Farica, falará com você a respeito de suas funções
e responsabilidades.
Novamente, Alín fez uma mesura.
— Obrigada, Majestade.
— Pode ir agora.
Enquanto se retirava, Alín assentiu com a cabeça para Murtagh.
— Regicida — murmurou, aparentemente por hábito.
Murtagh estremeceu e as bochechas de Alín empalideceram ao perceber o que
havia dito. Ela abaixou a cabeça e saiu correndo.
Depois que Alín partiu e as portas se fecharam, Nasuada se voltou para Murtagh.
Ele achou difícil encarar os olhos dela, mas encarou.
— Fiz bem? — perguntou a rainha.
— Fez.
Sozinha e sem reputação, teria sido difícil para Alín sobreviver fora de Nal
Gorgoth sem a patronagem ou a proteção que Murtagh não tinha condição de
fornecer. Promovê-la a uma aia real foi um ato de caridade por parte de Nasuada,
mas ele sabia que a questão envolvia mais do que isso. Reis e rainhas não podiam se
dar ao luxo de pensar apenas em caridade. Alín era o elo mais forte com os
Draumar e a melhor fonte de informação a respeito do culto. Foi sensato da parte de
Nasuada mantê-la por perto e conquistar a lealdade de Alín para que outros não
conseguissem virá-la contra eles. Fez muito bem, de fato, pensou ele.
— Ela tem muita consideração por você — disse Nasuada, e não havia como
confundir a leve aspereza na voz dela.
— E eu tenho muita consideração por ela — respondeu Murtagh, impassível. —
Se não fosse por Alín, Thorn e eu ainda estaríamos à mercê de Bachel.
— Hum.
— E por isso agradeço a gentileza que demonstrou com ela.
Depois de um momento, Nasuada cedeu.
— Foi simplesmente a coisa certa.
— Alín era muito dedicada, mas Bachel traiu a confiança dela. Creio que Alín
não voltará a ser leal tão facilmente, mas, assim que ver sua justiça, honra e
bondade de caráter, tenho certeza de que será devotada a você. Ela precisa de
alguém a quem possa respeitar e em quem possa acreditar.
— Você é essa pessoa?
Ele se virou para encará-la de frente, com uma expressão franca.
— Não tenho motivo nem desejo de comandá-la ou a qualquer outra pessoa.
Esses dias ficaram há muito no passado.
— É mesmo? — Nasuada pegou um dos cálices que estava no parapeito e bebeu
um gole. — Regicida. Nunca ouvi esse título antes.
— Nunca desejei ser chamado assim.
— Não? Você desejou que Galbatorix morresse muitas vezes. E escolheu matar
Hrothgar.
Diante da franqueza de Nasuada, ele não tinha defesa.
— Eu matei. Estava… furioso.
Ela assentiu.
— Meu pai e Hrothgar eram amigos. Sabia disso? Mesmo quando estavam em
desacordo, eles se respeitavam e encontravam tempo para conversar a respeito de
assuntos não relacionados às responsabilidades do governo. Eu conhecia Hrothgar.
De muitas maneiras, ele era a coisa mais próxima que eu tinha de um tio.
Não havia acusação na voz da rainha, apenas uma declaração direta de um fato
com uma base de tristeza.
Murtagh baixou o olhar para Ithring e Niernen.
— Você me culpa por matá-lo?
Ela demorou a responder, mas a voz era firme quando falou.
— Sim. Culpo.
Murtagh se sentiu muito triste e, ao erguer o olhar, encontrou o dela encarando-o
com o mesmo nível de franqueza que ele tinha mostrado.
— Mas eu entendo — disse Nasuada.
Ele não soube como responder.
Para seu alívio, ela desviou a atenção para a espada e estendeu a mão para tocar a
bainha carmesim.
— O timbre aqui é diferente do que eu me lembro.
— Ele mudou quando eu renomeei a espada.
As sobrancelhas da rainha se ergueram.
— Zar’roc? Você consegue fazer isso?
— Consigo. E fiz.
Murtagh disse a ela o novo nome.
A expressão de Nasuada se suavizou
— Ithring. Liberdade… É um bom nome. Melhor que Zar’roc.
Murtagh ficou surpreso com quanto a aprovação dela significava para ele.
Pensativo, ele passou a mão pela frieza delicada da bainha, ainda desacostumado
com o novo significado associado à arma. Depois colocou a espada, a escama de
Glaedr e o cálice de latão no chão ao lado da cadeira e ergueu Niernen, a ponta
voltada para o teto.
— Eu temo que possamos precisar da Dauthdaert mais do que da minha espada.
Nasuada ergueu os olhos para a lâmina brilhante da lança.
— Você vai carregá-la?
— Creio que sim. Junto com Ithring.
— Um Cavaleiro empunhando uma lança feita para matar um dragão. Os elfos
não vão aprovar, eu acho.
— Por que deveriam? Desde que não incomode Thorn…
Carregue quantas presas ou garras precisar, disse o dragão.
Murtagh apontou Niernen para Thorn em reconhecimento.
— Farei isso.
A expressão de Nasuada ficou séria.
— Você não explicou como esta arma acabou nas garras dos Draumar.
— Se eu soubesse, teria… Ah! — Murtagh fez uma careta quando outra
lembrança surgiu em sua mente. — Espere.
Ele colocou cuidadosamente a lança no chão, ao lado de Ithring.
— Eu vi alguém entre os visitantes que foram a Nal Gorgoth. Alguém que
reconheci entre os Varden. Alguém do seu círculo de conselheiros.
Nasuada franziu o cenho.
— Quem?
— Não sei. Já tentei lembrar, mas não consigo. Os efeitos do Sopro eram muito
fortes. Thorn, você…
O dragão balançou a cabeça comprida.
Não. Sei de quem você fala, mas não consigo nomeá-lo, assim como você.
— Barzûl — disse Nasuada, andando de um lado para o outro diante do
parapeito, com os braços cruzados, mexendo nos punhos de renda das mangas
curtas.
— Alguém em sua corte viajou no mês passado?
Nasuada parou ao lado de sua cadeira.
— Muita gente, infelizmente. E não posso sair por aí acusando meus ministros de
maior confiança sem uma razão sólida. Tem certeza de que não consegue se
lembrar?
Murtagh abriu as mãos espalmadas.
— Se eu pudesse, lembraria.
Ela tamborilou no parapeito.
— Caso você visse esse homem novamente, acha que poderia identificá-lo?
Murtagh pensou.
— Acho que sim.
Nasuada concordou com a cabeça.
— Então vou encontrar um jeito de você ver minha corte.
Ele também se levantou e se juntou à rainha na janela. As pernas pareciam mais
fortes do que antes.
— Não há como dizer quem pode estar trabalhando contra você.
— Acha que eu não sei disso? — perguntou Nasuada. — Esses Draumar parecem
ter se infiltrado no meu reino inteiro. Alguns integrantes da Du Vrangr Gata se
aliaram ao culto e agora nem sei se posso confiar nos comandantes do meu exército.
A cada passo, vejo tramas, esquemas e facas à espreita nas sombras.
Ela permaneceu tão controlada como sempre, mas sua aflição era palpável.
Murtagh não sabia como responder. Incapaz de pensar em algo para dizer, ele ousou
colocar a mão no ombro da rainha.
Nasuada inspirou rapidamente e descruzou os braços. Ela o olhou com uma
expressão que deixou Murtagh na dúvida se ela achou o gesto reconfortante ou se
estava prestes a chamar os guardas para que o levassem embora arrastado.
Murtagh retirou a mão.
— Fique — disse Nasuada com uma voz calma e tranquila.
— O que você…
— Não vá procurar por Azlagûr. Não por enquanto. Deixe-me enviar meus
comandados em seu lugar. Fique aqui, em Ilirea.
Murtagh sentiu um aperto na garganta.
— Fazendo o quê?
— Não “fazendo o quê”. Pelo quê. Por mim. — Nasuada cravou o olhar nele,
como se procurasse algum indício de reação. — Você é o único em quem posso
confiar. A única pessoa que não preciso me preocupar que seja corrompida por
ouro, magia ou promessas de poder.
Ele teve tanta dificuldade de respirar quanto em Oth Orum.
— Nasuada… Como isso funcionaria? Seu povo me odeia, especialmente depois
do que Thorn e eu fizemos em Gil’ead.
— Ninguém precisa saber que você está aqui. Existem maneiras. Confie em mim.
Ele soltou uma risada ríspida.
— Serei seu segredinho, então? Seu conjurador de estimação mantido trancado
em uma torre, escondido de todos? E quanto a Thorn? Ele não pode...
Ela o interrompeu ao colocar uma das mãos no seu peito. Ele podia sentir o calor
da pele dela através do tecido da camisa.
— Não desejo enjaular você, Murtagh. Nem você, nem Thorn. Só sugeri
esconder sua presença porque pensei que fosse seu desejo. Se quiser que saibam
que está aqui, atestarei seu caráter perante toda a Alagaësia.
— Você faria isso mesmo? — A pergunta dele fez Nasuada hesitar, surpresa. —
Você contou ao seu povo como ajudamos a matar Galbatorix?
— Eu deixei claro que você não é nosso inimigo, mas leva tempo para a notícia
se espalhar — disse ela, cautelosa. — As pessoas tendem a acreditar no que é mais
fácil. Fique nas sombras, se quiser, mas se, ou quando, se sentir à vontade, você
pode aparecer e ninguém, muito menos eu, irá impedi-lo. A escolha é sua. Da
mesma forma, se deseja ir embora, vá. Mas, por enquanto, fique.
Um momento de pausa e, em seguida, com uma voz ainda mais suave, Nasuada
acrescentou:
— Eu não peço apenas por motivos de Estado.
As palavras eram formais, mas Murtagh reconheceu a intenção delas, e seu
coração disparou sob a mão da rainha. Ele colocou a própria mão sobre a dela.
— Não vou jurar fidelidade à Du Vrangr Gata.
— Eu sei.
— Nem à coroa. Nem à sua, nem à de ninguém.
Ela se aproximou.
— Isso eu também sei.
Ele balançou a cabeça, mas não a afastou.
— Você me pede para confiar em você, mas como pode confiar em mim depois
do que fiz com você?
Murtagh não fez nenhuma tentativa de esconder a angústia.
Nasuada inclinou a cabeça para trás. Os olhos dela brilharam com lágrimas.
— Porque eu posso. Eu confio.
Ele franziu os lábios. Cada músculo do corpo estava tenso, como se fosse fugir.
Um leve tremor o percorreu por inteiro e Murtagh sentiu um estremecimento
semelhante nas costas da mão de Nasuada.
Os dois se encararam, sem falar. Uma nova compreensão ocorreu então a
Murtagh, desdobrando camadas de entendimento dentro dele.
Murtagh olhou para Thorn, e, em resposta ao pensamento questionador, o dragão
zumbiu.
Sim.
Murtagh fez uma pausa, tomado por medo. Temia falar, entrar no desconhecido.
Mas, como era necessário, deixou de lado as preocupações, embora se sentisse
inexperiente e indefeso, vulnerável ao menor arranhão.
— O que foi, Murtagh? — perguntou ela em um tom gentil.
Ele quase riu; a dor era tão grande.
— Murtagh. Filho de Morzan. Assim o mundo me conhece, e me amaldiçoa por
causa disso.
— Isso é porque eles não o conhecem como eu.
— E, no entanto, é quem eu sou. É essa a pessoa que você quer que fique…
Os dedos dela se apertaram no peito dele.
— Isso não é tudo o que você é.
— Não. — Ele respirou e estremeceu. — Não, você está certa.
Ela assentiu.
— É um bom nome. Murtagh. Eu gosto.
Ele ficou sem palavras. Por um tempo eterno, Murtagh e Nasuada permaneceram
daquele jeito, nenhum dos dois querendo se separar, e nada mais existia além deles.
Então Thorn bufou e Murtagh pestanejou. Lágrimas estavam surgindo nos cantos
dos olhos dele.
Nasuada baixou a mão. Murtagh sentiu falta do toque dela, uma ausência fria que
provocou uma pontada no coração.
Ela se virou, foi até a janela e olhou para os telhados de Ilirea. O pescoço e as
costas estavam muito retos, mas a voz tinha o mais leve toque de inquietação.
— Qual é a sua decisão?
Murtagh se juntou a ela. Os dois ficaram olhando para fora, lado a lado.
A cidade estava quase toda na sombra. As altas muralhas externas bloqueavam a
luz do entardecer que avançava para o oeste, e velas e lampiões brilhavam entre as
ruas escuras, onde bandos de crianças descalças brincavam com cachorros. Muito
além dos limites de Ilirea, o sol de borda vermelha estava baixo nas planícies, e a
terra parecia estranhamente desolada, uma lembrança incômoda das visões que
Murtagh teve em Nal Gorgoth.
Ele teve uma premonição então do perigo que se reunia contra eles. Tempos
sombrios estavam por vir. Tinha certeza disso. No entanto, apesar dessa perspectiva,
teve uma sensação de renascimento, ali nas ruínas reconstruídas de seu passado. E
uma sensação de conforto também, pois aqueles com quem se importava estavam
próximos. Isso era uma coisa nova e bem-vinda.

— Eu vou ficar.
Nomes e idiomas

SOBRE A ORIGEM DOS NOMES

P ara um observador casual, os vários nomes que um intrépido viajante encontrará


na Alagaësia podem passar como apenas uma coleção aleatória de termos sem
fundamento, cultura ou história inerentes. No entanto, como acontece com qualquer
terra que tenha sido colonizada várias vezes por culturas diferentes — e, neste caso,
por raças diferentes —, a Alagaësia ganhou nomes oriundos de uma variedade
considerável de fontes, entre as quais as línguas de anões, elfos, humanos e até
Urgals. Desse modo, temos o vale Palancar (um nome humano), o rio Anora e
Ristvak’baen (nomes élficos) e a montanha Utgard (um nome anão), todos situados
a poucos quilômetros uns dos outros.
Embora isso seja de grande interesse para a história, na prática acaba levando a
confusões no que diz respeito às pronúncias corretas de cada um. Infelizmente, não
existem regras estabelecidas para o neófito. Cada nome deve ser aprendido nos
próprios termos, a menos que seja possível identificar imediatamente a língua de
origem. A questão se torna ainda mais complexa quando se percebe que, em muitos
lugares, a população local alterou a ortografia e a pronúncia de palavras estrangeiras
para as adequarem à sua própria. O rio Anora é um ótimo exemplo. Originalmente,
soletrava-se anora como äenora, que significa “vasto” na língua antiga. Ao
escreverem o nome, os humanos o simplificaram para anora e isso, combinado com
uma troca de vogais na qual “äe” (leia-se “a-E”) passou a se dizer de forma mais
simples como “a”, criou o nome como aparece na época de Eragon.
Para poupar os leitores de mais dificuldades, providenciei uma lista, tendo em
mente que estas são apenas orientações simplificadas para a pronúncia correta.
Encorajo o entusiasta a estudar as línguas originais no intuito de dominar suas
verdadeiras complexidades.
PRONÚNCIAS

Alagaësia — alaga-É-sia
Arya — a-RI-a
Azlagûr — AZ-la-gúr
Bachel — Ba-CHÉU
Brisingr — BRISS-ing-gur
Carvahall — CAR-va-hall
Ceunon — SI-u-non
Dras-Leona — DRÁS-li-Ó-na
Draumar — DRAU-mar
Du Weldenvarden — Du Velden-VAR-den
Eragon — É-ra-gon
Farthen Dûr — FAR-den DÚR
Galbatorix — galbato-RIX
Gil’ead — gile-A-de
Glaedr — gla-É-dur
Hrothgar — HRÓFI-gar
Ithring — IFI-ring
Lyreth — LAI-ref
Murtagh — mur-TA-gui
Nal Gorgoth — NAL GOR-gófi
Nasuada — Na-SU-Á-da
Niernen — ni-ER-nin
Oromis — O-ro-mis
Oth Orum — ÓFI Ó-rum
Ra’zac — RÁ-za-qui
Saphira — sa-FI-ra
Shruikan — SHRIU-kin
Teirm — TIRM
Tronjheim — tronj-RREim
Umaroth — u-MArot
Urû’baen — U-ru-BEIM
Uvek — U-véqui
Vrael — VRAIL
Zar’roc — ZAR-roqui
GLOSSÁRIO

A LÍNGUA ANTIGA

Adurna thrysta. — Empurre água.


Atra esterní ono thelduin. — Que a boa sorte o guie.
brisingr — fogo
deyja — morra
drahtr — arrancar, puxar
Du Eld Draumar — Os Antigos Sonhadores
Du Fells Nángoröth — As Montanhas Malditas
Du Vrangr Gata — A Trilha Errante
Du Weldenvarden — A Floresta Guardiã
eitha — vá, saia
Eka fricai. — Sou amigo.
Eldunarí — o coração dos corações: a pedra similar a uma gema onde um
dragão guarda a própria consciência
entha — parar
flauga — voe
flautja — flutue
flautr — flutuante
gedwëy ignasia — palma brilhante
Halfa utan thornessa fra jierda. — Impeça que este garfo quebre.
hvitra — embranqueça
Ílf adurna fïthren, sving raehta. — Se a água tocar, vire à direita.
Ílf kona thornessa thar fïthrenar, thae stenr jierda. — Se esta mulher tocar ali,
então quebre a pedra.
islingr — portador de luz/iluminador
ithring — liberdade
jierda — quebre; bata
kverst — corte
Kvetha Fricai. — Saudações, Amigo.
ládrin — abra
Lethrblaka — asa-de-couro
letta — pare
líjothsa — luz
lyftha — levante
maela — silêncio
naina — brilhe
reisa — erguer/levantar
Reisa adurna fra undir, un ílf fïthren skul skulblaka flutningr skul eom edtha.
— Eleve a água das profundezas e, se ela tocar uma escama de dragão, traga a
escama para mim.
skölir — escudo
slytha — durma
sving — vire
Thrífa sem knífr un huildr sem konr. — Pegue aquela faca e contenha aquele
homem.
thrysta — empurre
Thrysta vindr. — Empurre/comprima o ar.
vindr — vento; ar
Vindr thrysta un líjothsa athaerum. — Comprima o ar e reúna luz.
Waíse heill. — Seja curado.
Wiol ono. — Para você.
zar’roc — desgraça
A LÍNGUA ANÃ

Arngor — Montanha Branca


barzûl — amaldiçoar alguém com destino ruim
Beor — urso gigante das cavernas (palavra retirada da língua antiga)
Fanghur — criaturas semelhantes a dragões (nativas das montanhas Beor), mas
que são menores e menos inteligentes que seus primos; da família das
Nïdhwall
Farthen Dûr — Nosso Pai
goroth — lugar
Môgren — pinheiros de agulhas negras (nativos das montanhas Beor)
conhecidos pela madeira de lei
Tronjheim — Reino dos Gigantes
A LÍNGUA DRAUMAR

mehtra — mãe
sehtra — filho
A LÍNGUA URGAL
chukka — criatura semelhante à marmota nativa dos confins setentrionais da
Espinha
ghra — exclamação usada para expressar dúvida ou um sentimento de
reprovação leve
gzja — exclamação usada para expressar desprezo
qazhqargla — um ritual que une dois Urgals como irmãos de sangue; também
pode se referir a irmãos que foram unidos por tal ritual
shagvrek — uma raça antiga de seres sem chifres
shûkva — cure
ûhldmaq — Urgals que, segundo a lenda, foram transformados em ursos
gigantes das cavernas
Uluthrek — Comedor da Lua
Urgralgra — o nome que os Urgals usam para si mesmos (literalmente,
“aqueles com chifres”)
zhar — aleatoriedade
RUNAS HUMANAS

N esta seção, é possível ver o sistema de runas empregado pelos humanos da


Alagaësia durante o tempo desta história. Há exceções para seu uso —
especialmente entre as tribos errantes dos confins do sul e das grandes pradarias a
leste —, mas essas são as runas que podem ser encontradas com mais frequência
nas terras da humanidade.
O gênio que deu origem a esse sistema é desconhecido e há grandes chances de
permanecer para sempre perdido nas profundezas do tempo. É possível que não
exista um único indivíduo responsável por ele e que tenha surgido por meio de um
amálgama de acidente e necessidade — em vez de ter sido elaborado de maneira
consciente —, como destroços que se juntam no penhasco de uma praia rochosa.
As runas são chamadas por muitos nomes, mas o principal deles é o Ullmark.
Antes de a humanidade chegar às costas da Alagaësia, a raça era muito mais
selvagem e inculta do que nas eras posteriores, e os humanos empregavam um
sistema diferente para registrar informações, mais semelhantes às fitas com nós dos
Urgals do que com qualquer método de escrita nativa da Alagaësia. Desse sistema
anterior, sobraram poucos exemplos — restos e fragmentos espalhados pelas ruínas
de túmulos e fortes abandonados nas colinas —, pois sob a liderança do rei Palancar
e seus muitos e diversos sucessores, os humanos rapidamente adotaram e adaptaram
as runas anãs, conhecidas como o Hruthmundvik.
Os humanos, sendo como são, não tentaram ser fiéis ao Hruthmundvik. Eles
alteraram e reorganizaram as runas para atender às necessidades da própria língua,
chegando ao ponto de inventar outras. Ainda assim, permanecem algumas
semelhanças. As runas para g, k, m, n e y são as mesmas tanto no Ullmark quanto
no Hruthmundvik, embora o primeiro contenha várias runas singulares, bem como
runas para sons não encontrados na língua anã, como aquelas para p e x. Além disso
— e aqui a mão orientadora de um ou mais escribas parece nítida —, runas de
formas semelhantes foram atribuídas a sons que, da mesma forma, compartilham
uma grande semelhança. Assim sendo, houve o espelhamento ou eco entre a e o; u e
y; c, k e q; s e z; b e d; f e v; e m e n. A partir dessa e de outras informações, é
possível obter algumas pistas a respeito da pronúncia da língua dos humanos na
época do rei Palancar.
Por uma questão de compreensão geral, todas as palavras (e alguns dos nomes)
nos mapas deste volume foram traduzidas e escritas como tal ou transliteradas para
o Ullmark a fim de ajudar a transmitir a aparência e a sensação inerentes ao mundo
de Murtagh.
Quanto à linguagem real que os humanos da Alagaësia usam, isso é uma questão
para examinar em outro lugar e em outro momento.
Posfácio e agradecimentos

Kvetha Fricai. Saudações, Amigo.


Você conseguiu. Parabéns. Respire fundo, coloque os pés diante da lareira, deixe
as emoções se acalmarem. Espero que esta história da jornada de Murtagh tenha
afetado você tanto quanto me afetou.
Talvez você tenha algumas perguntas. Deixe-me tentar dar algumas respostas…
A inspiração inicial para Murtagh veio, por incrível que pareça, de um tweet.
Alguns anos atrás, quando eu estava no meio do processo de reescrever Dormir em
um mar de estrelas, um fã me perguntou o que Murtagh estava fazendo naquele
momento. Já havia passado da minha hora de dormir e eu estava um pouco cansado
e confuso, de modo que respondi o seguinte:

Em dado momento (depois de Herança), Murtagh encantou um garfo para ser


tão mortal quanto qualquer espada. Ele o chamou de Senhor Garfada.
Thorn não achou graça.

Por mais absurda que fosse, essa ideia grudou na minha mente e, em 2018,
quando decidi terminar uma coletânea de contos ambientada na Alagaësia, voltei a
pensar naquele tweet. Com uma adaptação, ele formou a base para a primeira
história do que se tornou O Garfo, a Bruxa e o Dragão: Contos da Alagaësia,
Volume 1. (Haverá o volume dois? Com certeza.)
Aquela história, como muitos leitores devem lembrar, foi escrita do ponto de
vista de Essie e, mesmo assim, percebi o esboço de uma história maior se formando
em torno daquele núcleo. Ela poderia servir como, de fato, um retorno à Alagaësia.
E assim aconteceu. Depois que Dormir em um mar de estrelas foi lançado e de
revisar e editar Fractal Noise (um prólogo de Dormir em um mar de estrelas escrito
originalmente em 2013) por meses, me senti pronto para tal retorno.
Conforme fui desenvolvendo a trama e me aprofundando cada vez mais nos
personagens de Murtagh e Thorn, encontrei uma terra fértil para trabalhar. De fato,
a fertilidade me surpreendeu. Minha primeira concepção de Murtagh seguia mais o
tipo de romance de aventura antiquado que Edgar Rice Burroughs poderia ter
produzido (e do qual gosto muito).
Mas, quanto mais eu pensava, tramava e escrevia, mais sentia pena desses dois, e
mais percebia este livro como uma oportunidade perfeita para explorar as questões
com as quais eles estavam lidando após os eventos do Ciclo A Herança, bem como
os da infância trágica de Murtagh.
A escrita em si foi surpreendentemente rápida. Ter um plano distinto faz toda a
diferença. Comecei em outubro de 2021, e o primeiro manuscrito foi concluído em
30 de janeiro de 2022. Nada mau, no geral. Claro, depois vieram ajustes, mudanças
e edições, mas as peças principais estavam no lugar.
Gostei muito de voltar para a Alagaësia com mais doze anos de vida e
experiência de escrita adquiridos. E assim como em O Garfo, a Bruxa e o Dragão,
revisitar esses personagens foi como visitar o próprio lar depois de uma longa
ausência. Foi bom para a alma, é o que estou tentando dizer. Lançá-lo no vigésimo
aniversário de Eragon apenas adoça a experiência.
Agora, há dois pontos adicionais que precisam ser abordados:
Em primeiro lugar, embora Murtagh atue como um registro independente neste
mundo, você deve ter notado que certas linhas narrativas estão longe de uma
conclusão. Isso é proposital e, embora eu não possa revelar meus planos no
momento, fique tranquilo, tenho muito mais a escrever na Alagaësia (e em seus
arredores).
Em segundo lugar, embora Murtagh seja o quinto romance completo que escrevi
ambientado neste universo, não é o Livro V. Ou melhor, o livro que sempre
considerei como o Livro V. Essa história em especial ocorre um pouco mais adiante
na linha do tempo, e ainda tenho a intenção de escrevê-la.
Então sim, há muito mais por vir, tanto na Alagaësia quanto no Fractalverso.
Tenho histórias para contar, pessoal!

Como acontece com todos os romances que escrevo, Murtagh não teria sido
possível sem a ajuda de muitas pessoas. Alguns de vocês estão aqui desde o início;
outros são novos na equipe. Mas no geral devo agradecimentos:

Em casa: à minha esposa, Ash, por seu amor e apoio e por me dar o tempo e o
espaço para que eu pudesse escrever, editar e promover Murtagh. Obrigado! Sei que
foi um esforço. Além disso, agradeço também aos nossos dois filhos, que, apesar de
não entenderem o que eu estava fazendo, proporcionavam tanta alegria todos os
dias.
À minha mãe, pelo olhar sempre atento quando se trata de edição, bem como por
ajudar nos negócios e na família. E ao meu pai por manter tudo funcionando, mês a
mês, para que eu pudesse me dedicar por completo ao livro.
Às minhas assistentes incrivelmente competentes, Immanuela e Holly, pelos
próprios comentários editoriais (muito úteis), bem como por todo o trabalho árduo
em sites, mídias sociais, produtos e muito mais. Não conseguiria sem vocês!

Na Writers House: a Simon Lipskar, por ser um agente tão maravilhoso. Vinte anos
e contando! Um brinde a mais vinte. (Ainda te devo um jantar de sushi por perder a
aposta de que eu conseguiria manter este livro abaixo da contagem de palavras de
Eragon.)
Também à assistente de Simon, Laura Katz, que faz um trabalho excelente
facilitando todo o processo. E, claro, muito obrigado a Cecilia de la Campa e à
equipe inteira de direitos autorais da Writers House por garantir todos os muitos
contratos de publicação de Murtagh em todo o mundo.

Na Knopf/Random House Children’s Books: à minha incrível editora, Michelle


Frey. O conhecimento íntimo dela sobre a Alagaësia e os personagens que a
povoam me ajudaram a elevar o nível deste livro além do que eu pensava ser
possível. Serei eternamente grato. Nenhum autor poderia pedir uma relação de
trabalho melhor. Difícil de acreditar que temos a sorte de ainda fazer isso depois de
tanto tempo.
Também no Departamento Editorial: à diretora da Knopf Publishing, Melanie
Nolan, a Andriannie Santiago e à leitora veterana Michele Burke.
Edição de texto: ao incomparável Artie Bennett, às dedicadas e atentas Alison
Kolani, Janet Renard e Amy Schroeder (mestres de toda a gramática, pontuação e
continuidade).
Gerenciamento editorial: a Janet Foley e Jake Eldred, heróis no gerenciamento (e
regerenciamento) de todas as peças móveis necessárias para manter o livro nos
trilhos.
Design original da capa: a April Ward e Michelle Crowe (o livro está lindo, por
dentro e por fora!).
Marketing: a John Adamo, Kelly McGauley, Jules Kelly, Regina Andreoni, Katie
Halata, Mike Rich — por idealizar uma campanha que excedeu em muito o já alto
patamar estabelecido por eles mesmos com o Ciclo A Herança.
Produção: a Tim Terhune — desculpe por resolver as coisas tão perto do apito
final. Foi só para deixar você esperto!
Publicidade: aos incansáveis Dominique Cimina e Josh Redlich, pelo entusiasmo
e pela energia em divulgar Murtagh.
Editora: a Barbara Marcus, editora da Random House Children’s Books, a Judith
Haut, amiga de longa data e apoiadora (que jornada de Luling!), a Gillian Levinson,
a Erica Henegen e a Rich Romano pelo ajuste fino da logística editorial.
Vendas: a Amanda Close, a Joe English e a toda a (incansável) equipe de vendas.
Das grandes livrarias às pequenas, em todos os locais intermediários, obrigado por
serem meus campeões todos esses anos. Murtagh e Thorn não poderiam estar em
melhores mãos.
E há muito mais pessoas na Random House Children’s Books que trabalharam no
Ciclo A Herança e no Mundo de Eragon ao longo dos anos e que contribuíram
especificamente para Murtagh. Um verdadeiro exército, na verdade. Agradeço de
coração a cada um de vocês. Sou imensamente grato por seus esforços. Nada disso
seria possível sem vocês!

Agradecimentos especiais: a Rebecca Waugh, Amanda D’Acierno, Orli Moscowitz


e Taro Meyer, da Listening Library, pelo trabalho na produção e gravação do
audiolivro em inglês. E, claro, a Gerard Doyle, que voltou para narrar Murtagh,
assim como narrou todo o Ciclo A Herança em inglês. Que presente!
A música é para um audiolivro o que os mapas e as ilustrações são para a versão
impressa, e Malte Wegmann fez um trabalho maravilhoso ao dar vida à Alagaësia
no audiolivro por meio de suas composições (é possível encontrar as faixas
originais on-line e de forma gratuita). Já são três livros seguidos, Malte!
A John Jude Palencar por mais uma vez produzir uma pintura impressionante
para agraciar a capa original do livro. Com essa são… dez (?) pinturas que ele fez
para mim ao longo dos anos (houve muitas capas alternativas e artes internas). Que
privilégio.
E por último, mas não menos importante, a Alex Lopez, Mike Macauley,
Hellomynameis99, ibid-11962 e a todos os outros leitores que fizeram tanto pelos
fãs do Ciclo A Herança. Vocês ajudaram a promover uma comunidade animada,
acolhedora e próspera, e eu fico muito grato por isso.

Então. Mais uma vez chegamos ao fim do caminho. Um enorme agradecimento a


vocês, meus fiéis leitores, por me acompanharem nesta jornada. Foi uma honra e
um prazer. Espero que a vida esteja sendo boa com vocês. Espero também que
derrotem quaisquer dragões que estejam os atormentando. Lembrem-se de que
vocês não estão sozinhos. Cada um de nós tem uma luz interior e é importante
compartilhá-la com os outros.
Vamos em frente! Sejam incríveis e, como sempre… Atra esterní ono thelduin.
Christopher Paolini
7 de novembro de 2023
Título original
MURTAGH
World of Eragon (The Inheritance Cycle)
Book Five

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos
da imaginação do autor, foram usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas, vivas ou não, acontecimentos ou localidades é mera coincidência.

Copyright do texto © 2023 by Christopher Paolini


Copyright arte de capa © 2023 by John Jude Palencar
Copyright arte de mapa e ilustrações de miolo © 2006 e 2023 by Christopher
Paolini

Todos os direitos reservados.

Proibida a venda em Portugal, Angola e Moçambique.

Direitos para a língua portuguesa reservados


com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Evaristo da Veiga, 65 – 11º andar
Passeio Corporate – Torre 1
20031-040 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001
rocco@rocco.com.br
www.rocco.com.br

Preparação de originais
BIA SEILHE

Coordenação digital
MARIANA MELLO E SOUZA

Edição digital: novembro, 2023.


CIP-Brasil. Catalogação na Publicação.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P227m
Paolini, Christopher
Murtagh [recurso eletrônico] / Christopher Paolini ; tradução André Gordirro. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Rocco Digital, 2023.
recurso digital (Ciclo a herança ; 5)

Tradução de: Murtagh


Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5595-232-2 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Gordirro, André. II. Título. III. Série.

23-86203 CDD: 813

CDU: 82-3(73)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643


18/09/2023 22/09/2023

O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
O Autor

CHRISTOPHER PAOLINI começou a escrever Eragon, seu romance de estreia,


aos quinze anos. O autor, apaixonado por fantasia e ficção científica, é considerado
um dos grandes talentos da literatura atual. Nascido em 1983 no sul da Califórnia,
morou a maior parte da vida em Paradise Valley, Montana. Ele publicou Eragon em
2003, aos dezenove anos, e logo se tornou um fenômeno da fantasia. Seu último
romance, Dormir em um mar de estrelas, foi eleito um dos melhores livros de
ficção científica de 2020 pelo Goodreads.
Índice
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Dedicatória
4. Sumário
5. Argumento
6. Epígrafe
7. Parte 1: CEUNON
1. Maddentide
2. O Festim Abundante
3. Garfo e faca
4. Conclave
5. Voo de dragão
8. Parte 2: GIL’EAD
1. Território hostil
2. Perguntas para uma gata
3. Criaturas tumulares
4. Histórias de pescador
5. Boca de Lodo
6. Luta e labuta
7. Em defesa de mentiras
8. Máscaras
9. Uniformes
10. Andando de mansinho...
11. A porta de pedra
12. Caminhos escuridão adentro
13. Confronto com uma gata
14. Duelo de inteligências
15. A caixa de confusão
16. Consequências
17. Exílio
9. Parte 3: NAL GORGOTH
1. O vilarejo
2. Bachel
3. A Torre de Pederneira
4. Sonhos e presságios
5. Recitações de fé
6. A Corte dos Corvos
7. Presa e espada
8. Clemência de mãe
9. Ponto de ruptura
10. Agitação
11. Expectativa
12. O poço do sono inquieto
13. Pesadelo
14. Uvek
15. Obliteração
16. Sonhando acordado
17. Fragmentos
18. Sem defeitos
19. Escolhas
20. Qazhqargla
21. Uma questão de fé
22. Fumaça negra
23. Fogo e vento
24. Grieve
10. Parte 4: OTH ORUM
1. Criaturas da escuridão
2. Liberdade da desgraça
3. Defendendo o centro
4. Islingr
11. Parte 5: REUNIÃO
1. Aceitação
12. Adendos
1. Nomes e idiomas
1. Sobre a origem dos nomes
2. Pronúncias
3. Glossário
4. Runas humanas
13. Posfácio e agradecimentos
14. Créditos
15. O Autor

Guide
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Dedicatória
4. Sumário
5. Início
6. Adendos
7. Posfácio e agradecimentos
8. Créditos

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