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Argumento
PARTE 1: CEUNON
Maddentide
O Festim Abundante
Garfo e faca
Conclave
Voo de dragão
PARTE 2: GIL’EAD
Território hostil
Perguntas para uma gata
Criaturas tumulares
Histórias de pescador
Boca de Lodo
Luta e labuta
Em defesa de mentiras
Máscaras
Uniformes
Andando de mansinho...
A porta de pedra
Caminhos escuridão adentro
Confronto com uma gata
Duelo de inteligências
A caixa de confusão
Consequências
Exílio
PARTE 5: REUNIÃO
Aceitação
ADENDOS
Nomes e idiomas
SOBRE A ORIGEM DOS NOMES
PRONÚNCIA
GLOSSÁRIO
RUNAS HUMANAS
Posfácio e agradecimentos
Índice
Argumento
— Dilemas, 14-20
Atten, o Ruivo
CAPÍTULO I
Maddentide
Quando chegou à estrada costeira ao sul de Ceunon, Murtagh parou atrás de uma
sebe próxima e olhou por cima dela. Para seu alívio, a estrada estava vazia.
Murtagh correu em direção à massa enorme e disforme da cidade ao norte. A luz
fraca filtrada pelas nuvens estava quase desaparecendo, e ele queria estar em
Ceunon antes que caísse a noite.
Rastros fundos de carroças abriam sulcos na estrada desgastada, e montinhos de
estrume de vaca o impediam de andar em linha reta por mais que poucos passos.
Uma fina e delicada camada de neve estava se acumulando no chão, fazendo-o se
lembrar das rendas decorativas que as damas usavam em eventos importantes na
corte.
Ele diminuiu a velocidade ao se aproximar da muralha externa de Ceunon. As
fortificações eram robustas e bem construídas, ainda que não tão altas quanto as de
Teirm ou Dras-Leona. A argamassa entre os blocos de pedra negra áspera não
deixava brechas entre eles, e a muralha tinha um batente no ângulo correto na parte
inferior, o que ele apreciou.
Não que qualquer um desses detalhes importasse se a pessoa estivesse
enfrentando um dragão ou um Cavaleiro.
Dois vigias estavam apoiados em suas lanças, cada um de um lado do portão sul
de Ceunon. Murtagh olhou para as ameias e os balestreiros acima. Nenhum arqueiro
fora postado na passarela da murada.
Que desleixo.
Ao se aproximar, Murtagh viu os vigias se empertigarem e deixou sua capa se
abrir para mostrar que estava desarmado.
Um baque metálico soou quando os vigias cruzaram as lanças.
— Quem vem lá? — perguntou o homem à esquerda.
Ele tinha um rosto como uma rutabaga de inverno, com um narigão cheio de
vasos sanguíneos estourados e um hematoma amarelo sob o olho direito.
— Apenas um viajante aproveitando o Maddentide — disse Murtagh em um tom
tranquilo. — Vim comprar bergenhed defumado para meu patrão.
O homem à direita o olhou de cima a baixo com desconfiança. Ele parecia ser
primo do Narigão.
— É o que você diz. De onde vem, viajante? E que nome usa?
— Tornac, filho de Tereth, e eu venho de Ilirea.
A menção da capital enrijeceu um pouco as costas dos vigias. Eles se
entreolharam, e Narigão cuspiu no chão. O escarro derreteu um pedaço de neve.
— É muito chão para se andar a pé, sem bolsa nem cavalo, para alguns alqueires
de peixe.
— Verdade — concordou Murtagh —, mas minha égua quebrou a perna ontem à
noite. Pisou em um buraco de texugo, coitada.
— E você deixou sua sela? — disse o homem à direita.
Murtagh deu de ombros.
— Meu patrão paga bem, mas não o suficiente para eu carregar uma sela e
alforjes por meia Alagaësia, se você me entende.
Os vigias deram sorrisinhos.
— Sim. Entendemos — respondeu Narigão. — Você tem hospedagem garantida?
Dinheiro para uma cama?
— Tenho o suficiente.
Narigão concordou com a cabeça.
— Certo. Não queremos estranhos dormindo em nossas ruas. Se descobrirmos
que você está fazendo uso delas, metemos o pé no seu traseiro. Se descobrirmos que
está arrumando confusão, botamos você para fora. Da meia-noite até a quarta
vigília, os portões ficam fechados, e eles não abrirão para nada além da Rainha
Nasuada em pessoa.
— Parece razoável — disse Murtagh.
Narigão grunhiu, e os vigias afastaram as lanças. Murtagh fez um aceno
respeitoso de cabeça, passou entre eles e entrou na cidade.
O Festim Abundante
Garfo e faca
Conclave
Thorn voou para o leste pelo que pareceu um tempo interminável. Por fim, os dois
desceram e pousaram em um outeiro de topo plano com uma visão impressionante
da paisagem ao redor. Embora estivesse escuro, Murtagh conseguia divisar a
floresta de Du Weldenvarden mais ao sul — uma sombra que se estendia pela terra,
como se um grande braço apontasse para trás, em direção a Ceunon.
Sentiu um frio cortante nas costas quando tirou a capa e a camisa suja de sangue,
tentando não tocar nas manchas.
— Hvitra — murmurou ele enquanto impunha o desejo à vestimenta.
O pano brilhou ligeiramente, e as manchas vermelhas desapareceram.
Murtagh acariciou o linho. Parecia limpo o suficiente, mas ele ainda pretendia
lavar a camisa antes de usá-la novamente.
Em seguida, guardou a camisa nos alforjes e tirou a única outra peça de roupa
que possuía: um casaco grosso de lã — tricotado, não trançado —, tingido de
marrom-escuro com padronagem vermelha entrelaçada nos pulsos e na gola. A lã
pinicava, mas era a roupa que preferia usar enquanto voavam, porque esquentava
mais que o linho.
Ansioso para se cobrir, vestiu o casaco e se envolveu na capa logo em seguida.
Como uma fogueira poderia chamar atenção, Thorn se encolheu o máximo
possível, o nariz enfiado na cauda, e Murtagh se enfiou sob a asa direita do dragão e
estendeu o saco de dormir próximo às escamas lisas do seu ventre.
Valeu a pena?, perguntou Thorn.
— Acho que sim — respondeu Murtagh.
Abrindo a mente mais do que seria seguro entre estranhos, compartilhou as
memórias completas de Ceunon.
Eles não eram muito bons, comentou Thorn, se fixando na imagem dos guardas
de Sarros.
— Não, não eram. Sorte minha.
Um rosnado fraco, e o dragão apertou a asa em volta de Murtagh.
Vejo agora a tempestade diante de nós.
— Sim, mas que tamanho e força terá? Ainda não sabemos.
Mas ela existe.
— Sim.
A pálpebra encouraçada de Thorn se fechava e se abria com um leve estalo.
Você quer voar para dentro da tempestade.
— Talvez não para dentro dela, mas em sua direção, sim. O que me diz?
O dragão tossiu sua risada peculiar.
Que devemos levar a pedra para Tronjheim e mandar os anões esculpirem algo
bonito para nós.
Murtagh soltou um muxoxo de desdém.
— Com nossas cabeças assistindo sobre estacas?
Um leve cheiro de fumaça de dragão preencheu o espaço envolta deles enquanto
um fio de chama carmesim tremeluzia nas narinas de Thorn.
Não? Então digo que devemos dormir e falar a respeito disso pela manhã.
— Acho que você tem razão.
Atrás dele, Thorn zumbiu de novo e Murtagh cruzou os braços e deixou o queixo
afundar no peito. Debaixo da asa, tudo estava silencioso, e os dois pareciam ser as
únicas criaturas no mundo.
Antes que o sono o dominasse, Murtagh fez como era de hábito à noite e, em voz
silenciosa, pronunciou as palavras na língua antiga que formavam seu verdadeiro
nome. Ouvi-las nunca era fácil; conhecer o verdadeiro nome era conhecer as
próprias virtudes — e também os próprios defeitos. Ainda assim, ele o dizia todos
os dias para ter certeza de que ainda entendia a própria natureza e de que pertencia
apenas a Thorn. Pois um nome verdadeiro dava poder àqueles que o ouviam, e
assim como um mágico podia comandar um objeto com as palavras apropriadas,
também podiam comandar uma pessoa.
Foi o que Murtagh e Thorn aprenderam, para a tristeza e o desespero de ambos,
ao serem subjugados em Urû’baen.
Thorn também falou seu verdadeiro nome — um som grave de canto que fez
Murtagh sentir como se sua pele tivesse sido lavada com água morna. A seguir, as
tensões do dia deixaram braços, pernas e patas, e eles caíram em um sono profundo.
A manhã trouxe uma névoa congelante do oceano e uma camada espessa de geada
delicada. Cristais de gelo se soltaram quando Murtagh rastejou para fora da asa de
Thorn e franziu os olhos em direção ao disco pálido do sol nascente, fino e rosado
acima da borda de Du Weldenvarden. Serpentinas de névoa subiam das copas das
árvores. Toda a floresta fumegava com o calor armazenado do dia anterior.
Murtagh tremeu e fechou mais a capa. O frio da manhã nunca ficava mais fácil.
Ele verificou os arredores e ficou satisfeito por não ver nenhum sinal de busca ou
perseguição.
Confiante de que não tinham sido detectados, Murtagh se deu ao luxo de acender
uma pequena fogueira, feita com restos de arbustos secos de capim-de-cavalo que
colheu no topo e nas laterais do outeiro.
Thorn acendeu o fogo para ele com um único e minúsculo sopro de fogo das
narinas.
— Obrigado — disse Murtagh, com sinceridade.
Ele nunca considerou divertido mexer com pederneira e isca de fogo quando os
dedos estavam meio dormentes e preferia evitar o uso de magia para tarefas do dia a
dia. A magia fazia um tipo de ruído próprio para aqueles capazes de ouvi-la, e
nunca dava para saber quem poderia estar escutando.
O desjejum foi pão folha e bacon, com duas maçãs secas como acompanhamento
e uma caneca de chá de baga de sabugueiro para esquentar as entranhas. Thorn o
observou comer, mas não tinha comida para si; o dragão havia devorado vários
cervos menos de três dias atrás e não precisaria se alimentar novamente por quase
uma semana.
Quando Murtagh terminou, a manhã havia esquentado o suficiente para derreter a
geada e dissipar a névoa matinal.
Ele pegou o amuleto de caveira de pássaro e a pedra parecida com carvão e
colocou os dois em um pedaço de pano entre ele e Thorn.
Thorn cheirou os dois objetos, e a ponta da língua surgiu entre os dentes em um
movimento rápido. Ao farejar a pedra, as escamas na parte de trás da cabeça e
pescoço formigaram, como as de uma pinha se abrindo em uma fogueira.
— O que foi? — perguntou Murtagh, se inclinando para a frente. — O que é
isso?
Um arrepio percorreu a extensão sinuosa de Thorn, e ele se encolheu de uma
forma que Murtagh só tinha visto o dragão fazer diante de Shruikan.
A pedra tem um cheiro errado.
— Como assim?
Como… sangue, ódio e raiva.
Murtagh coçou a bochecha. A barba voltara a pinicar.
— Poderia ser mágica?
Outro movimento rápido da língua de Thorn.
Talvez. Mas, se fosse, a pedra deveria afetar você também.
— A menos que ela seja apenas para dragões.
Murtagh pegou a rocha e a quicou na mão. Em um impulso repentino, expandiu a
mente para o pedaço de pedra, pensando que talvez ela guardasse em seu interior
alguma centelha secreta de consciência. Mas não sentiu nada. Murtagh franziu a
testa e devolveu a rocha ao pano.
— Precisamos descobrir de onde ela veio.
Thorn sibilou como uma cobra.
Não. Você quer descobrir. Há uma diferença. Devemos destruir a rocha ou então
enterrá-la onde ninguém a encontrará. Há maldade nela. Abandone-a, esqueça-a,
não vá atrás.
— Você sabe que eu não posso.
Um grunhido retumbou na garganta de Thorn, e suas escamas ondularam.
Você pode! Ouça Umaroth. Ele nos alertou por um bom motivo.
— E qual seria esse motivo?
Não importa!
Thorn soltou uma baforada de fumaça escura e estendeu uma pata cheia de garras
em direção à rocha e ao amuleto, como se fosse empurrá-los.
— Não! — exclamou Murtagh, que se levantou em um salto para bloquear a
passagem de Thorn.
Eles se encararam, sem recuar. O ar entre eles parecia vibrar com a força do olhar
reluzente do dragão.
Saia do caminho.
— Não.
Esta caçada não trará nada além de tristeza.
— Eu não acredito nisso.
Pequenas chamas dançaram ao longo da língua de Thorn, e o interior de sua boca
brilhava como uma forja a pleno vapor.
Quando foi que o destino ocorreu como desejamos? Esqueça essa história.
— Não posso — disse Murtagh, sendo tomado por uma determinação e seriedade
que lhe eram conhecidas. — Não consigo dormir tranquilo sabendo que há um lobo
espreitando na escuridão. Algo tão perigoso que nem Umaroth ousa nomear.
É melhor deixar alguns segredos enterrados.
— Não! Não, não, não. Você quer acordar uma manhã e descobrir que fomos
derrotados, superados e enganados? Eu não. Nunca mais.
Murtagh parou com os punhos cerrados e as narinas dilatadas enquanto
estabilizava a respiração. Então, encarou Thorn com um olhar frio.
— Nunca.
O dragão soltou um silvo longo e sinuoso.
Não é o suficiente o que temos? Toda a terra e o céu são nossos para viajar.
Dormimos quando queremos, comemos quando queremos. Já demos o nosso
sangue.
— E ainda assim não estamos seguros!
Com um esforço consciente, Murtagh baixou a voz, embora as palavras
continuassem tão intensas quanto antes.
— Nunca estaremos, mas talvez possamos pegar nossos inimigos desprevenidos.
Umaroth está escondendo algo de nós, e não vou descansar até descobrir o que é.
Thorn soltou uma baforada de fumaça preta que envolveu a pedra e o amuleto de
crânio de pássaro. Se você os levasse para Eragon ou Arya...
— Eles não têm nada a ver com isso! — Murtagh passou a mão pelo cabelo, que
estava longo de novo. — Eu quero respostas. E quero ser útil.
Você já é útil o suficiente sendo você mesmo. Não precisamos nos provar para
ninguém.
Murtagh deu uma risada amarga.
— Talvez isso valha para você, que é um dragão. Mas sempre tive que me provar,
e sempre terei. Não há caminho fácil na vida quando você nasce como filho de
Morzan.
Ele foi até Thorn e colocou as mãos em cada lado do focinho escamado do
dragão.
— Além do mais, você e eu, nós somos Dragão e Cavaleiro. Não fizemos
nenhum juramento aos Cavaleiros…
Thorn arqueou o pescoço em uma curva orgulhosa, embora tenha deixado a
cabeça nas mãos de Murtagh.
E não farei mais juramentos de fidelidade. Nenhuma palavra me prenderá, nem
algemas ou grilhões.
— Não — concordou Murtagh. — Nem a mim. Mas temos uma dívida com
aqueles que vieram antes. Nós vestimos o manto deles, querendo ou não, e reluto
em desonrar sua memória ignorando isso.
Thorn fungou.
Ninguém saberia se escolhêssemos outro caminho.
— Nós saberíamos, e isso é o suficiente. — Ele gesticulou em direção à rocha e
ao amuleto de caveira de pássaro. — Este é um trabalho para um Cavaleiro e um
Dragão, como antigamente.
O dragão virou a cabeça para observar Murtagh melhor.
Então, devemos voar por aí lutando contra o mal e corrigindo injustiças onde
quer que as encontremos? É assim que você deseja passar seus dias?
Os lábios de Murtagh se contraíram.
— Não totalmente, mas talvez possamos fazer algum bem aqui e ali enquanto
cuidamos de nossos próprios interesses.
Como aconteceu com a garota.
— Como aconteceu com a garota.
Ele colocou a mão na bochecha de Thorn e a seguir abriu a mente o máximo que
pôde para o olho interior do dragão. Olhe, pediu, deixando Thorn sentir a plenitude
de seu coração.
Por fim, Thorn soltou um grunhido suave e afastou a cabeça.
Eu entendo.
— Mas não concorda.
A ponta da cauda de Thorn bateu no chão. Uma vez. Duas vezes. Três vezes.
O que você quer não é o que eu quero. Uma onda de hálito quente de dragão
percorreu Murtagh. Mas aonde você for, eu vou.
Ele concordou com a cabeça, agradecido. O relacionamento deles não era tão
tranquilo quanto o de Eragon e Saphira, e Murtagh achava que nunca seria. Mas
tudo bem. Um espinho cego não era um espinho.
Além disso, Murtagh sabia que não era a pessoa mais fácil de se conviver,
mesmo para um dragão.
Thorn devia ter percebido o humor dele, porque emitiu um leve zumbido de
deleite e enrolou o pescoço e o rabo em volta das pernas de Murtagh.
O que faremos, então?
Murtagh se ajoelhou e tocou o crânio do pássaro.
— Precisamos encontrar alguém que possa nos contar a respeito da bruxa Bachel
e desta pedra.
Umaroth?
Murtagh fez que não com a cabeça.
— Muito longe, e ele apenas diria para nos afastarmos da pedra novamente.
Thorn estalou as mandíbulas, afiadas e rápidas como uma armadilha de aço.
Será? Ainda acho que você deveria falar com Umaroth. Ele é mais sábio do que
a maioria.
Era um bom argumento. Não apenas Umaroth era velho e, presumia Murtagh,
dono de muito conhecimento, mas ele e seu Cavaleiro morto, Vrael, foram os
últimos líderes de sua ordem. Só isso já era motivo suficiente para dar peso às
palavras do dragão. No entanto, Murtagh permaneceu cauteloso.
— Eu respeito Umaroth — disse ele. — Mas não tenho certeza se confio nele.
Acha que Umaroth mente?
— Não. Acho que os objetivos dele podem não ser os nossos. Não sabemos.
Quanto tempo falamos com ele fora de Urû’baen? Apenas alguns minutos, se tanto.
Murtagh tirou uma migalha de pão da barba. Irritado, a jogou no chão.
Então, você quer descobrir a verdade sozinho.
— Quero.
Thorn inclinou a cabeça para o amuleto.
Então quem devemos procurar?
— Não tenho certeza. Precisamos de alguém aqui na Alagaësia, alguém que
conheça os segredos do reino.
Os olhos de Thorn se apertaram em fendas estreitas como facas.
E Yarek?
A nuca de Murtagh formigou e um punho pareceu se fechar no peito, dificultando
a respiração. Yarek Lackhand, discreto, frio e analítico, inteligente como um elfo e
cruel como um torturador — Murtagh ainda podia imaginá-lo parado nos corredores
de pedra da cidadela de Galbatorix, um homem de roupas monótonas com um
tampo de ferro no cotoco do pulso direito. Yarek fora o espião-mestre de Galbatorix
e, pelo que Murtagh tinha visto, ele se distinguia no cargo. Foi ele quem organizou
que os Gêmeos sequestrassem Murtagh, roubando-o dos Varden para que o rei
pudesse dominá-lo, subjugá-lo à sua vontade.
Thorn encostou o focinho no braço de Murtagh, que o acariciou.
Se não fosse por Yarek, eles não teriam se unido, e Murtagh tinha de considerar
isso uma coisa boa. No entanto, o espião-mestre era a própria definição de
implacável. E chutava cachorros, o que Murtagh desaprovava.
— Mesmo que ele ainda esteja vivo…
Você sabe que ele está.
Murtagh inclinou a cabeça.
— Provavelmente. Mas tenho certeza de que ele desapareceu em algum buraco, e
se eu começar a bisbilhotar, fazer perguntas, isso vai chamar a atenção.
Thorn fez um som grave de tosse. Seu jeito de rir.
— O que foi?
Se não Yarek, por que não a mulher, Ilenna?
— Ilenna…
Murtagh lançou um olhar curioso para o dragão. De todas as pessoas que
passaram pela corte de Galbatorix, Ilenna foi uma das mais incomuns, filha mais
nova de uma família de mercadores da cidade de Gil’ead. Os comboios de carga do
pai dela ajudaram a abastecer o exército do rei durante a guerra, e a família
enriqueceu. Apesar de plebeia, a garota flertava incansavelmente com ele sempre
que estava na corte, tanto que Murtagh passou a evitá-la. Aquilo por si só era mais
do que raro, mas o que chamou a atenção dele foi como Ilenna era bem informada.
Como Murtagh soube mais tarde, a família dela fez mais do que apenas transportar
suprimentos para Galbatorix. Eles também serviram como coletores e depuradores
de informações a serviço de Yarek, e Ilenna desempenhou esse papel da mesma
forma que seu pai e os irmãos.
— Não há como dizer se ela sabe alguma coisa a respeito de Bachel ou da pedra.
Thorn tossiu novamente e bateu com a ponta de uma garra afiada no chão.
É mais provável que ela saiba do que a maioria das pessoas. E, se não souber,
sem dúvida estaria disposta a fazer perguntas em nome do grande Cavaleiro de
Dragão Murtagh.
Murtagh grunhiu, sem achar graça.
— Mesmo que seja verdade… Não. Não faremos isso. Encontraremos outra
pessoa, em outro lugar.
Quem? Onde? Se você deseja achar Bachel e a fonte dessa rocha, Gil’ead é a
resposta. Se não, quanto tempo levará até encontrar o rastro deles?
— Nunca se sabe — murmurou Murtagh. — Pode acontecer. Talvez um dos
funileiros ou…
Uma baforada de fumaça acre soprou em cima dele quando Thorn bufou de
desdém.
Murtagh percebeu que falava absurdos e se calou. O dragão tinha razão. Sério,
cruzou os braços e olhou para as colinas e vales em direção ao horizonte.
O peso das memórias não mencionadas pairava entre eles.
— Gil’ead é perigoso.
Mais perigoso que Ceunon? Mais bem protegido do que Ilirea?
Murtagh mexeu os ombros, como se sentisse uma coceira no meio das costas. Ele
ainda não estava acostumado com o novo nome de Urû’baen. Toda vez que ouvia
Ilirea, sentia como se tivesse errado um degrau em um lance de escada.
Finalmente, ele respondeu, em pensamento, não em voz alta: Eu não quero. Não
havia dissimulação quando se tratava de comunicação mental nem barreiras para a
compreensão. Era a forma mais vulnerável de conexão que dois seres podiam
compartilhar, e ele a compartilhava com Thorn.
O dragão zumbiu um tom reconfortante e baixou a cabeça até pousar no chão aos
pés de Murtagh.
Deixe para lá, disse Thorn. Ou siga o caminho. Quanto esta caçada vale para
você?
Murtagh soltou o ar, descruzou os braços e se obrigou a ficar em pé. Colocou a
mão no meio da testa de Thorn e sentiu as escamas quentes em sua palma.
— Tudo bem. Iremos a Gil’ead e encontraremos Ilenna.
Antes de partirem do outeiro, Murtagh afiou a adaga na pedra de amolar feita por
anões que carregava consigo. Prendeu a arma no cinto da espada e, com a palavra
entha, fez um espelho com água derramada em um prato.
Ao olhar para a superfície cinza-prateada, ficou impressionado com a própria
aparência. Sem comer o suficiente, estava magro. Os dois nunca paravam, sempre
andando ou voando, muitas vezes em tempo inclemente. As refeições eram, na
melhor das hipóteses, intermitentes, e mais de uma vez ele passou um dia inteiro
sem dar uma mordiscada sequer em qualquer coisa.
Nada bom, pensou Murtagh. Quanto mais magro estivesse, menos reservas teria
para feitiços quando necessário. Os magos com o poder mais possante sempre
foram os mais pesados.
Ele puxou e esticou a pele da mandíbula, ergueu a adaga e começou a se barbear.
A adaga não era tão afiada quanto a navalha de um barbeiro, mas serviu. Murtagh
meio que se arrependeu da decisão já na primeira passada, porque sentiu o frio em
seu rosto. Ainda assim, persistiu, e logo acabou.
Ele se cortou apenas três vezes, o que considerou um sucesso.
Depois, se examinou no espelho improvisado. Sem a barba, ele parecia mais
jovem, só que também mais magro, mais maltratado, como um lobo faminto.
Ele derramou a água com a palma da mão.
Você voltou a ser você mesmo, disse Thorn.
Murtagh grunhiu. Talvez devesse ter esperado até chegar a Gil’ead para fazer a
barba, mas não suportava ter migalhas no queixo. Sem falar na coceira constante.
Ele secou o prato e o guardou nos alforjes. Depois, saltou para a sela de Thorn e
amarrou as pernas para não cair.
— Vamos voar!
Thorn rosnou em um tom feroz e satisfeito e saltou para o céu, batendo as asas.
O mundo deu uma guinada em torno de Murtagh, e ele agarrou o espinho do
pescoço do dragão, apertando os olhos contra a rajada de vento frio. Para o bem ou
para o mal, estavam indo para Gil’ead.
CAPÍTULO V
Voo de dragão
Estorninhos e pegas discutiam nas copas dos amieiros quando Murtagh acordou. A
testa e as axilas estavam suadas, e o pulso estava acelerado como o de um cavalo
assustado.
Ele se sentou e enxugou a testa.
O sol ainda não havia nascido, e Thorn ainda estava dormindo.
O coração de Murtagh parecia vazio. Houve um breve período, após a batalha de
Tronjheim, em que ele foi um homem livre e Nasuada ainda não estava
sobrecarregada com as responsabilidades do comando. A possibilidade de um flerte
apenas começou a se formar entre os dois quando o destino interveio. Se eles não
tivessem sido interrompidos…
Ele balançou a cabeça. Era inútil considerar o que poderia ter acontecido. A
situação era essa, e era o fardo dos vivos lidar com a vida da melhor maneira
possível.
Mas ter noção disso não aliviava a dor.
Com cuidado para não fazer barulho, Murtagh se levantou, pegou Zar’roc do
cobertor e caminhou para longe do acampamento.
A camada de geada sobre a grama estalava sob suas botas e fazia um som agudo
e seco.
Ele ficou parado em um campo vazio de relva. A postura ereta, os ombros
empertigados, olhando para o futuro.
Respirou fundo o ar gelado e sacou Zar’roc da bainha carmesim. Na luz cinzenta
do amanhecer, a lâmina da espada era um fragmento afiado de vermelho iridescente
— um espinho reluzente de sangue congelado, ansioso para cortar, perfurar e matar.
A espada de um Cavaleiro, forjada de aço de luz por um ferreiro élfico há mais de
um século e imbuída de feitiços de força, afiação e resistência. A melhor arma que
um guerreiro poderia empunhar na vida, e ainda assim ele sentia tanto aversão
quanto admiração por ela. A espada de um Cavaleiro, sim, mas esse Cavaleiro tinha
sido Morzan. O pai dele. E Morzan a usara para muitos atos cruéis e sangrentos…
assim como Murtagh depois dele.
Não foi à toa que Morzan batizou a espada de Desgraça na língua antiga e,
honrando o nome, foi isso que a espada trouxe a muitas pessoas em todo o reino,
incluindo ao próprio Murtagh.
Às vezes ele se perguntava se deveria ter tirado Zar’roc de Eragon.
Murtagh afastou aquele pensamento. Ignorar seu passado não mudaria nada.
Querendo ou não, a sombra de Morzan sempre pairaria sobre ele e, além do nome e
da cicatriz nas costas, Zar’roc era tudo o que havia herdado do pai. Era uma herança
irrisória e odiosa, mas era só dele, e por isso Murtagh se agarrava a ela.
Ele segurou a bainha na mão não dominante enquanto executava as manobras
familiares. Dar um passo, golpear, aparar, virar. Bloquear, brandir, dar uma
estocada. Murtagh se movia sem pensar, a mente tão quieta e vazia quanto um lago
sem vento em um dia sem nuvens.
Atacar, defender, escapar. Golpear e recuar, procurar a abertura, executar o corte,
arriscar a estocada. Ele usou a bainha como uma adaga, bloqueando, desviando,
batendo no pulso, criando oportunidades para um golpe letal.
O corpo dele se aqueceu, o pulso se estabilizou. Ele se moveu mais rápido, se
obrigando a manter o ritmo da batalha, cada movimento um estalo de ação para
preservar sua vida e encerrar outra.
Os pulmões cederam antes dos braços. Incapaz de continuar, Murtagh caiu de
joelhos e apoiou a bainha contra o chão, e a espada sobre as coxas.
À medida que os primeiros raios de luz varreram a grama congelada, o rubi em
forma de ovo no pomo de Zar’roc refratou e dividiu os raios em dardos vermelhos
brilhantes.
Assim que a respiração se estabilizou, ele se levantou, embainhou a espada e
cambaleou de volta ao acampamento.
Do outro lado da fogueira apagada, Thorn observava. Ele fungou quando
Murtagh se aproximou.
Você fede a medo.
Murtagh grunhiu.
— Eu sei. Vou me lavar.
Murtagh se encolheu quando o dragão lambeu seu cotovelo. Então se obrigou a
relaxar e deu um tapinha na cabeça de Thorn.
Os dias seguiram o mesmo padrão. Os dois voavam, tomando cuidado para não
serem avistados. Murtagh pensava, escrevia e pensava um pouco mais. No
acampamento, registrava tudo o que valia a pena guardar e às vezes lançava alguns
feitiços. E todas as noites depois da primeira, Thorn e ele falavam seus verdadeiros
nomes juntos em confissão silenciosa.
À noite, sonhavam, e nenhum dos dois falava sobre o que tinha visto na
madrugada.
Durante todo esse tempo, Du Weldenvarden permaneceu um mar aparentemente
interminável de árvores à esquerda. As profundezas escuras da floresta enchiam
Murtagh de apreensão e temor — não gostava da ideia de se perder entre as fileiras
de pinheiros sem trilhas. Mesmo assim, ainda se perguntava como seria caminhar na
floresta antiga. Ele e Thorn nunca tiveram a oportunidade de visitar o lar ancestral
dos primeiros Cavaleiros.
O pensamento o lembrou da Ilha de Vroengard, e ele estremeceu. Aquele foi um
lugar do qual ambos ficaram contentes de ir embora. A ilha inteira parecia nefasta,
maculada pela morte de dragões, envenenada pela magia liberada na queda dos
Cavaleiros.
Às vezes, Murtagh achava que toda a Alagaësia era um cemitério repleto de
tristezas da história.
Durante a terceira noite, com Thorn de bom humor, os dois lutaram juntos, ou tão
bem quanto um homem e um dragão poderiam lutar. Murtagh correu, disparou e
pulou em volta do dragão, tentando tocá-lo com a ponta de Zar’roc
(momentaneamente sem fio graças a uma magia). E Thorn, por sua vez, fez o
melhor possível para mantê-lo afastado, agarrá-lo e prendê-lo ao chão.
Foi muito divertido, mesmo Murtagh se machucando e ganhando um corte. Ele
também provocou alguns hematomas, mas Thorn não se importou. Os olhos do
dragão brilhavam com deleite feroz toda vez que Murtagh acertava um golpe ou o
obrigava a se esquivar.
Depois, Murtagh se deitou contra a barriga arfante de Thorn enquanto ambos
recuperavam o fôlego.
— Você foi lento feito uma tartaruga — implicou ele.
Thorn cutucou seu braço ferido com o focinho. E você foi sutil feito um touro.
Murtagh sorriu.
— Pode até ser, mas ainda consegui te alcançar.
A única coisa que recebeu em resposta foi um rosnado bem-humorado.
Território hostil
A s batidas das asas de Thorn causaram uma enxurrada de folhas enquanto ele
descia entre salgueiros e choupos até a depressão isolada. Ele mal cabia na clareira,
e Murtagh sabia que o dragão estava incomodado.
Enquanto folhas ainda caíam, Thorn olhou em volta do espaço confinado. Ele
rosnou, e um par de corvos saiu crocitando de dentro dos choupos.
— Está tudo bem — disse Murtagh em um tom tranquilizador. — Temos que nos
esconder, e este é um bom lugar para isso. Se alguma coisa acontecer, você pode
levantar voo.
Thorn revirou os olhos, mas não saiu do lugar.
Depois de soltar as pernas, Murtagh deslizou até o chão. Era estranho estar de
volta àquela depressão, como se fosse um lugar saído de um sonho meio esquecido.
Ele se sacudiu e vasculhou a área com a mente. Ficou aliviado ao sentir que as
únicas criaturas vivas eram ratos e coelhos, duas doninhas e um pequeno rebanho
de veados pastando em uma colina próxima.
— É seguro — afirmou, satisfeito.
O dia já estava quase no fim, então os dois montaram acampamento e logo
adormeceram profundamente.
Criaturas tumulares
E ra fim de tarde quando Murtagh saiu do túnel secreto sob a fortaleza de Gil’ead.
As sombras haviam tomado as ruas, e apenas os telhados permaneciam banhados
em luz quente e dourada.
A porta de pedra atrás dele fez um rangido quando Bertolf, o criado, a fechou.
Cauteloso, Murtagh subiu a escada da entrada oculta, meio que esperando que
um bando de soldados o atacasse a qualquer momento. No topo, ele parou por
tempo suficiente para se certificar de que ninguém estava olhando e cruzou de
mansinho o jardim, passou pelo portão da frente e saiu para a rua.
Ele se obrigou a prestar atenção aos arredores enquanto voltava correndo para a
entrada sul de Gil’ead, mas não parava de pensar no encontro com Carabel.
Murtagh soltou uma risada irônica. Saindo em uma missão a serviço de uma
mulher-gato. Era o tipo de coisa que se ouvia nas histórias, onde o jovem herói
zeloso provava sua bravura e ganhava a mão de uma princesa.
Só que Murtagh sabia que o mundo não funcionava assim. Na maioria das vezes,
o herói acabava morto em uma vala ou então forçado a cumprir ordens de um rei
odiado...
O seu humor piorou ao chegar à fronteira de Gil’ead. Com passos largos,
Murtagh se afastou dos prédios até achar que estava a uma distância segura. Então
saiu da estrada, foi para o topo de um pequeno monte e se concentrou em pensar na
direção da depressão onde Thorn estava escondido.
Consegue me ouvir?, perguntou.
A resposta de Thorn foi imediata: uma onda de preocupação e irritação.
Claro. Você está seguro?
O suficiente.
Onde você está?
Murtagh transmitiu uma imagem dos arredores para Thorn. O dragão bufou, e
Murtagh ouviu o som na mente.
Conseguiu falar com Ilenna?
Não exatamente. Murtagh compartilhou a lembrança da conversa com Carabel.
Era mais rápido do que usar palavras para explicar cada pequeno detalhe.
Depois disso, Thorn bufou mais uma vez.
Acho que a gata levou a melhor sobre você.
Eu sei, concordou ele em tom brando. Não havia muito que eu pudesse fazer.
Ainda assim, será bom se você puder ajudar o filhote.
Farei o melhor possível. Você não se importa com a escama de Glaedr, não é?
Por que deveria me importar? A escama dele não é minha. Além disso, o corpo
de Glaedr está morto. Por que um dragão deveria se importar com o que acontece
depois que se vai?
Muitas pessoas se importam.
Thorn fez o equivalente a dar de ombros mentalmente.
Se não estou aqui para saber ou sentir, o que importa? É medo pensar o
contrário, e eu não tenho medo dos vermes.
Não. Há coisas muito piores do que a morte.
Murtagh quase podia sentir Thorn olhando para ele.
Às vezes, penso que você é parte dragão.
Claro. Estamos unidos, você e eu, não estamos? Ele olhou para o céu, avaliando
quanto tempo faltava para o anoitecer. Vou pegar a escama e talvez precise da sua
ajuda com o peixe.
Manchas de empolgação em tom de arco-íris coloriram os pensamentos de
Thorn.
Vamos caçar juntos?
Sim.
As manchas se iluminaram, luzes variadas se acendendo conforme Thorn
imaginava a conclusão bem-sucedida da perseguição, com os dentes se cravando na
carne do peixe.
Em breve, prometeu Murtagh.
Carne macia tateando a pele dele; dentes raspando; umidade indesejável na mão; a
seguir uma pontada de dor amarela, brilhante o suficiente para fazê-lo ganir.
Murtagh acordou sobressaltado, gritando, com os olhos arregalados. Ele brandiu
o cajado, esperando derrubar o que quer que o estivesse machucando.
Um rosto ossudo e lastimoso pairava diante dele. Pupilas laterais cruéis e
desumanas, contornadas por ouro velho; uma profusão de pelos pretos e brancos;
lábios protuberantes procurando como vermes cegos por comida; dentes rombudos
e amarelados nas bases, rilhando, rangendo, estalando a apenas alguns centímetros
da bochecha de Murtagh; e um bafo que lembrava um tanque de água podre.
Murtagh recuou. Aquele era o rosto de uma fome aterradora e indiferente,
decidida a devorar o mundo.
Os dentes amarelados se fecharam na mão dele novamente, com força, causando
dor. Com repulsa, Murtagh reagiu sem pensar e gritou “Thrysta!” enquanto
canalizava a força para o feitiço.
Um golpe no corpo inteiro o derrubou contra um tronco de salgueiro enquanto a
criatura à frente saiu girando no ar com um balido ultrajado.
O animal pousou a vários passos de distância e se pôs de pé.
Uma cabra. Não era nada além de uma cabra.
Murtagh pestanejou, ainda desorientado. Ele mexeu a boca, a língua inchada e
seca, e olhou em volta. Ninguém mais estava à vista. Ele e a cabra estavam
sozinhos na depressão mergulhada nas sombras.
A cabra se sacudiu e deu a Murtagh um olhar zangado e desaprovador. O animal
abaixou a cabeça e raspou o terreno pantanoso com o casco dianteiro, como se
estivesse se preparando para atacar.
— Letta — disse Murtagh em tom decisivo.
A palavra não era um feitiço, mas continha a autoridade da língua antiga, e a
cabra — como todos os animais — entendeu a intenção por trás do comando.
Ela jogou o pescoço para trás e balançou a cabeça como se uma vespa tivesse lhe
picado o nariz, com o lábio superior curvado demonstrando uma raiva
inconfundível. A seguir, fez “mééé” em um tom de nojo e saiu trotando, balançando
o rabo.
Murtagh desabou no salgueiro. A imagem do focinho boquiaberto da cabra ainda
o enchia de repulsa. Se não tivesse acordado, ele tinha certeza de que a fera
continuaria mordendo sem parar até consumi-lo vivo.
Um novo alarme inundou a sua mente. O medo que sentira havia acordado Thorn
de sua soneca. Por alguns segundos, reinou uma confusão enquanto as emoções dos
dois se sobrepunham e Murtagh tentava acalmar o dragão.
Foi apenas uma cabra, disse Murtagh enquanto se desvencilhava dos salgueiros.
Apenas uma cabra.
Você me assustou, disse Thorn, mais uma queixa do que uma acusação.
Eu me assustei. Desculpe. Está tudo bem.
Você quer que eu coma a cabra?
Por um momento, Murtagh pensou seriamente em aceitar.
Não, mas agradeço a oferta.
Tome cuidado. Mesmo quatro-patas-sem-presas podem ser perigosos.
Eu sei. Tomarei.
Fazendo uma careta, Murtagh se limpou. As costas doíam onde o feitiço o havia
jogado contra o salgueiro. Ele se repreendeu por não colocar uma proteção mágica
para acordá-lo se alguém ou alguma coisa se aproximasse... e por exagerar tanto na
reação. Todos os últimos encontros perigosos o deixaram mais nervoso do que
deveria.
Por outro lado, suas reações o mantiveram vivo.
Ele esfregou a mão onde havia sido mordido. A pele estava vermelha e
machucada, mas intacta.
As proteções mágicas que Murtagh tinha colocado em torno de si possuíam
limites. Proteção demais e ele não seria capaz de interagir com o mundo de uma
maneira normal — tocar o fio de Zar’roc ou uma panela muito quente, por exemplo
—, e fornecer energia para as proteções mágicas o tempo todo o esgotaria, visto que
ela saía dele. O que significava que nunca colocava uma proteção mágica para
evitar especificamente que um animal o mordesse. Os dentes da cabra também não
atenderam a nenhuma das condições que Murtagh havia colocado nas proteções
mágicas.
Vou ter que dar um jeito nisso, pensou. Seria um ato um pouco complicado de
feitiçaria, mas ele também não pretendia deixar uma maldita cabra comê-lo.
O horizonte era uma linha nebulosa que dividia a meia cúpula dourada do sol
poente. Sombras roxas riscavam o terreno, e acuranas disparavam no alto,
perseguindo insetos enquanto as primeiras estrelas apareciam no céu.
No morro onde Glaedr estava enterrado, luzes alaranjadas oscilavam e piscavam
em volta da base da elevação. Murtagh praguejou. Vocês não têm nada melhor para
fazer?, perguntou-se, olhando para as pessoas de luto ao longe. Elas não mostravam
sinais de ir embora — na verdade, o número havia crescido. Ele suspeitava que
algumas delas pretendiam manter vigília no túmulo durante a noite inteira.
Murtagh torcia para que o elfo tivesse partido. De qualquer maneira, não ousou
esperar mais. Ele não tinha muito tempo, e temia que pegar Boca de Lodo fosse um
processo mais complicado do que Carabel fizera parecer. Se o peixe dormisse,
como a maioria dos animais, ele não apareceria até o dia seguinte.
— Vamos acabar logo com isso — murmurou Murtagh, e partiu para o túmulo.
Desejou ter trazido um odre consigo. Estava com ainda mais sede agora.
Andar até lá deu tempo para Murtagh formular um plano. Sem dúvida, os elfos
colocaram feitiços no local para impedir que alguém profanasse os restos mortais de
Oromis e Glaedr. Essa era a primeira dificuldade. A segunda era encontrar uma
escama. Se o fazendeiro com quem falou estivesse certo, não haveria muitas
escamas sobrando depois de os elfos queimarem os corpos. Como o túmulo
formava uma colina de tamanho decente, localizar uma escama em meio àquela
terra toda seria complicado até mesmo com magia. A terceira dificuldade era não
chamar atenção.
Pelo menos o crepúsculo ajudaria a esconder suas ações.
A quarta e última dificuldade era a própria relutância de Murtagh. Ele não queria
visitar o túmulo, não queria desenterrar nada do corpo de Glaedr e se preocupava
com o motivo de uma escama de dragão ser necessária para atrair Boca de Lodo.
Por que não outra coisa igualmente grande e reluzente? Se havia alguma
propriedade nas escamas do dragão que ele desconhecia, isso era preocupante. Ou
será que Boca de Lodo era atraído por objetos arcanos? Isso também era
preocupante.
Ele diminuiu a velocidade ao chegar no caminho que levava ao túmulo. A partir
daí, andou em um ritmo controlado, como se fosse um peregrino cansado da viagem
no final de um longo dia de caminhada.
Isso não estava tão longe de ser verdade.
Ao redor do túmulo, contou doze pessoas: todos humanos, cinco mulheres, sete
homens. Eram plebeus, vestidos com aventais rústicos, toucas e calças folgadas.
Pareciam, em sua maioria, fazendeiros ou trabalhadores da cidade. Duas das
mulheres tinham o cheiro da doca de Gil’ead, e um dos homens, magro e de cabelos
eriçados, usava um avental de couro de ferreiro.
Alguns estavam ajoelhados e outros, de pé — com lanternas na mão —, e um
murmúrio baixo de vozes tristes flutuava no ar da noite. Estavam rezando pelos
mortos, percebeu Murtagh. Orando, implorando ou simplesmente lembrando.
O caminho continuava subindo pela lateral do túmulo coberto de grama até o
carvalho no cume. Lajes tinham sido colocadas no solo para facilitar a subida. Perto
da árvore, mais duas pessoas estavam ajoelhadas: mulheres com xales de renda
preta. Delas vinha um lamento baixo.
Murtagh se sentiu profundamente incomodado. Estar ali parecia uma intrusão e
um insulto à dor delas.
Ao contornar o túmulo para o lado com sombra, ele se deparou com um menir na
base do monte. A grande pedra batia na sua cintura, e havia mais dois menires de
altura semelhante enfileirados. Linhas de runas esculpidas cobriam as três pedras,
juntamente com desenhos de nós decorativos.
Curioso, ele parou para lê-las.
E o seu sangue gelou. O primeiro menir contava toda a história triste dos
Cavaleiros de Dragão, começando com a formação da ordem como um meio de
manter a paz entre as diferentes raças da Alagaësia — missão que eles realizaram
com sucesso por séculos — e seguindo até a sua destruição pelas mãos de
Galbatorix, então um jovem Cavaleiro sem experiência que se voltou contra a
ordem depois de perder seu dragão e enlouquecer de dor.
O estômago de Murtagh revirou enquanto examinava as linhas. Os Renegados
eram mencionados, em especial Morzan.
O segundo menir contava como Galbatorix estabeleceu o Império após a derrota
dos Cavaleiros e, com os Renegados ao seu lado, governou como soberano absoluto
sobre a maior parte da humanidade. As runas o chamavam de Galbatorix, o Imortal,
pois, de fato, o rei havia envelhecido pouco ao longo daqueles cem anos, um
resquício de seu vínculo como Cavaleiro.
Murtagh se perguntou quem teria esculpido e colocado os menires. Não os elfos,
pois não era a escrita deles, mas alguém que conhecia a verdadeira história do reino.
Aquilo que Galbatorix tinha proibido que o populacho compartilhasse.
O terceiro e último menir falava de Oromis e Glaedr. Como eles haviam ensinado
os Cavaleiros. Como foram os últimos sobreviventes de toda a ordem, e tinham
passado um século escondidos entre os elfos, em Du Weldenvarden. E como
morreram durante a guerra rebelde dos Varden contra o Império, derrubados em
Gil’ead pelo filho de Morzan. Derrubados pelo traidor, Murtagh.
Ele ficou parado por um tempo, sentindo como se tivesse levado um golpe no
peito. Então um acurana passou voando com uma leve roçada de asas e um trinado,
e Murtagh teve um sobressalto, como se acordasse de um devaneio.
Com passos lentos, ele passou pelos menires e se apoiou no cajado. Olhou para o
chão, com o capuz sobre o rosto, e fez o possível para se parecer com os outros
enlutados. De certa forma, era a verdade.
Perdoem-me, pensou.
No fundo da mente, ele sentia Thorn observando, e o arrependimento do dragão
se somou ao dele.
O chão sob suas botas era macio com trevos podados. Murtagh fechou os olhos e
se deixou balançar para a frente e para trás, acompanhando o lamento vindo de
cima.
Se tentasse usar um feitiço para arrancar uma escama do túmulo, com certeza
ativaria qualquer magia protetora que estivesse no interior. A chave, como sempre,
seria realizar o que ele queria de maneira indireta, oblíqua. Esse era o jeito de
derrotar proteções mágicas. Como Eragon fez com Galbatorix...
Ele pensou por alguns minutos. No fim, foi a sede que lhe deu a resposta.
Murtagh procurou falhas no raciocínio e, não tendo encontrado nenhuma óbvia,
reuniu as palavras de que precisava e murmurou:
— Reisa adurna fra undir, un ílf fïthren skul skulblaka flutningr skul eom edtha.
E ele enfiou um fiozinho de energia no solo sob o túmulo, procurando por
qualquer água que houvesse ali.
A ideia era relativamente simples. Em vez de lançar um feitiço no túmulo, ele
usaria magia para trazer a água para cima sob o solo e, caso a água tocasse uma
escama, ela levaria a escama através da terra até a mão dele. No entanto, Murtagh
limitaria a energia direcionada à água a uma área profunda no subsolo, de modo que
nenhuma parte da força que ele gastaria afetasse diretamente a escama ou qualquer
outra coisa no interior do monte.
Se isso seria suficiente para contornar quaisquer proteções mágicas que os elfos
tivessem colocado na tumba, ele não sabia.
Talvez tenhamos que fazer uma retirada às pressas, pensou.
Enquanto estava lá, se concentrando no fiozinho da própria força que penetrava
as profundezas da terra, passos arrastados soaram nas proximidades.
Murtagh olhou de relance. O ferreiro de cabelos eriçados, sabe-se lá por que, se
deslocou para se juntar a ele.
Pior ainda, o homem começou a falar.
— Eu não tinha visto você aqui antes, estranho. Você não é dessas paragens,
imagino?
Murtagh lutou para dividir a atenção entre o feitiço e o ferreiro. Por um
momento, quase encerrou a magia, mas não o fez. Cada tentativa aumentaria o risco
de descoberta.
— Não — respondeu, mantendo o rosto para baixo.
— É, foi o que pensei — disse o homem, satisfeito, e esfregou os braços ossudos
para afastar o frio da noite. — Eu me chamo Iverston. Iverston Varisson. Embora
todo mundo ao redor do lago me chame de Malho porque... Bem, essa é uma
história que levaria uma jarra de sidra para contar, se é que me entende. Se eu
começasse, falaria até o nascer do sol.
Murtagh sabia o que se esperava dele.
— Tornac, filho de Tereth — respondeu.
Malho olhou para ele com uma expressão um tanto preocupada.
— Você não é um elfo, é? Não... Vejo que não. Mas há algo de elfo no seu rosto,
se não se importa que eu diga.
Murtagh se importava, mas segurou a língua. O túmulo era grande demais para
ele trazer água do subsolo do monte inteiro. Teria que começar em um quadrante e
movê-la lentamente para cima.
Outra pausa, e Malho esfregou os braços mais uma vez enquanto olhava para as
mulheres no topo do monte. Ele gesticulou para elas.
— Elas estão sempre lá em cima, sabe? Irmãs que vieram da cidade. Perderam o
pai durante a batalha. O irmão também, creio eu. Todo mundo aqui perdeu alguém.
A maioria, pelo menos. Alguns são simplesmente apaixonados pela ideia de
dragões. — Ele bateu na têmpora com o dedo. — Acho que têm alguma coisa meio
solta na cabeça. Sem intenção de ofender, se for o caso.
— Não ofendeu — disse Murtagh, mantendo a voz baixa.
Malho assentiu, compreensivo.
— Que bom. Não é certo adorar um dragão, se quer saber... Eu não venho na
maioria das noites, sabe? Somente quando o volume de trabalho na forja está baixo.
Já se passaram algumas semanas desde minha última visita. A colheita está cheia de
forcados, ferraduras, foices e correntes que precisam ser consertados, e sempre é
necessário produzir mais pregos. Nunca há pregos suficientes no mundo, sabe?
Murtagh assentiu e fez um barulho como se concordando. Ainda nenhum
resultado do feitiço, mas ele sentia a água fria escorrendo através do solo escuro...
— Por quê... — disse ele, e então parou. Malho se inclinou um pouco, como se
fosse olhar por baixo do capuz de Murtagh. — Por que eles ficam de luto aqui, se...
se...
Murtagh não sabia como formular a pergunta de maneira diplomática. Ele ficou
aliviado quando Malho pegou o fio da meada.
— Se foram o dragão e os elfos que mataram seus entes queridos? — Os ombros
ossudos se ergueram sob o camisolão. — Eu não saberia dizer o motivo. Pode ser
que eles odiassem o Império, e se sintam mal pela morte do dragão e de seu
Cavaleiro. Pode ser também que o Cavaleiro os tenha ajudado durante a batalha. Eu
sei que esse é o caso de Neldrick ali. Soldados de Buncha atearam fogo em sua
fazenda para tentar flanquear os elfos. O dragão desceu e apagou o fogo com as
asas, parecendo uma tempestade ou uma força da natureza, pelo que ouvi.
O ferreiro cruzou os braços e enterrou o queixo no peito.
— No meu caso? Eu não tenho nenhuma história tão épica quanto essa. Nada que
os bardos fossem cantar a respeito, não mesmo. Meu filho, veja bem, Ervos, demos
a ele o nome do pai de sua mãe, meu filho mais velho, o único homem, pois então,
ele colocou na cabeça alguns verões atrás que se juntaria aos Varden. Sempre foi
um menino teimoso. Achei que fosse se dar bem por causa dessa teimosia, mas ele
fugiu sem nos avisar, e não soubemos dele até o fim da guerra. Alguns dos Varden
vieram nos contar que lutaram com ele na Campina Ardente. A Campina Ardente!
Consegue imaginar? — Malho balançou a cabeça. — Nunca vi nada assim, posso
garantir. Uma enorme faixa de terra que queima sem parar, para sempre. Uma coisa
de louco... De qualquer forma, os homens que vieram estavam com os pés doloridos
e cansados da batalha. Eles estiveram em Feinster e em Ilirea depois. Viram Roran
Martelo Forte lutar, disseram. E disseram, bem, disseram que Ervos estava com eles
quando o Império os atacou e, bem...
O peito de Malho subiu e desceu várias vezes. Então, o ferreiro ergueu o olhar
para as estrelas. Embora não quisesse ver, Murtagh deu uma espiada e captou o
brilho prateado de lágrimas nos olhos do homem.
— É engraçado, sabe? A pessoa gasta todo esse tempo alimentando e vestindo
uma criança. Cuidando dela. Evitando que se mate por qualquer coisinha. Mas não
consegue protegê-la de si mesma. Ervos… Ele queria fazer parte de algo maior,
creio eu. Queria uma causa na qual acreditar, pela qual lutar, e não havia como dar
isso a ele em uma forja, sabe? Ele sempre foi um menino teimoso.
O homem balançou a cabeça.
— Nunca consegui ver o corpo dele. Essa é a parte mais difícil, acredite se
quiser. Não posso me despedir direito sem um corpo. — Ele apontou para o túmulo.
— Portanto, eles terão que servir até que um corpo apareça, se algum dia isso
acontecer.
A boca e a garganta de Murtagh estavam tão secas que foi difícil falar. Ele achava
que sabia de que ataque Malho falava... Foi ele que o liderou.
— Meus sentimentos.
— O mundo é assim mesmo, e nenhum sentimento vai consertá-lo, mas obrigado
mesmo assim, estranho. — Mantendo os olhos fixos nas estrelas, o homem de
cabelos eriçados continuou: — Se você quiser, pode fazer bem falar a respeito
dessas coisas. E, se não estiver disposto, tudo bem também, sabe.
A privacidade sob as sombras do crepúsculo soltou a língua de Murtagh e fez
com que ele sentisse como se pudesse falar de coisas que normalmente eram
dolorosas demais para serem expressas. Mas sabia que era uma falsa sensação de
anonimato, então escolheu as palavras com cuidado.
— Eu perdi… perdi um amigo. Era mais como um pai. Morto pelos homens de
Galbatorix.
— Ah, isso é difícil, não há como negar.
— Não tão difícil quanto o que outras pessoas sofreram.
Malho tirou os olhos do céu.
— Bem, no meu jeito de ver, não dá para saber o valor de uma dor, entende?
Cada um pode ter a sua. Seria estranho dizer que algumas dores são mais fáceis que
outras sem estar na pele das outras pessoas, se isso fizer sentido.
— Faz, sim.
Malho bufou e acenou com a cabeça e depois surpreendeu Murtagh dando-lhe
um tapinha no ombro.
— Como você parece querer seu espaço, vou deixá-lo em paz, mas, se mudar de
ideia, estarei ali.
E o ferreiro contornou a base do monte até se tornar uma silhueta escura do outro
lado, deixando Murtagh sozinho na sombra do túmulo.
Murtagh soltou um risinho abafado que foi quase um choro. Ao longe e de leve,
Thorn disse em um tom cuidadosamente neutro:
Que homem estranho.
Nem tanto, disse Murtagh.
Então se concentrou no feitiço, conduzindo a água através do solo com maior
velocidade. Até o momento, não parecia ter desencadeado nenhum feitiço de
proteção.
Pouco a pouco, cuidadosamente, ele fez a água passar por pedras e seixos,
conduziu o fluxo por espaços intersticiais, penetrou lama e argila e camadas
compressas de cinzas — os restos mortais do grande dragão Glaedr. O dragão tinha
sido enorme, em comparação com outros de sua espécie. Menor que Shruikan, mas
ainda assim várias vezes maior que Thorn ou Saphira. E a pira de Glaedr havia
deixado uma camada espessa de músculos, órgãos, ossos e escamas incinerados.
Murtagh não sabia se alguma escama teria resistido ao fogo dos elfos, que era
feito com uma magia que queimava mais do que o de uma forja.
Mas continuou procurando. Cada centímetro de avanço parecia uma transgressão.
Ele não tinha um estômago delicado por natureza — não ficava enojado com
sangue nem com a carnificina e as vísceras de batalhas —, mas saber que os filetes
de água estavam passando pelo que antes foram as entranhas de uma criatura como
Thorn o deixou cada vez mais nauseado.
Ele desejou desistir da tarefa e amaldiçoou a mulher-gato com toda a energia que
pôde dispensar.
Então, assim que Murtagh começou a se desesperar… Ali! Uma mudança no
fluxo da água ao tocar um objeto próximo ao centro do túmulo. Uma escama, ele
esperava. A água acariciou o objeto, formou uma bolsa de líquido ao redor dele e,
suave como o toque de uma mãe, retirou-o do ventre da terra.
Estava longe de ser um processo simples. Rochas e ossos bloqueavam o caminho
e, a cada poucos centímetros, um obstáculo forçava a água a se desviar. Sempre que
isso acontecia, ele lutava para devolver a escama ao curso pretendido e conseguiu.
Quer dizer, até que ela encontrou uma pedra enorme que desafiou todos os esforços
de Murtagh para contorná-la.
— Barzûl — praguejou ele.
Murtagh não conseguia encontrar o fim da pedra; a escama ficava presa em
saliências invisíveis. Sem outra opção, aumentou o fluxo de água, penetrou cada
vez mais no interior do túmulo até amolecer o solo sob a pedra, que virou uma poça
de lama.
Filetes finos de água escorriam pelos pés de Murtagh, e a terra do túmulo cedeu
ligeiramente, como se fosse desabar.
— Espere — murmurou ele, desejando que o monte mantivesse a estrutura.
Ele sentiu a pedra afundar no brejo que havia criado. A escama deslizou para a
frente com uma onda de pressão liberada, e Murtagh reduziu a quantidade de água
ao mínimo necessário para mantê-la em movimento.
Como uma nascente de montanha que ganhou vida, um trecho de orvalho brotou
da superfície do túmulo gramado. O solo se abriu e, de dentro do interior escuro,
emergiu uma reluzente escama dourada, brilhante como uma gema facetada de
topázio. No escuro, ela era um pedaço da luz do entardecer em forma de escudo, um
foco concentrado de luminosidade, ainda possuindo uma sensação de vida e
movimento.
Maravilhado, ele encerrou o feitiço e pegou a escama do tamanho da palma da
mão.
No instante em que tocou a escama, uma mente estranha tocou a de Murtagh e
um ataque mental o atingiu com tanta força que ele cambaleou e se agarrou ao
cajado para permanecer de pé.
Murtagh reagiu sem pensar; os velhos reflexos assumiram o controle. Ele recuou
no interior de si mesmo, protegeu a mente e se concentrou na frase que usava para
bloquear quaisquer outros pensamentos.
— Você não me possuirá. Você não me possuirá. Você não me possuirá —
murmurou ele, sem parar.
Mas não foi rápido o suficiente. A outra mente avançou para cima dele com força
implacável. Quem quer que fosse, possuía uma disciplina mental incrível e, ao que
parecia, o completo domínio das emoções, pois Murtagh não sentiu nada além de
uma intenção ferozmente controlada.
Ele tentou se mover, tentou largar a escama, mas a consciência invasora o
manteve preso com uma força esmagadora.
Murtagh imaginou que o agressor fosse um elfo, um enviado de Gil’ead para
guardar o túmulo. Normalmente uma projeção mental de tal intensidade exigia que
o mágico estivesse relativamente próximo. Pelo menos dentro de um quilômetro.
No entanto, Murtagh supôs que a escama estivesse de alguma forma encantada para
atuar como um espelho de vidência ou uma lupa — um conduto — entre quem quer
que a tocasse e os protetores do túmulo.
Mesmo assim, o tempo era curto. Um elfo não demoraria muito para cavalgar de
Gil’ead até o túmulo. Minutos, se tanto.
Murtagh não sabia dizer se Thorn estava tentando ajudar. Torcia para que o
dragão não fosse até lá.
Entre as palavras do cântico defensivo, ele tentou novamente mover a mão que
tocava a escama. Nada.
— Você não me possuirá. Você não me possuirá.
Por mais determinada e disciplinada que fosse a outra mente, Murtagh sabia que
era mais forte. Quando se tratava de determinação, ele podia se defender contra as
maiores, mais antigas e sábias criaturas da Alagaësia. Galbatorix podia ter sido
capaz de romper as defesas de Murtagh, mas ele nunca derrotara sua determinação
— e isso dava a Murtagh coragem para prevalecer, não importando quão terrível
fosse a situação.
Eis que da mente intrusa veio um pensamento questionador, tanto na língua
humana quanto na língua antiga: Quem é você?
Temor ameaçou atrapalhar a concentração de Murtagh. Ele não podia esperar
mais. Se o agressor descobrisse seu nome... Ele tinha que encontrar uma maneira de
interromper a atenção do elfo e escapar.
Com a mão não dominante, tateou o cinto até encontrar o cabo da adaga. Sacou a
arma e então — com determinação obstinada — esfaqueou o antebraço direito.
Não foi um golpe fundo o suficiente para causar um grande dano, mas o bastante
para causar dor, e era dor que ele queria.
O rosto se contorceu de agonia, e a adaga caiu dos dedos. O pico inesperado de
dor passou pela mente dele e entrou na do elfo e, como Murtagh esperava, quebrou
a concentração do agressor.
Livre da influência imobilizadora, Murtagh largou a escama. Ao deixar sua mão,
o contato mental desapareceu e, com ele, a sensação de peso opressivo.
O alívio seria breve.
Usando a ponta da capa como proteção, Murtagh pegou a escama outra vez. A
camada de pano foi suficiente para evitar o desencadeamento de qualquer feitiço
que tivesse sido colocado nela. Ele largou a escama na bolsa pendurada no cinto e
se virou para pegar a adaga.
A alguns passos de distância, Malho observava com uma expressão de horror no
rosto. O ferreiro gaguejou, apontou e disse:
— Isso é... Você é... Você não é amigo. Ladrão de túmulos! Profanador!
A voz dele ecoou no ar da noite e interrompeu as lamentações daqueles ao redor
do túmulo. Os humanos se viraram, com expressões assustadas e hostis. Malho
ainda gritava.
— Ele pegou uma escama do dragão! Eu vi! Ladrão! Ladrão de túmulos!
O ferreiro golpeou Murtagh, tentando agarrá-lo com braços compridos e curvos.
Murtagh se virou e correu. Correu como um ladrão comum e se odiou por isso a
cada passo.
Eu não deveria ter dito a ele que meu nome era Tornac, pensou. Os elfos podiam
saber o suficiente para se dar conta de quem ele era. E, se não os elfos, então talvez
o mágico da Du Vrangr Gata descobrisse.
Uma pontada de dor no antebraço fez Murtagh olhar para baixo enquanto corria
pela paisagem. Uma mancha de sangue havia encharcado a manga, e o antebraço
inteiro estava duro e retesado, como se tivesse cãibras.
Ele pressionou a mão esquerda sobre a ferida.
— Waíse heill — rosnou.
Seja curado. Era um feitiço arriscado de conjurar sem saber a natureza exata do
dano que ele estava tentando reparar, mas não achava que fosse muito grave, e o
palpite se mostrou correto. O braço ardeu e doeu, e ele se sentiu tonto por um
momento, o suficiente para fazê-lo tropeçar alguns passos. Mas a dor desapareceu e
os músculos relaxaram, e Murtagh conseguiu abrir e fechar a mão como antes.
Perder a adaga doeu quase tanto quanto esfaquear a si mesmo. Ele possuía aquela
arma desde que a recebera de Galbatorix em Urû’baen, e ela o servira bem desde
então. Ele a tinha encantado — com feitiços para fortalecê-la, para proteger o fio do
gume e para ajudá-la a perfurar as defesas mágicas de outros feiticeiros.
Vou ter que pegar outra adaga e começar tudo de novo. Era uma questão de
praticidade, no mínimo. Ele precisava de uma faca para muitas das tarefas de
acampamento.
Murtagh jogou o capuz para trás, pendurou a capa na dobra do braço esquerdo e
se concentrou na corrida. Atrás dele, os gritos raivosos dos enlutados
desapareceram na noite.
Um péssimo começo, pensou Murtagh. Mas não podia parar. Silna ainda estava
em perigo e havia respostas a serem obtidas de Carabel.
Preocupado, ele acelerou o passo.
CAPÍTULO IV
Histórias de pescador
M urtagh correu até que a ardência nos pulmões o obrigou a desacelerar para uma
caminhada rápida. Então voltou a correr, a caminhar, e a correr mais uma vez.
Nesse ritmo, voltou depressa para a depressão onde Thorn o esperava.
Você sempre agita as pessoas como um formigueiro. Thorn estava agachado,
tenso e pronto para sair de dentro do círculo de salgueiros e choupos.
— Eu sei — disse Murtagh, apoiando as mãos nos joelhos. — Parece ser um mau
hábito.
Será que os elfos vão nos encontrar aqui?
— Não sei — respondeu, endireitando o corpo. — Mas não acho seguro ficar.
Murtagh foi até o odre que havia deixado pendurado em um galho ao lado do
saco de dormir, destampou-o e bebeu até se saciar. A água estava morna e um tanto
rançosa, mas era um deleite bem-vindo depois de um dia de sede.
Thorn observou, sem pestanejar.
Deixe-me ver a escama.
Murtagh secou a boca. Jogou o odre vazio sobre os cobertores, pegou as luvas e,
com cuidado, removeu a escama brilhante da bolsa.
Com um zumbido empolgado, Thorn avançou até que o nariz quase tocou a placa
de topázio. A respiração quente do dragão criou gotas de umidade na superfície, e
elas refletiram a luz interna da escama em uma exibição deslumbrante.
O cotoco da cauda de Thorn bateu no chão. Um corvo voou crocitando do topo
de um choupo.
Murtagh estudou a cicatriz branca enrugada que marcava onde Glaedr tinha
arrancado o último metro da cauda de Thorn com uma mordida. A cauda dele
voltara a ter o comprimento normal — Galbatorix havia cuidado disso —, mas a
cura tinha sido forçada e imperfeita. Como o que havia sido perdido não podia ser
substituído, o rei teve que lançar feitiços em Thorn para esticar os ossos e músculos
que sobraram. O dragão levou semanas para reaprender a se equilibrar durante o
voo.
Thorn soltou um longo suspiro.
Glaedr foi um inimigo digno.
— Sim, foi — concordou Murtagh.
Ele morreu como todo dragão deveria: batendo asas, lutando no céu.
— Ele não está totalmente morto.
Thorn hesitou.
Mas ele não consegue mais voar. Não consegue se mexer. Só consegue pensar.
Prefiro me chocar contra a encosta de uma montanha do que viver assim.
— Eu sei — disse Murtagh, em tom gentil.
Eles tiveram sorte. Galbatorix não tinha forçado Thorn a expelir seu Eldunarí.
Thorn era muito jovem ainda, e o contraste entre o tamanho de sua mente e o de seu
corpo teria sido enorme.
Depois que Murtagh embrulhou a escama em um pano e a guardou em um
alforje, Thorn disse:
E agora?
Murtagh verificou o céu. As estrelas estavam brilhando e os chifres de uma lua
crescente surgiam no horizonte. Perfeito. Estava escuro o suficiente para ajudar a
escondê-los de olhos atentos, mas não tão escuro que eles não pudessem enxergar o
serviço.
— Agora — disse ele, enrolando o cobertor —, vamos pescar.
Murtagh não entrou na cidade pela estrada principal. Em vez disso, foi até o lago e
o beirou até chegar às docas externas de Gil’ead. De lá, foi fácil sair andando da
costa, subir em um cais incrustado de lama e passar por um vigia que estava
ocupado com o próprio cachimbo.
As docas dali exalavam um cheiro muito diferente das de Ceunon. Isenstar era
um lago de água doce, e a ausência do sal resultava em um aroma mais limpo e
fresco. Até o cheiro de peixe era mais suave, inofensivo.
Murtagh se esgueirou pelas construções à margem do lago — passou por casas de
triagem, celeiros de armazenamento e armazéns de secos e molhados —,
procurando o que sabia que deveria existir. Mas todas as tavernas e casas comunais
que encontrou já estavam fechadas para a noite, e ao invés de bêbados, deparou-se
com cachorros perambulando pela terra batida da rua, farejando e mordendo uns aos
outros de maneira errática.
Ele ouviu o som de passos leves se aproximando atrás dele.
Murtagh se virou rapidamente e viu os mesmos dois moleques de rua
esfarrapados que o abordaram do lado de fora da fortaleza de Gil’ead. Eles
ergueram as mãos sujas, com rostos pálidos e olhos arregalados sob os cabelos
desgrenhados.
— Por favor, mestre, senhor — disseram em tom de súplica.
Murtagh franziu a testa, os sentidos em alerta para uma emboscada.
— O que estão fazendo aqui a essa hora da noite?
Os dois se entreolharam com uma expressão animada e travessa. Eram irmãos,
pensou Murtagh, com apenas um ou dois anos de diferença.
— Ah, nada de mais, senhor. Só tentando encontrar comida — respondeu o mais
alto.
— Isso mesmo, senhor. Comida para nossa pobre mãe, quero dizer — completou
o menor, de supetão.
Os irmãos trocaram olhares alegres novamente. Então, ambos falaram:
— Por favor, mestre, senhor.
Encrenca, é isso que vocês são, pensou Murtagh. Ele olhou para a extensão da
rua escura. Um vigia apareceu entre um par de construções ao longe. O lampião do
homem lançou um clarão de luz amarela do outro lado da rua antes que ele
avançasse e uma esquina cortasse o brilho.
Murtagh voltou a olhar para os dois moleques travessos. Pescou um par de
moedas de cobre. Os meninos estenderam a mão para elas, e Murtagh ergueu as
moedas sobre as cabeças dos irmãos.
— Hã-hã. Não tão rápido. Primeiro vocês me dizem se ainda há alguma taverna
aberta a esta hora horrível.
Os meninos assentiram.
— Ah, sim! Várias.
— E onde posso encontrar a mais próxima?
— Descendo por ali, senhor! — disse o mais baixo, sem a menor hesitação, e
apontou ao longo dos edifícios à beira do lago. — Logo depois dos estábulos e à
esquerda. A Âncora Enferrujada. Não dá para errar.
Murtagh deixou cair o dinheiro, e os meninos pegaram as moedas no ar, rápidos
como pássaros.
— Meus agradecimentos. Agora vão para a cama, vocês dois, e não deixem que
eu os veja aqui fora de novo.
— Sim, senhor! Obrigado, senhor! — disseram, curvando o corpo e rindo.
Depois, correram para a cidade escura, o mais baixo conduzindo o mais alto.
Murtagh balançou a cabeça e continuou na direção que eles indicaram.
O caminho era mais longe do que esperava. Murtagh quase perdia a fé nas
instruções do menino quando avistou uma velha taverna com luzes nas janelas no
extremo oeste de Gil’ead, onde as construções eram baixas e miseráveis. Fiel ao
nome, a Âncora Enferrujada tinha uma âncora de navio pendurada na porta da
frente, junto com uma placa com duas canecas de cerveja brindando.
— Quanto mais as coisas mudam...
Por hábito, Murtagh tocou o cinto para verificar a posição da adaga. Mas a arma
não estava lá, apenas a bainha vazia.
Fez uma careta. Era arriscado ir desarmado a um lugar como aquele. Era o tipo
de estabelecimento de má fama onde estranhos muitas vezes acordavam no dia
seguinte com um galo na cabeça e a bolsa sem dinheiro. Isso se tivesse a sorte de
acordar. Mais de uma vez, ouvira falar de filhos de outros nobres que saíram para
beber em lugares assim e acabaram roubados, machucados ou pior.
Obviamente, ele era o tipo de pessoa de quem os outros precisavam recear.
Murtagh não conseguia mentir para si mesmo — gostava de ser assim. Depois dos
últimos anos, ficava contente em inspirar medo se isso mantivesse ele e Thorn
seguros.
Parou um momento para colocar a cabeça no lugar e assumir a personalidade
necessária. Então, avançou com passos brutos e entrou na taverna.
Ao contrário do Festim Abundante, em Ceunon, a Âncora Enferrujada era um
lugar escuro e sombrio que cheirava a fumaça, suor, urina velha e desespero. O chão
era uma confusão de tábuas enlameadas, e havia apenas algumas garrafas e copos
na prateleira atrás do balcão do bar. O taverneiro em si estava sentado em um canto,
ao lado de um barril de cerveja, com a cabeça encostada na parede, roncando alto o
suficiente para acordar um dragão (e Murtagh sabia exatamente quão intenso o som
precisava ser para isso).
Os clientes do estabelecimento eram uma mistura de pescadores, trabalhadores e
vários homens que Murtagh imaginou serem espadachins de aluguel ou — quando
não conseguiam um contrato — salteadores à procura da próxima presa.
Ele se sentiu observado enquanto atravessava o salão. O taverneiro acordou no
instante em que ele colocou moedas de cobre no balcão de madeira arranhado.
— Cerveja — disse Murtagh. — A mais barata que você tiver.
— Barata é tudo o que temos — respondeu o homem, levantando-se lentamente.
Ele tinha uma barriga de grávida que deixava o avental tão esticado quanto um
tambor. As moedas de cobre desapareceram nas mãos rechonchudas do homem, que
deu a Murtagh meio cobre como troco. A seguir, pegou uma caneca que não parecia
muito limpa e a encheu do barril.
Murtagh olhou para a cerveja. Estava choca. Ele decidiu não reclamar e levou a
caneca para uma mesa mais próxima da pequena lareira de pedra. O fogo estava
quase extinto, apenas um leito de brasas desanimadas.
Enquanto Murtagh se acomodava em uma cadeira, um dos espadachins de
aluguel — um homem baixo, com peito de pombo e um tique nervoso no olho
esquerdo — pigarreou e disse:
— Você veio com uma das caravanas?
Murtagh concordou com a cabeça.
— Direto de Ilirea. Chegamos duas horas antes de escurecer, mas demorou muito
para tirar tudo dos carroções.
Um homem com barba semelhante à de um anão e uma cicatriz na sobrancelha
esquerda falou:
— Quais são as notícias da estrada?
A cerveja tinha o sabor de água de cevada diluída. Murtagh fez uma careta e
pousou a caneca de volta na mesa.
— A estrada está boa. Empoeirada, com certeza. Como conseguimos vir sem
ninguém nos assaltar, acho que os homens da rainha estão fazendo um bom trabalho
em manter a ordem.
O homem de peito de pombo e o companheiro barbudo trocaram um olhar que
parecia um tanto conspiratório. O peito de pombo disse:
— Você estava trabalhando como segurança dessa tal caravana?
Murtagh assentiu.
— Nem precisei desembainhar minha espada. Não posso reclamar.
— É sempre um bom dia de trabalho quando a pessoa não precisa trabalhar —
disse o barbudo.
— Essa é uma verdade que merece uma cerveja.
Murtagh ergueu a caneca e bebeu um gole. A seguir, olhou para os pescadores
em seus suéteres e gorros de lã (que usavam mesmo entre quatro paredes).
— Ouvi dizer que a pescaria é boa no lago Isenstar.
— É aceitável — disse o pescador mais próximo, mantendo o olhar na caneca.
— Um dos homens com quem fiquei de vigia não fechou a matraca a respeito da
pescaria. Ficou falando sem parar a respeito do lúcio de verão. Dele e das enguias.
Sempre as enguias.
— As enguias são boas o suficiente para comer — admitiu o pescador. —
Contanto que a pessoa não cozinhe demais.
Murtagh assentiu mais uma vez, como se isso confirmasse o que tinha ouvido.
— Visto que é esse o caso, posso tentar a sorte com o anzol enquanto estiver
aqui. Eu costumava pescar bem. — Ele ergueu a caneca como se fosse beber, então
balançou a cabeça e pousou a cerveja novamente. — Só que… É uma bobagem, e
tenho certeza de que esse meu companheiro de guarda estava me provocando, mas,
bem, ele ficou repetindo que era perigoso pescar aqui. Por causa de um peixe
chamado Boca de Lodo. Disse que era o maior e mais malvado peixe de todo o
lago. Achei que ele estava falando bobagem. Com certeza, não?
Os pescadores ficaram tensos. Um deles fez um gesto para afastar o mau-olhado
e se inclinou e cuspiu no chão. A saliva era verde-escura por causa de um pedaço de
erva de cardo alojado na bochecha.
— Bicho maldito.
Murtagh ergueu uma sobrancelha.
— Pelo visto, há verdade no que ele disse...
— Talvez — disse o homem mais próximo, carrancudo.
— Isso soa como uma história que vale a pena ser contada.
Ninguém se manifestou. Os pescadores encaravam a lareira com olhares
taciturnos, enquanto o peito de pombo e o barba de anão sorriam um para o outro
diante da falta de resposta. O homem que havia cuspido empurrou a cadeira para
trás.
— Horvath. Merrik. Vou embora. Anra está esperando.
Murtagh ergueu a mão.
— Taverneiro. Uma rodada para todo mundo. Por minha conta.
O taverneiro obrigou os olhos a se abrirem e pestanejou, turvo de sono. Ele fez
que sim com a cabeça e arrastou os pés em direção ao barril.
Depois de um momento de hesitação, o pescador se recostou na cadeira.
— Creio que ela possa esperar uma caneca a mais — murmurou ele.
Ficaram sentados em silêncio enquanto o taverneiro enchia as canecas e fazia a
ronda pelas mesas. Quando Murtagh entregou a última das moedas de cobre, o peito
de pombo ergueu a caneca dele em um gesto de agradecimento.
— Obrigado, estranho — disse um dos pescadores, dono de uma cicatriz no
antebraço que fez Murtagh se lembrar de Essie. — Muita bondade sua.
— Oreth, filho de Brock — falou Murtagh, que achou sensato começar a usar um
nome diferente de Tornac em Gil’ead.
O mascador de erva de cardo coçou a barba ruiva e curta no queixo.
— Boca de Lodo, hein? Se quer saber mesmo a verdade, é melhor falar com o
velho Haugin, mas ele já está no quinto sono, se bem o conheço.
— Ele vai dormir o inverno inteiro — disse o pescador com cicatrizes.
— É verdade — falou o mascador de erva de cardo, balançando a cabeça. — Mas
não posso culpá-lo. Ele tem setenta e três invernos. Um homem merece dormir um
pouco depois de tanto trabalho.
Murtagh tomou outro gole da cerveja choca.
— E o que ele me diria a respeito de Boca de Lodo? — perguntou, tentando fazê-
los falar o que ele queria ouvir mais depressa.
O mascador de erva de cardo e seus companheiros trocaram olhares expressivos.
— Bem, é curioso. Você pode pensar que estou falando um monte de lorotas, mas
você perguntou e, como pagou a cerveja, receberá a história, se me perdoa a
expressão.
Murtagh sorriu.
— Claro.
— Então. Você tem que entender o que é Boca de Lodo antes de eu começar.
— Diga.
— Ele é um velho desgraçado e malvado, é o que ele é — explodiu o pescador
com cicatrizes. — Está vendo essa marca no meu braço? Foi aqui que ele me
mordeu há quatro verões. Maldito seja. Eu gostaria de estripá-lo e defumá-lo para o
jantar um dia.
— Todos nós gostaríamos — disse o mascador de erva de cardo. Os espadachins
de aluguel ouviam com atenção, os olhos brilhando na luz vermelha opaca dos
carvões. — Veja bem, Oreth, aquele peixe maldito é quase tão comprido quanto um
de nossos veleiros. Uns bons dez passos de ponta a ponta, creio, e mais ou menos
três passos de largura.
Murtagh sentiu que o cenho estava se franzindo enquanto ouvia. O que Carabel
não me contou?
— Isso é… um peixe grande.
Mesmo que eles estivessem exagerando, Boca de Lodo era claramente enorme.
O mascador de erva de cardo bufou.
— Pode-se dizer que sim. O maldito é quase uma pequena baleia. É um esturjão,
veja bem, ou algo parecido com isso. Escamas blindadas do tamanho de um broquel
nas laterais, espinhos afiados nas costas, barbilhões enormes saindo da boca. A boca
foi o que deu nome a ele. Boca de Lodo. Ele a arrasta no fundo do lago, pegando
tudo, comendo. Sempre que sobe, tem lodo e lama saindo da boca como fumaça de
um queimador de carvão. Ele vem espreitando Isenstar pelos últimos sessenta anos.
E é verdade, ele é mau. Embaralha nossas linhas e corta nossas redes sempre que
pode. Nós o vimos pegar garças no ar, furar os costados dos barcos... No ano
passado, ele derrubou o pobre Brennock de seu barco e o espancou quase até a
morte com o rabo.
— O rabo de Boca de Lodo, não de Brennock — esclareceu o pescador com
cicatrizes.
Uma gargalhada escapou do mascador de erva de cardo.
— Sim. Brennock não saberia o que fazer com um rabo, mesmo que tivesse um.
O cenho de Murtagh se franziu mais ainda.
— Ora, vamos. Você está de brincadeira, não está? Não pode esperar que eu
acredite...
— Cada palavra é a pura verdade, juro pelo túmulo de minha mãe — disse o
mascador.
Enquanto falava, Murtagh viu dois garotos entrarem de mansinho na taverna
vindos da copa: os dois moleques de rua de antes. Os irmãos se sentaram ao lado da
lareira, conversando. Ao vê-los, Murtagh notou uma semelhança inegável com o
homem de peito de pombo, e bufou. Eu deveria ter imaginado. Ele se perguntou
que tipo de acordo os irmãos e o pai tinham com o taverneiro.
Tirando isso da mente, Murtagh disse:
— Bem… se as coisas estão nesse pé, por que ninguém pegou ou matou Boca de
Lodo até agora?
O mascador de erva de cardo se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos na
mesa, os olhos com um brilho peculiar.
— A história está na resposta, então ouça com atenção e não duvide de uma
palavra. Há sessenta anos, Haugin tinha cerca de dez verões. Como ele conta, ele e
dois outros meninos estavam pescando na costa, a alguns quilômetros ao norte
daqui. Era ele, Sharg Nariz de Truta e Nolf, o Baixo. Tanto Sharg quanto Nolf estão
mortos e enterrados, mas contavam a mesma história enquanto andavam sobre a
terra.
Ele ajustou o naco de fumo de erva de cardo na bochecha e bebeu um gole de
cerveja.
— De qualquer forma...
O terceiro pescador, um homem magro e de rosto esquálido que até então havia
permanecido calado, disse:
— Conte a ele a respeito do...
— Está bem. Estou chegando lá! — disse o mascador, visivelmente irritado.
Ele revirou os ombros e demorou um pouco mais antes de continuar. O homem
de rosto magro olhou feio para ele.
— Enfim, os meninos estavam pescando e pegaram umas trutas, uns esturjões e
colocaram os peixes na praia. Só que, em vez de dar uma pancada na cabeça deles
para impedi-los de se debater, eles decidiram sentar e assistir para ver quanto tempo
os peixes demoravam para parar de se mexer e qual deles durava mais. Não era
certo, mas, bem, você sabe como são os garotos.
Murtagh sabia. Ele olhou para o fundo da caneca.
— Então lá estão eles, sentados e observando os peixes ofegando nas rochas, e
um homem se aproxima por trás dos meninos. Sem cavalo, sem boi, apenas sai da
selva. Haugin diz que ele era um homem de aparência estranha. O cabelo ruivo, não
ruivo como meus bigodes, mas vermelho de verdade, como um rubi lapidado. E
dentes afiados e pontiagudos como os de um gato.
Um arrepio gelado subiu pela nuca de Murtagh enquanto ele ouvia. Durza. O que
o mago possuído por um espírito estava fazendo em Gil’ead tantos anos atrás?
Cumprindo alguma missão desgraçada e sangrenta para Galbatorix, sem dúvida —
ou pelo menos era o que Murtagh presumia. Grande parte da história de Durza
permanecia um mistério para ele. Galbatorix manteve a existência do Espectro em
segredo da corte, e Murtagh só descobriu a respeito dele durante as viagens com
Eragon. Mais tarde, depois que os Gêmeos o arrastaram de volta para a capital e
Thorn saiu do ovo, Galbatorix lhe contou alguns detalhes sobre o serviço que Durza
realizava para ele, mas apenas alguns.
Pensando bem, Murtagh ficou surpreso com a própria ignorância. E pela
estupidez de seu excesso de confiança. Ele pensou que pudesse derrotar Durza em
Gil’ead, sem magia nem a força e a velocidade aprimoradas adquiridas ao se tornar
um Cavaleiro de Dragão. Idiotice. Durza teria me matado antes de perceber quem
eu era... Pelo menos consegui colocar uma flecha entre seus olhos. Embora não
tivesse sido suficiente para matar o Espectro. Apenas uma lâmina no coração
poderia fazer isso, como Eragon provou mais tarde em Tronjheim.
— Assim que o viram — continuou o mascador de erva —, as crianças pularam e
tentaram ir atrás dos peixes. Eles sabiam que o que estavam fazendo não era certo.
Mas o homem mandou que parassem e perguntou o que estavam fazendo. Aí eles
contaram, envergonhados. E Haugin diz que o homem sorriu e se sentou ao lado
deles com a mão no punho da espada e pediu que observassem e esperassem,
porque ele também estava curioso. Só que não foi um pedido de verdade, se me
entende, e sim uma ordem. Pelo menos, é assim que Haugin conta. Então eles se
sentaram e esperaram, e os peixes continuaram ofegando e se debatendo até que
deram o último suspiro. Todos menos um.
— Deixe-me adivinhar — disse Murtagh. — Um esturjão.
Junto à lareira, os irmãos riam enquanto jogavam uma partida de um jogo com
seixos coloridos.
— Ou algo como um esturjão — disse o mascador de erva de cardo, que assentiu
com uma expressão sábia. — E é aqui que a história fica estranha. O homem pega o
peixe e fala palavras para o animal, só que em uma língua que não fazia sentido.
Haugin jura pelo túmulo da própria mãe, jura que sentiu as palavras em seus ossos,
e Sharg e Nolf contavam a mesma coisa.
— Magia — disse o pescador com cicatrizes.
— Sim, magia. Aí o demônio ruivo disse tudo o que queria e depois jogou o
peixe de volta no lago, e falou para Haugin, Sharg e Nolf que, como eles queriam
saber qual peixe era o mais forte, era justo recompensar o sobrevivente. E falou que,
por serem meninos tão travessos, o peixe os afligiria e atormentaria pelo resto de
seus dias. Depois ele voltou para o meio do mato e, desde aquele dia, o peixe tem
sido um terror para todos nós.
O pescador com cicatrizes cutucou o mascador de erva no ombro.
— Conte o resto para ele.
— Estou chegando lá! Uma história tem que ser contada do jeito certo... Boca de
Lodo cresce e se torna temível. Assim que nos demos conta, tentamos matá-lo,
Oreth. Ah, tentamos. Mas não adiantou. Ganchos não se fixam na boca dele, lanças
raspam as placas blindadas e flechas...
— Flechas ricocheteiam — disse o pescador com cicatrizes.
O mascador de erva de cardo fez uma careta por um segundo.
— Sim. E o maldito peixe é esperto demais para ser pego em redes ou caniçadas.
Antes da guerra, lorde Ulreth ofereceu uma recompensa por ele. Duas moedas de
ouro inteiras. E nosso governante atual, lorde Relgin, aumentou a recompensa para
quatro moedas, acredite se quiser. Quatro! E ainda incluiu uma chance de se juntar à
guarda, se a pessoa quiser. — O mascador de erva balançou a cabeça. — Mas não
vai adiantar. Boca de Lodo é uma maldição em nosso lago, uma punição pelos
maus-tratos sofridos pelos peixes, e essa é a verdade.
Murtagh xingou Carabel em silêncio por não ter lhe contado nada disso. Pegar e
matar Boca de Lodo seria muito mais complicado do que ele pensara.
— Por que não encontraram um conjurador para matar o peixe para vocês? —
perguntou ele.
O pescador com cicatrizes soltou um muxoxo de desdém.
— O quê? Os homens da Du Vrangr Gata? Eles não têm tempo para nossas
preocupações. E Frithva, a bruxa errante que mora lá embaixo, não seria de muita
ajuda. Se você precisa tirar uma verruga ou de uma compressa para um furúnculo,
ela vai te curar. Mas um peixe encantado decidido a te matar? Não, senhor. Para
isso, você precisa de um elfo ou um Cavaleiro.
— E eles estão todos ocupados em outros lugares — disse o mascador de erva de
cardo em tom de tristeza.
— Fique contente por isso — respondeu o amigo dele. — Essa gente só causa
destruição e ruína.
O mascador deu de ombros e bebeu o resto da cerveja.
— E agora você sabe a verdade a respeito de Boca de Lodo. Acredite se quiser,
Oreth, mas juramos que cada palavra é verdade. — Ele empurrou a cadeira para trás
e se levantou. — Agora é melhor eu ir embora. Anra está esperando por mim e não
ficará satisfeita por eu ter demorado tanto.
Murtagh ergueu a mão em um gesto casual e descuidado.
— Meus agradecimentos pela história. Admito que parece improvável, mas já
ouvi coisas mais estranhas na estrada. Se um homem não quiser ser comido por
Boca de Lodo, onde ele não deveria ir pescar?
O pescador com cicatrizes soltou um muxoxo.
— Como se isso fosse possível. O lago inteiro é o campo de caça dele. Aonde
quer que vá, você tem que ficar atento para que ele não te coma.
— Essa não é toda a verdade e você sabe disso, Horvath — disse o mascador. —
Há uma área pantanosa logo a oeste daqui, ao longo da costa, perto de onde os elfos
eliminaram os últimos soldados de Galbatorix. O local tem amentilhos e elódeas, e
há rochas grandes o suficiente para Boca de Lodo espreitar embaixo. Na maioria
das vezes, ele está em algum lugar nos arredores durante a manhã e a noite.
— Muito obrigado — disse Murtagh.
O pescador assentiu.
— Você ainda é jovem. Eu não gostaria de ver o velho Rove tirando medidas para
o seu caixão porque você foi arrumar confusão com Boca de Lodo, se é que me
entende.
E dito isso ele foi embora.
Boca de Lodo
O grito de Murtagh saiu tarde demais. Adiante, ele viu o brilho fraco da silhueta
de Thorn surgir acima da colina onde os dois pousaram e ouviu o baque surdo das
asas do dragão.
— Maldição — murmurou Murtagh entre os dentes cerrados.
Ele observou a configuração do terreno e depois correu em direção a um trecho
plano de trigo já colhido a algumas dezenas de metros de distância. Chegou quando
Thorn descia do céu. A rajada de vento das asas aveludadas do dragão o fez
cambalear, obrigando-o a abrir os pés e a se segurar contra a pressão do ar.
— Você precisava fazer isso? — disse ele.
Um brilho divertido acendeu os olhos de Thorn. Não, mas eu quis.
— Bah. Vamos sair daqui antes que alguém perceba. — Ele subiu depressa pela
lateral de Thorn e sentiu as escamas do dragão afiadas nas mãos.
Murtagh agarrou o espinho do pescoço na frente da sela e segurou firme — sem
se preocupar em amarrar as pernas — enquanto Thorn decolava.
A lua crescente estava perto do topo do céu quando Thorn passou por cima da
borda sul do lago Isenstar, procurando a área pantanosa que o pescador havia
mencionado. Murtagh considerou conjurar o feitiço que normalmente usava para
esconder Thorn das pessoas no chão, mas desistiu. Não havia barcos na água escura
abaixo, e ele queria poupar sua energia.
Ficou pensando enquanto voavam e, quanto mais pensava, mais inquieto ficava.
O que foi?, perguntou Thorn.
Estou preocupado que Durza possa ter feito algo extremamente inteligente com
Boca de Lodo.
Como assim?
Feitiços consomem energia, certo? E essa energia tem que vir de algum lugar.
Durza não conseguiria sustentar as proteções mágicas que colocou no peixe
quando não estivesse aqui. Então a energia deve vir de Boca de Lodo.
E qual o problema nisso?
Murtagh deu de ombros, sentindo uma comichão entre as omoplatas.
Talvez não haja problema. Só que, quando Boca de Lodo era pequeno, como
poderia ter mantido proteções mágicas fortes o suficiente para desviar de lanças e
espadas e coisas do gênero?
Por um momento, o único som foi a batida das asas de Thorn.
Talvez ninguém tenha tentado matar o peixe até ele ficar maior.
Talvez.
Acha que Durza usou o mesmo feitiço para fazer Boca de Lodo crescer que
Galbatorix usou em mim?
Um súbito cansaço tomou conta de Murtagh. Lembrar o passado sempre o
deixava se sentindo velho e triste.
Não há como saber, mas não me surpreenderia.
Hum.
Os dois voaram em silêncio até que um trecho de juncos de ponta reluzente
apareceu ao longo da costa: os topos dos amentilhos refletindo o luar e a luz das
estrelas.
Thorn desceu batendo as asas em silêncio e pousou em uma larga saliência de
ardósia que pairava sobre a borda da água. Murtagh deslizou até a pedra e olhou
para a água prateada. Em outras circunstâncias, teria achado a visão linda, mas
saber que uma criatura como Boca de Lodo espreitava sob a superfície gerou uma
sensação terrível — a água era um grande e escuro desconhecido.
Sentiu um arrepio e esfregou as mãos. A respiração apareceu na forma de uma
fumaça pálida.
Murtagh tirou dos alforjes o arco que Galbatorix havia lhe dado. Ele enganchou a
ponta com a corda encaixada atrás do tornozelo direito e, com esforço, dobrou o
arco até conseguir enfiar a argola da corda na ponta da outra extremidade.
Ele verificou o alinhamento da corda e então, satisfeito, pendurou a aljava no
ombro.
O arco era feito de teixo escuro encantado por magia. A maioria dos homens, e
talvez até mesmo alguns Urgals, teria considerado o arco forte demais para vergar.
As flechas com penas brancas eram devidamente pesadas e feitas de carvalho
maciço, pois qualquer material mais leve e mais fraco se quebraria quando a corda
fosse solta. E, assim como fizera com a adaga perdida, Murtagh encantou as flechas
para torná-las mais fáceis de encontrar caso ele errasse a mira, com feitiços para
ajudá-las a resistir ao vento e a penetrar profundamente no alvo, não importando
que proteção, arcana ou não, o guardasse.
Também dos alforjes, ele tirou a escama dourada de Glaedr — ainda no invólucro
protetor de tecido —, bem como um novelo de barbante. Com dedos hábeis, deu um
nó quadrado, cujos fios manteve soltos, abertos e estendidos no chão como uma
armadilha de ferro para ursos. Então, calçou as luvas e removeu a escama do pano.
Mesmo sob o luar marmóreo, a escama brilhava com uma chama interna, como
se parte do fogo de Glaedr ainda tremeluzisse nas profundezas facetadas.
Murtagh a colocou no centro do nó quadrado e puxou os fios com força até
prenderem a escama.
Satisfeito por ela estar segura, tirou as luvas.
— Muito bem, vamos encontrar esse peixe — murmurou Murtagh, e caminhou
até o final da saliência de ardósia.
Ele girou a escama por cima da cabeça e deixou um bom pedaço do barbante
deslizar da mão, então jogou a escama na água. Ela aterrissou com um respingo que
ecoou ao longo da costa e esguichou um chafariz de gotas antes de desaparecer
como uma brasa moribunda sendo apagada nas profundezas do abismo.
— Talvez eu devesse ter amarrado uma tora como boia.
Posso pegar uma, disse Thorn, se agachando.
— Vamos esperar um pouco primeiro. Aqui, segure isso.
Thorn obedeceu, levantando a pata dianteira esquerda. Murtagh enrolou a ponta
solta do barbante em volta do dedo médio do dragão, que fechou a pata e segurou o
que restava do novelo.
— Dê um puxão de vez em quando.
Murtagh encaixou uma flecha na corda do arco. Em toda pescaria que fez durante
as viagens, usou magia, e nunca atrás de um peixe maior do que uma truta. Ele se
perguntou se aquela era a melhor forma de atrair a fera.
Encarou a massa escura do lago e expandiu os pensamentos. Tão longe assim de
Gil’ead, não havia a preocupação de ser notado por outro conjurador e, portanto,
usou toda a força da mente.
Fechou os olhos para se concentrar melhor no que sentia.
A escuridão reinava. Mas eis que ele olhou para o lado e Thorn apareceu como
uma chama ardente de calor e vida, uma estrela radiante em meio ao vazio.
Dentro do lago, viu muitas estrelas menores, pontinhos de calor que marcavam a
localização de uma miríade de diferentes criaturas vivas. Peixes flutuando em
fendas seguras e na base de elódeas que balançavam ao sabor da água, descansando
enquanto a noite passava. Enguias se enterravam na lama do leito do lago — as
mentes eram fracas e indistintas, dominadas pelos instintos mais básicos: frio, fome,
fadiga. Mais fracos ainda eram as centenas, se não milhares, de insetos que
apinhavam a água, indo de um lado para outro, descansando sob rochas e gravetos
ou envoltos em conchas. E Murtagh sabia que, se seu olho interior fosse ainda mais
aguçado, continuaria a ver a força vital de criaturas cada vez menores até chegar à
matéria mais ínfima.
Mas, entre os muitos animais que ele sentia, e até mesmo entre o calor quase
imperceptível das elódeas e outras plantas do lago, não havia nenhuma criatura
grande o suficiente para ser Boca de Lodo. Nem de longe.
Frustrado, soltou o fôlego e trocou a visão mental pela física. As cristas das
ondas baixas eram como lascas de metal espalhadas pelo lago.
— Nada — disse a Thorn. — Não há sequer um indício de alguma coisa... Puxe a
escama. Vamos ter que tentar em outro lugar.
Ele se voltou para o dragão, desanimado.
— Maldição. Isso vai levar dias, e não temos...
Olhe! Thorn cutucou Murtagh com o nariz, apontando para o lago.
Murtagh virou-se, erguendo o arco.
A mais ou menos quinze metros da costa, a água ganhou volume, diminuindo à
medida que avançava, como uma onda passando por um casco virado. Uma enorme
massa bulbosa a empurrava para cima e, na sombra abaixo, Murtagh teve um
vislumbre de olhos de contornos brancos que eram tão grandes quanto seu punho e
rolavam nas órbitas.
Então a onda sumiu e deixou apenas um rastro de marolas para trás.
— Juro, não senti nada — disse Murtagh, acompanhando as marolas.
É enorme! A descrição do mascador de erva de cardo não foi capaz de passar a
noção correta do tamanho do peixe. Boca de Lodo era maior que um urso das
cavernas, maior até que um dragão de três meses, ignorando as asas.
Murtagh reuniu os recursos mentais e então o golpeou com o pensamento,
tentando localizar e imobilizar o animal gigantesco, assim como o elfo havia feito
com ele no túmulo.
— Eu ainda não sinto nada — sussurrou ele. — Thorn, você consegue...
Um rosnado fraco escapou do dragão.
É como garras no gelo. Não consigo segurar.
Murtagh xingou baixinho.
— Vou ter uma conversa com aquela mulher-gato — disse ele, examinando o
lago agora plácido.
Durza deve ter escondido a mente de Boca de Lodo, comentou Thorn.
— É um belo truque. Nem eu tenho certeza de como fazer isso... Tente puxar a
escama. Vamos ver se isso chama a atenção dele.
Thorn obedeceu com alguma dificuldade. Os dedos da pata dianteira eram
grandes demais para realizar funções delicadas, mas ele conseguiu enrolar o
barbante em volta da pata o suficiente para encurtar a linha metro a metro.
Uma nova marola, imponente e ampla, surgiu se movendo transversalmente à
corrente predominante, se dirigindo para onde Murtagh imaginou que estivesse a
escama de Glaedr. Ali. Era muito improvável que acertasse, especialmente
disparando contra a água, mas Murtagh decidiu arriscar. Em um único movimento
suave, ele esticou o arco à frente enquanto puxava a corda até sua mandíbula e —
sem hesitação — a soltou.
A flecha zumbiu enquanto voava, e Murtagh enviou com ela uma palavra mortal.
Gotículas espirraram quando a flecha atingiu o lago bem à frente das marolas.
E então...
... as marolas diminuíram, diminuíram, até sumir e, pelo feitiço que conjurou,
Murtagh não sentiu nenhuma energia sendo drenada.
Ele errara. Conteve um palavrão e encaixou outra flecha, o mais rápido que pôde.
— Aqui, peixinho, peixinho — murmurou, varrendo o lago com o olhar.
Ele franziu os olhos. Aquilo era movimento à direita? A água estava escura
demais para ter certeza.
— Brisingr — sussurrou, liberando a energia aos pouquinhos, de modo a criar
uma esfera opaca de fogo vermelho diante de si.
Ela pairou sobre a água como um pequeno sol, brilhante o suficiente para
permitir que Murtagh enxergasse melhor.
Esperava que a luz pudesse ajudar a atrair o peixe para mais perto.
Thorn continuou a puxar o barbante. A escama de Glaedr estava quase junto a
eles. Murtagh conseguiu distinguir um brilho dourado sob as ondas, subindo na
direção da superfície.
Ele abriu a boca para sugerir que Thorn tentasse sacudir a linha.
Uma grande massa irrompeu embaixo da escama, e a escuridão se escancarou ao
redor do resto mortal de Glaedr, que brilhava como uma joia, enquanto mandíbulas
horrivelmente largas se fechavam, fazendo a escama desaparecer.
Thorn puxou o barbante. A linha estalou com um som metálico.
Murtagh puxou e soltou a flecha em um único movimento e, com ela, gritou a
palavra mortal.
Uma linha de bolhas brancas desenhou o rastro descendente da flecha. Foi um
bom disparo. A flecha atingiu algum ponto da cabeça de um metro de largura de
Boca de Lodo. Murtagh viu, sentiu e ouviu o impacto.
A flecha resvalou para o lado e desapareceu na escuridão de Isenstar. Mais uma
vez, Murtagh não sentiu nenhuma diminuição na força por causa do feitiço.
Boca de Lodo sumiu de vista, como um casco abandonado afundando até lugar
de descanso final, e não deixou sinal de si nem da escama de Glaedr.
Murtagh baixou o arco. Não havia sentido em encaixar outra flecha. Ele xingou.
Ao lado de Murtagh, Thorn sacudiu os restos frouxos do barbante para tirá-lo da
pata dianteira.
O peixe é formidável.
— Se perdermos Boca de Lodo, eu juro que vou drenar o maldito lago inteiro...
Marolas em forma de V se formaram à direita, a mais ou menos vinte metros da
costa. Elas traçavam uma curva perto da saliência de ardósia.
Thorn se mexeu ligeiramente, com o olhar concentrado na água agitada.
Ele não fugiu.
— Não.
Está brincando conosco.
— Que grau de inteligência ele pode ter?
As marolas desapareceram.
Os olhos reluzentes de Thorn se voltaram para Murtagh por um momento.
Ele pode ser astuto o suficiente para caçar um homem.
Uma preocupação fria correu a nuca de Murtagh. Thorn estava certo. A maioria
dos animais — a maioria dos peixes — teria fugido após ser atacada. Mas, por outro
lado, Boca de Lodo não era como a maioria dos peixes. Esse era o problema.
Murtagh cerrou os dentes, determinado. Nenhum peixe iria vencê-lo,
independentemente de encantamentos. Ele enfiou o arco na aljava, junto com as
flechas. O momento das armas físicas havia passado.
— Todas as proteções mágicas têm um limite — disse ele. — Vamos encontrar os
limites dessas aqui. Vou precisar de um pouco da sua força.
A mandíbula de Thorn se abriu para mostrar os dentes curvos.
O que é meu é seu.
Murtagh devolveu o sorriso. A seguir, voltou a concentração para a água. O
pescador com cicatrizes estava certo: matar Boca de Lodo era uma tarefa para um
elfo ou um Cavaleiro. Poucos além desses estariam à altura do desafio. E, ao se
livrar do peixe, eles poderiam fazer uma boa ação para o povo de Gil’ead, ao
mesmo tempo que serviam aos próprios interesses. Era uma combinação
gratificante.
Murtagh se agachou e tateou até encontrar um pedaço de ardósia solta. Arqueou
o braço e jogou a pedra a alguns metros nas águas próximas. Longe o suficiente
para que Boca de Lodo pudesse se sentir seguro, mas perto o suficiente para que
Murtagh tivesse uma linha de visão clara.
Uma série de bolhas peroladas apareceu, subindo em direção à superfície.
Murtagh ficou tenso e manteve firme a conexão entre a mente dele e a de Thorn.
Mais uma onda se formou, agora a menos de dez metros de distância.
Murtagh se concentrou em uma área logo abaixo da superfície, apontou e falou a
Palavra, o Nome dos Nomes.
Além da Palavra, ele acrescentou uma frase expressando a intenção de retirar as
magias vinculadas a Boca de Lodo, para quebrar e acabar com os encantamentos
que Durza colocara no peixe mais de meio século atrás. Embora a Palavra
concedesse a ele controle completo sobre a língua antiga, Murtagh ainda achava
útil, e muitas vezes necessário, explicitar o efeito desejado.
Ele liberou o feitiço e, como acontecia com a maioria dos usos da Palavra, sentiu
apenas uma leve diminuição na energia. Mas foi o bastante para saber que o feitiço
havia funcionado. Alterar feitiços através do Nome dos Nomes exigia pouca força
bruta. Era uma arte sutil, mais parecida com ajustar a trama de uma tapeçaria do que
quebrar um pedaço de cerâmica.
— Peguei você — murmurou, e depois: — Kverst!
A palavra dividiu a onda como se fosse um pano cortado por uma navalha. Por
baixo, Murtagh vislumbrou uma crista de espinhos pontiagudos e, espalhado de
cada lado, um dorso largo e corcunda coberto por uma camada de escamas preto-
azuladas que reluziam à luz prateada. Mas o feitiço não produziu outro resultado, e
Boca de Lodo novamente mergulhou e sumiu.
— O quê?!
O espanto de Murtagh se transformou em indignação. Ele disparou uma lança de
pensamento em direção ao peixe... e só atingiu vazio e ausência.
— Como?
O feitiço funcionara. Ele sentira! No entanto, de alguma forma Boca de Lodo
permanecia intacto.
Mais uma vez, falou a Palavra e tentou quebrar a magia vinculada a Boca de
Lodo e, novamente, pareceu que havia conseguido. Mas, quando lançou outro
feitiço mortal na água, ele passou inofensivamente pelo esturjão superdesenvolvido.
Ele tentou mais duas vezes — ficando cada vez mais frustrado — e obteve os
mesmos resultados.
Como isso é possível?, perguntou Thorn. Magia sem palavras?
Murtagh balançou a cabeça.
— Não é possível. O feitiço cumpriu o objetivo. Tenho certeza. Ele só...
Contando com Sarros, era a segunda vez que o Nome dos Nomes lhe falhava.
Estava começando a se dar conta de que ele não era a arma todo-poderosa que
pensara a princípio. E também de que seu conhecimento sobre magia era bem
menor do que esperava.
Murtagh ficou de cócoras e mordeu o interior da bochecha enquanto pensava, e
então soltou uma risada rápida e suave.
— Que desgraçado esperto. — Murtagh olhou para Thorn. — Não sei se esta é a
resposta, mas uma maneira possível de fazer isso seria formular um feitiço de modo
que, se alguma coisa tentar alterá-lo ou removê-lo, ele se substitua. Caso tal coisa
aconteça, então tal coisa ocorre.
Não era muito diferente dos feitiços com que ele andara experimentando durante
a viagem a Gil’ead.
Você pode usar o Nome dos Nomes para impedir que o feitiço retorne?
— Talvez. Provavelmente. Mas preciso pensar.
Então pense.
Uma coceira se formou na palma da sua mão direita.
— Não sei. Pode ser mais rápido...
O seu couro cabeludo formigou, e as narinas dilataram quando o medo o sacudiu.
Minha mão! Ele se virou para Thorn, dizendo:
— Temos que ir. Vamos levantar...
Um respingo soou à direita e...
... ele se virou para ver uma massa enorme e reluzente vindo da água em sua
direção. Murtagh mal teve tempo de registrar uma sensação de descrença antes que
o peixe gigante se chocasse contra ele e os dois caíssem no lago.
CAPÍTULO VI
Luta e labuta
A água fria envolveu Murtagh em um abraço mortal. Ele não conseguia enxergar
nem ouvir, não sabia onde estava.
O impacto arrancou o arco de suas costas. A capa se enrolava em seus braços e
pernas, tornando impossível nadar.
Mesmo através do tumulto da água, ele ouviu o rugido de Thorn, e uma onda de
fogo vermelho de dragão vinda lá de cima iluminou as profundezas do lago, onde
quer que lá de cima estivesse.
Murtagh arrancou o broche que prendia a capa em seu pescoço e tentou se
desvencilhar do tecido pesado com chutes e socos. Colunas de bolhas brancas
passaram perto de seu rosto. Subir!
Com um movimento dos braços, Murtagh endireitou o corpo e nadou em direção
à superfície. A luz mágica havia desaparecido, mas ele viu a silhueta do arco, um
crescente brilhante e ardente, flutuando no topo agitado do lago.
Um instinto de alerta o fez olhar em volta.
Das profundezas do lago surgiu Boca de Lodo, limo incrustado nos cantos de sua
boca em forma de pá: um monstro antigo feito de escamas de pedra, cristas afiadas
e malícia odiosa.
Murtagh ergueu a mão direita, aquela com a gedwëy ignasia, e se preparou para
conjurar um feitiço pensando na palavra. Talvez não pudesse usar magia para afetar
diretamente o peixe, mas poderia se proteger ou então atacar a fera com água,
chamas ou outros meios.
Antes que conseguisse, o peixe monstruoso disparou com uma velocidade
chocante, se deslocando mais rápido do que qualquer criatura já vista — mais
rápido até que Thorn.
A criatura fechou a boca no braço de Murtagh, que sentiu a mandíbula
pressionando sua pele. A seguir, Boca de Lodo começou a se debater e rolar,
arrastando-o pela água.
A cabeça de Murtagh virava de um lado para outro em movimentos bruscos.
Estrelas amarelas brilharam diante de seus olhos, e ele teve que lutar para não soltar
todo o ar.
As proteções mágicas impediram o peixe de arrancar o seu braço, mas não
fizeram muito além disso. Não podiam. Ele nunca teria pensado em restringir os
próprios movimentos.
Então, vislumbrou a cabeça e o pescoço de Thorn enfiadas na água como uma
enorme serpente. E viu uma das patas dianteiras do dragão tentar pegá-lo com as
garras estendidas.
Em reação, Boca de Lodo mergulhou mais fundo, avançando em espiral. Murtagh
sentiu o corpo bater no fundo do lago e uma nuvem grossa de lama se ergueu em
volta dos dois. Ele tentou se concentrar o suficiente para conjurar um feitiço, mas o
peixe não lhe dava chance.
Boca de Lodo o arrastou pelo leito gelado. As costas, o braço esquerdo e as
pernas de Murtagh bateram nas pedras, e os impactos deixaram sua pele dormente.
Seus pulmões ardiam, e ele sentia que as defesas mágicas sugavam sua energia
em um ritmo alarmante.
Tateou em busca da adaga que havia tirado de um dos homens durante a briga do
lado de fora da taverna. Os dedos roçaram o punho da arma, que caiu por causa dos
movimentos bruscos de Boca de Lodo.
Desesperado, Murtagh se debateu, tentando agarrar algo — qualquer coisa — que
pudesse usar para se defender.
Alguns momentos aparentemente intermináveis de gestos tateantes até que… sua
mão se fechou em torno de um objeto comprido e duro, que parecia mais uma barra
de ferro do que um pedaço de madeira.
Murtagh o agarrou, arrancando-o da lama, e deu um golpe na cabeça larga de
Boca de Lodo. Kverst!, gritou na mente.
Um raio de estática pareceu subir pelo braço junto com o impacto, e ele se sentiu
fraco quando o feitiço consumiu o pouco que restava de sua energia. Então Thorn
juntou sua energia à dele, preenchendo-o com uma força nova e o abastecendo
conforme o feitiço exigia mais e mais.
Um breve clarão de luz emanou do ponto onde a barra atingiu a testa de Boca de
Lodo, e Murtagh sentiu o objeto afundar em carne e osso, bem fundo na caixa
craniana blindada do peixe, que convulsionou e soltou o braço de Murtagh. Porém,
antes que ele pudesse se afastar, a enorme cauda de Boca de Lodo o atingiu e tudo
ficou preto.
Murtagh recuperou a consciência com um sobressalto de pânico. Por quanto tempo
esteve inconsciente? Não poderia ter sido mais do que alguns segundos. Boca de
Lodo ainda se contorcia e se debatia a poucos metros de distância.
Fogo tomou conta dos pulmões e das veias de Murtagh. Ele explodiria ou
desmaiaria se não respirasse, mas se recusou a abrir a boca. Se inalasse água, não
chegaria à superfície.
Bateu as pernas e fez um tremendo esforço para nadar até o topo.
Outra onda de fogo vermelho de dragão iluminou o interior do lago e, por um
momento, Murtagh perdeu toda a noção de tempo ou lugar. Grossas elódeas se
erguiam como grandes trepadeiras flutuantes em volta dele, balançando suavemente
na água azul-esverdeada. Boca de Lodo havia cavado no leito do lago, levantando
uma nuvem de lama, e uma rede de sombras tremeluzia e ondulava por toda parte.
Erguendo-se do pântano, como galhos sem casca esbranquiçados pelo sol, havia
uma floresta de ossos: braços, pernas e mãos crispadas em angústia. Braçadeiras,
punhos de mangas e roupas esfarrapadas pendiam de alguns ossos, assim como
pedaços de tendões e músculos decompostos. Centenas de mortos, entregues às
profundezas, consumidos por peixes, insetos e várias plantas semelhantes a musgo.
Um batalhão de escudos, espadas e lanças estava espalhado entre eles, com a
madeira amolecida e podre, e o aço preto consumido pela ferrugem.
Por um momento, o horror tomou conta de Murtagh. Então, o instinto o trouxe de
volta à realidade, e ele avançou, rasgando a água em direção à superfície, até que…
O ar atingiu sua pele. Ele arfou, incapaz de esvaziar e encher os pulmões na
velocidade que precisava. Sua visão periférica ficou vermelha e escura, e Murtagh
voltou a afundar na água.
Então um objeto áspero e pontiagudo roçou suas costas e braços, levantando-o.
Ele rolou e se agarrou à cabeça de Thorn com toda a força.
Peguei você, disse o dragão.
Murtagh arquejou e tossiu, incapaz de responder, mas se segurou em seu dragão
com mais força ainda.
Eles estavam a mais de trinta metros da costa. O dragão boiava na água, deixando
à mostra apenas os espinhos que despontavam ao longo de sua coluna e as pontas
das asas dobradas.
Não consegui chegar mais rápido, disse Thorn.
— Eu sei — respondeu Murtagh, ainda tossindo. — Tudo bem.
Eu teria resgatado você e matado Boca de Lodo.
Ele abraçou Thorn novamente e então se virou para olhar para o lago.
— Não tenho dúvidas disso… Achei que não conseguiria odiar Durza ainda mais.
Que outros males ele deixou na Alagaësia?
A pergunta fez Murtagh hesitar.
— Quem dera eu soubesse.
Uma turbulência na água a menos de dez metros fez com que ambos ficassem
tensos, e Murtagh começou a subir nas costas de Thorn.
Então, Boca de Lodo surgiu na superfície e rolou de barriga para cima, o corpo
inteiro flácido.
Murtagh praguejou e afastou o cabelo molhado dos olhos. O coração ainda batia
forte, e ele se sentia pronto para voltar à batalha.
— Espere. Há uma coisa que preciso verificar.
Ele se impulsionou para longe de Thorn e foi nadando até o enorme cadáver de
Boca de Lodo. Thorn o seguiu em um ritmo lento, deslizando pela água com uma
graça sinuosa.
Murtagh alcançou a cabeça da criatura. No crânio do esturjão superdesenvolvido
havia — como ele imaginava — um pedaço de osso quebrado protuberante. Parecia
ser parte de um fêmur humano.
Ele pensou no cemitério submerso, e uma suspeita perturbadora se formou dentro
dele. Era absurda a ideia de que todas as pessoas mortas lá embaixo fossem vítimas
de Boca de Lodo. Ninguém teria suportado a presença de tamanho monstro. O nível
da matança — mesmo que tivesse ocorrido em intervalos durante os últimos
sessenta anos — teria expulsado o povo do lago e espalhado a notícia da existência
de Boca de Lodo pelo reino inteiro, atraindo mais caçadores destemidos ao peixe
assassino.
Ele olhou para Thorn.
— Eu volto já. Brisingr!
Mais uma vez, Murtagh colocou uma luz mágica ardendo diante de si, só que esta
era azul-esbranquiçada e mais brilhante do que antes.
Então, respirou fundo e mergulhou novamente. A água borbulhava e fumegava
em volta da bola de fogo, mas ela iluminava o suficiente.
Ele nadou até as profundezas geladas, descendo sem parar até que o campo de
esqueletos crostosos apareceu. Na iluminação fervente de luz mágica, os ossos
pareciam trocar de posição e se mexer com uma vida sobrenatural, como marionetes
mal manipuladas e desesperadas para escapar daquele campo de decomposição.
Ele tomou impulso com as pernas até o esqueleto mais próximo e cavou a lama e
o limo que cobriam o torso. O lodo era frio como o desespero. Seus dedos
encontraram um pedaço de couro esfarrapado que Murtagh puxou e ergueu. A
suspeita se transformou em certeza. Como ele temia, estava gravado no couro o
estandarte da infantaria de Galbatorix.
Murtagh deu uma última olhada para aquele cemitério onde jaziam tantos
soldados do Império. A desolação estranha e grotesca fez seu coração doer.
Ele tomou impulso e voltou a subir.
Com uma eclosão de respingos, irrompeu na superfície. Ofegante, agarrou-se a
Thorn com gratidão quando o dragão se juntou a ele.
O que foi?
Murtagh praguejou e bateu várias vezes com a testa nas escamas duras de Thorn.
A água era um cobertor gelado, pesado e restritivo.
— Eles estão lá embaixo — murmurou Murtagh, mantendo a testa pressionada
contra o pescoço de Thorn. — Maldição. Estão todos lá embaixo.
Thorn estava cada vez mais alarmado.
Quem?
Quando Murtagh compartilhou o que tinha visto, Thorn também ficou triste.
— Os elfos devem ter forçado os soldados para a água. Eles nunca tiveram
chance.
Na última vez que vira os batalhões de Galbatorix, as colunas de homens estavam
aglomeradas nas planícies cobertas de fumaça ao redor de Gil’ead, enquanto fileiras
de elfos marchavam sobre eles em uma força inexorável.
É lamentável, mas as mortes deles não são responsabilidade nossa, disse o
dragão em tom gentil.
— São. Se Galbatorix tivesse permitido que nós ficássemos, poderíamos…
Os elfos teriam nos matado. Mesmo com a força de Yngmar à disposição, não
poderíamos resistir ao poder combinado dos elfos.
— Deveríamos ter ao menos tentado!
Preferia que os elfos tivessem perdido e Galbatorix, triunfado?
— Não! Mas deveria haver uma maneira de salvar os homens. De algum modo.
O pescoço de Thorn vibrou quando o dragão rosnou.
Você não pode forçar o mundo a ser como deseja.
— Não posso? — Murtagh encarou o dragão. — Se a pessoa quiser muito
alguma coisa…
Querer nem sempre é suficiente. Thorn esfregou o focinho no topo da cabeça de
Murtagh de um modo reconfortante. É preciso ter os meios também. Você sabe
disso.
Murtagh respirou fundo. A visão ficou turva. Lágrimas ou água do lago pingando
do cabelo, ele não tinha certeza. Embora Galbatorix tivesse sido mau, Murtagh não
pôde deixar de sentir pena dos homens comuns que marcharam sob a bandeira do
Império, muitos dos quais obrigados a servir. Ele tinha participado das campanhas,
dividido o pouco alimento à disposição com aqueles homens. Sabia que eram bons
e leais. Os homens não tiveram escolha a não ser lutar e, em Gil’ead e Ceunon,
enfrentaram um ataque vindo de outras terras e de outra raça.
Não era tão difícil entender por que defendiam o Império. Em circunstâncias
diferentes, Murtagh teria feito o mesmo.
Eles confiaram em nós e não pudemos ajudá-los, pensou. A conclusão o
deprimiu profundamente.
Não, respondeu Thorn com firmeza. Fizemos o que pudemos e ninguém pode
afirmar o contrário. Não se atormente com isso.
Uma pequena onda atingiu a boca de Murtagh, que cuspiu um golinho de água e
balançou a cabeça. Não foi uma luta justa. Murtagh vira o poder dos humanos
falhar diante da velocidade e força dos elfos. Mesmo que estivessem iguais em
número, os conjuradores élficos poderiam ter devastado sozinhos o exército de
Galbatorix.
A magia desequilibra todas as coisas, disse Thorn.
Murtagh pensou a respeito enquanto apagava a luz mágica e nadava na direção
do corpo flutuante de Boca de Lodo.
Você tem razão. Sempre desequilibra. Galbatorix tentou de um jeito. Nasuada
está tentando de outro, por meio da Du Vrangr Gata. Até a própria língua antiga
foi uma tentativa de controle.
É tão impossível controlar o vento ou a chuva quanto controlar a magia.
Então que esperança tem o homem comum em um mundo de mágicos?
A mesma esperança que qualquer criatura tem quando atingida pelas
tempestades do destino.
Murtagh enfiou a mão nas guelras expostas de Boca de Lodo e tentou puxar o
peixe em direção à margem. O bicho mal se moveu. Ele se virou para Thorn, que já
se aproximava.
— Me ajuda.
Com a ajuda do dragão, não demorou muito tempo para levar Boca de Lodo até a
costa — embora não tenha sido fácil. Uma vez lá, Thorn saiu da água e, com uma
das patas, arrastou o peixe para a margem molhada.
Cansado, Murtagh desabou ao lado do peixe morto e olhou para as estrelas
incessantes em lenta rotação. Imagens dos esqueletos submersos continuavam a
invadir sua mente.
Thorn tirou o cadáver de Boca de Lodo do caminho com um chute de uma das
patas traseiras antes de se enrolar próximo de Murtagh e colocar uma asa sobre o
Cavaleiro, formando uma espécie de bolso quente e seguro.
Murtagh fechou os olhos. As proteções mágicas o haviam esgotado mais do que
o esforço da luta, e o seu corpo doía por ter sido arremessado contra o fundo do
lago de forma violenta. Sentia dor no antebraço esquerdo mais do que tudo, onde o
osso sob o antigo corte latejava como se estivesse machucado. Ele precisava de
comida, de uma fogueira quente e de uma boa noite de sono.
Ainda não, pensou. Silna ainda precisava ser resgatada, e Murtagh temia não ter
tempo suficiente para entrar na companhia do capitão Wren antes de que os guardas
partissem com o filhote. Isso se as suspeitas de Carabel estivessem corretas. Ele se
tranquilizou com o raciocínio de que os captores de Silna não deixariam a cidade
antes do amanhecer.
Um tremor percorreu o corpo de Thorn. Ele estava tremendo, como se estivesse
com frio.
— Qual é o problema? — murmurou Murtagh, e acariciou a barriga de Thorn.
O dragão rosnou levemente.
Você está ferido.
Não muito gravemente. Estarei bem em um ou dois dias.
Thorn estremeceu e rosnou de novo.
Eu fui muito lento. Não consegui alcançar você a tempo.
Isso não é…
O peixe poderia ter matado você.
— É preciso muito esforço para me matar — disse Murtagh em voz alta, porque
o som de sua voz tinha um efeito calmante em Thorn. — E para matar você
também.
A princípio, Thorn não respondeu. Então Murtagh ouviu, mais do que viu, os
dentes do dragão estalarem.
Sim. Muito esforço.
— E nada obteve sucesso até agora.
Eu prefiro que continue assim.
Murtagh deu outro tapinha em Thorn e, com um gemido, rolou para ficar de pé.
A asa de Thorn se ergueu quando o Cavaleiro se levantou, revelando novamente o
céu noturno e o corpo de Boca de Lodo.
Murtagh esfregou os braços e espremeu as mangas da camisa para tirar o excesso
de água.
— Este é o dia que nunca acaba.
Já passa da meia-noite. Um novo dia, disse Thorn.
— Não parece.
Murtagh olhou para o lago. Flutuando perto da saliência de ardósia estava o arco.
Ou o que restava dele. A corda estava rompida e a madeira, carbonizada até virar
uma cinza retorcida. Os feitiços que ele lançou na arma poderiam tê-la protegido de
muitas coisas, mas não do fogo intenso de um dragão.
Murtagh suspirou. Em uma noite, perdera duas de suas três armas. Tudo o que
restava era Zar’roc, que era formidável, mas não exatamente útil se ele quisesse
atirar à distância ou cortar um pedaço de bacon.
Falando em cortar... Ele foi até Thorn e desafivelou o alforje mais baixo.
Murtagh ficou satisfeito em ver que o conteúdo ainda estava seco; uma
consequência do feitiço que conjurou após o temporal em que ele e Thorn foram
pegos no início do ano anterior.
Murtagh puxou Zar’roc e andou até o cadáver de Boca de Lodo. Ele ficou
olhando para a massa reluzente de carne por um minuto, avaliando o melhor lugar
para cortar. Quanto do peixe os guardas queriam? Não havia uma distinção clara
entre a cabeça e o pescoço do animal.
— Vamos precisar de alguma coisa para embrulhar a cabeça — disse Murtagh.
— Não quero usar meu cobertor, mas...
Thorn passou por ele e enfiou a cabeça no lago. Com água escorrendo do
focinho, o dragão depositou a capa encharcada de Murtagh a seus pés.
Murtagh pegou a capa com uma das mãos. Buracos e rasgos compridos deixavam
o luar brilhar através da lã de feltro. Ele suspirou mais uma vez.
— Espero que seja grande o suficiente.
Zar’roc não era uma espada de duas mãos — às vezes, Murtagh sentia falta das
proporções de sua antiga espada bastarda. Ele colocou a mão no punho da espada e
a ergueu acima da cabeça, como um carrasco prestes a desferir o golpe definitivo e
fatal. Respirou fundo e então desceu a espada soltando um alto “rá!”.
A lâmina carmesim cortou a pele blindada de Boca de Lodo e a carne escura por
baixo com quase nenhuma resistência. O peixe era tão grande, porém, que Murtagh
só conseguiu cortar um terço do pescoço na primeira incisão.
Ele ergueu Zar’roc novamente e outra vez deu um golpe para baixo.
Repetiu o movimento mais duas vezes para decapitar o peixe. Separada do corpo,
a cabeça de Boca de Lodo era quase tão larga quanto a altura de Murtagh — ele não
conseguiria abraçá-la se tentasse.
Os gigantescos olhos em formato de prato do peixe o encaravam, pálidos e sem
vida, desprovidos de força motriz, mas com o que Murtagh achou que fosse uma
expressão acusatória.
— Para todas as coisas, um fim — murmurou ele, e colocou a mão na testa fria
da besta.
A escama, disse Thorn.
— Ah.
Murtagh pegou Zar’roc novamente e pressionou a ponta na barriga de Boca de
Lodo. Com um som um pouco mais alto do que um sussurro, ele abriu o esturjão
gigante, e um pedaço de entranha cinza, semelhante a um verme, caiu em volta de
suas botas em grandes rolos escorregadios.
Murtagh fez uma careta e prendeu a respiração enquanto tateava as entranhas até
encontrar o estômago. Com outro corte rápido, o estômago se abriu e revelou uma
coleção medonha de peixes menores, sapos, enguias meio digeridas e até alguns
galhos. E, em meio aos resíduos fedorentos, estava a escama dourada de Glaedr,
reluzente como um prato polido.
O Cavaleiro apoiou Zar’roc no lado curvo do corpo do peixe e pegou um pedaço
de pano nos alforjes de Thorn. Ele usou o farrapo para remover a escama da pilha
de imundície antes de recuar rapidamente. Enojado, dobrou o corpo e vomitou,
embora tudo que expeliu foram bile e arrependimento.
Ele derramou um punhado de terra seca sobre a escama, sacudiu e guardou nos
alforjes antes de retornar à cabeça e ao corpo de Boca de Lodo.
Murtagh tinha começado a enrolar a cabeça na capa arruinada quando um par de
vozes ecoou na água em movimento. Ele ergueu os olhos. Dois homens se
aproximavam, remando, em um pequeno barquinho. Pescadores do turno da noite,
atraídos pelo barulho e pela luz.
Uma onda de exaustão percorreu Murtagh. Ele estava sem energia para lidar com
mais problemas. Ainda assim, endireitou a postura e estendeu a mão esquerda por
trás do corpo de Boca de Lodo e agarrou Zar’roc, tomando cuidado para manter a
espada escondida.
— Não faça nenhum movimento brus... — disse, olhando para onde Thorn
estava.
Mas o dragão já havia desaparecido. Murtagh enrijeceu, então expandiu a mente
e percebeu que Thorn estava deitado entre os arbustos que cresciam no topo das
margens, recuado nas sombras.
Para uma criatura tão grande, ele conseguia ser extraordinariamente silencioso.
Murtagh voltou a olhar para o barco.
— Olá, você aí! — berrou um dos homens quando se aproximaram um pouco
mais da costa.
A barba dele era grisalha e os ombros, pesados por conta dos anos remando. O
outro homem recolheu os remos, ergueu um lampião a óleo e o abriu, liberando um
facho de luz amarela que iluminou Murtagh e Boca de Lodo.
Murtagh protegeu os olhos com a mão livre. Conseguiu ver que os homens
estavam boquiabertos. Só podia imaginar sua aparência naquele momento: coberto
de lama, sangue e muco de peixe.
— Que-quem vem lá? — disse o barba grisalha.
— Ouvimos uma comoção que seria capaz de ressuscitar os mortos, mas... —
falou o outro homem.
— Mas se mantiveram afastados até que tudo acabasse — sussurrou Murtagh,
antes de respondê-los: — Ei! Boca de Lodo está morto.
Ele gesticulou para o corpo do peixe.
— A cabeça dele é minha, mas façam o que quiserem com o resto.
Os pescadores não se moveram nem falaram enquanto Murtagh encostava
Zar’roc na barriga aberta de Boca de Lodo, fora da visão deles, e terminava de
enrolar a capa esfarrapada em volta da cabeça decepada do esturjão. O pedaço de
fêmur enterrado na testa do peixe se projetava através de um buraco no pano.
Ele endireitou o corpo e pendurou a ponta da capa no ombro.
— Quem… Quem é você, estranho? — perguntou o barba grisalha, sua voz fraca
contra o ar da noite.
— Apenas um viajante — respondeu Murtagh.
Ele deu as costas para os pescadores, pegou Zar’roc sem deixar que os homens
vissem, depois firmou os pés no chão úmido.
Passo a passo, arrastou a cabeça do peixe gigante para os arbustos no topo da
margem. Ouviu os pescadores murmurando e o barulho deles se movendo pela água
enquanto avançaram para a costa.
No topo da margem, Murtagh conjurou um feitiço rápido: o mesmo que usava
para esconder Thorn quando eles voavam. Não foi perfeito; quem olhasse de perto
veria o ar ondulando como vidro líquido onde os dois estavam, mas seria o
suficiente para escondê-los na escuridão da noite.
Assim que se encontraram, Murtagh largou a ponta da capa, subiu depressa pela
lateral do corpo de Thorn e se sentou na sela.
— Vai, vai, vai — sussurrou.
Thorn pegou a cabeça de Boca de Lodo nas garras enormes e, silencioso como
uma coruja caçando, saltou pelo campo iluminado pelo luar e planou com as asas
semiestendidas. Ele pousou com um solavanco suave e saltou novamente, desta vez
com as asas abertas. Com mais dois saltos, eles estavam tão longe do lago que
Murtagh duvidava que alguém os ouvisse.
Uuush! Thorn bateu as asas duas vezes e os dois partiram, subindo em uma
espiral para o céu estrelado.
CAPÍTULO VII
Em defesa de mentiras
Enquanto Murtagh corria, o odre batia na lateral do seu corpo. Ele tinha aprendido a
lição do dia anterior e não ficaria sem água novamente.
Nas costas, carregava o saco de dormir e, enrolados no cobertor, alguns itens
básicos, como isqueiro, panela, um pouco de comida e outros equipamentos que um
soldado viajante deveria ter.
Tudo parte do plano.
Atrás dele, a cabeça embrulhada de Boca de Lodo flutuava pelo campo, suave
como seda deslizando sobre a pele. Uma leve camada de suor cobria a testa de
Murtagh. Manter a cabeça do peixe suspensa exigia um preço, mas muito menos do
que se ele tentasse arrastá-la pelo mato.
O céu do leste clareou enquanto Murtagh corria. O cinza se transformou em tons
de rosa e amarelo, e as sombras azuis que cobriam o terreno começaram a ficar
mais finas e quentes. O sol estaria nascendo quando ele chegasse ao quartel do
capitão Wren, como tinha planejado.
As ruas de Gil’ead ainda estavam vazias quando ele alcançou as margens da
cidade, embora o cheiro de pão assando pairasse acima dos prédios, quente e
sedutor.
O estômago de Murtagh roncou.
Com um pensamento, ele encerrou o feitiço que sustentava a cabeça de Boca de
Lodo, que caiu no chão com um respingo molhado. Ele cambaleou com o súbito
puxão do peso e voltou a agarrar a ponta da capa embrulhada.
Inclinando-se para a frente, começou a arrastar a cabeça do peixe.
Como antes, ele evitou as estradas principais e avançou entre campos e
construções anexas até conseguir entrar no centro da cidade sem ser visto.
Um cão vira-lata com pelo avermelhado e emaranhado de lama o seguiu,
farejando o rastro de muco que a cabeça de Boca de Lodo ia deixando.
— Saia — disse Murtagh em voz baixa. — Xô. Vá embora.
O lábio do vira-lata tremeu e as orelhas se achataram.
— Eitha! — disse Murtagh, para o cachorro não latir.
O vira-lata soltou um pequeno ganido e saiu correndo com o rabo entre as pernas
ossudas.
Murtagh balançou a cabeça.
Ele se apropriou de um pequeno carrinho de mão do quintal apertado de uma
casa. Colocou a cabeça de Boca de Lodo ali, se certificou de que o naco de carne de
peixe estava bem coberto pela capa arruinada e depois foi empurrando o carrinho
em direção à fortaleza.
Cada edifício projetava sombras compridas para o oeste conforme o sol se
libertava do horizonte. Em segundos, o ar começou a esquentar e um bando de
pardais disparou pelo céu avermelhado, perseguindo insetos que surgiam à beira do
lago.
A atenção de Murtagh se aguçou quando ele se aproximou da fortaleza; havia um
número incomum de soldados andando pela cidade, e vários elfos estavam no
portão da fortaleza.
A desventura no túmulo de Oromis e Glaedr parecia ter colocado toda a
guarnição em alerta máximo.
Murtagh avistou um criado segurando as rédeas de uma égua branca no jardim da
frente de um casarão. Ele atravessou a rua e disse:
— Com licença, mestre. Poderia me dizer onde encontro o quartel da guarda da
cidade?
O criado olhou para Murtagh e para o carrinho de mão com desdém
indisfarçável. O cabelo do homem estava preso em um rabo de cavalo curto, sua
camisa era feita de linho delicado e alvejado, e ele tinha a graciosidade de um
instrutor de dança.
— Subindo aquela rua, à direita. Mas eu ficaria muito surpreso se eles falassem
com gente da sua laia — respondeu o homem, com ar de desprezo.
Murtagh assentiu.
— Obrigado, mestre.
Ele avançou, sentindo os olhos do criado cravados nele até dobrar a esquina.
O quartel era composto por uma série de prédios com paredes de pedra
construídos na muralha externa da fortaleza e protegidos por uma muralha menor,
bem mais baixa, em volta do perímetro. A entrada era uma guarita estreita com uma
porta de carvalho negro guarnecida por cravos de ferro. Dois piqueiros vigiavam a
porta aberta.
Pela abertura, Murtagh viu homens andando por um pátio pavimentado, lutando,
treinando e disparando flechas em alvos de palha. Todos usavam o uniforme padrão
da guarda: um tabardo vermelho por cima de um gibão acolchoado com o emblema
dos Varden costurado.
Murtagh empinou o queixo e passou a andar com um pouco da firmeza
controlada de um homem em marcha. Lá vou eu, pensou.
Os piqueiros cruzaram as armas enquanto ele empurrava a carroça para a guarita.
Ele notou que os tabardos estavam limpos e em bom estado, um indicativo de que o
comando do capitão Wren era bom.
Os dois homens pareciam mais entediados do que preocupados ou irritados com a
presença de Murtagh. Um bom sinal para o que viria a seguir, ele torceu.
— Ei, você — começou a dizer o homem à direita, e Murtagh arrancou a capa da
cabeça de Boca de Lodo.
Os olhos dos homens se arregalaram. O guarda da direita assobiou. Ele parecia
ser alguns anos mais velho que o colega.
— Bem, macacos me mordam. Isto é o que eu acho que é?
Murtagh soltou o carrinho de mão e ficou ereto.
— É. O próprio Boca de Lodo.
Os guardas se entreolharam. O mais velho empurrou o elmo para trás e se
inclinou sobre o carrinho para ver melhor.
— Filho de um Urgal. É ele mesmo… E suponho que foi você quem o pegou, é
isso?
— Sim, senhor. E eu gostaria de me alistar. Senhor.
Os piqueiros se entreolharam novamente, desta vez mais sérios.
— Não me chame de senhor — disse o mais velho, esfregando o queixo. — Eu
sou da ralé. O fato é que, infelizmente, o capitão Wren não está procurando nenhum
recruta inexperiente. Ordens permanentes. É melhor você procurar uma companhia
diferente. Eles sempre estão atrás de…
O homem mais jovem puxou o braço do companheiro.
— Mas é Boca de Lodo, Sev. Boca de Lodo!
O piqueiro mais velho mordeu o lábio, com uma expressão indecisa.
— Não sei, não. As ordens do capitão foram claras como o dia. Se...
Murtagh se endireitou e bateu os calcanhares.
— Eu não sou inexperiente. E gostaria de servir ao capitão Wren.
O homem franziu a testa, mas então, para alívio de Murtagh, se virou para o pátio
e ergueu a mão.
— Ei! Gert! Chegue aqui!
Um dos guardas interrompeu o treino e foi até eles. Gert tinha ombros largos,
mãos grandes e andava com o tipo de passo determinado que Murtagh tinha visto
em dezenas de mestres de armas veteranos. Ele usava costeletas espessas e curtas,
salpicadas de branco, e a testa parecia permanentemente franzida de exasperação
diante da estupidez de seus soldados.
Quando Gert chegou à guarita, o piqueiro disse:
— Olhe ali. Ele pegou o Boca de Lodo!
As sobrancelhas cerradas de Gert se ergueram quando ele examinou a cabeça
viscosa e de boca aberta.
— Boca de Lodo, hein? — Ele cuspiu nos paralelepípedos. — Já era hora de
alguém acabar com ele. Essa criatura foi uma praga no lago por muito, muito
tempo.
— E nosso amigo aqui quer se alistar — falou o piqueiro mais velho. — Diz que
tem experiência.
Gert voltou a fechar a cara ao examinar Murtagh.
— É mesmo? Você já portou armas antes?
— Sim.
— Usou as armas?
— Sim, senhor.
Gert soltou outro grunhido e alisou as costeletas com a manzorra.
— É contra a política da companhia, mas qualquer homem que consiga matar
uma criatura como Boca de Lodo é o tipo de homem que o capitão quer nas fileiras
dele. Mas antes que eu vá incomodar o capitão a seu respeito, você terá que provar
seu valor para mim, Gert. O capitão é um homem ocupado, sabe? Ele não tem
tempo para bobagens.
Murtagh assentiu.
— Claro. Eu entendo.
— Hum. Tudo bem. Traga essa porcaria de peixe fedorento aqui e veremos do
que você é capaz.
O mestre de armas voltou para o pátio e, após um momento de hesitação,
Murtagh pegou os braços do carrinho de mão e o seguiu.
— Deixe o peixe ali — disse Gert, apontando para um ponto dentro da guarita.
Os outros guardas pararam o que estavam fazendo e observaram Murtagh
depositar o carrinho no lugar indicado. Gert o levou a um dos ringues de luta feitos
de terra batida e tirou duas lanças com pontas acolchoadas de um suporte no muro
interno do pátio.
Jogou uma lança para Murtagh, que pegou a arma com uma das mãos e tirou o
saco de dormir das costas. Ele não tinha muita experiência com lanças — elas eram
a arma principal do soldado de infantaria comum —, mas conhecia o básico.
Esperava que isso fosse o suficiente.
— Muito bem — grunhiu Gert, ficando de prontidão, com a lança estendida. —
Primeira posição. Mostre o que você sabe.
Murtagh obedeceu. Enquanto Gert vociferava ordens, Murtagh o imitava.
Estocada, golpe, bloqueio, apara. Avanço, recuo. A cada movimento, ele sentia os
hematomas causados na briga com Boca de Lodo. Então Gert diminuiu a distância
entre eles e os dois trocaram alguns golpes, lança contra lança. Murtagh foi rápido o
suficiente para não passar muita vergonha, embora tenha sido acertado por Gert
uma vez na parte externa do joelho esquerdo.
Depois da luta, Gert grunhiu.
— Não foi tão ruim. Também não foi tão bom. — Ele estendeu a mão e Murtagh
entregou a lança de treino.
— Sou melhor com uma espada.
Gert ergueu as sobrancelhas cerradas.
— A-hã. — Ele devolveu as lanças ao suporte e pegou um par de espadas de
madeira para treino.
Os outros guardas começaram a torcer e gritar:
— Pega ele, Gert!
— Mostre para ele!
— Deixe ele bem marcado.
— Dê umas pancadas nele! Uma surra para ficar todo roxo!
Gert entregou uma arma de treino para Murtagh.
A espada de madeira era mais leve que Zar’roc, e mais curta também, e a
distribuição do peso não era exatamente igual à de uma espada de verdade, mas o
formato era familiar e, depois de erguê-la algumas vezes, Murtagh se sentiu
confiante de que poderia usá-la de maneira eficaz.
— Sem golpes na cabeça — alertou Gert, erguendo a espada de treino.
— Sem golpes na cabeça — concordou Murtagh.
Nenhum dos dois usava elmo. Ele girou a espada em um floreio rápido.
Gert não lhe deu nenhum aviso. O homem atacou com uma velocidade que não
correspondia ao seu tamanho, tirou a espada de treino de Murtagh do caminho e
estocou o fígado dele.
Se a estocada tivesse acertado, Murtagh sabia que teria caído no chão, incapaz de
se mexer. Mas o golpe não acertou. Ele aparou a estocada e aproveitou a abertura
resultante para cutucar Gert na axila direita.
O homem recuou um passo, com uma expressão de surpresa. Ele se recuperou
rapidamente, mas, antes que pudesse lançar um segundo ataque, Murtagh fintou em
direção ao seu quadril esquerdo.
Gert se moveu para bloquear, e Murtagh girou a espada de treino, mudando de
direção e batendo no braço do oponente, perto do cotovelo.
Os espectadores soltaram uma série de gritos.
Gert fez uma careta e balançou o braço, e Murtagh se permitiu um sorriso feroz.
O golpe não pareceu muito forte, mas ele sabia que doía bastante.
Então Gert também fintou e tentou um corte curto nas costelas de Murtagh,
embora fosse uma tentativa óbvia de atraí-lo para uma posição de desvantagem. O
homem era habilidoso, mas não chegava nem perto do nível a que o Cavaleiro
estava acostumado.
Murtagh deixou que o corte passasse sem bloquear ou desviar e, quando Gert
recuou, na tentativa de recuperar a posição, atingiu a parte chata da espada de treino
do guarda. Com força. Com muito mais força do que a maioria dos homens deveria
ser capaz de bater.
A arma de Gert voou longe e Murtagh ergueu a espada de madeira, mais rápido
do que o olho podia enxergar, de modo que a borda cega tocasse a lateral do
pescoço do adversário.
Os dois ficaram parados assim, Gert respirando com dificuldade, Murtagh com o
peito mal se movendo. Será que fui ousado demais? No entanto, ele também sentia
uma satisfação intensa por uma manobra bem executada, por um duelo bem travado
e vencido.
Ele baixou a espada de treino, e os guardas que assistiam começaram a gritar e
vibrar.
— Eu tive um bom professor — comentou Murtagh, que estendeu a espada com
o cabo virado para o outro homem.
Gert balançou a cabeça com uma expressão irônica.
— Teve mesmo, garoto. — Ele pegou a espada de treino e devolveu as duas
armas de madeira ao suporte, depois olhou para os espectadores e berrou: — O que
vocês estão fazendo, seus vagabundos imprestáveis? Quando vocês conseguirem
derrotar o velho Gert com a espada, aí sim podem perder o dia olhando para o que
não é da conta de vocês. Voltem ao serviço ou terão que trabalhar de noite até de
manhã.
Gert gesticulou para Murtagh.
— É melhor você me seguir. Talvez o capitão receba você, no fim das contas.
CAPÍTULO VIII
Máscaras
Uniformes
A noite caiu sobre Gil’ead, e as ruas se cobriram de sombras roxas. A luz quente de
velas começou a aparecer atrás das janelas fechadas, e lampiões e tochas
balançavam pelos caminhos conforme os viajantes tardios e os primeiros foliões
corriam para seus destinos.
Murtagh andou rápido entre os prédios de madeira, franzindo o nariz com nojo da
fumaça que havia se espalhado pela cidade junto com o frio do fim de tarde. Tinha
terminado suas obrigações do dia com a guarda, mas a companhia de Wren trancava
os portões ao pôr do sol, então ele tinha apenas alguns minutos de liberdade para
gastar.
Será que era um rosto conhecido que via no meio da aglomeração de homens e
mulheres parados na porta de uma casa comunal do outro lado da rua? Não... Não,
ele achava que não. Murtagh abaixou a cabeça e avançou às pressas, confiando que
o tabardo da guarda da cidade seria tudo o que alguém veria quando olhasse para
ele.
No extremo leste de Gil’ead, ele encontrou um choupo solitário na borda de um
campo de cevada. Depois de verificar que não havia mais ninguém nos arredores,
Murtagh se sentou, fechou os olhos e se concentrou no fio de pensamento que o
unia a Thorn.
À medida que a janela entre as duas mentes se escancarava, Murtagh conseguia
sentir na própria pele o alívio do dragão. Durante um tempo, eles apenas
desfrutaram do abraço compartilhado, e então Murtagh disse:
Você está seguro? Alguém te encontrou?
Apenas um coelho errante que ficou muito surpreso.
Posso imaginar. Você comeu o coelho?
Murtagh sentiu o desdém de Thorn.
Para quê? Encontro pedaços maiores de carne presos entre meus dentes. E você?
Como vai a missão?
Ele não fez nenhuma tentativa de esconder a irritação.
Eles me mantiveram ocupado o dia todo. Não tive mais do que cinco minutos
para mim.
Eles farejam algo errado com você?
Acho que não. É assim que operam. Vou tentar chegar à porta assim que todos
estiverem dormindo. Se tudo correr bem, consigo retirar Silna sem ser notado e
depois vou levá-la para Carabel, e podemos nos livrar desta cidade.
Thorn notou a desesperança de Murtagh imediatamente.
Por que você odeia tanto Gil’ead?
Como palavras eram insuficientes, Murtagh compartilhou as imagens e os
sentimentos que dominavam sua mente — os comentários de Esvar a respeito de
Eragon e Saphira; a própria reação conflituosa por estar tão perto do local da morte
do pai; a sensação de união que vivenciou ao treinar junto com os outros homens no
pátio; a aversão por quebrar outro juramento; e, em geral, o incômodo profundo e
crescente que sentia pela situação e seu papel nela.
É por isso que prefiro evitar sua espécie, disse Thorn. Eles são muito difíceis,
muito complicados. As coisas são mais simples quando nos atemos ao céu.
Quem dera pudéssemos.
Então também compartilhou os comentários dos homens a respeito de Nasuada e
sua necessidade de um herdeiro. E não fez nenhuma tentativa de esconder a mágoa
que surgiu com esse pensamento.
Thorn zumbiu na própria mente e, na de Murtagh, ele se viu sendo envolvido
pela cauda do dragão, como se para protegê-lo e confortá-lo.
Talvez você devesse procurá-la, se seus sentimentos sobre ela encontrar um
parceiro são tão fortes, disse Thorn.
Não é tão simples assim.
É tão simples quanto você quiser que seja.
Se eu fosse um dragão, talvez.
A resposta de Thorn tinha um leve tom de diversão: Você é o humano mais
parecido com um dragão que já conheci.
Vindo de Thorn, era um elogio e tanto, e Murtagh sabia disso. Só queria poder
cuspir fogo, como você.
É para isso que serve a magia. Então, mudando de assunto, Thorn falou: O que
você acha das intenções do capitão Wren?
Murtagh abriu os olhos e encarou as primeiras estrelas que apareciam no céu
laranja e rosa.
Não sei. Política? Ambição pessoal? Ele parece inteligente e dedicado aos
comandados, mas tenho um pressentimento…
As máscaras de madeira.
Sim. Quem tem máscaras assim tem interesse em segredos, em se esconder e em
magia. É uma combinação perigosa.
Uma imagem das máscaras passou pela mente de Murtagh — era Thorn
devolvendo a memória e chamando sua atenção para ela.
Qual máscara você escolheria?
Uma risada curta escapou de Murtagh.
Nenhuma. Eu já uso muitas.
Não comigo.
Não, não com você.
Então Thorn desejou boa sorte, os dois se despediram e, com um sentimento
estranho no coração, Murtagh voltou para o quartel.
Andando de mansinho...
E m algum lugar da cidade adormecida, uma coruja de cara preta piou duas vezes.
Murtagh se sentou no catre. No alojamento inteiro, os guardas permaneciam
imóveis e silenciosos, com a respiração lenta, uniforme, comedida. Um ou dois
roncavam, mas não alto o suficiente para acordar os demais.
Com muito cuidado, Murtagh abriu a mente e expandiu a consciência para tocar
os pensamentos dos outros homens. Eles estavam, como esperava, dormindo
profundamente, perdidos na confusão dos sonhos.
Manteve um contato delicado com essas mentes enquanto descia do catre e
colocava a mão na tampa do baú.
— Maela — sussurrou ele.
Silêncio.
Murtagh prendeu a respiração e levantou a tampa.
Ela abriu quase sem fazer barulho.
Aliviado e agindo com cuidado, ele retirou tudo: o saco de dormir, as botas, a
capa e a espada que havia recebido. Porém, deixou o escudo, que apenas o deixaria
mais lento e dificultaria andar de forma sorrateira. Além disso, ele já tinha um,
embora estivesse com Thorn. Também deixou o tabardo; poderia ajudá-lo a passar
despercebido, mas já não se sentia confortável em usar o uniforme da guarda.
Murtagh enrolou a capa em volta do cinturão da espada para que a fivela não fizesse
barulho, depois se levantou lentamente e andou de mansinho com os pés calçados
com meias em direção ao fundo do cômodo.
No último catre da fila — que estava vazio —, ele tropeçou.
Murtagh xingou em silêncio enquanto recuperava o equilíbrio, o rosto congelado
em um rosnado.
Do outro lado do alojamento, um dos guardas se mexeu, e Murtagh sentiu uma
pontada de consciência abafada na mente do homem.
Permaneceu encurvado, meio agachado, com medo de se mover.
Depois de vários minutos, quando o homem parecia estar novamente em um sono
profundo, Murtagh endireitou o corpo muito lentamente e continuou até o arco
escuro como breu nos fundos do alojamento.
Ele colocou a mão na parede de pedra fria e desceu tateando vários degraus. Em
seguida, se sentou e calçou as botas, amarrou bem, desembrulhou a espada,
prendeu-a na cintura e atou o fecho da capa no pescoço. A capa era uma aposta;
poderia facilmente ficar presa entre as pernas em um momento inoportuno, mas
também serviria para silenciar seus movimentos. Por fim, pendurou o saco de
dormir nos ombros. Ele não estava pensando em voltar para o quartel — não para
dormir, pelo menos —, e havia uma chance de que tivesse que sair às pressas, e não
queria perder mais nenhum pertence. Quando a pessoa tinha apenas uns poucos
pertences, eles se tornavam ainda mais preciosos.
Ele se levantou e voltou a descer a escada, tateando. Queria conjurar uma luz
mágica, mas achou que seria muito arriscado e, além disso...
... um brilho alaranjado opaco apareceu diante dele, dourando a superfície da
parede de pedra de modo que cada buraco, cavidade e imperfeição lascada se
destacasse.
No final da escada havia outro arco, este bastante fácil de enxergar na luz
bruxuleante.
Murtagh encostou o corpo na curva externa da escada enquanto descia até o arco
e enfiou a cabeça pelo arcabouço de pedra revestida de argamassa.
Um túnel comprido e escuro se estendia para a esquerda e para a direita. Apesar
do que Esvar havia dito, aquilo não parecia ser trabalho élfico aos olhos de
Murtagh, mas sim artesanato humano comum. A passagem à direita se estendia por
baixo da fortaleza, enquanto aquela à esquerda se estendia em direção à cidade.
Túneis demais, pensou ele. Teria sido útil saber a respeito deles quando estava
tentando resgatar Eragon da fortaleza. Ele não fazia ideia de que a cidade estava
assentada em passagens subterrâneas que lembravam tocas de coelho.
Era o lado esquerdo do túnel que mais o interessava. Havia nas paredes várias
portas de madeira, reforçadas com tiras de ferro forjado, e arandelas com velas altas
presas entre as portas. Duas arandelas estavam acesas e projetavam um campo de
sombras dançantes sobre as pedras.
Um guarda estava ao lado da porta do meio, apoiado no pique, com a cabeça
caída para a frente e os olhos semicerrados.
Murtagh parou um momento para pensar. Pelo que o capitão Wren havia dito, ele
sabia que os guardas tinham proteções mágicas. E sabia que algumas delas eram
destinadas contra ataques mágicos. Mas o que exatamente constituía um ataque
estava aberto a interpretações.
Ele não queria machucar o homem. O guarda estava cumprindo seu dever sem
maldade óbvia. Mas tinha que passar por ali.
Murtagh franziu a testa. Se lançasse um feitiço no guarda e a magia acionasse
qualquer uma das proteções, o homem saberia. A perda de energia o alertaria, no
mínimo. O que deixava apenas duas opções para Murtagh: poderia subjugar
fisicamente o homem, ou usar o Nome dos Nomes para retirar as defesas do guarda
e a seguir incapacitá-lo com magia.
Ele apertou a mão no punho da espada. O Nome dos Nomes era a escolha óbvia,
mas Murtagh detestava usá-lo. A Palavra era um segredo poderoso — um dos
segredos mais poderosos —, e toda vez que a pronunciava, ele se arriscava a
ensiná-la a algum ouvinte desconhecido, mesmo juntando um feitiço à Palavra a fim
de escondê-la, como havia feito no Festim Abundante. Não importava a qualidade
da construção de uma magia; sempre havia uma chance de não ter o efeito
pretendido.
Já era bastante ruim que ele, Eragon e Arya conhecessem a Palavra. Três era
demais para manter um segredo, e cada pessoa a mais era uma chance para alguém
causar danos incalculáveis.
Se Murtagh soubesse mais a respeito da língua antiga e seus usos — se tivesse
sido devidamente treinado como Cavaleiro e mágico, como Eragon —, teria se
sentido mais confiante para ignorar as proteções mágicas do guarda sem o Nome
dos Nomes. Mas isso não tinha acontecido, e ele estava consciente da inadequação
da educação que recebeu e se ressentia disso.
Os argumentos a favor e contra o uso da Palavra passaram por sua cabeça, mas
ele sabia que já havia tomado a decisão. Tinha que evitar fazer barulho e, como não
mataria o guarda...
Mantendo a voz o mais baixa possível, pronunciou o Nome dos Nomes.
— Slytha — disse em seguida. Durma.
Ao mesmo tempo em que falava, ele disparou para dentro do túnel e correu em
direção ao guarda.
O homem se contorceu e caiu para a frente, com braços e pernas moles, o pique
escorregando dos dedos frouxos.
Murtagh pegou o guarda antes que ele batesse a cabeça no chão, mas o pique caiu
fazendo barulho nas pedras e o elmo ricocheteou, enviando ecos de um lado a outro
pelo túnel.
— Ah! — disse Murtagh.
Ele pousou o homem no chão e depois fugiu pelo túnel, fora do alcance da luz
das velas e para as sombras. Lá ele esperou, ofegante, apurando os ouvidos para
escutar se alguém no alojamento vinha investigar.
Longos momentos se passaram. Uma lufada de vento fez cócegas na nuca de
Murtagh, que observou uma grande aranha marrom rastejar ao longo do canto da
parede, com um saco de ovos brancos preso às costas, numa teia. Seu lábio se
contraiu.
Ele afrouxou o aperto no punho da espada. Eles ainda estão dormindo. Mas isso
não o fez se sentir seguro. Bastaria um dos guardas acordar para usar a latrina e sua
ausência poderia ser notada.
Andando silenciosamente, Murtagh voltou até o guarda que havia colocado para
dormir e colocou um dedo no pescoço com a barba por fazer do homem. O pulso
estava forte e constante, e o peito continuava a se mover.
Convencido de que o guarda dormia profundamente, Murtagh passou por cima
do pique no chão e foi até a porta do meio. Era ela que o homem estivera vigiando,
então ele imaginou que era a que queria.
Ele puxou a argola de ferro presa à madeira. A porta não se moveu. Claro. Em
vez disso, ele empurrou. A porta continuou imóvel.
Murtagh estreitou os olhos enquanto procurava nas tábuas de madeira um buraco
de fechadura. Na penumbra, levou alguns segundos para encontrar: um buraquinho
redondo em um canto da placa de ferro que sustentava a argola.
Ele ergueu um dedo e tocou o buraco da fechadura, preparado para usar magia,
mas um pensamento o deteve.
Murtagh se ajoelhou ao lado do guarda adormecido e procurou no cinto de couro.
O homem cheirava a fumaça, carneiro, erva de cardo e muitas horas treinando ao
sol. Murtagh torceu o nariz. Ele não entendia por que as pessoas não tomavam
banho regularmente. Água fria não era desculpa para andar por aí fedendo como um
curtume.
Metal tilintou quando os dedos de Murtagh encontraram algo duro pendurado no
cinto do guarda. Olhou e viu uma chave.
Encaixou-a na fechadura e girou até ouvir um som desagradavelmente alto. Com
um último olhar para os dois lados do túnel, ele abriu a porta.
CAPÍTULO XI
A porta de pedra
Outra luz surgiu de um pedaço de quartzo colocado no teto da terceira sala. À luz
calma e inabalável, Murtagh viu um jardim subterrâneo. Havia canteiros elevados
de terra, com bordas de tijolos, à direita e à esquerda de um caminho estreito, e
nesses canteiros cresciam árvores, flores, trepadeiras, arbustos e todo tipo de
pequenas ervas lenhosas. O ar era quente, aromatizado por um perfume inebriante, e
também úmido, como se uma nuvem de névoa tivesse se espalhado pelo chão. O
zumbido agradável de abelhas soava entre as folhas.
Murtagh reconheceu algumas das plantas: umas eram curativas, outras
venenosas, e havia também aquelas que induziam visões ou causavam sono. Mas
muitas ele desconhecia. Havia um lírio cuja folha e caule pareciam feitos de ouro e
cujas pétalas eram de um metal esbranquiçado. Uma árvore chorona com bagas que
brilhavam como berilos. Cogumelos que tinham chapéus roxos e lamelas em tom
intenso de azul.
Murtagh viu também uma planta diferente de qualquer outra que já havia
encontrado. Tinha uma única haste e, no topo, um cálice carnudo em forma de saco
com talvez dois palmos de altura. E desse cálice saíam pequenos tentáculos
alaranjados, que ondulavam suavemente no ar.
Enquanto ele observava, um sapo passou pulando pela planta. Dois dos
tentáculos se estenderam, rápidos como cobras, agarraram o sapo, puxaram para a
boca do cálice e o prenderam lá. A rã soltou o menor e mais triste coaxar que
Murtagh já tinha ouvido na vida. Depois, não emitiu mais som.
O rosto de Murtagh se contraiu, e ele agarrou o punho da espada, quase decidido
a cortar a planta com tentáculos em duas. Então pensou melhor, mas manteve a mão
na espada enquanto prosseguia. Que bruxaria é essa?
Murtagh estava tão concentrado nas curiosidades ao redor que se esqueceu de
olhar por onde andava e topou com o tornozelo no canto de um tijolo que se
projetava. Cambaleou um passo à frente. Ao se recuperar, viu um estojo de cristal
entre dois arbustos, quase escondido pelos galhos frondosos. E no interior do estojo
havia um objeto oval preto-azulado com quinze centímetros de largura e quinze de
altura. Um ovo. Um ovo de aparência maligna.
Ele o encarou, inquieto. Que tipo de criatura nasce de uma coisa dessas? Não
um dragão, isso parecia garantido, nem qualquer outro ser que ele conhecesse. Pela
primeira vez em suas viagens, Murtagh desejou que Eragon ou Arya estivessem ali
com ele. Qualquer que fosse o propósito das câmaras embaixo de Gil’ead, elas
haviam sido construídas e mobiliadas com planos sérios, e ele tinha uma sensação
arrepiante de que a pessoa que usava aqueles aposentos era perigosa.
O olhar de Murtagh se voltou para a porta nos fundos do jardim; a última porta
que precisava ser aberta, ou assim ele esperava.
Com passos silenciosos, andou até ela.
A porta não era feita de madeira nem de osso, mas de granito cinza, tão dura e
inflexível quanto um juramento de vingança. A superfície tinha uma aparência seca
e texturizada, e era toda coberta por veios de cobre oxidado. Havia um puxador,
também feito de granito, instalado no lado esquerdo.
Murtagh parou diante da porta, cauteloso. Ele sondou com a mente e sentiu...
nada. Nenhuma gema, nenhuma energia armazenada, nenhuma consciência oculta
observando, apenas pedra fria e morta, carregada com o peso das eras.
Ele projetou os pensamentos para além da porta, para a câmara do outro lado.
Mesmo lá, não encontrou nada além de um vazio absoluto.
Preocupação e raiva tomaram conta dele. Será que Carabel contara a verdade a
respeito de Silna? De repente, ele teve dúvidas. E se tudo isso foi um estratagema
para me enganar e me fazer vir para cá? Mas por qual motivo? Coletar
informações para Carabel? Confrontar o conjurador usando as câmaras? Será que
Carabel estava trabalhando sob ordens de Relgin?
Mas Murtagh não estava disposto a desistir da ideia de Silna. Ele precisava
descobrir se ela estava ou não presa embaixo do quartel.
Ele agarrou o puxador.
O jardim permaneceu como antes, com as abelhas zumbindo ao fundo.
Ele puxou.
A porta se abriu em perfeito silêncio.
O cômodo depois do jardim era uma cela de pedra nua. As paredes eram de pedra
bruta — também granito — sem janelas, com um único suporte de ferro preso à
parede ao lado da porta. Sobre ele havia um toco de vela.
Um pequeno cobertor azul-celeste estava amarrotado no chão, e isso era tudo.
A visão provocou angústia em Murtagh. Por um momento, foi como se ele — e
Thorn — estivesse de volta a Urû’baen, nas masmorras sob a cidadela, ouvindo os
gritos de outros prisioneiros enquanto o peso avassalador da mente do rei exercia
toda a sua força sobre ele. As paredes pareceram se fechar em torno de Murtagh,
que teve a sensação repentina de estar nas profundezas do subsolo, sozinho e
isolado, preso na escuridão abafada.
Ele pegou o cobertor. Era pouco maior que um lenço e cheirava a… cheirava a
medo. Silna, ou alguma outra criança, fora mantida em cativeiro ali. Isso parecia
certo.
Lágrimas brotaram nos olhos dele, mas não caíram.
Ele piscou e examinou melhor a parede do fundo. Havia algo no... Sim. Uma
linha tênue de giz branco. Murtagh acompanhou a linha com os olhos e descobriu
que ela desenhava um arco do chão à altura da cabeça.
Um arco ou uma porta. A ideia de uma porta. Um anseio por liberdade.
Ele tocou a parede do fundo. Era dura, sem sinal de movimento, e, quando bateu
na pedra, pareceu sólida.
A respiração ficou presa na garganta e uma sensação opressiva de tristeza
desabou sobre Murtagh. Então uma raiva terrível começou a superar a dor, as mãos
se fecharam em punhos, e ele cerrou os dentes e a mandíbula.
Eles pagariam. Todos eles pagariam pelo que haviam feito com a filhote de povo-
gato, e Murtagh os ensinaria a temê-lo como temeram seu pai.
— Malditos sejam — murmurou, e então se virou para sair.
Um borrão de pelo malhado saltou na direção dele vindo de um canto nos fundos
da cela. O peso atingiu Murtagh no pescoço e nos ombros, e sibilos e uivos ecoaram
no ouvido quando um frenesi de garras brancas rasgou sua garganta.
CAPÍTULO XII
Finalmente!
Um leve brilho prateado iluminou o túnel à frente deles, e Murtagh ouviu o
borbulhar constante de água corrente.
— Fique perto — sussurrou para Silna.
Ele apagou a luz mágica, recolheu a capa em volta da cintura para não emaranhar
nas pernas e foi de mansinho à frente.
A passagem se estreitou até ele ficar meio curvado, e a luz aumentou até... ele ver
o fim do túnel. Uma extremidade coberta por uma grade de ferro, que dava para um
pequeno riacho com margens baixas e lamacentas. Acima da grade e do riacho
havia uma ponte de madeira. Numerosos passos ecoavam na ponte.
Aliviado, Murtagh se apoiou na parede curva de pedra. Pelas estrelas no céu e
pelo luar na água, Murtagh sabia que ele e Silna haviam passado a maior parte da
noite nos túneis. Parecia ter sido muito mais tempo.
Ainda estavam em Gil’ead: prédios eram visíveis de ambos os lados da ponte, e
homens da guarda marchavam pelas margens do riacho, gritando instruções uns
para os outros. Parecia que todos os soldados da cidade haviam sido despertados, o
que era de esperar.
Silna chegou de mansinho ao lado dele. As orelhas estavam erguidas e giravam
para acompanhar os passos indo e vindo.
— Espere — sussurrou Murtagh.
Ela sacudiu uma orelha e, depois de um momento, deitou-se e enrolou o rabo em
volta de si. Foi o mais próximo que Silna chegou dele desde que Murtagh a botara
no chão, e ele sentiu o cheiro almiscarado do pelo molhado, e os pelos ao longo da
cauda faziam cócegas nas costas da mão esquerda dele.
Convencido de que a menina-gato não iria fugir, Murtagh arriscou enviar um
pensamento exploratório para onde acreditava que Thorn estava escondido.
Encontrou a mente do dragão quase imediatamente, e muito mais perto do que
esperava: a mais ou menos um quilômetro fora dos muros da cidade, em meio a um
canteiro de rosas silvestres.
Uma onda turbulenta de alegria, alívio e raiva veio de Thorn.
Aí está você!, rosnou o dragão.
Aqui estou eu.
Achei que teria que destruir Gil’ead pedra por pedra para encontrar você.
A situação quase chegou a esse ponto, disse Murtagh.
Como foi? Você resgatou a…
Sim. Mas não é seguro falar dessa forma. E você? Está em perigo?
Há soldados vasculhando os campos, mas nenhum deles me avistou ou farejou.
Apesar das palavras do dragão, Murtagh sentiu Thorn se aninhar mais fundo nas
roseiras e a dor quando os espinhos rasgaram as asas delicadas.
Tudo bem. Fique onde está e irei até você assim que puder.
Um zumbido grave veio da mente de Thorn.
Tome cuidado.
Sempre.
Eles separaram os pensamentos, e Murtagh enrolou a capa em volta dos braços e
se acomodou em uma posição mais confortável. De alguma forma, ele tinha que
levar Silna para Carabel. Havia gente demais na ponte e nas ruas para arriscar sair,
mas, se esperassem demais, o sol ia nascer e Murtagh perderia sua chance, e ele
realmente não queria esperar mais uma noite. Em algum momento, alguém da
guarda poderia pensar em verificar a grade onde eles estavam escondidos.
Ele olhou para Silna. A gatinha piscou e devolveu o olhar.
— Por que eles queriam você? — perguntou ele. — O que fizeram com você?
O pelo da menina-gato se eriçou, e ela desviou o olhar.
Murtagh não sabia por que tinha esperado outra coisa.
Ele fechou os olhos por um segundo e depois pensou melhor. Não dormiria até
que Silna estivesse em segurança com a própria espécie e ele estivesse bem longe
de Gil’ead. Além disso, não achava que conseguiria relaxar o suficiente para
dormir.
Ele ficava relembrando Esvar perguntar por quê, por quê, por quê. Murtagh
apertou a palma da mão contra a têmpora, tentando expulsar a voz da cabeça. Não
conseguiu, e temia que não fosse conseguir por vários dias.
Para se distrair, puxou o compêndio do qual se apropriara. Que palavra elegante
para “roubar”. Então criou uma luz mágica vermelha minúscula acima das páginas
e começou a memorizar as palavras da língua antiga. Já havia encontrado dezenas
que poderiam ser úteis. Essa percepção o deixou ainda mais determinado. Só aquele
compêndio já valia as desventuras dos últimos dois dias. Com ele, poderia começar
a cobrir as lacunas de sua educação arcana, uma oportunidade que recebia de muito
bom grado.
Silna cheirou o canto do livro e contraiu o nariz.
A dor fraca, mas constante, voltou ao antebraço esquerdo de Murtagh enquanto
ele lia e, por causa disso, ele demorou a notar uma cócega na parte de trás do pulso
e da mão. Por fim, a coceira se tornou forte o suficiente para que Murtagh olhasse
para baixo.
Uma grande aranha negra havia subido nele. Murtagh se forçou a não reagir,
embora isso tenha exigido toda sua força de vontade. Se não conseguisse se
controlar, seria prisioneiro das circunstâncias, e ele se recusava a aceitar tal
desamparo.
No entanto, veio uma ânsia de vômito, e a repulsa o fez querer jogar a aranha
longe.
Com passos minúsculos, a aranha cruzou pela mão dele e passou para as páginas
do livro. As patas em forma de gancho fizeram um leve som arranhado no papel.
Ele virou o livro na parede e deixou a aranha correr para a pedra. Ela parou a
alguns centímetros de distância. Era um punho de pernas amontoadas. Silna olhou
para a aranha, aparentemente sem interesse.
Por um instante, Murtagh sentiu novamente o peso de dezenas de aranhas gordas
rastejando por sua pele. Suas picadas ardiam como fogo e, se não fossem cuidadas,
infeccionavam e se tornavam feridas esverdeadas que levavam semanas para se
curar. As criaturas o atormentaram todas as noites naquele subterrâneo gelado,
tornando impossível dormir, e tudo que ele podia fazer era se sacudir em uma
tentativa inútil de afastá-las...
Murtagh estendeu a mão, colocou o polegar sobre a aranha e pressionou. Linfa
amarela brotou do abdômen do bicho quando este se partiu como uma uva madura.
As orelhas da menina-gato viraram para trás. Ela esticou o pescoço e farejou a
aranha morta.
Murtagh voltou a ler.
Ele ficou escutando a multidão enquanto examinava as colunas de runas. Quando
as ruas se acalmaram por um tempo, e ele não ouvia nenhum som além do
borbulhar da água e das asas dos bacuraus perseguindo as refeições matinais,
apagou a luz mágica e guardou o livro.
— Fique de prontidão — sussurrou ele para Silna e avançou.
As barras de metal da grade não eram diferentes das que Murtagh havia
encontrado antes.
— Kverst — disse ele em voz baixa, e passou um dedo pelo metal frio e
esburacado.
As barras se separaram com sons metálicos tilintantes, e ele tirou a grade do lugar
e a colocou de lado. Murtagh voltou a observar em busca de espectadores e
transeuntes — não ousou usar a mente para sondar a área —, saiu do túnel e desceu
poucos metros na margem lamacenta abaixo. Ele se virou e estendeu a mão para
Silna.
A gata encarou Murtagh sem expressão.
— Vamos — sussurrou ele e mexeu os dedos.
Por fim, a menina-gato andou até a borda do túnel e se permitiu ser pega por ele e
depositada no chão.
— Pior que um dragão — murmurou ele, colocando a grade de volta na posição.
— Thrysta.
Murtagh usou o feitiço para forçar o metal a voltar ao lugar. Seria preciso um
martelo e um cinzel para arrancar a grade novamente.
Ele enrolou a capa vermelha da guarda em torno de um braço enquanto conduzia
Silna para fora da ponte. Olhou de um lado a outro nas margens do riacho e, sem
notar sinais de perigo, subiu para a rua.
Murtagh se virou para ter certeza de que Silna o seguia.
No instante que a menina-gato passou pelo topo da margem, ela disparou entre os
prédios, correndo mais rápido do que qualquer humano, com o rabo rígido traçando
círculos atrás dela.
Ele praguejou e tentou alcançá-la, mas Silna já havia desaparecido na cidade, e
Murtagh viu as pessoas olhando fixamente para ele do outro lado da rua. Arriscou
abrir sua mente, mas... era como se a menina-gato tivesse deixado de existir. Tudo o
que ele conseguiu sentir foram humanos, cachorros e os pensamentos satisfeitos de
um gato de orelhas crenadas sentado em cima de uma cerca de madeira.
Murtagh praguejou duas vezes.
Não tinha jeito. Silna sumira, e ele não tinha certeza de que poderia reencontrá-
la, mesmo que procurasse por dias. Tudo o que podia fazer era torcer para que os
guardas não a encontrassem e que ela fosse capaz de voltar para a própria espécie.
Ele praguejou pela terceira vez. Resgatara Silna. Mas será que Carabel ainda lhe
daria as respostas que procurava se não pudesse entregar a filhote nas mãos dela?
Ponderou a questão por um tempo, o que deixou um gosto amargo em sua boca.
Caso a mulher-gato se recusasse... Ele insistiria. Isso era certo. Depois de tudo
que fizera por Carabel, ela lhe devia respostas. E se, ao insistir, ele e Thorn
acabassem se tornando inimigos do povo-gato... Bom, era o preço a ser pago.
Só havia uma maneira de descobrir.
Murtagh puxou o capuz sobre a cabeça e correu para o interior de Gil’ead.
CAPÍTULO XIII
A inda era madrugada e tudo estava cinzento e silencioso, exceto pelo tropel
ocasional dos soldados e o grito de um guarda.
Como uma aproximação direta da fortaleza teria sido suicida, Murtagh contornou
o centro da cidade e se manteve em becos e ruas secundárias sempre que possível.
As poucas pessoas que encontrou o olharam com suspeita, mas não mais do que a
situação justificava. Gil’ead inteira estava tensa, alerta, como se a violência pudesse
irromper a qualquer momento. As persianas das casas se fechavam aparentemente
por conta própria quando ele erguia o olhar, e Murtagh viu integrantes da guarda
postados ao longo das principais vias.
Não pôde deixar de se preocupar com Silna enquanto avançava pela cidade.
Mesmo que a menina-gato tivesse sido difícil e retraída, torcia para que estivesse
segura e que os guardas não a pegassem. Silna era tão pequena e jovem… Eu
deveria ter tomado mais conta dela.
Ao se aproximar da fortaleza, diminuiu a velocidade para um passo controlado,
sem querer se precipitar em uma situação perigosa.
Sem muita dificuldade, encontrou a casa a que tinha sido levado por Bertolf, o
criado de Carabel. Imaginou se Carabel era a proprietária do edifício elegante ou se
tinha um acordo com o dono. Parecia arriscado entrar e sair de um túnel secreto em
uma propriedade onde não se sabia quem poderia estar observando.
Com passos rápidos, ele desceu os degraus de pedra até o poço situado a mais ou
menos três metros abaixo da superfície. Lá, tocou a mesma flor esculpida que
Bertolf havia apertado, e a porta oculta se abriu.
Murtagh não estava ansioso para entrar novamente em um túnel, mas pelo menos
conhecia aquele ali, e era muito, muito mais curto do que o labirinto pelo qual ele e
Silna passaram a maior parte da noite vagando. O pensamento o lembrou do sono
perdido, e ele conteve um forte bocejo. Duas noites ruins seguidas cobravam seu
preço.
Ele se abaixou sob o lintel e entrou. A porta se fechou com um baque mortal por
trás de Murtagh, que foi engolido pela escuridão.
Em algum lugar à frente, soaram os passos leves de um camundongo.
— Ótimo — disse ele, começando a avançar com uma mão na parede para se
equilibrar. — Simplesmente ótimo.
Um estalo fraco veio das brasas na lareira, e Silna sacudiu as orelhas, aborrecida.
Do lado de fora, no pátio da fortaleza, soavam vozes altas. Murtagh manteve o olhar
fixo em Carabel.
— Comece com a bruxa Bachel — disse ele.
A mulher-gato sibilou.
— Sim. Ela. Muito bem. Já faz alguns anos que ouvimos rumores, não mais do
que sussurros, de pessoas estranhas se deslocando pela terra. Elas se
autodenominam Sonhadores, e os poucos que foram interrogados afirmam servir a
essa Bachel. Quem ela é e o que deseja permanecem... incertezas, mas sabe-se que
ela é capaz de estranhas magias. — A mulher-gato indicou o amuleto. — Buscamos
esse segredo, humano, do nosso próprio jeito cuidadoso. Somos curiosos por
natureza e perguntas sem respostas nos atraem como mariposas são atraídas pela
chama. Cinco de nossa espécie se aventuraram na natureza selvagem em busca de
Bachel e nenhum voltou.
Murtagh ouviu com incômodo crescente.
— Para onde eles foram?
— Aqui e ali — disse Carabel com um sorriso desagradável. — Mas eu
suspeito... Bem, você vai ouvir. Saiba que os Sonhadores se tornaram mais comuns.
Quando capturados e interrogados, eles se matam sem hesitar, mas uma coisa
parece certa: a influência deles se espalha por toda a Alagaësia como raízes
rastejando pelo solo. A espécie foi vista lidando com todas as raças, incluindo elfos
e Urgals, e farejamos a intromissão dos Sonhadores em muitos negócios escusos.
Mas, novamente, não sabemos nada de seus objetivos ou causas. Apenas que as
pegadas aparecem com cada vez mais frequência e raramente sem sangue ou morte.
Outro estalo soou na lareira.
— O amuleto que você encontrou em Arven prova isso — continuou a mulher-
gato. — Quanto a onde Bachel possa estar... De poucas em poucas semanas, navios
partem de Ceunon e navegam para o norte na Baía do Fundor. Mesmo no inverno,
quando o gelo cobre a baía e as ondas crescem e ficam perigosas, é possível
encontrar navios fazendo essa jornada. Eles nunca se ausentam por muito tempo.
Algumas semanas, no máximo, e aí retornam com a tripulação de cara e boca
fechadas. Os passageiros desses navios variam. Geralmente eles escondem os rostos
e as mentes, mas vimos muitos mercadores notáveis e muitos descendentes de
famílias nobres se aventurarem na baía e, quando retornam a Ceunon, muitas vezes
estão associados aos Sonhadores ou então agem de maneiras que parecem ajudá-los.
Carabel empurrou o amuleto para mais longe e lambeu o dedo como se fosse
limpá-lo.
— No ano passado, conversamos com um dos marinheiros que fizeram a viagem.
— E então? — perguntou Murtagh com uma voz que soou surpreendentemente
alta na sala.
A mulher-gato ergueu o queixo.
— Ele nos contou a respeito de um vilarejo na Espinha. Uma vila onde o chão
cheira a ovo podre e a fumaça sobe de respiradouros enegrecidos. Ele nos contou
essas coisas... e aí morreu. Se já tomou a decisão de encontrar a bruxa Bachel,
procure-a lá, ó Murtagh, filho de Morzan.
Ovos podres. Enxofre. Exatamente as coisas sobre as quais Umaroth o alertara. A
confirmação, por um lado, o deixou contente, mas também bastante inquieto.
Porém, pedira respostas, e aquilo era um começo.
— Então a pedra que Sarros me trouxe vem do mesmo lugar que Bachel?
Carabel deu de ombros.
— Parece provável, mas não posso afirmar com certeza.
— E o que você acha que esses Sonhadores querem com os filhotes do povo-
gato?
Os olhos de Carabel cintilaram e ela mostrou as presas, sibilando.
— Sss. Não sei. Talvez nada. Talvez isso tenha sido apenas obra da Du Vrangr
Gata. Talvez alguma vilania particular de Arven. Ou do capitão Wren. Não sei, mas
prometo a você, Cavaleiro: não vou descansar até descobrir a verdade e resgatar
todas as nossas crianças.
— Ótimo — respondeu Murtagh em tom objetivo.
E falava a verdade. O responsável por aquilo merecia a pior punição possível. Se
tivesse sido obra apenas de Arven, então a justiça já fora feita, mas ele duvidava
disso.
Quanto mais pensava a respeito da situação, pior ele se sentia. Se os Sonhadores
haviam se infiltrado na Du Vrangr Gata — ou recrutado simpatizantes para lá —
sem levantar suspeitas, isso já seria bastante preocupante. Mas se o que a gata disse
era verdade, eles estavam operando em uma escala mais ampla e com um objetivo
maior em mente, e já haviam acumulado uma quantidade inquietante de influência.
A compreensão provocou um arrepio. Como os Sonhadores poderiam ter passado
despercebidos por tanto tempo? Que poder detinham sobre aqueles que se
alistavam?
Os Sonhadores têm que ser detidos, pensou ele.
— Você informou Nasuada a respeito disso?
— Ainda não.
— Eragon ou Arya?
Ela balançou a cabeça.
— Por que não?
Carabel lançou um olhar fulminante para Murtagh.
— Sussurros e suspeitas não são suficientes para reunir uma força, instigar uma
rainha ou chamar de volta o líder dos Cavaleiros. Devemos ter uma compreensão
clara da ameaça primeiro.
— Você quer dizer que alguém precisa ir à aldeia.
— Ir. E voltar.
— Talvez, mas eu diria que isso — ele cutucou o amuleto — é prova suficiente
de que a preocupação é justificada. Isso e o sequestro de seus filhotes.
A expressão de Carabel azedou.
— Já disse que não sabemos se os Sonhadores são os responsáveis. Mesmo
assim... Talvez você tenha razão e esse objeto infeliz seja prova suficiente. Se fosse
você a levá-lo até Nasuada, junto com um relato do que descobrimos, certamente
seria.
Murtagh olhou para a lareira, incomodado.
— Você sabe que eu não posso.
— Não pode? Dizem que a rainha gosta especialmente de você e...
A raiva atraiu a atenção dele de volta para o rosto malicioso de Carabel.
— Dizem? Quem diz? É melhor você tomar cuidado com suas palavras, gata.
Carabel deu de ombros, aparentemente imune ao tom de voz dele.
— Aqueles com ouvidos para ouvir e olhos para ver.
— Bem, eles não sabem o que dizem, e eu gostaria que você não insultasse a
rainha ou a mim com tal calúnia.
Depois de um momento, Carabel inclinou o rosto anguloso.
— É claro, Cavaleiro. Muito bem, vou escrever pessoalmente uma mensagem
para Nasuada, mas confesso que não sei qual será sua resposta. Seria melhor que
você também escrevesse algumas palavras, para corroborar. Concorda?
— Está bem — grunhiu ele.
Enquanto a gata reunia os instrumentos, Murtagh se recostou na cadeira,
ruminando. A insubordinação do capitão Wren, a possível corrupção da Du Vrangr
Gata, as atividades dos Sonhadores e o maldito ovo de Ra’zac... todos eram
assuntos importantes. Reunidos, podiam representar uma ameaça à coroa de
Nasuada.
E se... Por um momento, ele considerou voar para Ilirea, mas tirou a ideia da
cabeça. Por mais tentador que fosse, fazer isso seria um erro para todos os
envolvidos, incluindo Nasuada. Seus súditos não ficariam contentes de ver a rainha
mantendo relações públicas com o Murtagh, o traidor.
Além disso, quem ela mandaria para investigar o vilarejo? Quem poderia enviar?
A Du Vrangr Gata não era confiável e, mesmo que fosse, nenhum dos conjuradores
da ordem era habilidoso ou forte o suficiente para lidar com o tipo de magia sem
palavras que ele havia encontrado. Poucos eram. Eragon conseguiria, mas estava
ocupado protegendo os Eldunarí e os ovos de dragão. Não os abandonaria. Arya e
os magos élficos mais experientes eram capazes, mas Murtagh sabia que Nasuada
relutaria em pedir ajuda a mágicos — muito menos a um Cavaleiro — que não eram
seus súditos nem humanos.
Sobrava ele. Ele e Thorn.
A conclusão não desagradou a Murtagh, ainda que o desconhecido fosse, como
sempre, inquietante. Ter uma causa clara e honrada a seguir era um tesouro raro. E
poderiam ter a chance de causar algum bem, não apenas de maneira geral, mas para
Nasuada, especificamente. A quem já fizera tanto mal.
Ele afastou todos esses pensamentos quando Carabel lhe passou uma folha de
pergaminho, tinta e uma pena de ganso recém-cortada. Murtagh hesitou, sem saber
como começar, pois sentiu um peso de expectativas, experiências passadas e
sentimentos não ditos. Ele se recompôs e se concentrou no que precisava ser dito.
Desejos teriam que esperar.
Por alguns minutos, o arranhão da pena foi o único som além da lareira. Ele
encerrou com:
A frase final era uma temeridade. Murtagh sabia disso. Mas não conseguiu
pensar em mais nada para escrever que fizesse Nasuada ter certeza de que era ele.
Murtagh pronunciara aquelas quatro últimas palavras para ela — somente para ela
—, na escuridão sombria do Salão da Profetisa. Foi o mais perto que chegou de
confessar seus sentimentos por ela, e mesmo que parecesse errado mencioná-los
agora, quando a situação havia mudado tanto, não via outra opção.
Ele se sentiu mais velho do que era enquanto passava o mata-borrão na carta e
enxugava a pena. Dobrou a folha e depois derreteu algumas gotas do lacre vermelho
de Carabel na dobra do pergaminho.
— Pronto — disse ele, sentindo-se determinado.
— Meus agradecimentos — disse Carabel. — Estou em dívida com você,
humano, assim como todo o povo-gato.
Murtagh inclinou a cabeça.
— Não precisa agradecer.
Um sorrisinho apareceu no rosto de Carabel.
— Talvez não, mas ainda é um gesto educado. O que planeja fazer?
Murtagh esfregou o cotovelo direito enquanto pensava. A articulação ainda doía
da surra que levara de Boca de Lodo.
— Eu sei que esta é outra pergunta, gata, mas talvez você atenda ao meu pedido e
responda.
A expressão de Carabel se tornou perversa.
— Talvez.
— Como você acha que devo proceder?
A gata se remexeu na almofada, e as orelhas com tufos se empertigaram. A ponta
do vestido deslizou, deixando o ombro dela descoberto.
— Sssah. Muito bem, mas darei um alerta, humano. Conselhos servem tanto ou
mais para quem dá quanto para quem recebe.
— Vou correr esse risco.
— Então digo o seguinte: é melhor abrir portas do que esperar que se abram. E é
melhor saber o que há do outro lado de uma porta antes que ela se abra.
Murtagh entendeu. Ele se levantou e deu a ela uma pequena reverência e um
sorriso ainda menor.
— Obrigado pelo conselho, mulher-gato Carabel.
Ela cheirou e examinou as unhas novamente.
— De nada, humano.
Lá fora, na muralha externa da fortaleza, soaram gritos: capitães convocando os
soldados. Aos ouvidos de Murtagh, parecia que toda a guarnição da cidade estava
sendo reunida no pátio.
Carabel notou isso também. Ela virou a cabeça, e a luz tênue da manhã que
entrava pela janela fez os tufos das orelhas brilharem.
— Acho melhor você ir embora, humano, antes que lorde Relgin tenha a ideia de
revistar a fortaleza. Às vezes, ele demonstra uma imaginação irritante.
— Então me despeço aqui e peço sua licença, C... — Murtagh ouviu um leve som
de movimento vindo de trás, similar ao de um pano caindo.
Ele se virou e viu Silna apoiada em dois pés ao lado da lareira, com um pequeno
cobertor de lã enrolado no corpo magro. Ela não era mais alta do que o atiçador e as
pinças ali perto. A pele era pálida como a neve, as veias azuladas sob a superfície, e
havia uma translucidez nela, como se fosse levemente intangível. As pálpebras
eram como conchas luzidias, os cabelos ainda eram malhados e estavam em mechas
desordenadas, e havia um ar de prontidão selvagem, como se ela tivesse saído de
uma clareira dentro da floresta mais profunda e escura.
Silna andou até Murtagh e parou diante dele, que encarou os enormes olhos
esmeralda, luminosos e inocentes, e não soube o que dizer.
Ele se ajoelhou diante de Silna, como teria se ajoelhado diante de uma rainha.
Com um braço nu, Silna o abraçou pelo pescoço. A pele dela era fria contra a
dele. Em uma voz baixa e suave, ela disse:
— Obrigada.
Ela deu um beijo na testa de Murtagh, e o toque dos lábios ardeu muito depois de
eles se afastarem.
Silna o deixou piscando para conter as lágrimas. Quando se controlou o
suficiente para erguer o olhar, Murtagh a viu deitada perto da lareira, novamente na
forma felina, de olhos fechados e rabo enrolado nas patas e no focinho.
Suas pernas estavam instáveis quando ele se levantou. Murtagh olhou para
Carabel e tentou falar, mas não conseguiu.
Pela primeira vez, a expressão de Carabel se suavizou e a voz soou rouca de
emoção.
— Eu fui sincera, Cavaleiro. Estou em dívida com você, assim como todo o
povo-gato. Você pode se considerar um amigo de nossa espécie e, se precisar de
ajuda, pode nos procurar.
Ele concordou com a cabeça e engoliu o nó na garganta.
— Fico feliz em ter podido ajudar. — Murtagh se empertigou e fez uma
reverência cortês. — Meus agradecimentos por suas respostas, Carabel. Que suas
garras permaneçam afiadas, ó mais estimável dos gatos.
Ela mostrou os dentes em um sorriso apreciativo.
— Cuidado onde pisa, Cavaleiro. Esta bruxa é como uma aranha à espreita no
centro de uma grande teia, e sua mordida é venenosa.
— Que bom que eu não tenho medo de aranhas.
Murtagh endireitou o corpo ao sair do túnel que passava por baixo da muralha da
fortaleza. Ele virou o pescoço e verificou a posição do sol: continuava baixo no céu.
Ainda deveria ser capaz de sair de Gil’ead antes que a maior parte da cidade
estivesse de pé.
Murtagh esfregou a testa. Parecia que havia sido marcado. A memória dos olhos
de Silna permaneceu na sua mente, e ele sentia como se ela tivesse enxergado seu
interior, cada defeito exposto diante do olhar inocente da menina-gato. Era uma
intimidade que só havia compartilhado com Thorn, e o deixara com uma estranha
sensação de vulnerabilidade. Ainda assim, ser visto pelo que era, e aceito... havia
maior bênção que essa?
Preocupado, Murtagh começou a se afastar da fortaleza. Estou a caminho,
pensou, enviando a mensagem para onde Thorn estava esperando. Uma tênue
sensação de compreensão foi a resposta.
Enquanto andava silenciosamente entre os prédios, repassava tudo que Carabel
havia dito. Bachel, Wren, os Ra’zac... O mundo estava bagunçado, e de maneiras
que ele não compreendia. Esse fato o deixava tenso, como se estivesse prestes a
receber um golpe.
Os olhos de Silna voltaram a preencher a cabeça de Murtagh, calmos e cheios de
promessas. E de novo ele sentiu seu beijo na testa.
Parou em uma calçada, toda a pele formigando. Com pensamentos acelerados,
ele tentou solucionar o quebra-cabeça diante de si, encontrar um caminho seguro
por um labirinto perigoso. Será que se enganara? Era preciso cuidar de Bachel, sim,
mas Nasuada corria perigo e sua carta não bastaria para protegê-la.
Ele abriu a bolsa de cinto e remexeu ali dentro até tocar o metal frio: as moedas
que recebera do Capitão Wren. Pegou uma delas e encarou o perfil entalhado de
Nasuada.
Por mais precisa que fosse a semelhança, ele não conseguia decifrar sua
expressão. Ela usava a própria máscara, a impassividade régia que a tradição — e a
necessidade — exigia. Murtagh não encontrou encorajamento naqueles traços
dourados, mas mesmo assim a familiaridade ajudou a acalmá-lo.
Tomou uma decisão. Iria a Ilirea. Apesar de tudo que pensara e dissera, ainda era
a coisa certa a fazer. Explicaria suas ações para Nasuada e enfrentaria qualquer
desafio vindo de seus súditos. Por mais difícil que fosse, ele teria a satisfação de
saber que Nasuada estava em segurança. Depois disso, ele e Thorn sairiam à caça
de Bachel.
A decisão lhe trouxe um senso de alívio. Tanto que Murtagh se questionou por
que levara tanto tempo para chegar àquela conclusão. Assentiu, guardou a moeda e
estufou o peito, sentindo-se pronto para encarar os desafios do futuro incerto.
Será que Thorn concordaria? Murtagh tinha certeza de que sim, quando
compartilhasse seus pensamentos com o dragão. A menos, claro...
Um corpo colidiu com ele, que empurrou a pessoa para longe, pronto para chutar,
socar e lutar.
— Murtagh! — exclamou uma voz baixa e urgente.
A consternação tomou conta dele ao ver o mesmo rosto desagradável e familiar
que vislumbrara perto da cidadela, menos de dois dias atrás: o pálido Lyreth em
seus trajes sem graça. E cercando os dois estavam os guardas de Lyreth: seis
homens corpulentos com pescoços de touro e um leve cheiro de carne podre. Ex-
soldados do Império, enfeitiçados para não sentir dor.
— Murtagh, é você — disse Lyreth com a voz pouco mais alta que um sussurro.
Murtagh cerrou os dentes. O sobressalto de Thorn era uma nota crescente de
ansiedade no fundo da mente. Ele pensou em sair correndo, mas havia outras
pessoas na rua, e ele viu um esquadrão de soldados a duas casas de distância,
marchando em direção a eles.
Lyreth se aproximou com os olhos se movendo rapidamente, o branco
aparecendo com uma combinação de medo e preocupação.
— Pensei ter visto você alguns dias atrás, mas não tinha certeza. O que está
fazendo aqui? Não sabe o que eles farão com você se o pegarem?
— Eu preciso ir — disse Murtagh, e começou a se afastar.
Lyreth o segurou pela manga com uma força surpreendente. O hálito cheirava a
lavanda e licor de pêssego, mas não o suficiente para esconder o cheiro forte de
suor nervoso debaixo dos braços.
— Você não pode ficar aqui fora. Os mágicos da Du Vrangr Gata estão por toda
parte e há elfos na cidade. Elfos! Venha, venha, rápido. Você estará seguro em
minha casa. Rápido!
Murtagh!, rosnou Thorn.
Eu sei!
Os guardas cercaram Murtagh, impedindo que se afastasse enquanto Lyreth o
puxava rua acima. Ele não teve escolha a não ser seguir os companheiros
inesperados e indesejados.
CAPÍTULO XIV
Duelo de inteligências
A caixa de confusão
Consequências
O sol estava bem acima deles quando Thorn se virou em um ângulo descendente e
sobrevoou até parar em uma pequena colina na borda das vastas planícies orientais.
Os dois aterrissaram com um solavanco, e Thorn abriu a pata. Murtagh caiu na
grama seca com força suficiente a ponto de perder o fôlego.
Ele afrouxou a pegada no saco de dormir e se pôs de pé devagar.
Thorn estava agachado, as asas curvadas — como se para evitar um golpe — e
olhos semicerrados, com o corpo inteiro sendo sacudido por pequenos tremores.
Murtagh abraçou a cabeça dele.
— Shh. Está tudo bem — disse, tanto em voz alta quanto mentalmente. —
Estamos a salvo. Fique calmo.
Murtagh repetiu as palavras até sentir que os tremores do dragão começaram a
diminuir.
Não está tudo bem. Thorn pestanejou e se encolheu mais. Nunca vai ficar tudo
bem.
— Os elfos devem ter apagado os incêndios. É bastante fácil com uma palavra ou
duas.
Thorn deitou a cabeça no chão e soltou um grande suspiro. As escamas pareciam
extraordinariamente frias para Murtagh; normalmente o dragão era mais quente do
que um humano. Quantos você acha que eu matei?
— Não sei. Talvez ninguém. — Mas ambos sabiam que isso era improvável.
Eu odeio essa fraqueza em mim. Eu não deveria ser assim. É inapropriado para
um dragão, ainda mais para o de um Cavaleiro. Eu desonro você e minha espécie.
— Não, não, não. — As palavras de Murtagh saíram rapidamente. — Não é
culpa sua. Nunca foi.
Thorn voltou os olhos tristes para ele.
Galbatorix está morto. Minhas ações são minhas. O que ele fez comigo...
— O que ele fez conosco.
Podemos não ser culpados por isso, mas agora a culpa é minha.
Uma vontade estranha de chorar tomou conta de Murtagh. Ele se lembrou de
Thorn como um filhote, puro e inocente, sem qualquer má ação, e, apesar de tudo o
que haviam feito, ainda enxergava aquele filhote.
— Você não está desamparado — disse Murtagh com uma convicção intensa. —
Vai conseguir superar esse medo. Nada neste mundo é mais poderoso do que um
dragão.
Thorn cheirou o chão diante de si.
Nada a não ser a mente do próprio dragão.
Para isso, Murtagh não tinha resposta, e a sua impotência se transformou em
frustração contida. Thorn notou.
Mas vou tentar, da maneira que puder.
— Eu sei que vai. Amanhã. Vamos encontrar algumas árvores e trabalharemos
nisso juntos.
Juntos.
Com a mão direita, Murtagh acariciou as escamas ao longo da mandíbula de
Thorn. Elas ainda estavam frias.
— Obrigado por me buscar. Eu não teria sobrevivido se você não tivesse ido.
Eu voei… muito rápido. Thorn estremeceu novamente, e as pálpebras caíram
ainda mais, embora as asas permanecessem curvadas.
— Você precisa comer — comentou Murtagh. — Fique aqui. Eu volto em breve.
Não, não vá...
Mas Murtagh já estava correndo colina abaixo.
Thorn ergueu a cabeça quando Murtagh subiu a colina e largou a corça no chão à
frente dele.
O dragão cheirou a carcaça. Obrigado.
— De nada. Coma.
Murtagh foi até os alforjes e pegou um odre. Ele bebeu e observou Thorn
agarrando o animal, rasgando e engolindo cada parte quase sem mastigar.
Visitar Nasuada em Ilirea agora estava fora de questão. Admitir era doloroso,
mas depois de arrasarem Gil’ead, não imaginava como Nasuada poderia recebê-los
em sua corte. A opinião pública a forçaria a tratá-los com dureza, e embora
Murtagh estivesse disposto a aceitar qualquer punição que ela considerasse correta,
não queria sujeitar Thorn a um possível confinamento. Ou coisa pior.
Não. Sua carta para Nasuada teria que bastar, e ele precisava acreditar que ela
teria os meios para navegar os perigos que a rodeavam. Reconfortou-se com o
conhecimento de que ela era mais sagaz e habilidosa que a maioria das pessoas.
Ainda assim, era difícil aceitar a mudança na situação deles. Por um momento
brilhante, tinha pensado que havia outro caminho à sua frente. Agora Murtagh
percebia que fora um sonho impossível. Ele e Thorn nunca seriam capazes de
limpar seus nomes e alcançar uma boa reputação entre o povo daquela terra. Aquela
chance estava encerrada.
Será que Nasuada pensaria que os dois tinham se voltado contra ela? Murtagh
odiou imaginar a decepção e a raiva da rainha. Os relatos públicos da fuga de
Gil’ead confirmariam os piores aspectos da reputação deles. Murtagh só podia
torcer para que a carta que havia confiado à mulher-gato ajudasse Nasuada a
entender que havia mais coisas em jogo do que parecia à primeira vista.
Murtagh tomou outro gole.
Perguntou-se se talvez não fosse melhor levar Thorn mais para o leste, para o
Monte Arngor, onde Eragon e Saphira haviam decidido estabelecer o novo lar dos
Cavaleiros de Dragão.Lá, ele poderia viver com outros de sua espécie, longe de
qualquer lugar onde pudesse causar mais danos. E poderia receber instruções de
elfos e dos Eldunarí, como era tradicional para os dragões da ordem — algo que
Galbatorix havia lhe negado.
Mas Murtagh não queria desistir. Era preciso lidar com Bachel. E também não
queria dar a Eragon a satisfação de vê-lo reconhecer sua autoridade. Acima de tudo,
não queria admitir ao mundo que ele ou Thorn precisavam de ajuda. A postura dele
era de puro orgulho teimoso, mas Murtagh não conseguia mostrar a fraqueza deles
para o mundo. A fraqueza era um perigo, permitia que outros machucassem e
explorassem uma pessoa. A fraqueza era o primeiro passo no caminho da morte.
Thorn percebeu o que ele estava pensando.
Irei aonde você quiser ir. Desde que estejamos juntos, estou contente.
Murtagh assentiu e tampou o odre.
— Isso é bom, porque não há chance de ficarmos pelo reino de Nasuada.
Sinto muito.
Murtagh evitou o olhar de Thorn e fez o possível para esconder seu incômodo.
— As coisas são como são. — Ele guardou o odre na bolsa. — Ainda assim,
somos párias agora, ainda mais do que antes. Exilados. Teremos que ficar na
natureza, manter distância dos espaços habitados.
Podemos voar juntos a partir de agora? Só nós? Chega de cidades formigueiros?
— Sim, podemos voar juntos. E chega de cidades.
Thorn engoliu a cabeça do cervo e lambeu os beiços. Depois de comer, ele
parecia mais calmo, mais alerta.
E você? Conte-me a respeito de Gil’ead. Como foram as coisas com Silna e
Carabel? E como acabou preso em uma caixa de confusão?
— Fui descuidado — confessou Murtagh.
Ele começou a tirar dos alforjes o que precisava para o próprio jantar. Teria que
caçar para si se quisesse comer alguma coisa no dia seguinte.
Enquanto trabalhava, compartilhou as memórias com Thorn, começando com a
forma como foi admitido na companhia do capitão Wren. Quando explicou sobre o
ovo de Ra’zac, Thorn bufou com força suficiente para chamuscar o chão com uma
labareda fina de cada narina.
Vermes! Eu esperava nunca mais vê-los.
— Eu sei — disse Murtagh, e soprou a chama recém-iniciada da fogueira que
estava armando. — Eragon fez um favor ao reino quando nos livrou deles.
Os sacerdotes de Helgrind vão tentar restaurar os Ra’zac à sua antiga glória.
Diante disso, Murtagh soltou uma risadinha.
— Não vejo como seriam capazes. Em breve haverá dragões por toda a
Alagaësia. Nenhum Lethrblaka conseguiria sobreviver aqui.
Os Lethrblaka eram a forma adulta dos Ra’zac: monstros voadores horríveis,
mais parecidos com morcegos do que com dragões.
Um Ra’zac é capaz de aprontar muito antes de se tornar adulto. Especialmente
se um mágico forçá-lo a servir seus desejos.
Por um momento, considerou retornar a Gil’ead apenas para destruir o ovo de
Ra’zac, mas depois se repreendeu pela estupidez da ideia. Além do perigo, o
capitão Wren ou Arven teriam retirado tudo de valor das câmaras embaixo do
quartel.
Ele deu um tapinha na bolsa presa no cinto. O compêndio ainda estava lá e,
quando tateou mais fundo, viu que o diamante amarelo também continuava
escondido no bolso da capa.
A fogueira ardeu mais, e ele continuou com as memórias. Não demorou muito
para que chegasse ao confronto com Arven, Esvar e os guardas. Thorn sentiu o
arrependimento de Murtagh pelo resultado do combate.
Grama seca e caules de cardos murchos estalaram sob as patas de Thorn quando
ele se aproximou e acariciou o ombro de Murtagh com o focinho.
Você fez o que tinha que fazer. Ninguém morreu. Atormentar-se não vai ajudar.
Nada na vida é fácil, disse Murtagh com os pensamentos, pois o som da própria
voz parecia insuportavelmente irritante.
Por que deveria ser? A vida é uma luta do começo ao fim.
Um sorriso triste surgiu no rosto de Murtagh, e ele deu um tapinha em Thorn.
E é melhor ganhar do que perder.
O fogo carmesim nos olhos de Thorn se intensificou. Eles se entendiam.
Murtagh prosseguiu repassando os fatos, e ao fim, disse:
— Quero encontrar essa bruxa, Bachel, ainda mais do que antes. E quero saber o
que são esses Sonhadores. — Ele cortou mais dois nabos com a pedra que estava
segurando e desejou ter conseguido encontrar uma adaga antes de deixar Gil’ead.
— Não sei o que estão planejando, só que é mais terrível do que eu temia.
Thorn sibilou, e a língua surgiu entre as mandíbulas escamosas.
E ainda acha melhor não avisar Eragon ou Arya?
Murtagh jogou os nabos despedaçados na panela pendurada sobre a fogueira. A
ideia de implorar pela ajuda de Eragon o fazia querer cuspir. Ainda mais porque
sabia que Eragon ajudaria. Essa era a pior parte.
— Se Nasuada quiser informá-los da situação, a prerrogativa é dela. Porém,
demoraria demais para que algum deles se juntasse a nós, e, de todo modo... Quero
que a gente lide com isso sozinho. Se pudermos. Maldição, nem sabemos o que está
acontecendo! Até descobrirmos, vamos manter o curso.
Thorn emanou uma sensação de concordância. Uma tosse baixa soou em seu
peito, e a língua pendeu entre as mandíbulas.
— O que foi? — perguntou Murtagh.
O dragão mostrou as duas fileiras de dentes.
Um pensamento me ocorreu. Carabel lhe fez um favor maior do que você
imagina.
— Como assim?
Ela te poupou de ter que tratar com Ilenna. Um grande benefício, esse.
Murtagh encarou o dragão por um segundo e então começou a rir.
— Você pode ter razão... — comentou, virando a cabeça com ironia.
Então voltou a ficar sério enquanto encarava as chamas tremulantes.
O que houve?
Murtagh deu de ombros, os olhos ainda no fogo.
— Gostaria de ter incluído Lyreth e sua laia na minha carta. Com certeza
Nasuada já desconfia que estão armando contra ela, mas é bom saber e se preparar.
Você não pode usar um feitiço para avisá-la?
Ele esfregou a terra com a bota, pensativo.
— Provavelmente não. Urû’b... Ilirea está longe demais para magia, magia fácil,
quero dizer, e Nasuada com certeza tem proteções mágicas que a defendem contra
intrusões do gênero. Eu poderia contratar um mensageiro, mas não confiaria a um
estranho essa informação.
Thorn voltou a tocar seu ombro e Murtagh forçou um sorrisinho. Coçou a
bochecha do dragão, que bufou.
Vamos para o norte, então?
Murtagh assentiu.
— De volta à Baía do Fundor. Vamos seguir a Espinha subindo a costa até
encontrarmos a aldeia de que Carabel falou.
E aí?
Murtagh despedaçou outro nabo com a pedra.
— E aí veremos que explicações Bachel tem para dar.
Apesar da exaustão extrema, Murtagh teve dificuldade para dormir naquela noite. A
mente continuava remoendo os acontecimentos dos últimos dias. Ele reviveu sem
parar a fuga de Gil’ead e questionou o que poderia ter feito para evitar um resultado
tão desastroso. Imagens de Esvar e do campo de soldados no fundo do lago
continuaram a atormentá-lo, e os rostos de Silna e dos dois irmãos da Âncora
Enferrujada surgiam diante dele. O meio da testa ardia, e ele pensou também em
Essie, na sala de pedra sob o quartel e no cheiro fétido de medo.
Quando finalmente caiu no sono, Murtagh sonhou com castelos vazios, portas
trancadas e passos o perseguindo por corredores sem fim. Ouviu a voz de seu pai
ecoar de cima com uma intenção terrível, seguida pela lembrança de um toque na
bochecha, suave e amoroso, e sua mãe dizendo “Lindo menino. Meu menino lindo”.
Então, visões de batalha encheram a sua mente adormecida: Glaedr e Oromis
voando acima de Gil’ead, espadas se chocando na Campina Ardente, soldados
morrendo sob seu comando, estandartes e flâmulas chicoteando ao vento, o cheiro
de sangue e fogo, água no nariz e na garganta sufocando Murtagh enquanto lutava
com Boca de Lodo.
Obrigada, sussurrou Silna, mas ele não sentiu alívio nem absolvição, e os
pesadelos o arrastaram cada vez mais para baixo, até as celas sob Urû’baen, onde
Galbatorix subjugou e destruiu o seu espírito. Durante todo o tempo, ele ouviu os
rosnados e gritos de Thorn, seu dragão, seu lindo dragão recém-nascido, sofrendo
na câmara perto dele.
Com a manhã veio a geada. Murtagh levou mais ou menos uma hora até se aquecer
o suficiente para enfrentar o dia. Estava dolorido e cansado, e as fibras de seu ser
estavam puídas pelo uso.
Depois de uma xícara de chá de sabugueiro, ele treinou com Zar’roc, e o
exercício ajudou a esvaziar a mente e concentrar os pensamentos. E não só os dele,
os de Thorn também. A forma como um dos dois se sentia influenciava o outro.
Murtagh estava determinado a fazer tudo o que pudesse para fortalecer a coragem
de Thorn.
Quando terminou a série, ele e o dragão deixaram os pertences no acampamento
e desceram da colina até um bosque de bétulas ao longo de um riacho.
Murtagh entrou no bosque, andando de costas, tateando com os calcanhares para
evitar tropeçar, e manteve os olhos em Thorn o tempo todo. Assim que deu uns
trinta passos arvoredo adentro, estendeu as mãos.
— Vem cá.
Thorn mexeu as asas e emitiu um ruído seco. Então se sacudiu, e as escamas se
agitaram ao longo do comprimento reluzente do corpo. O dragão deu um passo
hesitante à frente, de modo que a cabeça ficou bem abaixo do topo das árvores sem
folhas. Os galhos gemeram sob a influência de uma brisa passageira.
Thorn enrijeceu, e Murtagh disse novamente, em voz baixa:
— Vem cá. — Ele sorriu para o dragão. — Você consegue.
O peso da pata dianteira esmagou as folhas murchas pela geada quando Thorn
deu mais um passo à frente. E outro.
— Isso aí — murmurou Murtagh.
Se Thorn conseguisse romper o medo apenas uma vez, Murtagh sabia que
poderia desenvolver esse triunfo, e o medo diminuiria com cada sucesso.
Conforme as asas curvadas de Thorn se deslocavam entre os troncos claros, o
dragão ficou ainda mais tenso. Ele se agachou e cravou as garras na terra, e a ponta
da cauda balançou no ar, soltando um assobio.
— Não pare.
Thorn não sustentou o olhar de Murtagh, que sentiu a onda crescente de pânico
engolindo a mente do dragão e lutou contra ela com pensamentos calmantes, mas
era o mesmo que tentar repelir o mar.
— Tente! — ordenou Murtagh, com o tom repentinamente ríspido. Quando o
estímulo não funcionava, a ferocidade às vezes servia. — Agora! Não pense muito!
Um rugido angustiado escapou de Thorn, que avançou com as patas rígidas,
como um animal ferido, e, na pressa, a cabeça roçou em um galho baixo. Um medo
cegante varreu a mente do dragão com tanta força que disparou um raio nas
têmporas de Murtagh. Ele gritou e caiu, apoiado em um dos joelhos, enquanto
Thorn se debatia e se contorcia para sair do bosque.
Thorn foi se sentar em campo aberto, tremendo e piscando. As mandíbulas
estavam abertas, e ele ofegava como se tivesse acabado de correr
desesperadamente. O dragão ergueu o focinho e soltou um uivo triste que soou tão
solitário e lúgubre que a pele inteira de Murtagh formigou.
Não consigo, disse Thorn. Minhas patas travam e não consigo me mexer. É como
se um feitiço me agarrasse, e sinto como se fosse morrer.
Com esforço, Murtagh se levantou e foi até o dragão com passos lentos.
— São apenas emoções. Emoções não são você. — Ele deu um tapinha na pata
dianteira de Thorn. — Você pode senti-las, pode deixá-las passar por você, mas
quem você é não muda. Lembre-se disso. Lembre-se das partes do seu verdadeiro
nome que descrevem os melhores elementos de você e se apegue a elas.
Thorn baixou a cabeça em reconhecimento.
Fazer isso é difícil.
— Sempre é. — Murtagh apontou para o grupo de bétulas. — De novo. Agora.
O medo e a incerteza cintilaram no fundo do olhar de Thorn enquanto ele fitava
Murtagh, mas então ele se aprumou, o pescoço fez um arco altivo e uma baforada
de fumaça subiu das narinas.
Por você.
Como antes, Murtagh recuou para o bosque e, como antes, Thorn tentou segui-lo.
O dragão vermelho conseguiu se obrigar a avançar uns passos a mais do que na
primeira tentativa, mas então perdeu a coragem e recuou. As memórias que Thorn
tinha do aprisionamento eram tão fortes que atordoaram a mente de Murtagh por
um momento, fazendo-o ver os porões de Urû’baen pelos olhos de Thorn. Isso e a
aversão visceral do dragão foram suficientes para expulsar o próprio Murtagh do
arvoredo.
Eles levaram alguns momentos para se recuperar. O coração de Murtagh batia
desconfortavelmente rápido.
Então tentaram outra vez, com resultados semelhantes.
— Chega — disse Murtagh, tocando o pescoço de Thorn.
O dragão estava enrolado em um nó sobre a grama emaranhada, ofegando e
tremendo como se estivesse com febre. Ainda era de manhã e eles já estavam
exaustos.
Ambos ficaram estranhamente calados ao voltar ao acampamento e se preparar
para partir.
Somente depois que Murtagh arrumou os pertences e estava realizando uma
verificação final no cordame da sela de Thorn foi que o dragão falou: Amanhã,
encontrarei outro arvoredo.
Murtagh estava fechando uma fivela e se deteve por um instante.
— Vou te ajudar. — Por um instante de silêncio, eles compartilharam um senso
de determinação.
Antes de subir na sela, ele molhou um pedaço de pano e enxugou o suor do rosto
e das axilas. Murtagh teria preferido um banho de verdade, mas o riacho próximo
era tão pequeno que ele não cabia.
— Vamos? — perguntou ele, enxaguando e torcendo o pano.
Thorn esticou as asas e as sacudiu, como se quisesse se livrar da agitação.
Os ventos estão mudando. Vamos ter que dançar com as nuvens.
Murtagh escalou a lateral do corpo de Thorn e subiu na sela. Enquanto prendia as
tiras em volta das pernas, deu uma última olhada na vastidão plácida das pastagens.
Assentiu.
— Vamos dançar. Não, vamos caçar.
E Thorn soltou um grunhido de aprovação.
CAPÍTULO XVII
Exílio
E nquanto Thorn voava e a terra passava abaixo, Murtagh deixou a mente vagar.
Sua tendência natural era pensar — remoer infinitamente tudo o que era, tinha sido
e poderia ser —, mas ele lutou contra esse impulso. Sem lembranças! Em vez disso,
encontrou consolo na existência sem contemplação. Era um prazer simples, talvez o
mais simples de todos, e, no entanto, não menos profundo.
Lá no alto, o ar estava frio, e os cílios congelavam se piscasse mais devagar do
que o normal. Murtagh usou um feitiço para amortecer o vento e evitar que seu
corpo perdesse calor. Thorn não precisava dessa proteção, por causa de suas
escamas, que eram defesa suficiente.
Saindo das pastagens a nordeste de Gil’ead, o dragão sobrevoou o lago Isenstar
outra vez e começou a seguir o rio Ninor a noroeste, em direção à Espinha.
Eles fizeram a viagem depressa, mas Murtagh temia ter perdido o momento certo
de agir e se preocupava de estarem sendo caçados pelos mágicos da Du Vrangr
Gata, ou mesmo pelos elfos. A menos que Carabel tivesse habilidades ocultas,
levaria alguns dias para sua carta alcançar Nasuada. Até lá, ela, Arya e Eragon —
que certamente já teriam ouvido as notícias da luta em Gil’ead — pensariam o pior.
Eragon e Arya talvez até ficassem alarmados o bastante para ir atrás dele. Parte de
Murtagh esperava que um deles o contatasse, e toda vez que sentia um toque na
mente, lutava contra o impulso de se encolher. Mas sempre era Thorn, dizendo:
Você está tão nervoso quanto um puma mordido por muitas pulgas.
Não me fale de gatos.
A terra abaixo deles era linda, e Murtagh se viu desejando ignorar as
preocupações de rainhas e reis e viver de acordo com os próprios planos, como
Thorn queria. Isso poderia significar se estabelecer em um lugar — com a magia
como ferramenta, Murtagh poderia erguer uma cabana ou um palácio (o que lhe
agradasse) —, ou vasculhar os céus como um albatroz pronto para vagar todos os
dias.
Mas, no fundo do coração, ele sabia que nenhuma das duas opções funcionaria.
Ninguém vive isolado. Estamos todos conectados. E ignorar as responsabilidades
deles, as responsabilidades dele, só levaria ao arrependimento.
Naquela noite, eles acamparam ao lado de choupos próximos às margens do rio.
Murtagh foi caçar com um seixo e um feitiço e logo pegou duas lebres e um grande
pato de patas azuis que foi tolo o suficiente de passar nadando.
Antes de acender a fogueira e preparar o jantar, Thorn e ele foram até o bosque
de choupos, e o dragão novamente tentou entrar no arvoredo.
Dessa vez, ele teve mais sucesso do que antes, pois os choupos eram esparsos e
Thorn tinha mais espaço em volta da cabeça e das laterais do corpo. Mas, no final, o
mesmo medo fez o dragão ficar paralisado e recuar. Murtagh não considerou a
empreitada como um grande avanço.
O exercício aumentou o cansaço do fim do dia, e os dois falaram pouco durante o
resto da noite.
Depois de comer, Murtagh apagou a fogueira e se sentou com as costas apoiadas
em Thorn. Por um tempo, encarou mal-humorado uma das coroas de ouro que
recebera de Wren. Então pegou o dicionário que roubara e leu enquanto o sol se
punha e nuvens de mosquitos saíam das copas das árvores.
O Palancar foi o último grande vale no caminho deles. A partir dali, as montanhas
se aproximaram e só permitiam pequenas fendas e lacunas entre os flancos
arborizados: vales estreitos, que não recebiam o mínimo de luz do sol durante os
meses de inverno.
Enquanto voavam, Murtagh teve a sensação de que estavam deixando para trás os
últimos vestígios de civilização. Por mais rústico e isolado que Carvahall fosse,
pelo menos compartilhava alguma conexão com o resto do reino de Nasuada.
Depois do vilarejo, estavam entrando em terras que não pertenciam a nenhum reino
ou raça.
No final da tarde, a Baía do Fundor surgiu à direita, encostada na borda da
Espinha. As montanhas mergulhavam até a beira da água, quase sem algum campo
aberto, e o ar adquiriu um gosto de sal, e os gritos de gaivotas e andorinhas-do-mar
seguiram os dois pela cordilheira irregular.
Procure um cais ou um quebra-mar. Qualquer tipo de construção, sugeriu
Murtagh, embora fosse provável que ainda estivessem a vários dias do vilarejo que
procuravam.
Thorn grunhiu em concordância.
Em pouco tempo, um vento forte surgiu do norte, e o voo de Thorn diminuiu até
que os dois mal se moviam em relação ao solo.
Está bom por aqui, disse Murtagh, e Thorn desceu até uma pequena ilha — com
não mais de trinta metros de largura — perto da costa. Lá eles acamparam, e o
vento caiu sobre os dois com força implacável enquanto rajadas de neve
obscureciam as montanhas.
Pela manhã, as nuvens haviam desaparecido.
Devemos nos apressar, disse Thorn. Esse clima não vai durar.
À medida que o dia avançava, formou-se uma espessa camada de nuvens baixas o
suficiente para arranhar os picos das montanhas. Isso forçou Thorn a voar mais
perto do chão do que ele preferia, a fim de não perderem de vista o vilarejo dos
Sonhadores.
Antes que a noite caísse, eles avistaram mais três assentamentos de Urgals
escondidos entre as dobras das montanhas. Murtagh sempre pensara que os Urgals
vivessem em cavernas. Foi o que lhe disseram enquanto crescia. Foi estranho saber
que eles tinham cidades, semelhantes a humanos.
Quantos deles existem?, questionou Murtagh.
O suficiente para o exército que ele formou, disse Thorn.
Murtagh assentiu. Era verdade. A horda que atacou Tronjheim era igual a
qualquer exército do reino. O que significava que os Urgals eram muito mais
numerosos do que se acreditava.
Eles têm prosperado desde a queda dos Cavaleiros, observou Murtagh.
Teremos que expulsá-los?
Só se eles se tornarem um incômodo novamente. Eragon acha que consegue
mantê-los como aliados, mas...
Você não concorda?
Não sei. Às vezes, Eragon tem um bom pressentimento para essas coisas, mas
também é bastante ingênuo quando se trata da realidade da guerra e da política.
Pelo menos, costumava ser.
Eles pousaram para passar a noite próximo a um pequeno riacho da montanha
que desaguava na Baía do Fundor. Enquanto Murtagh montava acampamento, um
rugido incomum o assustou.
Ele se virou e viu um grande urso-pardo sobre as patas traseiras a menos de seis
metros de distância. A fera era alta como um Kull e muito mais parruda e
musculosa.
A pulsação de Murtagh disparou por um segundo, mas ele se controlou. O urso
não era uma ameaça. Uma única palavra seria mais do que suficiente para matá-lo,
mas Murtagh não queria fazer aquilo. Thorn e ele eram os intrusos, não o urso.
Thorn serpenteou a cabeça em volta de Murtagh e rosnou em resposta, fazendo o
urso parecer insignificante em comparação.
O animal não pareceu se assustar. Rugiu novamente, ficou de quatro e se
levantou de novo, com patas e garras estendidas.
— Qual é o seu problema? — gritou Murtagh. — Você é estúpido? Não percebe
que não pode vencer?
O urso rosnou para Murtagh, olhou para Thorn e soltou um berro longo e
indignado. Murtagh teve a intuição de vasculhar os arredores com a mente,
procurando por filhotes ou outros ursos. Nada.
— Acho que ele só quer lutar.
Os olhos do dragão brilharam.
Então lutaremos.
— Não, por favor. Agora não. Foi um dia longo.
Thorn bufou, desapontado.
Está bem. Como quiser.
O dragão soltou um jato comprido de fogo vermelho e laranja diretamente sobre
a cabeça do urso, chamuscando o pelo nas pontas das orelhas.
O urso uivou, deu meia-volta e desceu até a costa mais rápido do que um homem
seria capaz de correr.
— Obrigado — disse Murtagh enquanto observava o animal partir. — Aposto
que ele nunca encontrou nada que não conseguisse intimidar antes.
Bem, isso mudou, respondeu Thorn, parecendo satisfeito.
Murtagh olhou para as montanhas cobertas de neve e torceu que ninguém tivesse
ouvido a comoção.
— Devemos ter cuidado de agora em diante — disse, voltando à fogueira que
estava armando. — Nunca se sabe quem pode estar ouvindo. Especialmente aqui
fora.
Naquela noite, tanto Murtagh quanto Thorn tiveram sonhos terríveis, e os pesadelos
se espalharam de uma mente para a outra, até ser impossível dizer de qual delas se
originaram. Urgals apareceram em muitos dos sonhos: um grande exército deles
marchando pela Espinha, com um rei à frente e as cabeças dos inimigos cravadas
nas lanças. Uma batalha sangrenta sob os pinheiros escuros, com Urgals berrando
como ursos e humanos gritando. Murtagh e Thorn agachados perto das raízes
reviradas de uma árvore caída, tentando se esconder. Eles choravam, choravam,
choravam, e as lágrimas caíam na terra junto com as gotas de sangue negro...
Naquela noite, o sono agitado não lhes permitiu descansar. Quando acordaram, os
dois ainda estavam exaustos.
Aqueles sonhos não foram normais, disse Thorn.
Não. Há algo estranho nessa terra… Não podemos estar longe, creio eu.
As palavras de Murtagh se provaram proféticas. No meio da tarde, quando Thorn
contornou o flanco de um pico bem alto, um rio de correnteza rápida ficou à vista,
saindo de uma fenda na Espinha e desaguando na Baía do Fundor. Uma manta de
nuvens baixas cobria a fenda, e o interior era profundo, escuro e densamente
arborizado. No entanto, as sombras e as árvores não escondiam a mortalha de
fumaça azulada que se acumulava no fundo do vale estreito.
Conforme o vento soprava, carregava junto um fedor sulfuroso que fez a garganta
de Murtagh arder e os olhos lacrimejarem.
Ele se endireitou na sela, sentindo uma estranha empolgação.
Eles haviam chegado.
CAPÍTULO I
O vilarejo
T horn entrou pela fenda, planando com as asas imóveis. O teto macio de nuvens
abafava o ar, e o silêncio apenas aumentou a expectativa de Murtagh, que estava
inclinado para a frente na sela, espiando por cima do pescoço de Thorn para
enxergar o que estava por vir.
As encostas das montanhas formavam muralhas branco-azuladas em ambos os
lados, interrompidas por penhascos de granito cinza e sem vegetação que se
projetavam das fileiras de árvores cobertas de neve. Lá embaixo, o rio corria rápido
em seu curso estreito, a água tão limpa que Murtagh era capaz de contar as rochas
arredondadas sob a superfície ondulada.
À medida que se aproximavam do fundo do vale, o cheiro de ovos podres ficou
mais forte e, para surpresa de Murtagh, o ar pareceu ficar mais quente também,
como se os dedos gelados do inverno ainda não tivessem tocado as regiões ao norte.
Sob a cortina de fumaça que se estendia sobre os contrafortes acumulados diante
dos dois, Murtagh viu estruturas de pedra cinza-escuro construídas uma ao lado da
outra, com telhados abobadados. Não era o estilo de construção visto pela
Alagaësia. Ele achou que fossem casas, mas havia também algo parecido com uma
torre estreita que não estaria deslocada em Urû’baen e o que parecia ser um palácio
ou templo situado na base da colina mais próxima, com um grande pátio aberto e
um telhado escalonado.
Figuras eram visíveis nas ruas, mas estavam obscurecidas pela distância e pela
fumaça.
A terra ao redor do vilarejo estava carbonizada, tão preta quanto um tronco
queimado, rachada e quebradiça, com filetes de fumaça que subiam de bolsões ocos
onde a superfície do solo havia desabado. Da terra arrasada se erguiam algumas
árvores sem vida, os galhos nus e acinzentados, e a casca dos troncos caindo aos
pedaços.
A cautela abafou a expectativa que Murtagh estava sentindo. Apesar de todos os
poderes que detinham, Thorn e ele estavam sozinhos. Como aconteceu com
Galbatorix e Jarnunvösk. Se as coisas dessem errado, eles não teriam ajuda. Lorde
Varis não viria a cavalo para resgatá-los, Tornac não apararia um golpe direcionado
ao pescoço de Murtagh, e Eragon e Arya estavam muito longe para chegar a tempo.
Um grunhido curto ressoou nas laterais do corpo de Thorn, e Murtagh pôde senti-
lo da sela.
Galbatorix e Jarnunvösk foram impetuosos e tolos. Não repetiremos os erros
deles.
— Vamos torcer para que não. Dê meia-volta por enquanto. Prefiro não me
apressar em nada.
Thorn se inclinou e, sem uma batida de asas ou movimento de cauda que pudesse
ter revelado a presença deles, planou de volta para a boca da fenda. Havia um
caminho ao longo do rio, e Murtagh pensou ter visto redes e diques construídos na
água cristalina.
Por um acordo tácito, Thorn desceu na encosta de uma colina, a uma montanha
de distância da fenda, onde uma crista aguda escondia os dois do vale estreito.
Murtagh afrouxou as tiras em volta das pernas e escorregou até o chão. Ele
alongou os braços e olhou para a Baía do Fundor antes de se voltar para Thorn.
— O que você acha?
As escamas do pescoço de Thorn se agitaram.
Nenhum vilarejo tem meios para construir tais carapaças.
— As casas? Concordo. Não sem muita ajuda. Ou então usaram magia.
Ele coçou o queixo. Não conseguiria se barbear hoje. Sem uma adaga ou faca de
acampamento, Murtagh seria obrigado a usar um feitiço para remover a barba, e
isso o deixava mais nervoso do que uma boa lâmina confiável.
Thorn se aproximou e colocou a cabeça apoiada no ombro de Murtagh.
Quanto tempo você acha que vai ficar ausente?
— Não vou me ausentar. — Murtagh sorriu. — Desta vez, acho que devemos
fazer as coisas de maneira diferente. Desta vez, a situação exige alguns trovões e
relâmpagos.
A língua vermelha e comprida do dragão serpenteou para fora da boca e lambeu
os lábios de um jeito voraz.
Isso me parece muito apropriado.
— Imaginei.
Você pretende matar Bachel?
— Pretendo conversar com ela. Se tivermos que lutar, lutaremos, mas... —
Murtagh franziu a testa. — Precisamos descobrir o que ela e os Sonhadores querem.
Qualquer que seja seu objetivo, eles o perseguem com determinação.
E você quer farejar quantos deles estão no reino de Nasuada.
— Isso também, embora eu duvide que Bachel vá nos contar. Pelo menos não
voluntariamente. — Ele coçou o focinho de Thorn. — De todo modo, teremos que
ter cuidado.
Nossas proteções devem nos manter a salvo de magia sem palavras, assim como
mantém do resto.
Ele lançou um olhar significativo ao dragão.
— Talvez, difícil dizer. Se as coisas derem errado, talvez seja melhor fugir.
Fugir ou lutar, estarei pronto para os dois.
— Então vamos.
Murtagh percorreu a lateral do corpo reluzente de Thorn até onde os alforjes
estavam pendurados. Abriu e removeu, em ordem: Zar’roc, touca de proteção e
capacete, braçadeiras e grevas, escudo triangular com borda de ferro — do qual
raspara o emblema do Império —, camisa acolchoada e peitoral. Quando não estava
marchando para uma batalha campal, Murtagh preferia usar uma cota de malha, por
ser mais fácil de se mover nela, mas não era mobilidade nem mesmo proteção que
ele buscava. Era intimidação.
Assim, pela primeira vez desde a morte de Galbatorix e a queda do Império,
Murtagh decidiu substituir o subterfúgio pelo espetáculo.
Enquanto colocava a armadura, o peso conhecido do equipamento se acomodou
no corpo com um confinamento frio e ameaçador. Peça por peça, ele montou a si
mesmo — ou melhor, uma versão de si mesmo que estava tentando abandonar:
Murtagh, filho de Morzan. Murtagh, o terrível servo de Galbatorix.
Murtagh, o traidor.
Havia um diadema de ouro no elmo que parecia uma pequena coroa. O conceito
de humor de Galbatorix. Ele apresentou Murtagh como seu braço direito no
Império. Um novo Cavaleiro, descendente dos Renegados, que jurou lealdade ao rei
e se devotou à causa de Galbatorix. Diante das multidões, o rei o tratava quase
como filho, mas, longe dos olhares do povo, onde a verdade não podia ser
escondida, Murtagh era apenas um escravo.
Ele colocou o elmo na cabeça, andou até um lago pantanoso cercado de
amentilhos e estudou o próprio reflexo. Parecia um jovem príncipe enviado para a
guerra. Com a austeridade que o semblante havia adquirido durante o ano anterior,
ele se viu pensando que não gostaria de lutar contra si mesmo.
Murtagh assentiu.
— Vai servir. — Ele olhou para Thorn. — Pena que não temos nenhuma
armadura para você.
Thorn fungou.
Eu não preciso. Além disso, a armadura teria que ser refeita a cada meio ano.
Era verdade. Como todos os dragões, Thorn continuaria a crescer durante a vida
inteira. A taxa de crescimento diminuía proporcionalmente à massa total, mas nunca
cessava. Alguns dos dragões antigos, como o selvagem Belgabad, eram enormes.
Murtagh prendeu Zar’roc ao cinto, fechou os alforjes e voltou a subir nas costas
de Thorn.
— Letta — disse, e com isso o feitiço que escondia Thorn foi lançado. — Muito
bem. Vamos conhecer a bruxa Bachel.
Thorn emitiu um ronco para mostrar que concordava, levantou as asas bem alto,
como velas carmesim viradas para o vento, e as desceu. Murtagh agarrou uma das
escamas do pescoço do dragão quando este saltou para o céu e o vento frio soprou
com uma promessa de enxofre.
Terra à frente, disse Murtagh a Thorn enquanto voavam para a fenda. Abra bastante
espaço. Se tivermos que lutar, não quero que você seja imobilizado ou encurralado.
Por um momento, o entusiasmo de Thorn diminuiu.
Não se preocupe. Não vou deixar que aconteça aqui o que aconteceu em Gil’ead.
Eu sei. Murtagh deu um tapinha no pescoço do dragão. Mas não vamos arriscar.
Thorn desceu do teto de nuvens, com redemoinhos de névoa girando nas pontas
das asas de morcego. Ele circulou por cima do vilarejo, visível para os que estavam
abaixo. Gritos ecoaram entre as construções e um sino começou a soar com alarme
urgente. O dragão desceu mais uma vez e varou o véu de fumaça.
Os olhos de Murtagh arderam e um gosto pungente se formou no fundo da boca.
Com um rugido ameaçador, Thorn pousou na terra devastada em frente ao
vilarejo. A crosta de terra rachou sob as patas, e ele afundou centímetros no solo
coberto de cinzas. A visão lembrou Murtagh da Campina Ardente, mas percebeu
com uma olhada rápida que o chão não parecia conter turfa ou carvão que pudesse
alimentar um incêndio contínuo.
Murtagh ouvia o soar dos sinos e viu homens e mulheres vestidos de robes cinza
correndo pelas ruas enquanto procuravam desesperadamente abrigo nas construções
próximas. Elas não serviriam de muita proteção contra um dragão.
Murtagh sacou Zar’roc e segurou a espada acima da cabeça. A lâmina carmim
brilhou na luz opaca do inverno, combinando com as escamas de Thorn.
— Ouçam! — gritou, erguendo a voz como se estivesse se dirigindo a uma tropa
reunida. — Meu nome é Murtagh e vim falar com a bruxa Bachel! Venha, Bachel,
para que possamos conversar!
Os sinos pararam de dobrar e um silêncio sinistro tomou conta do vale e do
vilarejo. Na quietude, Murtagh percebeu um leve assobio vindo dos respiradouros
que descarregavam vapor perto das patas de Thorn.
Um por um, vários indivíduos vestidos com robes — tanto homens quanto
mulheres — emergiram das construções e se reuniram na estrada principal. Eles
formavam um grupo heterogêneo: alguns eram do tipo pálido do norte, outros
tinham a pele tão marrom quanto os surdanos, e alguns compartilhavam o tom
negro retinto de Nasuada. Os indivíduos espiaram por baixo de seus capuzes, com
expressões de raiva e preocupação, mas não tão amedrontados quanto ele esperava.
Era de imaginar que sentissem mais medo de um dragão e um Cavaleiro, disse a
Thorn.
O dragão correu a língua pelos dentes.
Eu posso corrigir esse erro.
Murtagh escondeu um sorriso.
Talvez mais tarde.
— Bachel! — gritou ele. — Apareça!
O grupo de pessoas se abriu quando um homem alto de cavanhaque veio à frente
e, com um olhar frio, inspecionou Murtagh e Thorn. Tinha duas mechas brancas de
cada lado da barba e entradas pronunciadas no cabelo, enquanto as bochechas
raspadas eram encovadas e esburacadas por causa da varíola. Em termos físicos, foi
impossível para Murtagh localizar a ascendência do homem. A testa era baixa, as
maçãs do rosto, salientes, e ele tinha uma aparência feroz e rústica, como se fosse
uma forma anterior de ser humano. Ao contrário dos outros, o robe tinha listras
roxas costuradas nos punhos das mangas.
Para a surpresa de Murtagh, o homem fez uma mesura formal e disse:
— Bem-vindo, Dragão. Bem-vindo, Cavaleiro. — Seu sotaque lembrou a
Murtagh mais a fala de um Urgal do que qualquer língua humana. — Venham
comigo. Bachel os aguarda
O homem ossudo se virou e entrou no vilarejo, subindo a estrada principal. Como
diante de um sinal invisível, o resto do grupo se dispersou entre as construções.
— Maldição — murmurou Murtagh.
Ele não era um cachorrinho para ser chamado ao bel-prazer de Bachel. Porém,
ele e Thorn eram intrusos ali. Ou, sendo generoso, visitantes. Esperar que Bachel
fosse até eles talvez seria muito atrevimento, dependendo dos costumes daquele
povo.
E ele não queria ser muito atrevido. Ainda não.
Mesmo assim, odiou entrar na vila. Seria o lugar perfeito para uma armadilha, se
os Sonhadores assim quisessem. E ainda tinha Thorn: os prédios pareciam muito
próximos para Murtagh.
Eu vou ficar bem, disse Thorn. Não se preocupe comigo.
Como não? Talvez eu devesse ir sozinho.
Thorn rosnou. Não! Preferia arrancar meu próprio rabo. Vamos ficar juntos.
Tem certeza? Absoluta?
Tenho!
Está bem. Mas se precisar partir, nós partimos, não importa o que aconteça. Não
quero esperar até que seja tarde demais.
Eu prometo, respondeu Thorn, vibrando em aprovação.
Murtagh bateu com a lâmina de Zar’roc na coxa, enquanto observava a vila por
mais um momento. A bruxa jogaria seus joguinhos, e isso não importava. Murtagh
se recusava a esperar como se fosse um camponês suplicante em busca de um favor.
Ela poderia vê-lo entrar em seu domínio, altivo e destemido.
— Vamos atrás dele, então.
Thorn apertou as asas contra os flancos e avançou. As garras estalaram
ruidosamente nas lajotas cobertas de musgo que pavimentavam a estrada conforme
entraram na vila.
Conforme temia, havia pouco espaço entre as construções, e Thorn começou a
ficar tenso. Murtagh sentia a apreensão do dragão como se fosse dele. Mesmo
assim, por enquanto, ele se manteve sob controle.
Murtagh nunca tinha visto construções como aquelas. A alvenaria era de
qualidade anã, mas com uma elegância élfica, e havia estranhas runas — nem anãs
nem élficas — gravadas nas molduras e padieiras das portas em arco. As cornijas
eram decoradas com esculturas de feras parecidas com dragões rugindo, cujos
semblantes davam a Murtagh uma sensação incômoda de estar sendo observado,
como se toda a aldeia fosse uma criatura viva agachada rente ao chão, esperando
pela presa.
A característica mais incomum eram os padrões entalhados nas paredes,
dispostos em mosaicos e pintados nas persianas — padrões cristalinos em
redemoinhos que se ramificavam e pareciam se repetir à medida que diminuíam:
variações de um mesmo tema. Eles exerciam um fascínio perigoso. Murtagh achou
que seria capaz de olhá-los pelo resto da vida e ainda encontrar coisas novas para
ver, por causa da quantidade obsessiva e aparentemente impossível de detalhes.
Quanto mais Murtagh olhava, mais a visão começava a girar e oscilar. As
decorações o lembraram das profundezas complexas de um Eldunarí... ou de formas
que apareciam apenas nos sonhos mais profundos.
Com esforço, ele se concentrou em outra coisa.
O curioso artesanato o perturbava. Encontrar criações tão perfeitas e bem-feitas
em um lugar tão isolado não fazia sentido. Deveria haver uma longa linhagem de
obras semelhantes em outros lugares, mas não era o caso. Não na Alagaësia, pelo
menos, e se a tradição veio do outro lado do oceano, bem, isso não era menos
explicável.
Murtagh se remexeu na sela, sentindo como se o chão tivesse se inclinado um
pouco. Havia um mistério mais complexo do que o previsto.
Cuidado, disse ele.
Uma sensação de confirmação sucinta veio de Thorn.
O homem de cavanhaque estava esperando pelos dois no meio do vilarejo. Ao
vê-los, ele se virou e continuou andando em um ritmo constante, com os braços
compridos balançando, as mãos enormes quase na altura dos joelhos. A cada passo,
ele apoiava o pé inteiro nas lajotas — uma pisada firme e inabalável, com o
calcanhar e dedos pisando ao mesmo tempo —, e então erguia o pé da mesma
maneira. Pisar, levantar. Pisar, levantar.
A rua subia por uma ladeira íngreme à medida que avançava para o outro lado do
vilarejo. Conforme prosseguiam, Murtagh mantinha um olho atento nos telhados,
nos becos, nas esquinas: qualquer lugar onde inimigos poderiam estar esperando.
Mas ninguém apareceu e ele não queria arriscar abrir a mente para vasculhar a área.
Essa era uma boa maneira de se deixar à mercê de um ataque mental.
Quanto mais Murtagh via do povoado, mais tinha a impressão de que era muito
antigo. As esculturas estavam desgastadas, os degraus, limados. As paredes se
curvaram por séculos de peso, e várias estruturas desabaram sobre si mesmas e
permaneciam como ruínas cobertas de líquen.
Não gosto deste lugar, disse Thorn.
Também não.
Murtagh voltou a segurar firme a espada e o escudo. Talvez devesse ter contatado
Eragon. Havia muitos segredos no mundo, e alguns deles eram mais antigos que os
Cavaleiros. Nasuada tem que ser informada disso, pensou.
O homem os conduziu a uma praça modesta diante de uma construção
semelhante a um templo. Uma fonte ficava no centro do pátio, mas estava seca,
cheia de poeira e coberta de musgo, e o remate estriado no topo havia rachado e
partido de lado, deixando uma ponta de cinzel de pedra apontando para o céu
sombrio.
O templo — Murtagh tinha decidido que era um templo — tinha um telhado de
duas camadas, sendo o mais alto uma cúpula com reforços igual às outras
construções da aldeia. Uma fileira dupla de colunas guardava a entrada sob
sombras, enquanto uma fileira de esculturas de dragões surgia entre as janelas
estreitas. Envolvendo as colunas, os pedestais e as estátuas com escamas estavam os
mesmos padrões cristalinos vistos em outros lugares: uma membrana de veios
erodidos, podres, desfiados e marcados pelo tempo.
Mesmo quando novo, o templo teria possuído uma presença sombria e
desagradável. No estado de decadência em que se encontrava, a massa sombria do
edifício era ainda mais assustadora, projetando uma sensação de força antiga e
duradoura — dura como ferro, obstinada e implacável.
O homem de cavanhaque parou e se posicionou ao lado de um dos pilares que
ladeavam uma entrada recuada. Ele uniu as mãos pesadas diante do corpo.
Uma trompa soou dentro do templo, emitindo uma nota longa e oscilante em um
tom sinistro, e o som ecoou com efeito terrível nas paredes das construções e nos
flancos das montanhas. Murtagh sentiu um arrepio e ergueu Zar’roc em prontidão.
Lembre-se de quem você é, disse a si mesmo.
Passos pesados se aproximaram vindos do interior do templo, botas marchando
em ritmo sincronizado. Sob as sombras da entrada, emergiu uma fileira dupla de
quatorze homens de armadura, com escudos e lanças erguidos. Os capacetes e
peitorais estavam amassados e manchados, e tinham um estilo desconhecido. Mas
as lâminas das lanças eram afiadas e livres de ferrugem, e eles portavam espadas
nas cinturas.
A formação se partiu ao meio, e os guerreiros se posicionaram de cada lado da
entrada. Eles demonstravam uma disciplina admirável, se moviam com uma
precisão que deixava claro que não se tratavam de guardas cerimoniais, e sim de
guerreiros com experiência real em combate.
Atrás deles vieram outras catorze figuras: vestidas de branco, com capuzes
cobrindo os rostos, de modo que nada se visse de seus traços. Homens e mulheres,
todos segurando um conjunto de metal com hastes de ferro das quais pendiam sinos
largos. Eles os sacudiam a cada passo, com os sinos repicando um coro dissonante.
Havia um ar de ritual ancestral naquela procissão, como se aquilo viesse sendo
feito por mil anos ou mais.
Os tocadores de sinos pararam atrás dos guerreiros, onde continuaram sua
cadência.
Por fim, apareceram quatro homens usando uma armadura negra laqueada. Nos
ombros, carregavam uma liteira coberta, envolta em véus brancos diáfanos.
Uma figura era visível através dos véus.
Sem palavra ou sinal, os carregadores pararam na beira da praça e não se
mexeram. Eles olhavam para a frente sem pestanejar e aparentemente não se
assustaram ao ver Thorn.
Os sinos silenciaram.
Com um farfalhar de tecido deslizando, os véus se separaram.
Uma mulher se levantou para ficar de pé ainda na liteira. Ela, como tudo naquele
lugar, era singular. O cabelo era preto e reluzente como obsidiana e arrumado em
um intrincado amontoado no alto da cabeça, as mechas presas e organizadas em um
padrão desconcertante. Pulseiras de marfim adornavam os antebraços cor de mel, e
ela usava um vestido feito de faixas amarradas com nós, que desenhavam linhas
compridas das runas desconhecidas, como se a protegessem. Uma pequena adaga
pendia de um cinto dourado na cintura dela.
Ela era alta — mais alta do que a maioria dos homens —, com braços e pernas
fortes, um rosto anguloso e uma boca cruelmente vermelha-escura e torta. Os olhos
amendoados estavam cobertos de fuligem, o que lhes dava a aparência de
hematomas da cor do fruto do abrunheiro. Ela não parecia jovem nem velha; havia
uma indefinição em seus traços que tornava impossível determinar sua idade.
A mulher era tão impressionante que o primeiro pensamento de Murtagh ao vê-la
foi: uma elfa! Mas então ele observou com atenção e percebeu que as feições dela
não eram exatamente élficas. No entanto, também não eram inteiramente humanas,
e ele sentiu uma imensa inquietação.
Então a mulher sorriu para ele e para Thorn com tamanha cordialidade que
Murtagh ficou chocado.
— Bem-vindo a Nal Gorgoth, ó grandioso dragão — disse ela, com uma voz
baixa e melódica que vibrava com poder e convicção. — E seja bem-vindo também,
Cavaleiro. Estava esperando por você, meu filho.
CAPÍTULO II
Bachel
M urtagh se agarrou à sela de Thorn, a mente confusa. A mulher diante dele não
podia ser sua mãe. Cada parte sensata dele sabia disso. E mesmo assim... Sentia
como se tivesse dado um passo em falso e o caminho diante de si houvesse
desaparecido.
— Você é a bruxa que chamam de Bachel? — perguntou, tentando fingir
confiança.
Com um gesto elegante, a mulher inclinou a cabeça.
— Sou, meu filho.
Ele começou a ver aquela cena com mais clareza.
— Por que me chama assim?
Bachel indicou o pátio e todas as pessoas ali.
— Porque você é meu filho, assim como todos os seguidores do Grande Sonho.
— Não sou seguidor de nada nem ninguém.
Um brilho de diversão surgiu em seus olhos semicerrados.
— Duvido muito disso, Regicida.
Murtagh ficou ainda mais tenso.
— Você ouviu falar de mim.
— De você e de Thorn. As notícias de seus feitos viajaram muito, Regicida, e
chegaram aqui, no nosso reduto sagrado.
Murtagh percebeu uma característica arcaica no jeito dela de se expressar e se
lembrou de como o mais velho dos Eldunarí havia falado: um resquício de eras
passadas.
— E o que é isto aqui?
Murtagh gesticulou com Zar’roc para o templo e o vilarejo.
— Um lugar de muitos sonhos. — Bachel sorriu outra vez, aparentemente sem
malícia. — Você veio a Nal Gorgoth, Regicida, como eu previ. Há tempos espero
por você e por Thorn, e chegaram em boa hora.
Murtagh voltou a se sentir perdido.
— Espera por nós? Por quê?
O sorriso da bruxa aumentou, e ela ergueu os braços como se quisesse abraçar
toda a existência.
— Porque vocês são os salvadores do mundo.
A Torre de Pederneira
Sonhos e presságios
M urtagh e Thorn se encararam, uma pergunta não dita pairando entre os dois: o
que ou quem os dragões ou Cavaleiros temeriam?
— Se Galbatorix e Morzan vieram aqui — disse Murtagh —, talvez todos os
Renegados tenham vindo.
Ele olhou para as silhuetas dos telhados escuros e para a ponta da Torre de
Pederneira iluminada pelo luar. A descoberta do broche colocava uma nova
perspectiva sobre tudo que Bachel dissera durante o banquete. E, ainda assim, ele
permanecia na dúvida. Será que suas suposições eram infundadas? Seus instintos
lhe diziam que havia alguma sinceridade nas afirmações de Bachel sobre destino e
profecia. Ele só não sabia o quê ou o quanto. Talvez seu desejo de aprender mais a
respeito dela e da terra enegrecida fosse tolice.
Ele olhou para Thorn.
— Talvez você tenha razão. Talvez devêssemos ir embora. O que acha?
Thorn pestanejou. Sua surpresa era evidente. Em todo o tempo que passaram
juntos, Murtagh jamais havia sugerido abandonar qualquer objetivo que estivessem
buscando. O dragão cravou as pontas das garras nas rachaduras entre as lajotas.
Se este é o lugar em que os Cavaleiros temiam pisar...
— Talvez não seja.
As narinas de Thorn se dilataram.
Se for, devemos saber, pelo bem dos filhotes no Monte Arngor. Qualquer coisa
perigosa o bastante para ameaçar os antigos Cavaleiros poderia destruir a
próxima geração de dragões. Permaneça na caça, procure o rastro. Há velhos
segredos aqui, posso farejá-los.
— Tudo bem. Mas temos que ser espertos em relação a essa situação. Não vamos
acabar mortos por nada.
Com Thorn atrás dele, Murtagh deu a volta no canto nordeste do templo. Atrás,
havia uma faixa de grama aparada que, apesar da época do ano, estava macia sob os
pés. Uma trilha levava até um pequeno bosque de pinheiros situado na base dos
contrafortes.
À medida que se aproximava das árvores, Murtagh notou que o ar ficava mais
quente e também úmido, e o cheiro de enxofre ressurgiu. O solo ao redor das
árvores estava coberto por uma crosta negra, semelhante à área em frente ao
vilarejo, e pequenas línguas de vapor subiam da terra. E, no entanto, ela não era
estéril. O bosque parecia um jardim. Ao luar, ele viu arbustos de mirtilo e flores —
fechadas e murchas durante a noite —, e uma enorme variedade de cogumelos
dispostos em padrões agradáveis.
Ele pensou no jardim secreto nas catacumbas de Gil’ead.
Thorn hesitou na entrada do bosque, mas os aldeões tinham podado os galhos
mais baixos, deixando a trilha larga e com espaço o bastante para ele caminhar sem
roçar nas árvores. Assim sendo, conseguiu seguir Murtagh, que ficou feliz pela
companhia.
— Lembre-me de apagar seus passos quando voltarmos — murmurou ele.
Thorn emanou uma sensação de confirmação.
O coração do bosque era ainda mais escuro do que o interior da Torre de
Pederneira. Murtagh finalmente cedeu e sussurrou:
— Brisingr.
A luz mágica que ele criou era uma centelha minúscula, não mais brilhante que
um carvão moribundo. Mas foi o suficiente para enxergar onde estava pisando.
A trilha serpenteava entre as árvores, passando por canteiros de plantas bem
cuidadas e capinadas — a maioria eram ervas e bagas — até chegar aos sopés das
colinas.
Lá, Murtagh viu uma escuridão ainda maior se escancarando diante deles, como
uma ferida aberta nas encostas. A princípio, os olhos se recusaram a compreender a
ausência. Ele estava olhando para alguma coisa? O interior de alguma coisa? Era
uma sombra?
Sem entender, Murtagh aumentou o fluxo de energia para a luz mágica,
permitindo que ela brilhasse até...
Ele conseguiu enxergar.
Uma boca de pedra e terra, escancarada diante deles. A caverna era tão grande
que Thorn teria cabido ali dentro. O interior era uma profundeza negra misteriosa
que nadava com sombras impenetráveis e se agitava com sons sinistros: o clique de
uma pedra caindo; uma corrente forte de ar aquecido entrando e saindo, como se as
montanhas estivessem respirando, lentamente e com dificuldade; os guinchos
agudos de morcegos esvoaçantes; e até, imaginou Murtagh, gemidos baixos, quase
inaudíveis, do peso maciço da terra conforme ela se acomodava e se deslocava,
buscando provocar um colapso ainda maior nas ruínas desmoronadas que o tempo
criava em todas as coisas.
Em cada lado da caverna escancarada havia um tipo de alvenaria que combinava
com o resto do vilarejo e, dentro dessa alvenaria, um par de anéis de ferro iguais,
cada um tão largo quanto a altura de Murtagh. Os anéis eram sólidos o suficiente
para conter até mesmo Thorn, e na oscilação da luz mágica, eles pareciam escuros,
enferrujados e com manchas pretas que lembravam sangue seco.
Um altar feito de basalto cortado ficava à esquerda da caverna, e Murtagh achou
aquilo estranho. Teria sido mais impressionante — e visualmente agradável —
centralizar o altar na abertura. Comparado com o altar da catedral de Dras-Leona,
aquele ali parecia tosco, até mesmo inacabado. Ainda assim, ele tinha uma presença
rústica que fez Murtagh pensar em ritos antigos e sacrifícios feitos para apaziguar
um deus cruel.
O fedor de enxofre estava mais forte do que nunca, e uma lufada intensa, quente
e desagradável, saiu da caverna, fazendo Murtagh engasgar-se com o odor de ovos
podres. Ele cobriu o nariz e a boca com a manga.
Thorn provou o ar, torcendo o focinho e sibilando.
Sinto cheiro de carne podre e água corrente e…
As escamas se agitaram.
E o fedor de homens. Eles estão…
Passos soaram do interior da caverna, a princípio fracos, mas estavam se
aproximando. Duas ou mais pessoas saíam das profundezas negras.
Afaste-se!, disse Murtagh, alarmado.
Ele apagou a luz mágica e recuou o mais rápido e silenciosamente que pôde.
Nossos rastros!, comentou Thorn, enquanto fazia o mesmo.
Os passos estavam ficando mais altos.
— Vindr! — sussurrou Murtagh às pressas.
Com o feitiço, ele criou uma pequena corrente de vento que varreu e aplainou a
trilha enquanto os dois corriam pelo bosque.
Olhando por sobre os ombros, Murtagh achou ter visto algumas figuras usando
robes andarem entre as árvores. Seu pulso acelerou. Será que tinham visto Thorn?
Estava escuro e o bosque era denso, então talvez não. Talvez.
Os dois guardas ainda estavam no sono encantado quando ele e Thorn entraram
correndo no pátio.
— Me ajude a subir! — disse Murtagh.
Thorn se agachou e o Cavaleiro subiu no pescoço do dragão, segurando com
força. O animal o ergueu alto o suficiente para que Murtagh subisse correndo no
telhado do templo e entrasse nos aposentos.
Logo em seguida, Thorn se enroscou no outro lado do pátio.
Foi bem na hora. Olhando pela janela voltada para o norte, Murtagh viu quatro
homens, encapuzados e sombrios, passarem pelo templo e se dispersarem pelas ruas
do vilarejo.
Ele soltou o ar, relaxando. A seguir, voltou à janela do pátio e olhou para Thorn.
Bachel tem muito o que explicar, disse ele. E quero saber o que os Sonhadores
consideram tão importante naquela caverna.
Thorn bufou.
Seja o que for, acho que os vapores lá de baixo apodrecem a mente deles.
Murtagh coçou o antebraço, preocupado.
Acho que você tem razão. De qualquer forma, eu gostaria de saber a verdade.
Embora, naquele caso, ele se perguntasse se a verdade não seria tão arriscada
quanto a ignorância. Ele e Thorn se abstiveram de compartilhar seus nomes. Havia
um risco muito grande de serem ouvidos em Nal Gorgoth, mesmo que se limitassem
à privacidade de suas mentes.
Fique de olho hoje à noite, disse Murtagh.
Isso eu farei. Ao menor sinal de algo errado, acordo você.
Obrigado.
Murtagh encerrou o feitiço que estava usando para manter os guardas dormindo.
Os dois homens bufaram e se mexeram, mas não abriram os olhos, porque estavam
mesmo muito cansados, e Murtagh pensou que provavelmente dormiriam até de
manhã.
Por fim, fechou as janelas do quarto e se enclausurou na escuridão densa.
Murtagh acendeu a vela ao lado da cama, foi ao lavatório e fez o possível para se
limpar dos excrementos de corvo. Apesar de usar um pouco de magia, não
conseguiu. Torceu para não estar fedendo a ponto de despertar as suspeitas de
Bachel ou de Grieve.
Sem camisa, Murtagh se sentou na beirada da cama. O colchão era estofado com
lã, não com palha. Um luxo inesperado. Ele segurou o broche de Saerlith, que
também tinha lavado, e examinou o objeto à luz bruxuleante da vela.
Se os Sonhadores de fato tivessem sido aliados de Saerlith ou dos outros
Renegados, a parceria significava tão pouco para eles que haviam deixado aquele
broche abandonado como um dejeto na Torre de Pederneira? Ou será que o objeto
apenas tinha caído e sido esquecido, resultado de algum acidente?
Questões. Tantas questões.
No fundo de sua mente, Murtagh sentiu os pensamentos de Thorn ficarem
estranhos e desconexos quando o dragão caiu em um sono conturbado. Como
sempre, desejou poder acalmá-lo, mas tinha medo de acordá-lo, por isso ficou
sentado e não aproximou sua mente. Os sonhos do dragão apenas pioraram a
sensação de inquietude do próprio Murtagh.
Ele se recostou com um suspiro.
Um dia, dois no máximo. Era isso que se permitiria. Se até lá eles não
encontrassem respostas para as muitas perguntas que Bachel e Nal Gorgoth
provocavam, seria hora de arrancar a informação à força — seja por palavras ou
ações.
Murtagh estremeceu e pegou a camisa.
As câmaras eram frias, e a temperatura caía cada vez mais. Ele pensou em
acender a lareira, mas estava cansado e não queria se preocupar com as chamas
durante a noite. Murtagh molhou os dedos, apagou a vela e se enterrou sob a pele de
carneiro e os cobertores.
Depois de alguns minutos, ele virou a pele de carneiro para baixo. Pronto. Em
seguida, puxou os cobertores até o pescoço e fechou os olhos enquanto o calor se
acumulava em torno do corpo.
Levou algum tempo para acalmar os pensamentos o suficiente para dormir.
Murtagh queria descansar. Suspeitava que o dia seguinte seria difícil, e era
importante estar o mais alerta possível para o caso da estadia deles em Nal Gorgoth
se tornar violenta. Mas não conseguia parar de pensar na Torre de Pederneira, no
broche de Saerlith e na caverna sentada como um grande sapo guloso atrás do
templo.
Recitações de fé
O som dos sinos acordou Murtagh, um som alto e agudo que ricocheteou nas
encostas das montanhas e fez os corvos da Torre de Pederneira crocitarem.
Ele pestanejou, instantaneamente alerta, e estendeu a mão para Zar’roc. A
sensação familiar do cabo envolto em arame o confortou.
Uma luz acinzentada impregnava o quarto. Parecia que a manhã já estava
avançada, mas, por causa das montanhas altas, o sol ainda não havia nascido.
Murtagh procurou a mente de Thorn… e encontrou o dragão já acordado no pátio
lá embaixo.
Eles compartilharam um momento de intimidade.
Você teve o mesmo sonho que eu, comentou Thorn.
Não foi uma pergunta, mas Murtagh respondeu mesmo assim.
Sim. Eu… eu nunca tive uma experiência assim antes.
Ele sentiu Thorn se remexendo.
As visões eram como aquelas que ELE nos mostrou, durante o tempo sombrio.
Murtagh conteve um calafrio. De todas as torturas que Galbatorix lhes infligira,
aquela sempre fora a mais odiada. Sem aviso, o rei enchia suas mentes com
imagens falsas destinadas a confundir os sentidos e dificultar que resistissem à
influência dele.
Sim, mas também eram diferentes, respondeu Murtagh. Eram mais reais do que a
realidade.
Murtagh se sentou e passou as pernas pela beirada da cama. Ele encarou a parede
por um momento e então esfregou o rosto em uma tentativa inútil de dissipar as
memórias da noite.
Umaroth estava certo. Este não é um bom lugar, disse Thorn. Não devemos
demorar mais do que o necessário.
Pode ser, mas quero saber o que Bachel tem a dizer hoje. Ela nos deve uma
explicação. Várias explicações.
Murtagh foi ao lavatório e jogou água fria no rosto. Seria o clima pesado que
impregnava Nal Gorgoth suficiente para explicar os sonhos que ele e Thorn
compartilharam? Ou havia outra força atuando? Ao contrário das coerções de
Galbatorix, Murtagh não havia sentido nenhuma mente tocando a deles durante a
noite. Os sonhos pareciam ter surgido espontaneamente das tocas ocultas da
consciência dos dois.
Thorn bufou.
Não eram sonhos meus.
Não. Murtagh sabia muito bem com o que Thorn sonhava: voos, combates e o
tempo que passou preso em Urû’baen.
Embora o deixasse nervoso, Murtagh usou a palavra kverst para remover a barba
por fazer do rosto. Ela caiu da pele como poeira negra. Ele passou a mão pelo
queixo, satisfeito. Não queria parecer nada menos do que perfeitamente
apresentável diante de Bachel.
A seguir, secou o rosto e prendeu Zar’roc no cinto, onde também enfiou o broche
de Saerlith.
Quando ele se dirigiu para a porta, uma batida soou.
— Posso entrar, Regicida? — perguntou uma mulher.
Murtagh se irritou com o título, apesar de os Sonhadores parecerem usá-lo como
sinal de respeito.
— Pode.
A porta se abriu e revelou Alín, a jovem que havia servido a ele e a Bachel
durante a festa. Como antes, ela usava um robe branco, ao contrário do resto dos
aldeões. Segurava uma bandeja com comida.
Ela se curvou um pouco — o que Murtagh achou estranho; as criadas em
Urû’baen sempre faziam mesuras — e levou a bandeja até a mesinha ao lado da
cama.
— O desjejum, meu senhor.
Murtagh teve uma sensação desconcertante ao ser chamado de meu senhor
novamente. Era um direito dele, mas apenas por causa da traição de seu pai.
Tecnicamente, ele não reivindicava mais nenhum título, exceto o de Cavaleiro... e
Regicida. E traidor.
Ele fingiu um sorriso relaxado enquanto se aproximava para inspecionar o
conteúdo da bandeja. Meio pão de centeio grosso, três bergenheds defumados e uma
caneca de vinho aguado. O padrão, como era de esperar, mas ele não confiava na
comida. O banquete da noite anterior tinha sido um evento espontâneo e ele viu as
refeições serem preparadas. O desjejum, no entanto, poderia ter sido adulterado.
Não valia o risco. Ele pegaria uma ou duas maçãs secas dos alforjes, e isso o
sustentaria por um tempo.
— Infelizmente, não estou com muito apetite — disse ele em um tom suave.
A mulher parecia incomodada por estar ali e enrijeceu quando ele se aproximou.
Depois, abaixou a cabeça e torceu as pontas da fita azul amarrada na cintura.
— Claro, meu senhor. Vou levar a bandeja.
— Seu nome é Alín, não é? — perguntou Murtagh ao vê-la esticar a mão na
direção da bandeja.
— É — respondeu ela baixinho.
Ele assentiu.
— Você faria a gentileza de me guiar de volta ao pátio, Alín? Não me lembro do
caminho. — Uma mentira, mas Murtagh queria a oportunidade de interrogá-la.
Ela se curvou novamente.
— Sim, senhor — respondeu, contida. — Siga-me, senhor.
Com passos rápidos, ela o conduziu para fora do quarto. Murtagh a seguiu, mas
em um ritmo mais lento — lento o bastante para que ela fosse forçada a reduzir o
passo pela metade.
— Diga-me, Alín — disse Murtagh —, pois desejo muito saber: há quanto tempo
Bachel governa em Nal Gorgoth?
Ela lhe lançou um olhar rápido e tímido sob cílios claros.
— Muito tempo, meu senhor. Mais do que eu tenho de invernos.
Murtagh ergueu as sobrancelhas. Se Alín estivesse falando a verdade, então
Bachel era meio elfa — essa era a única explicação óbvia para a bruxa não
apresentar nenhum sinal de idade.
— Você diria que ela tem sido uma governante justa, Alín?
— Claro, Regicida — respondeu ela em um tom de reprovação. — Bachel é a
Oradora. Como ela poderia errar conosco?
— De fato, como? Imagino que ser capaz de prever o futuro ajudaria a evitar tais
acasos. Você diria que ela é adepta da profecia?
A mulher assentiu rapidamente.
— Ah, sim, meu senhor. É o dever da Oradora nos guiar, e temos sorte que ela
seja tão versada na arte dos augúrios.
— Entendo.
Murtagh parou diante dos painéis de pedra entalhada do patamar. À luz da
manhã, eles ainda pareciam perturbadores.
Alín também parou. Ela não tinha escolha.
— Você veste branco, não cinza — comentou Murtagh.
A mulher cruzou as mãos diante de si, e mangas compridas as cobriram.
— Eu sou uma das escolhidas do templo. Esse robe representa nossa pureza.
Enquanto eu servir no templo, por vontade de Bachel, nenhum homem pode me
tocar sob pena de perder as mãos com as quais pecou.
Ela então ergueu o olhar e o encarou. Murtagh viu um desafio naqueles olhos,
como se ela o desafiasse a quebrar a proibição.
— E, da mesma forma, você não pode tocar em um homem.
— Não, meu senhor.
Ele assentiu.
— Qual é o propósito de Nal Gorgoth, Alín? — perguntou com delicadeza. — O
que Bachel busca realizar?
No momento em que as palavras saíram da boca, Murtagh soube que havia
exagerado. As costas de Alín se empertigaram, os ombros se endireitaram, e uma
centelha de fogo rebelde iluminou a expressão dela.
— O senhor não conseguiria entender se eu contasse, forasteiro. Tal compreensão
só pode vir da própria Bachel, pois ela é a...
— A Oradora. Sim, você disse. — Mesmo que fosse mais do que infrutífero, ele
decidiu continuar: — Mas eu me pergunto: de quem Bachel é a oradora, Alín?
Quem é o Sonhador dos Sonhos?
A cor sumiu das bochechas de Alín.
— Por favor, meu senhor. O senhor não deveria me perguntar uma coisa dessas.
— Mas pergunto.
Ela balançou a cabeça.
— Eu não posso dizer. Eu imploro ao senhor...
— Não pode ou não quer?
Ela balançou a cabeça novamente, toda a rebeldia desaparecendo, e virou as
costas para ele.
— O senhor não entende. Não é capaz de entender. Por favor, meu senhor, por
aqui.
Pensativo, Murtagh a seguiu pelo patamar — para longe dos entalhes
enlouquecedores — escada abaixo, e depois pelos corredores que levavam ao pátio.
Quando os dois chegaram à porta que dava para o lado de fora, Alín o
surpreendeu ao parar com a mão no batente.
— Como é a sensação, Regicida? — perguntou em voz baixa.
— Qual sensação?
A mulher olhou para ele com o rosto perdido nas sombras do corredor escuro.
— Viver lá fora... além daqui. Como é o resto da Alagaësia?
— Qual é o ponto mais longe de Nal Gorgoth em que você já esteve?
— Eu nunca saí deste vale, Regicida. — Uma pitada de tristeza defensiva deu o
tom da voz dela.
Não foi uma resposta inesperada para alguém da posição social de Alín, mas
Murtagh achou difícil ter uma perspectiva tão limitada. Estar tão limitado a um
lugar só poderia levar a mente a se tornar igualmente restringida.
Ele pensou por um momento em qual seria a melhor forma de responder àquela
pergunta.
— A Alagaësia é muito maior e selvagem do que você pode imaginar. Há
montanhas tão altas que seus picos desaparecem de vista. Desertos enormes onde
costumavam viver dragões. Florestas tão antigas que nenhuma memória resta de seu
nascimento. E há cidades também: grandes e pequenas, e pessoas de todos os tipos.
Humanos e elfos e anões e Urgals. Até mesmo um povo-gato. E muito, muito mais.
Uma pitada de melancolia talvez tenha aparecido na expressão de Alín, mas era
difícil dizer com certeza no corredor escuro.
— E com o que eles sonham, toda essa gente?
Murtagh observou para ver o efeito que as palavras dele causariam.
— Cada pessoa sonha seus próprios sonhos. Alguns são assustadores ou
desagradáveis, alguns são lindos e esperançosos. Alguns são tolos ou absurdos. Eles
diferem para cada pessoa.
— Mesmo para você?
— Por que não?
— Porque você é um Cavaleiro — disse ela, parecendo confusa.
Ele se sentiu igualmente confuso.
— O que ser um Cavaleiro tem a ver com os meus sonhos?
Alín franziu o cenho.
— O senhor deve saber. Está unido a um dragão, e os dragões são o sangue e os
ossos da terra. Eles são a fonte de tudo o que foi, é e será. Eu pensei que, por causa
de seu vínculo com Thorn...
— Pensou o quê? — perguntou Murtagh gentilmente.
— Que o senhor teria os mesmos sonhos que nós em Nal Gorgoth.
— Todo mundo aqui sonha igual, Alín?
Ela se voltou para a porta.
— É a única coisa que não suporto... A mesmice terrível, noite após noite. Os
sonhos raramente mudam.
Alín empurrou a porta e saiu antes que Murtagh pudesse fazer outra pergunta.
Presa e espada
U ma caçada ao javali teria empolgado e assustado Murtagh quando ele era mais
jovem. Javalis eram animais perigosos, e ele sabia de pelo menos quatro condes que
foram mutilados ou mortos por um porco selvagem. O perigo fazia parte da emoção
da caça; era uma chance de provar a coragem, aprimorar as habilidades marciais e
— para muitos homens — cair nas graças das mulheres na corte. A primeira vez
que Murtagh caçou javalis aconteceu com um grupo de nobres liderado por lorde
Barst. Não tinha sido uma experiência agradável. Ele perdeu a chance de matar um
javali, acabou coberto de lama da cabeça aos pés, e Lyreth e os colegas dele o
zombaram na viagem de volta. Murtagh teve mais sorte nas expedições seguintes,
mas elas sempre foram maculadas pelas lembranças daquela humilhação inicial.
Dessa vez, porém, não sentia nenhuma empolgação com a perspectiva de uma
caçada. As proteções mágicas removiam qualquer perigo possível e, junto com ele,
qualquer sensação de desafio ou realização, deixando apenas abate pela carne. Foi
um pensamento sombrio. Havia uma diferença significativa entre um caçador e um
açougueiro, e ele não desejava ser um deste.
Acompanhado de Bachel e de sua comitiva, ele deixou o templo e retornou ao
pátio da frente.
Caiu poeira da construção quando Thorn aterrissou ao seu lado.
Bachel abriu seus braços para dar boas-vindas.
— Uma caçada, nobre dragão! Junte-se a nós em nossa aventura e você poderá
saciar sua sede de sangue e fome de carne.
Thorn bufou e olhou para Murtagh.
Ela gosta de fazer muito barulho, como uma pega pela manhã.
Você quer vir?
O dragão lambeu os beiços.
Não vou deixar você sair por aí sozinho com ela. Além disso, ela não está
errada; eu estou mesmo com fome.
— Reúnam-se, meus filhos fiéis! — exclamou Bachel. — Tragam-nos cavalos,
água, vinho e tudo o mais que for necessário para uma caçada. E rápido!
Dezenas de cultistas de robes cinza e acólitos do templo de robes brancos
passaram às pressas pelo pátio de um lado para o outro enquanto corriam para
obedecer. Alín se aproximou carregando duas braças de lanças de lâmina larga e
cabo curto e entregou um par a Bachel e outro a Murtagh.
Bachel testou o gume das lanças com o polegar e a apontou na direção de
Murtagh como se fosse um dedo acusatório.
— Existe uma condição para a caça, Regicida.
É claro.
— E qual seria, minha senhora?
— Nenhum feitiço deve ser usado para matar os javalis. Eles são feras sagradas,
tocadas pelo poder deste lugar, e seria desrespeitoso, e uma blasfêmia, agir de modo
diferente.
Murtagh também testou o fio das lanças. Elas estavam afiadas de maneira
tolerável, mas o metal parecia ser um ferro bastante fraco. As pontas não
aguentariam um primeiro golpe e as bordas não permaneceriam agudas depois de
mais alguns. Usá-las seria um desafio, assim como renunciar à mágica.
Ele gostou da ideia.
— Isso parece razoável. Vou respeitar os seus costumes.
Ela assentiu.
— O Sonhador olhará com bons olhos o seu esforço, meu filho.
Então Murtagh gesticulou para as lanças da bruxa.
— Pretende caçar também, minha senhora?
Um brilho surgiu nos olhos de Bachel, que ergueu uma das lanças com uma
facilidade surpreendente.
— Acha que eu sou incapaz?
Ele não achava isso, mas também não conseguia estimar suas habilidades.
— Caçar javalis requer muita força. Nunca vi uma mulher tentar — disse ele,
com voz suave.
A risada de Bachel ecoou nas montanhas e os corvos crocitaram em resposta lá
da Torre de Pederneira.
— Uma mulher humana, você quer dizer. Que bom então que eu não sou apenas
humana. O sangue dos elfos corre em minhas veias. Embora possa não ser tão
grosso quanto o da minha mãe, ainda é mais do que o das mulheres da sua espécie.
— Então estou ansioso para ver sua proeza no campo de ação.
— E eu, a sua, meu filho.
Enquanto os cultistas se apressavam em organizar a caçada, vários dos servos de
Bachel trouxeram biombos e a circundaram com eles enquanto Alín e outras duas
mulheres a atendiam. Quando os biombos recuaram, Murtagh viu que Bachel não
mais usava o vestido vermelho e sim roupas masculinas, com avambraços de couro
nos antebraços e botas de cavalgada que lhe chegavam às coxas, além de um elmo
enfeitado com linhas de rebites cintilantes. O elmo tinha meia viseira para lhe
proteger os olhos e o nariz, e uma gola de cota de malha circundada por elos de
latão ou bronze. Eram belos trajes, na opinião de Murtagh, para a guerra ou o
esporte.
Do meio das construções de pedra, saíram homens com uma vintena de cavalos
— animais baixos e robustos que eram pouco mais altos do que pôneis. A pelagem
era mais felpuda do que qualquer cavalo que Murtagh já tinha visto, como se os
animais estivessem usando cobertores próprios para se aquecer nos longos invernos
do norte.
Murtagh recebeu uma égua com pelagem castanha para montar. Ela nem se
comparava aos cavalos de batalha nos quais fora treinado, mas o animal parecia
bastante estável. Murtagh só torcia que a coragem dela se mantivesse durante a
caçada.
Antes de montar, ele tirou a capa e a enfiou em um dos alforjes que Thorn
carregava. Ela o atrapalharia quando estivesse a pé durante a caçada.
Ao subir na sela, a desaprovação de Thorn tomou conta dele.
Não parece correto ver você cavalgando um desses animais parecidos com
cervos sem chifres.
Cavalos. Eles são chamados de cavalos, e você sabe disso.
Mas soa mais ofensivo chamá-los de cervos sem chifres.
Murtagh olhou para ele. Se Thorn fosse humano, teria jurado que o dragão estava
sorrindo.
Você está se divertindo, não está?
Thorn bufou.
Não é todo dia que vejo um Cavaleiro montando um cavalo.
Enquanto o grupo de caça se preparava para partir, Murtagh percebeu uma coisa.
Cachorros… Eles não têm cachorros.
Depois de perceber isso, reparou que o vilarejo estava em silêncio. Não havia
cães ladrando, nem vira-latas latindo nas ruas ou brigando por comida. O que era
estranho. Em todos os seus anos de vida e em todas as viagens que fez, Murtagh
nunca tinha visto um assentamento humano sem cães.
Os cães são tão importantes?, perguntou Thorn.
São. Para o homem comum, ter um cachorro é a coisa mais próxima do vínculo
que você e eu compartilhamos.
Você está comparando dragões com cachorros?
Não, não. Não dessa forma, foi apenas para dizer que a conexão que um humano
pode compartilhar com um cachorro pode, em parte, se assemelhar à conexão que
temos.
Thorn não parecia convencido.
Hum... Você já teve um cachorro?
Você sabe que não… Os outros meninos teriam machucado ou matado qualquer
cachorro que eu tivesse.
O lábio de Thorn se contraiu ligeiramente, não o suficiente para que outros
notassem, mas Murtagh viu.
Eles não teriam ousado se eu estivesse lá.
Murtagh riu.
Não. Não mesmo.
Ele conduziu a égua até Bachel.
— Eu notei que vocês não têm cachorros.
O desdém aguçou as feições angulosas da bruxa.
— E por um bom motivo. São criaturas blasfemas.
— Cachorros?
— Eles se recusam a aceitar o discernimento que alguém é capaz de receber
através do poder deste lugar. Nenhum cachorro permanece em Nal Gorgoth, e
sempre foi assim. Os corvos são mais sábios. Eles entendem a promessa do sonho.
— Mas como vão cercar os javalis?
O olhar semicerrado de Bachel se tornou misterioso.
— Você verá, Regicida. Não precisaremos da assistência a que você está
acostumado.
Enquanto o grupo organizava as provisões, Murtagh avistou Alín observando no
meio dos pilares sob as sombras do templo, uma figura furtiva, meio escondida
atrás da pedra esculpida.
Quando todos no grupo estavam montados, Bachel ergueu uma lança acima da
cabeça.
— Comigo! — gritou.
Ela esporeou o garanhão peludo adiante, para longe do templo e vilarejo adentro.
Murtagh se sentiu tentado a brandir Zar’roc, como se estivesse reunindo tropas,
mas em vez disso esporeou a égua e seguiu em um ritmo tranquilo. Os cultistas
vieram atrás, e Thorn fechou a retaguarda, com os passos pesados sacudindo a
poeira das telhas das construções ao redor.
Dezenas de aldeões se reuniram nas ruas para vê-los partir. Murtagh avistou um
número surpreendente de crianças entre eles.
Deveria haver mais pessoas aqui, considerando quantos filhos elas têm, disse a
Thorn. É estranho.
Talvez eles mandem os filhotes para outro lugar quando estão crescidos,
respondeu o dragão.
Assim que o grupo alcançou o limite de Nal Gorgoth, Bachel conteve o garanhão
e apontou para o lado sul do vale.
— Está vendo aquele pequeno espaço entre as montanhas, Regicida? Onde as
árvores seguem um riacho que vem das alturas? Aquele é o nosso destino.
— Vamos encontrar javalis lá, minha senhora?
— O suficiente para alimentar um grupo de dragões!
Ela esporeou o garanhão novamente e se curvou sobre o pescoço do cavalo, que
resfolegou assustado e saiu correndo pela terra enegrecida.
Grieve fez uma cara feia e chicoteou a lateral da égua em que estava montado.
— Acompanhem a Oradora, malditos! — gritou para os guerreiros que
completavam o grupo.
Com um clamor de cascos e os gritos dos homens empolgados, eles se dirigiram
para o sul em direção ao espaço estreito que separava uma montanha da outra.
Será de admirar se não espantarmos todos os javalis com essa balbúrdia, disse
Murtagh.
Thorn o surpreendeu alçando voo. Suas asas lançaram uma sombra carmesim
sobre o grupo quando o dragão planou sobre eles.
Farei um reconhecimento à frente e verei onde nossa presa pode estar, antes que
vocês expulsem a caça dos locais em que comem e bebem.
Murtagh observou com certo pesar Thorn subindo com facilidade invejável até os
sopés das colinas. Desejou estar montando o dragão em vez da égua com a pelagem
castanha, porque odiava ser deixado para trás entre desconhecidos.
Acima de tudo, ele odiava como aquela sensação lhe parecia familiar.
O ar ficou mais quente à medida que se aproximavam do vale lateral estreito, e
cada vez mais filetes de fumaça se erguiam da terra incrustada, como enguias-de-
jardim. Em algumas ocasiões, um pouco da fumaça trazida pelo vento atingiu o
rosto de Murtagh, que se engasgou com o fedor avassalador de enxofre. A terra
tinha uma aparência carbonizada e estéril, como se tivesse sido arrasada pelo fogo
em um passado recente.
Como Bachel havia diminuído a velocidade do garanhão para um ritmo mais
moderado, Murtagh conseguiu cavalgar ao lado dela.
— Eu nunca vi um lugar como este antes, exceto na Campina Ardente, bem ao
sul. E ela não cheirava a enxofre.
A bruxa assentiu.
— Existem muitos desses lugares, Regicida, espalhados pela Alagaësia, embora
não sejam fáceis de encontrar. Há outro, não muito ao sul daqui: as catacumbas de
Anghelm, onde Kulkarvek, o Terrível, está enterrado com honras de estado.
Murtagh lutou para esconder sua reação. Kulkarvek foi o único Urgal conhecido
por ter unido a raça briguenta sob o mesmo estandarte, um evento ocorrido muito
antes da queda dos Cavaleiros, se fosse possível acreditar nas histórias. O túmulo
dele era um dos outros locais — junto com as ruínas de El-harím e a ilha de
Vroengard — que Umaroth o havia alertado para evitar.
Porém, o que mais incomodou Murtagh foi a insinuação de que havia muitos
desses lugares na Alagaësia inteira: lugares onde o chão estava queimado e o ar
cheirava a enxofre.
Por que eles não são mais conhecidos?, perguntou ele a Thorn. Mesmo que
estejam em pontos remotos e isolados, os Cavaleiros ou outras pessoas saberiam de
qualquer lugar com um cheiro como esse. Seria difícil de esconder, especialmente
do ar.
Um véu mágico, talvez? Um feitiço que esconde o óbvio da vista?
Proteções mágicas deveriam bloquear esse tipo de coisa.
Depende do feitiço. Você sabe disso. Pode ser um encantamento que ninguém
vivo conhece. Ou algo semelhante ao Banimento dos Nomes.
Murtagh ergueu o olhar para Thorn.
Magia de dragão? Você sente algo do tipo aqui?
Não sei o que sinto, apenas que a terra parece viva, apesar de estar carbonizada.
O mundo se estreitou em volta deles quando o grupo de caça entrou no vale e as
montanhas se apertaram até que os sopés estivessem a apenas algumas dezenas de
metros de distância e densas fileiras de árvores bloqueassem a visão. Era bom que
Thorn estivesse no ar e não ali em um local tão apertado, pensou Murtagh.
Bachel foi à frente por um caminho bem trilhado que serpenteava entre os
pinheiros altos.
Depois da garganta, o vale voltou a se alargar, e Murtagh viu o que em outro
lugar na Espinha teria sido um longo campo alpino onde cervos, ursos e outros
animais selvagens se reuniriam. Ali, não. Ali a terra ainda estava queimada e
enegrecida, e as árvores estavam mortas e esqueléticas — despidas de tudo, exceto
alguns aglomerados de galhos quebradiços. Nada disso causou uma impressão tão
forte em Murtagh quanto a enorme quantidade de cogumelos crescendo no solo.
Havia de todos os tipos. De chapéu marrom, de chapéu branco, redondos como
esponjas do mato, em camadas como o templo em Nal Gorgoth, largos como
escudos ou altos e estreitos como uma lança; a profusão de formas era avassaladora.
Uns tinham lamelas e outros eram vermelhos como joaninhas, e havia alguns
enormes e lenhosos, mais altos do que um homem montado em um cavalo. Um
cheiro intenso e saboroso perfumava a área — como um bife bem cozido —, e véus
finos de esporos marrons subiam levados por correntes de ar ascendente, se
misturando com os filetes de vapor do solo.
No meio do campo e da floresta de cogumelos, Murtagh avistou formas escuras
se movendo entre as sombras: enormes javalis selvagens, com o dorso saliente e
cobertos por uma pelagem grossa e negra.
— Eles comem os cogumelos e crescem em um tamanho excepcional por causa
disso — explicou Bachel enquanto trazia o cavalo para o lado da montaria dele. —
Isso dá à carne um sabor diferente de qualquer outra.
Murtagh balançou a cabeça, ainda absorvendo o que via.
— Eu nunca vi ou ouvi falar de cogumelos assim.
— O solo aqui é bom para eles, assim como é hostil para as plantas verdes.
De cima, parece que o chão está coberto por banha derretida, comentou Thorn,
circulando na extremidade da fenda estreita que dividia a Espinha, a alguns
quilômetros de distância.
Que agradável, respondeu Murtagh.
— Como pode ver, não precisamos de cães de caça — continuou Bachel. — Nós
somos nossos próprios cães de caça. Avançaremos para a cabeceira do vale e os
javalis se reunirão diante de nós. Se o seu dragão...
— Ele é tão meu quanto eu sou dele.
As pálpebras da bruxa ficaram semicerradas como se ela achasse graça.
— É claro, Regicida. Se Thorn quiser caçar lá do outro lado, poderá nos ajudar e
prender os javalis entre nossas lanças e seus dentes e garras.
É um bom plano, disse Thorn, e Murtagh quase conseguiu ouvi-lo estalar o
maxilar com determinação. Farei isso.
O dragão dobrou as asas carmesins e mergulhou em direção ao fim do vale,
descendo como um meteoro flamejante. As fileiras de cogumelos o esconderam
quando ele desceu.
Bachel ergueu a lança.
— Desmontar!
O grupo de caça obedeceu, assim como Murtagh, grato por se livrar da égua
castanha por enquanto.
Alguns segundos depois, um baque surdo ecoou pelo vale — era o som do pouso
de Thorn os alcançando.
Murtagh percebeu que havia inúmeras trilhas de caça serpenteando pelo campo
de cogumelos gigantes — caminhos pisoteados pela passagem de incontáveis
cascos afiados.
Assim como os cultistas, ele prendeu o cavalo e depois partiu a pé pela trilha
próxima. O solo, embora enegrecido, era mais macio do que em Nal Gorgoth, como
se toda a superfície estivesse repleta de fungos.
Murtagh fez uma careta ao pisar em um conjunto de cogumelos marrons, que se
dissolveu em um líquido escorregadio e malcheiroso da cor de fezes.
— Espalhem-se — ordenou Bachel.
Os guerreiros obedeceram rapidamente e formaram uma linha em arco de cada
lado da bruxa. Grieve permaneceu por perto, o que parecia ser esperado.
Murtagh se afastou do grupo em direção ao lado leste do vale. Ele queria espaço
para manobrar, pois caçar com estranhos era perigoso — ainda mais ali. Além
disso, sabia, por causa de caçadas de javalis anteriores, que ter espaço para correr
significava muitas vezes a diferença entre sucesso e lesão ou morte.
— Aonde você está indo, Regicida? — gritou Bachel com uma voz alegre.
— Eu caço melhor sozinho, lady Bachel! — respondeu ele no mesmo tom.
Ela lhe lançou um sorriso selvagem. Os cogumelos pareciam arcaicos —
predecessores primitivos de plantas de acabamento mais refinado —, como se
fossem relíquias de um tempo além da história registrada, e Bachel também parecia
um vestígio desse passado antigo.
— Apenas se lembre de controlar sua língua, Regicida. Você deve matar sem
magia.
— Ah, isso eu farei — murmurou ele.
Por mais fraco que fosse o metal usado para fazer as lanças que lhe deram,
Murtagh sabia que poderia desferir pelo menos um golpe fatal com cada uma.
Eles subiram o vale dando cada passo com muito cuidado. À frente do grupo, um
rugido ocasional soava quando Thorn perseguia um javali ou outro. Não demorou
muito para que o dragão tocasse a mente dele novamente, e Murtagh o encontrou
tomado por sangue, empolgação e pela emoção ardente da caçada.
A bruxa tinha razão, disse Thorn. A carne é boa.
Murtagh riu baixinho.
Essa deve ser toda a recomendação de que um açougueiro ou cozinheiro
precisam. Um dragão disse: “A carne é boa.”
Thorn rugiu achando graça.
As botas de Murtagh amassavam, esmagavam e quebravam cogumelos a cada
passo. Os corpos fúngicos macios tornavam difícil manter uma passada firme. Ele
não estava em nenhuma trilha, o que não era ideal para encontrar caça, mas permitia
que mantivesse distância do grupo de Bachel, algumas dezenas de metros à direita.
Os sentidos de Murtagh se aguçaram quando ele se aproximou da borda de uma
área densa de... Ele não sabia como chamá-las. Árvores de cogumelos? Os troncos
retorcidos eram tão grossos quanto o peito de um cavalo, e pedaços de membranas
semelhantes a teias de aranha estavam agarrados a eles. Por favor, nada de aranhas
gigantes, pensou Murtagh. Ele preferiria enfrentar uma horda de Urgals de mãos
vazias.
O ar era espesso, úmido e cheirava a carne e muito calor, como se Murtagh
estivesse enfiado em uma gigantesca axila suada. Ele fez uma careta e avançou com
cautela, os olhos iam de sombra em sombra enquanto procurava um javali.
Seria uso de magia encontrar as feras com minha mente?
Você se importa em agradar à bruxa?, perguntou o dragão, sem Murtagh
direcionar seu pensamento a ele.
Não, mas me importo em manter minha palavra.
Ele decidiu confiar apenas nos próprios olhos e ouvidos por um momento. Foi
um desafio ainda mais interessante.
Um coro de guinchos e grunhidos soou pelo campo à direita. Ele se agachou e
viu um grupo de sete ou mais porcos selvagens — tanto machos quanto fêmeas —
sair correndo de debaixo dos cogumelos que pareciam árvores e atacar Bachel e sua
linha de guerreiros.
Bachel se apoiou em um joelho só, apoiou a extremidade rombuda da lança no
peito do pé e mirou a ponta da lâmina na direção das feras que se aproximavam. Os
guerreiros fizeram o mesmo, e a bruxa soltou um uivo penetrante que capturou a
atenção do javali líder e atraiu o animal para ela como metal para uma magnetita.
Murtagh observou, sem fôlego por um breve momento, os animais diminuindo a
distância entre eles e os cultistas, destruindo cada cogumelo no caminho.
Alguns dos porcos selvagens contornaram os cultistas que esperavam por eles,
mas três — incluindo o líder — colidiram com os caçadores e se empalaram nas
armas. Um dos guerreiros caiu e gritou ao ser pisoteado por um porco selvagem
enquanto sangue esguichava do peito ferido do animal.
Bachel pegou a presa com a ponta da lança. O impacto a fez recuar vários
centímetros. Então, cravou os calcanhares no chão, empurrou com força e enfiou a
lança no peito do javali indignado. Com um grito alegre, a bruxa se levantou,
ergueu o javali com a arma e jogou o animal moribundo no chão. Foi uma façanha
surpreendente. Mesmo com as habilidades aprimoradas de um Cavaleiro, Murtagh
sabia que seria incapaz de realizar tal ato sem a ajuda da magia.
Bachel plantou um pé nas costas do javali caído, abriu os braços, jogou a cabeça
para trás e encheu o vale com um uivo triunfante.
A visão e o som provocaram uma emoção primitiva em Murtagh. A bruxa era
como uma fera selvagem, pura, feroz e aterrorizante. Naquele momento, Bachel
parecia mais um dragão do que um humano ou um elfo.
— Esse é um para mim, Regicida — gritou Bachel sem olhar para ele.
Atrás da bruxa, o guerreiro pisoteado gemia no chão, com o peito quebrado
arfando. O porco selvagem do homem estava caído de lado a alguns passos de
distância, com um grande ferimento no peito, e chutava e estremecia enquanto
sangrava até a morte.
Então, subitamente, mais mil guinchos pareceram soar: um ataque atormentado
aos ouvidos quando dezenas e depois centenas de porcos selvagens saíram da massa
de cogumelos tamanho família na frente de Bachel e seus guerreiros. Ao longe,
Murtagh ouviu Thorn se aproximando, sem fazer nenhuma tentativa de esconder
seus passos pesados.
Distraído, Murtagh espreitou por entre os troncos das árvores de cogumelos
numa tentativa de enxergar melhor. Ele vislumbrou Bachel posicionando a lança
novamente e os guerreiros se aproximando para proteger os flancos dela.
Outro grunhido soou, surpreendente pela proximidade.
Murtagh se encolheu e se apoiou em um joelho no momento que uma sombra
eriçada avançou em sua direção através da floresta de fungos. As presas brilharam
brancas e afiadas na penumbra, uma boca avermelhada se escancarou e pequenos
olhos rolaram, pretos e redondos. O javali soltou um clamor rouco que Murtagh
tinha ouvido em muitos pesadelos e logo estava em cima dele.
O porco selvagem se chocou contra Murtagh com uma força surpreendente. O
animal era mais denso que qualquer humano e muitas vezes mais forte. Murtagh
sentiu a lança afundar no peito profundo da fera e, da mesma forma, sentiu a
vibração ao longo do cabo quando a lâmina de ferro atingiu uma costela e se partiu
em duas.
O javali guinchou e girou para o lado ao cair sobre Murtagh. Ambos desabaram
no chão enegrecido em um emaranhado de braços, pernas e patas.
Golpes violentos atingiram Murtagh nas costelas e na nuca, e as proteções
mágicas ganharam vida. Ainda assim, os golpes doeram.
Murtagh gritou e tentou se levantar, mas o javali estava deitado transversalmente
em cima dele, chutando e se debatendo, e o Cavaleiro não conseguiu encontrar um
bom ângulo para se erguer.
A seguir, mais javalis passaram correndo — uma torrente de feras assustadas e
enlouquecidas —, e o peso dos porcos selvagens enfiou Murtagh no lamaçal
escorregadio e viscoso dos cogumelos esmagados. Um fedor espesso e podre
entupiu suas narinas, tornando impossível respirar. Dezenas de cascos afiados se
cravaram em Murtagh, mortais como qualquer adaga, e as proteções mágicas
consumiram ainda mais a força dele.
Os guinchos e grunhidos eram ensurdecedores. Um túnel carmesim se fechou em
torno da visão de Murtagh, escurecendo o mundo.
Ele tateou em busca de Zar’roc. Os dedos encontraram o pomo, mas não havia
espaço para desembainhar a espada enquanto estava deitado de bruços.
Uma palavra da língua antiga saltou para a ponta da língua. Bastava dizê-la e ele
poderia afastar os javalis ou mesmo matá-los. Mas aí Murtagh teria falhado no
desafio de Bachel, e o fracasso era mais doloroso do que os golpes que martelavam
seu corpo.
Ele conseguiu tomar um fôlego rápido e superficial. Não foi o suficiente.
Maldição. Murtagh estava ficando sem tempo. Se...
Ele gritou de dor quando um javali pisou no seu cotovelo direito. As proteções
mágicas impediram que a junta quebrasse, mas a pressão enfiou o braço no solo
macio, e o ângulo fez com que algo no cotovelo se esticasse ou se partisse.
Então um casco preto desceu na lateral da sua cabeça, raspando o crânio, e o
impacto virou o pescoço de Murtagh para o lado.
Estrelas tomaram sua visão, o mundo ficou escuro e nebuloso, e todos os sons
desapareceram na distância, vagos e quase incompreensíveis.
CAPÍTULO VIII
Clemência de mãe
Ponto de ruptura
Murtagh sabia que poderia aprender mais sobre os Draumar se fosse assistir aos
rituais funerários, mas não conseguia aguentar mais de Bachel e dos aldeões
naquele momento. Em vez disso, disse a Thorn: Preciso me mover.
Saíram do pátio e Murtagh vagou por Nal Gorgoth com passos duros. A vila
estava sinistramente vazia; todos os cultistas estavam no templo, e os únicos sons
de vida vinham dos corvos na Torre de Pederneira e do gado preso nos limites do
lugar. Quanto aos prisioneiros — os escravos —, haviam sido conduzidos pelos
soldados para longe do templo e sumido da vista de Murtagh. Quase usou a mente
para procurá-los, mas se conteve.
Decidiu que haveria tempo para isso depois.
Thorn seguiu atrás dele, tomando cuidado para não raspar as escamas nas laterais
das construções e destruir os entalhes antigos ou derrubar uma das esculturas
parecidas com dragões.
Murtagh parou e estudou as esculturas. Que elas se assemelhavam a dragões era
inegável, mas também era óbvio que as criaturas representadas tinham diferenças
sutis que as faziam parecer de outra raça. Os espinhos na cabeça eram mais curtos
do que os de Thorn, Shruikan ou Saphira, e as cabeças eram mais compridas, mais
ossudas e mais finas na testa. Talvez as diferenças fossem resultado de escolhas
criativas por parte dos artesãos, mas Murtagh não acreditava nisso. As esculturas
tinham sido feitas com muito cuidado — observadas com muito rigor — para que
tais liberdades ou imprecisões fizessem sentido.
Eles se parecem mais com as Fanghur, disse ele, nomeando as serpentes do
vento, as dragonetes, conhecidas por viverem nas Montanhas Beor.
Aqueles vermezinhos nunca voaram tão para o norte, retrucou Thorn. Não se as
memórias de Yngmar forem confiáveis.
E será que são? O mundo é velho, até mesmo os dragões não sabem tudo de
importante que aconteceu.
É estranho mesmo, comentou Thorn enquanto erguia a cabeça acima dos telhados
para cheirar o ar.
Murtagh seguiu em frente.
Quanto mais andava, mais nervoso ficava. Entre a surra que levara na caçada e a
visão que se seguiu, fora pego desprevenido pela morte de Rauden. Teria ficado
surpreso de todo modo, mas só agora estava tendo tempo para pensar e organizar a
mente. Não importa o que Bachel ou Alín ou qualquer pessoa diga, aquilo foi
errado. Ele bufou. Eragon dissera o mesmo a ele depois que Murtagh matara
Torkenbrand, o traficante de escravos indefeso. Mas fora uma situação diferente.
Torkenbrand era uma ameaça. Rauden, não. Certamente não para Bachel.
Pensar no traficante de escravos o relembrou dos prisioneiros dos cultistas. Seus
escravos.
Uma certeza começou a se solidificar em Murtagh.
Ele parou de novo e olhou para Thorn. O dragão baixou a cabeça até que
estivessem se encarando olhos nos olhos. Murtagh sentiu a mesma certeza nele.
Não me importa o futuro que Bachel veja para nós, disse Murtagh.
Para mim também não.
Só quero saber o que ela e os Draumar estão tentando fazer. Não pode ser nada
de bom.
A respiração quente de Thorn o envolveu, uma sensação reconfortante.
Quer insistir com Bachel?
Murtagh assentiu.
No jantar desta noite. Ou ela responde às minhas perguntas ou...
Nós lutamos?
Se for preciso. Só que... Murtagh estremeceu. As crianças. Temos que proteger as
crianças.
Thorn passou a língua nos dentes.
É difícil lutar em um ninho sem quebrar os ovos.
Então teremos que dar um jeito de esvaziar o ninho primeiro. É um vale bem
grande. Há muito espaço para correr e se esconder.
E se os jovens se recusarem a correr? Thorn inclinou a cabeça. Podem ficar e
lutar como os mais velhos, e então?
Murtagh balançou a cabeça.
Não sei. Vamos fazer o melhor que pudermos. Ele segurou a cabeça de Thorn
com as mãos. Está decidido?
Está.
Ainda assim, a incerteza o corroía. Confrontar a bruxa era uma perspectiva cada
vez mais arriscada, e ele não conseguia explicar bem o porquê. No entanto, estava
determinado, assim como Thorn. Não havia mais como voltar atrás.
CAPÍTULO X
Agitação
E nquanto Murtagh e Thorn refaziam seu caminho pela vila, se depararam com
um velho desdentado sentado perto de um poço, vestido em farrapos, com olhos
azul-esbranquiçados pela cegueira e uma muleta tosca feita a partir de um galho
bifurcado. Ele se balançava e olhava sem ver para as montanhas enquanto sorria e
mascava.
— Arrá! O príncipe sem coroa, andando em uma terra estrangeira — disse o
homem quando Murtagh passou. — Filho da tristeza, bastardo do destino, canto da
traição lamentável. Dragão vermelho, dragão negro, dragão branco... Sol branco, sol
negro, sol morto.
Murtagh parou e se agachou ao lado do homem.
— O que você sabe a respeito de um sol negro?
O homem virou o rosto para Murtagh. A pele estava tão enrugada que pendia em
dobras como couro solto cobrindo os ossos. Ele gargalhou.
— Sonhei com ele. Ha-ha-ha-ha. Sol devorado, terra devorada, o velho sangue
vingado e o novo escravizado. Você sonhou, pequeno príncipe? Você vê? O que foi?
A Oradora comeu sua língua? Ha-ha-ha-ha.
— Ninguém comeu a minha língua — disse Murtagh em tom ameaçador.
O homem o ignorou e se virou na direção de Thorn.
— Altivo, esguio, escolhe, escolhe, escolhe, mas não consegue acordar para a
vida, ó, não. Sirva ao senhor ou durma para sempre. Que mentiras imortais podem
surgir em eras, ha-ha-ha-ha!
E o homem não disse mais nada que se assemelhasse a um discurso coerente.
Frustrado, Murtagh se levantou e voltou pela aldeia.
Isso é inútil, disse a Thorn. São todos loucos. Este lugar deveria ser chamado de
vilarejo dos enigmas.
Talvez tenha sido isso que prendeu Galbatorix e os Renegados.
O quê? Enigmas sem fim?
Você consegue pensar em uma armadilha melhor para uma mente afiada?
Murtagh não conseguiu.
Eu me pergunto se todo mundo acaba que nem aquele velho confuso se fica neste
vale amaldiçoado tempo suficiente.
Ao voltarem ao templo, Murtagh e Thorn encontraram os cultistas preparando
outro banquete. Mesas e cadeiras e peles tinham novamente sido espalhadas ao
redor da fonte arruinada, entremeadas com braseiros cheios de carvão e fogueiras
assando carnes em espetos.
A comida estava longe de ficar pronta, então Murtagh se recolheu a seus
aposentos por um tempo. Tentou tirar um cochilo, mas sua mente estava agitada
demais para dormir. Em vez disso, ficou deitado na cama com os olhos fechados, e
arriscou expandir os pensamentos e vasculhar levemente o vilarejo e a área embaixo
dele, procurando um grande número de pessoas escondidas nas proximidades.
Murtagh encontrou algumas centelhas intensas de consciência onde não esperava —
uma sob o templo e várias agrupadas no topo da torre mais alta —, mas nenhuma
grande horda escondida, nenhum exército esperando para invadir o sul e tomar a
Alagaësia.
Deveria ter sido um alívio, mas ele continuou tenso.
Por fim, pôs-se de pé e voltou ao pátio, onde foi se sentar junto de Thorn. Lá, ao
menos, sentiu-se mais tranquilo.
Conforme o sol descia, Grieve surgiu do templo e começou a gerenciar a
arrumação. Então veio Bachel.
A bruxa retirara a roupa de caçada e usava agora um vestido de lã fina tingida de
roxo-escuro, quase preto, e uma tiara de ouro e prata incrustada com cabochões de
rubi adornava sua cabeça. Um pesado manto de lã, vermelho como folhas de
outono, envolvia seus ombros.
Ela cumprimentou Murtagh e Thorn e seguiu para seu tablado. Ali, um grupo de
acólitos em robes brancos se reuniram em um círculo ao redor dela e começaram a
se balançar enquanto cantavam e murmuravam. Murtagh não viu Alín entre eles.
Bachel estava com a cabeça e os ombros acima dos acólitos — a altura dela era
aumentada pela plataforma onde estava. Ela balançava com os acólitos, de olhos
semicerrados e braços erguidos para o céu, como se implorasse pela bênção de um
deus invisível.
Povo estranho, comentou Thorn.
Murtagh grunhiu.
Depois de alguns minutos, Alín foi até ele. Ela evitou o olhar de Murtagh.
— Como posso servir a você e a Thorn, meu senhor? Posso trazer algo para
beber?
Murtagh recusou a oferta.
— O que ela está fazendo? — perguntou, apontando para Bachel.
— Ela está orando por um clima ameno durante o inverno, meu senhor. E está
evocando sonhos para libertar as mentes dos escravos que nossos guerreiros
trouxeram.
Algo na fala de Alín o perturbou, mas ele não sabia o motivo.
— E para quem Bachel reza?
Alín recuou.
— Trarei vinho e queijo, meu senhor, para sustentá-lo até o festim.
— Espere, não é...
Mas a jovem já tinha se afastado às pressas, de cabeça baixa e coberta pelo
capuz.
Murtagh soltou um rosnado baixo e se recostou em Thorn.
O que sonhos têm a ver com convencer prisioneiros a se juntar à sua causa? Se
os sonhos forem parecidos com os que tivemos, eles só vão querer ir embora.
Uma pequena baforada de fumaça subiu das narinas de Thorn.
Talvez eles sonhem diferente de nós. A bruxa disse que nem todo mundo aqui tem
essas visões.
— Hum — disse Murtagh, sem se convencer.
Bachel continuou a balançar e cantar com seus seguidores até que Grieve tocou
um gongo de latão. Então ela bateu palmas.
— Vamos comer! — gritou. — Regicida, junte-se a mim.
Ela se afundou em sua liteira na plataforma.
Relutante, ele se juntou a Bachel.
Expectativa
J á estava escuro quando eles terminaram o banquete. Bachel, como parecia ser
seu costume, comera tudo que lhe fora oferecido, e ainda mais, e bebera um
pequeno barril de vinho tinto, e agora jazia em lassidão na plataforma, cheia e
satisfeita. Olhando para ela, Murtagh pensou em um sapo gordo e enorme, feliz
com a própria gula.
A um sinal de Grieve, os liteireiros da bruxa ergueram a liteira e a levaram para o
interior escuro do templo. A música então parou, os cultistas começaram a remover
as mesas e arrumar o festim. Alín foi até Murtagh e se ofereceu para conduzi-lo até
os aposentos dele.
Depois de se despedir temporariamente de Thorn, Murtagh aceitou.
O robe branco de Alín parecia quase brilhar enquanto ela o conduzia pelos
corredores sem iluminação do templo.
— Bachel já tinha feito algo como aquilo antes? — Murtagh sabia que não
precisava especificar sobre o que estava falando.
Uma hesitação momentânea, uma falha quase imperceptível, surgiu no andar de
Alín.
— Uma vez, há muito tempo, meu senhor. Uma mulher veio a Nal Gorgoth.
Uluthrek era o nome dela, o que era estranho, pois era humana. Bachel foi tratar
com ela fora do vilarejo. Ninguém escutou o que elas disseram, mas o Vale dos
Sonhos tremeu como aconteceu hoje.
— Bachel foi encontrar a mulher? — Murtagh teve dificuldade de imaginar.
— Sim, meu senhor.
— Você sabe por quê?
— Não, meu senhor.
Quando os dois chegaram às portas dos aposentos, Murtagh disse:
— Alín, você está presa a juramentos. Isso eu entendo. Mas preciso saber qual é
a fonte de poder de Bachel. Diga-me isso, pelo menos.
— Ela é a Oradora, meu senhor. Todos os que servem como Oradores têm esse
poder.
— Sim, mas por quê? De onde ele vem?
Um toque de exasperação animou as feições da jovem.
— Que pergunta boba. Vem do Sonhador dos Sonhos, como tudo na vida. — Ela
fez uma reverência e concluiu: — Seus aposentos, meu senhor.
Alín se virou para ir embora.
— Espere!
Sem pensar, Murtagh estendeu o braço para detê-la, mas Alín percebeu e se
encolheu da mão dele como se fosse um ferro em brasa. As costas dela bateram em
uma coluna embutida na parede.
Alín soltou um grito angustiado e arqueou o peito, perdendo toda a compostura.
Murtagh recolheu a mão quando percebeu que quase a tocara. Ele franziu os
olhos ao ver como Alín endireitou cuidadosamente a postura, o rosto pálido como
neve recém-caída.
— Ela mandou chicotear você — disse Murtagh.
Não foi uma pergunta. Ele reconheceu a maneira como Alín se moveu; ele
sempre se movimentava da mesma forma após Galbatorix tê-lo mandado para o
poste.
— Eu não deveria ter falado com o senhor como fiz antes — contou Alín em voz
baixa.
— Depois da caçada? — Murtagh lutou para manter a voz sem um traço de raiva.
Ela assentiu.
— Foi errado falar com tanta intimidade. Eu errei.
Alín cobriu o rosto com as mãos e, antes que Murtagh pudesse responder, saiu
correndo, com os sapatos de couro macio tamborilando pelo corredor de pedra.
Quando o fogo já tinha ardido pelo que pareceu uma hora, Murtagh apagou as
brasas com a sola da bota, foi até as janelas voltadas para o leste e olhou para baixo,
para os homens que montavam guarda no pátio.
Ele praguejou. Em vez de dois, havia sete guerreiros, todos acordados. E nos
peitos cobertos por cotas de malha, Murtagh viu o conhecido amuleto encantado
dos cultistas, feito de caveira de pássaro. Bachel estava lhe mandando uma
mensagem. Ela sabia que Murtagh havia escapado do quarto na noite anterior e
estava tomando precauções para impedi-lo de fugir novamente. Sete homens ou
dois — os números não importavam. O que importava eram os amuletos, que
poderiam bloquear o feitiço que ele havia usado antes.
Só havia uma maneira de descobrir.
— Slytha — murmurou ele.
Murtagh sentiu uma diminuição mínima de força, mas os homens pareciam
impassíveis.
— Maldição — disse ele entre os dentes cerrados.
Thorn olhou para o Cavaleiro de onde estava deitado sobre as lajotas.
Você deseja que eu remova os homens?
A ideia era tentadora.
Não, ainda não. Deixe-me pensar um momento.
Uma baforada de fumaça cinza saiu das narinas de Thorn. Os guerreiros lançaram
olhares nervosos ao dragão.
Murtagh se afastou das janelas e andou de um lado para o outro do quarto
enquanto considerava as opções.
Foi a lembrança da caixa de confusão que lhe deu a primeira dica de uma
solução. A caixa tinha sido projetada para capturar e conter conjuradores que
também estivessem protegidos contra magia. Ela realizava isso por meio de uma
combinação de força bruta e da alteração das coisas em volta de seu pobre
prisioneiro, e não na pessoa em si.
Teremos de ser rápidos, disse Murtagh ao se voltar para as janelas.
Eles não vão escapar, respondeu Thorn.
Murtagh flexionou as mãos e se preparou.
— Thrysta vindr — sussurrou. O feitiço era bastante simples, mas era a intenção
que importava.
A princípio, os sete guerreiros não perceberam que algo estava errado. Então um
deles fez uma expressão curiosa e apontou em pânico na direção do homem à
frente. O companheiro franziu a testa.
Murtagh já estava em movimento. Ele saltou pela janela, deslizou pelo telhado
abaixo, mal se preocupando em diminuir a velocidade, e aterrissou no pátio.
A aparição repentina assustou os homens e os fez pegar suas lanças e apontar
para Murtagh. Mas, quando tentaram gritar e dar o alarme, nenhum som saiu de
suas bocas. Pois, como Murtagh sabia, o feitiço havia endurecido o ar em torno dos
rostos dos guerreiros, de modo que eles não podiam inalar nem exalar.
Os olhos dos homens se arregalaram de raiva, indignação e horror, e os rostos
ficaram roxos quando o sangue congelou sob suas peles. Mas foram corajosos,
Murtagh teve que admitir. Cinco guerreiros avançaram contra ele enquanto um se
virava para correr até a parte principal do vilarejo e outro para a entrada do templo.
Thorn esticou a pata dianteira e jogou no chão o guerreiro que ia em direção ao
vilarejo. Ele não se levantou.
Murtagh disparou para o lado e deu uma ombrada no homem que corria para o
templo. O guerreiro tropeçou e caiu.
Os outros cinco se aproximaram. O golpe desajeitado de uma lança desviou nas
proteções mágicas de Murtagh, que conseguiu recuar e colocar a fonte arruinada
entre ele e os perseguidores.
Os guerreiros tentaram ir atrás, mas estavam sem ar. Um após o outro, eles
desmoronaram, os rostos manchados e pálidos, e veias salientes nos pescoços
tensos.
Então tudo ficou silencioso, exceto pelos pés se debatendo nas lajotas.
Murtagh correu até Thorn e verificou se as correias da sela estavam bem presas.
Ele não a tinha removido durante todo o tempo em que os dois estiveram em Nal
Gorgoth, nem Thorn pedira isso a ele.
— Agora não tem mais jeito — disse Murtagh em voz baixa.
Temos que ir, antes que alguém note.
— Primeiro a caverna.
Thorn bufou em reprovação, e Murtagh o encarou.
— É nossa única chance de descobrir o que tem lá.
O dragão rosnou do fundo do peito.
Está bem, mas vou ficar feliz de ir embora deste lugar.
— Então somos dois.
O último dos guerreiros parou de se mover enquanto Murtagh ajustava a bainha
da espada e pegava seu manto dos alforjes. A armadura teria sido um conforto —
ainda que pequeno —, mas mesmo com uma leve camada de ferrugem agindo como
amortecedor de som nos anéis de ferro, ele temia que a cota de malha fizesse muito
barulho.
Com Thorn como um companheiro furtivo na retaguarda — ou tão furtivo quanto
um dragão do tamanho dele poderia ser —, Murtagh saiu de mansinho pelo canto
nordeste do templo e se dirigiu para o bosque de pinheiros, passando pelo trecho de
relva aparada. Na entrada do bosque, parou para vasculhar com os pensamentos.
Não encontrando ninguém à frente, ele sussurrou “Brisingr” e criou uma fraca luz
mágica vermelha no ar acima.
O fogo arcano iluminava o caminho enquanto eles prosseguiam pela trilha que
serpenteava entre os pinheiros escuros. As trevas e a escuridão avançavam por
todos os lados, como se o único pedaço de realidade que existisse fosse o pequeno
círculo de terra que a luz mágica pintava de vermelho.
Thorn tremeu, incomodado, e manteve a cabeça e o rabo baixos para evitar os
galhos.
Sob os pinheiros, o ar estava carregado com o cheiro de ervas e cogumelos, além
do onipresente fedor de enxofre. Murtagh sentiu como se os dois estivessem no
depósito de um curandeiro e imaginou que usos teriam as plantas.
Na caverna escancarada situada no sopé das colinas, Murtagh viu uma mancha de
sangue fresco no altar à esquerda da abertura. No brilho rubi da luz mágica, a marca
era preta como tinta e, ao vê-la, o Cavaleiro teve um mau pressentimento.
Ele soltou Zar’roc na bainha e seguiu em frente.
Uns cinco metros caverna adentro, Murtagh ouviu os passos de Thorn vacilarem
e pararem atrás dele. Ele olhou para trás e viu o dragão bem rente ao chão, com asas
apertadas contra o corpo e lábio de cima enrugado em um rosnado de medo.
Murtagh olhou para o teto arqueado de pedra lá no alto.
— Até aqui? — disse ele em voz baixa.
Ele achava que tinha espaço suficiente para que Thorn não se sentisse ameaçado.
O dragão rosnou baixo.
Desculpe.
— Suas asas nem tocam as paredes. Você ainda pode lutar se precisar e, se
tivermos que fugir, há espaço para você se virar...
Não. Eu… Thorn colocou uma pata para a frente, tremeu violentamente e a
recolheu. Ele pestanejou e uma película reluzente cobriu os olhos, brilhando ao
refletir a luz mágica. Eu quero, mas não consigo.
Murtagh voltou para Thorn e abraçou seu pescoço. Por um momento, os dois
ficaram assim, e o calor das escamas aqueceu o peito de Murtagh através da camisa
fina de linho.
— Está tudo bem — murmurou. — Fique aqui. Serei rápido e então podemos ir
embora.
Thorn zumbiu, parecendo envergonhado.
Eu gostaria de não ter tantos defeitos.
Uma onda de tristeza, compaixão e pesar tomou conta de Murtagh.
Minhas dores são diferentes das suas, mas tenho tantos defeitos quanto você, se
não mais, disse, abrindo mais a mente. Você sabe.
Eu sei.
Ninguém é perfeito. Ninguém passa pela vida ileso. Portanto, não se culpe pelo
que está fora do seu controle. Estamos aqui e temos um ao outro. Isso é o que
importa.
Outro tremor percorreu o corpo de Thorn.
Vou tentar seguir você. Se…
Não, não. Fique aqui. Tentaremos em outro lugar, quando não tivermos que nos
preocupar em levar uma facada nas costas. Fique, não vou demorar.
Promete?
Eu prometo. Wiol ono.
CAPÍTULO XII
Pesadelo
Ele estava parado na sacada real com vista para a arena, com Galbatorix atrás
dele, aproximando-se sem ser visto, pois Murtagh mantinha o olhar fixo no ringue
de areia — o mesmo ringue onde ele havia matado seu primeiro homem.
— Observe agora — disse o rei, e a voz continha a autoridade de um trovão.
Murtagh agarrou o parapeito da sacada e apertou até as unhas ficarem brancas.
Ele queria gritar e reclamar — queria pular o parapeito e cair dentro da arena —,
mas isso só pioraria a situação.
Thorn estava no centro da arena. Ele tinha apenas quatro dias de vida: ainda
fraco e incapaz de voar, embora não parasse de levantar as asas finas e diminutas e
empurrá-las para baixo em uma tentativa inútil de decolar. O dragão andava em
círculos, chilreando de preocupação, sem saber para onde ir ou o que fazer. Ele viu
Murtagh na sacada e soltou um gemido lamentável, e o homem sabia que seus
próprios sentimentos estavam afetando o filhote. Então, ele endureceu o coração e,
apesar da angústia que isso lhe causou, fechou a mente para o filhote lá embaixo.
— Ele é jovem demais — disse Murtagh entre os dentes cerrados.
— Nenhuma criatura é jovem demais — respondeu o rei. — Se ele quiser
sobreviver, deve aprender a lutar e se alimentar. Não há outro jeito.
As portas levadiças de ferro em ambos os lados da arena se ergueram e, de cada
abertura, um par de lobos cinzentos saltou para dentro do ringue. Eles rugiram e
rosnaram quando viram Thorn, e seus pelos se eriçaram.
Thorn recuou, mas não havia para onde correr ou se esconder.
— Por favor — disse Murtagh, rangendo os dentes.
— Não.
O rei estava tão perto que Murtagh sentia a respiração quente em sua orelha.
Os lobos cercaram Thorn. O dragão era mais comprido que eles, mas os lobos
tinham muito mais massa corporal do que o filhote.
Depois de algumas tentativas frustradas, os lobos começaram a avançar e
beliscar as asas e a cauda de Thorn.
O dragão se contorcia para enfrentar cada nova ameaça, mas não era rápido o
suficiente, e os lobos se moviam juntos com uma compreensão silenciosa. Em
segundos, gotas de sangue fumegante pingavam dos rasgos nas asas de Thorn, e ele
ergueu a pata esquerda do chão, incapaz de apoiar o peso nela.
Cada gota de sangue parecia o fim do mundo.
Murtagh sentiu como se estivesse prestes a explodir. Ele derrubou a barreira que
havia erguido na mente e disparou os pensamentos para a pequena, mas feroz,
consciência do dragão.
Thorn se encolheu, distraído, e os lobos se aproximaram.
Pule!, gritou Murtagh na mente do dragão, incluindo uma imagem do que ele
queria dizer.
Thorn hesitou, ainda indeciso, e um dos lobos mordeu a cauda dele. Com um
ganido, o dragão girou para enfrentar o agressor.
Isso foi um erro. Os outros lobos correram para ele, com as mandíbulas abertas
e presas espumando, prontas para se fechar nas patas delgadas e nas asas
delicadas de Thorn.
Murtagh forçou determinação na mente ainda não desenvolvida do dragão e
gritou novamente: Pule! Para seu alívio, Thorn saltou e usou as asas para ganhar
um pouco mais de altura até cair do outro lado da arena. Os muros eram altos
demais para ele transpor, o que significava que tinha que lutar.
Os lobos correram atrás dele, e Murtagh deu mais instruções ao dragão. Thorn
era, como todos os integrantes da espécie, um lutador nato, e levou apenas alguns
segundos para começar a entender e reagir.
Thorn saltou nas costas do lobo mais próximo e cravou os dentes no pescoço da
fera. Com um gesto forte e violento, arrancou um pedaço de couro e músculo —
liberando um jato de sangue — e então saltou para um segundo lobo.
O lobo se contorceu quase ao meio, tentando morder o dragão, mas Thorn
cravou as garras e mordeu a cabeça dele até que as patas da criatura se dobraram
e ela caiu no chão.
A queda derrubou Thorn de lado e, antes que Murtagh pudesse fazer qualquer
coisa para ajudar, os outros dois lobos avançaram e começaram a atacar o filhote
brutalmente.
— Não!
Por alguns segundos, o dragão mal esteve visível, perdido sob um nó confuso de
pelagem, patas e caudas cinzentas. Grunhidos, rosnados e ganidos de dor
encheram a arena, e jatos de sangue se espalharam pela areia batida. Murtagh
sentiu dores intensas vindo de Thorn e temeu que tudo estivesse perdido. Ele não
conseguia entender. Por que Galbatorix permitiria que sua mais nova conquista
morresse?
— Como pôde? — disse ele, mal conseguindo formar as palavras.
— Veja.
Os lobos se separaram. Um se arrastou para longe, com as patas traseiras
flácidas e inúteis, o pelo emaranhado de saliva, espuma e sangue. O outro rolou
para o lado, com as patas chutando o ar e a barriga rasgada e uma pilha de
intestinos cinzentos saindo. Os chutes diminuíram.
Entre os lobos estava Thorn. O pequeno dragão estava espancado e dilacerado
— as asas, retalhadas em vários lugares —, mas fogo ardia em seus olhos
brilhantes, e sangue escorria das presas afiadas como navalhas e das grandes
garras nas patas traseiras.
Com um pequeno rugido, Thorn correu atrás do lobo com as patas traseiras
paralisadas. Ele mordeu e segurou a nuca do lobo, e o animal estremeceu e ficou
mole, morto.
A seguir, Thorn se agachou sobre a presa e começou a dilacerar o cadáver, com
uma fome voraz.
— Viu só? — disse o rei. — Ele é um dragão, e os dragões foram feitos para
matar. É assim que eles são. É assim que você é. Se aprender isso agora, os
próximos dias serão muito mais fáceis para você, ó filho de Morzan. Agora vá até
ele e cure o seu dragão como quiser.
— Eu vou te matar por isso.
Uma risada grave atrás dele.
— Não, isso você não fará. Você sonhará em me matar, planejará me matar,
desejará minha morte de todo o coração, mas no final verá a retidão de meus
preceitos e perceberá que não há como se opor ao meu poder. Você é meu,
Murtagh, assim como Thorn, e me servirá como seu pai serviu antes de você.
Para isso, Murtagh não tinha resposta. Ele foi cuidar dos ferimentos de Thorn.
Essa também não foi a única ocasião que eles visitaram a arena. Cada vez que
Thorn ficava com fome, Galbatorix o forçava a lutar por comida, e Murtagh não
tinha escolha a não ser assistir, impotente, enquanto o jovem dragão matava e
matava novamente. Mesmo quando Thorn cresceu mais do que o maior dos ursos, o
rei ainda insistia em fazê-lo enfrentar a presa em um conflito mortal.
Murtagh viu as areias do ringue se encharcarem de sangue e, fora da cidadela, o
céu ficar vermelho. Em volta, ouviu os sons de prisioneiros gritando e se
lamentando em tormento, e se virou e correu sem parar por um labirinto de túneis
rochosos. Mas Murtagh sempre voltava ao cemitério da arena e, toda vez, via
Thorn curvado sobre as presas, sozinho, assustado, coberto de sangue e comendo,
faminto.
Assim como Thorn teve suas provações, Murtagh também teve as dele. E elas
foram tão longas, sangrentas e inescapáveis quanto.
E, debaixo disso tudo — subjacente às imagens e emoções avassaladoras
trazidas do passado indesejável —, estava o vazio escancarado, e dentro dele… um
núcleo de loucura que girava lentamente em torno de algum propósito
desconhecido, mas implacável.
E Murtagh chorou e gritou de medo.
CAPÍTULO XIV
Uvek
M urtagh acordou.
Não houve retorno lento à realidade. Nenhum aumento gradual da luminosidade,
nenhuma ampliação da consciência dos sentidos. Em um momento, nada. No
seguinte...
Estava sobre um piso de pedra cinza, a centímetros do nariz. A pedra estava
rachada e pequenas filigranas de musgo haviam se infiltrado nas fendas minúsculas
do material: um rendilhado de verde em uma superfície nua e austera. O cheiro de
musgo e pedra combinados era como o odor de um riacho de montanha ou então de
uma caverna profunda com um lago que nunca era banhado pelo sol.
O corpo de Murtagh estava frio. Ele estava deitado de bruços no chão duro, o
joelho esquerdo latejava e o braço direito havia ficado dormente após tanto tempo
dobrado sob o peso do corpo.
Quanto à mente... os pensamentos estavam mais claros, mais concentrados do
que antes, embora ele ainda se sentisse estranhamente tonto, e havia um gosto
enjoativo no fundo da garganta que Murtagh achou que deveria reconhecer...
Ele se lembrou das cavernas embaixo do vilarejo, do lodo brilhante e de ter
encontrado o poço onde Bachel e Grieve o confrontaram.
Ele se sobressaltou. Thorn!
Com o braço esquerdo, Murtagh se ergueu. A cabeça girou, e ele se apoiou no
chão e fechou os olhos até recuperar o equilíbrio e o braço direito parar de formigar.
A seguir, olhou em volta.
Estava em uma cela escura, não muito diferente daquela em que ficara confinado
sob Urû’baen. Havia um catre estreito de madeira em uma parede, com um balde
para fazer as necessidades ao lado. A capa estava embaixo dele, amassada e
enrugada. Não havia janelas, apenas três paredes de pedra nua e barras de ferro
onde deveria estar a quarta. (Murtagh notou que as barras haviam demandado uma
quantidade incomum de metal para um vilarejo tão pequeno.)
A única luz vinha de uma pequena lamparina perto do final do corredor em frente
à cela.
Do outro lado do corredor havia mais três celas, perdidas em sombras escuras.
Murtagh tentou entrar em contato com Thorn através da mente, mas não
encontrou o fio de conexão. Além disso — e tão preocupante quanto —, Murtagh
não conseguia sentir qualquer outra mente nas proximidades. Ou o vilarejo estava
deserto, ou de alguma forma os filamentos de pensamento de Murtagh estavam
sendo bloqueados... E o que era aquele gosto grudado em sua língua e sua
garganta? Ele quase conseguia reconhecê-lo.
O medo se instalou como chumbo frio nos ossos de Murtagh. Mais uma vez, ele e
Thorn se viam derrotados, assim como aconteceu com Galbatorix. E mais uma vez,
presos contra a vontade, pois ele não podia imaginar que Thorn estivesse livre para
lutar ou já o teria resgatado.
Mesmo nos piores pesadelos, Murtagh nunca imaginou que os dois se
encontrariam em uma situação semelhante novamente.
Tolo, pensou e se xingou. Tinha sido confiante em excesso e tanto ele quanto
Thorn estavam pagando o preço.
Haveria tempo suficiente para recriminações mais tarde. Por enquanto, ele tinha
que se concentrar na fuga.
Murtagh cerrou as mãos várias vezes em preparação. A seguir, agarrou o ferro
frio, concentrou a determinação e sussurrou:
— Kverst.
Nada aconteceu. Murtagh não conseguia romper a barreira na mente — o painel
fino e semelhante a vidro que uma consciência tinha que quebrar para manipular
diretamente a energia. Ele tentou de novo, mas não encontrou um ponto de apoio
para sua determinação. A barreira fugia do alcance, e os pensamentos dele
permaneciam muito desconcentrados para perfurá-la.
O medo se aprofundou até ficar mais parecido com desespero. Ele reconheceu
então o sabor que sentia: a droga chamada vorgethan, ou alguma composição dela.
Galbatorix dera a mesma coisa para ele em Urû’baen até forçar sua lealdade; Durza
tinha usado a droga em Eragon em Gil’ead, e a Du Vrangr Gata forçava os mágicos
que se recusassem a ingressar ou jurar lealdade à organização deles a consumi-la.
Pois a vorgethan tinha dois efeitos muito específicos: desacelerava os
movimentos do corpo e tornava quase impossível conjurar feitiços.
Murtagh balançou a cabeça, consternado e furioso consigo mesmo. Como fui tão
estúpido? Escapar seria muito mais difícil agora. Se conseguisse entrar em contato
com Thorn... O dragão deveria estar acorrentado e, além disso, a vorgethan também
tornava difícil tocar a mente dos outros.
— Seus sortilégios não vão funcionar, humano.
A voz era grave como rochas retumbantes e selvagem como um vento do norte.
Veio da cela oposta à dele, e deu um susto em Murtagh, que tropeçou, as mãos
erguidas como se fosse se defender de um ataque.
Uma forma se moveu nas sombras: uma massa descomunal, com ombros largos e
uma cabeça muito maior do que deveria ser...
Do breu completo emergiu um rosto surrado e cheio de cicatrizes, tão largo
quanto o peito de Murtagh. Pele cinza, olhos amarelos, dentes pontiagudos e
enormes chifres de carneiro que desciam em voltas afiadas, contornando as maçãs
do rosto largas...
Um Urgal!
A nuca de Murtagh se arrepiou enquanto o Urgal o estudava do outro lado do
corredor com seus olhos amarelos tão ferozes quanto os de um gato selvagem. A
criatura usava um gibão de couro de urso grosseiramente costurado, enfeitado com
pelo. Os braços eram musculosos, e a pele tinha cicatrizes e tatuagens com
desenhos familiares para Murtagh; ele os tinha visto nos estandartes nas aldeias de
Urgals sobre as quais havia sobrevoado com Thorn. Uma tanga de couro
completava o traje da criatura. Ele não usava calçados, e Murtagh viu as unhas
amarelas em forma de garra nos pés de sete dedos.
— Ela usou o Sopro em você — disse o Urgal.
A boca e o queixo se projetavam do resto do rosto o suficiente para lhe dar um
leve focinho, e o maxilar pesado mutilava as palavras de uma forma que Murtagh
achou difícil de entender. Mas conseguiu entender.
— Foi assim que ela capturou você, humano.
— O So... Como você conhece a nossa língua, Urgal?
Murtagh achou difícil encadear as palavras em frases coerentes. A mente ainda
estava estranha: os pensamentos continuavam patinando em direções diferentes, e o
corpo parecia leve e desequilibrado, sem substância.
Os olhos do Urgal se desviaram, como se ele estivesse olhando para algo
distante.
— Eu conheço muitas coisas. Qual é o seu nome, sem-chifres?
Murtagh conhecia Urgals o suficiente para ter noção de que tinha sido insultado
pela criatura — e gravemente. Se fosse um Urgal, ele imaginou que isso o
incomodaria, mas não era nem se incomodou.
Por um breve momento, Murtagh pensou em mentir, mas mentiras estavam além
de sua capacidade no momento. Mesmo assim, ele foi cauteloso.
— Nomes são coisas poderosas. Seria uma tolice… tolice compartilhá-lo sem
prudência.
Mais uma vez, o Urgal se concentrou nele. A criatura fez um humm fundo na
garganta e arranhou o emaranhado de cerdas negras que cobria o peito.
— Você diz a verdade, mas alguns nomes são mais perigosos que outros. Você
não tem um nome comum para falar com forasteiros?
— Tenho.
— Humm. Eu sou Voz do Vento e Escalador. Eu me sento em silêncio e ouço os
pássaros, os ursos e as palavras das árvores. Nenhuma tribo me possui, e eu mesmo
não possuo nenhuma. Meu nome comum é Uvek.
— Uvek... Meu nome comum é Murtagh.
Um clarão de fogo iluminou os olhos fundos do Urgal.
— Então é você quem compartilha seus pensamentos com o verme Thorn.
Notícias a seu respeito chegaram até os confins da Alagaësia. Ouvi dizer que lutou
contra os Urgralgra nas montanhas dos anões, e que depois lutou contra os
Urgralgra pelo matador de dragões Galbatorix. É verdade?
Parecia surreal para Murtagh que ele estivesse conversando com um Urgal — e
que Uvek estivesse fazendo as mesmas perguntas que ele recebia dos humanos no
reino de Nasuada.
— É verdade — disse ele, cansado. — Galbatorix nos capturou e nos obrigou a
lutar contra os Varden. Caso contrário, suponho que teria sido companheiro de
escudo de sua espécie quando eles se juntaram aos Varden.
— Humm. Você odeia os Urgralgra?
— Não — disse Murtagh enquanto se aproximava novamente das barras de ferro
e se encostava nelas, recebendo o apoio de bom grado. — Mas também não tenho
nenhum amor por sua espécie. Um de seus chefes quase me matou quando eu era
mais jovem.
Uvek arreganhou os dentes grandes no que Murtagh percebeu ser algo parecido
com um sorriso. Se não fosse pela experiência que tinha com Thorn, a expressão
teria sido aterrorizante e difícil, até impossível, de interpretar.
— Você diz a verdade. Eu gosto disso, humano. E aqui está você, então o chefe
não pode ter sido tão ruim. Você vivo, ele morto?
— Ele morto.
— Então tudo bem. O que mais importa?
Murtagh grunhiu. Ele agarrou as barras e sacudiu, mas elas não se mexeram. As
pontas estavam enfiadas em cavidades profundas perfuradas na pedra, e ele
suspeitou que alguma forma de magia fortalecia as barras, pois estavam livres de
ferrugem ou descoloração.
Tonnnnng. Uvek estalou um dedo contra as barras da cela dele, e o metal soou
como um sino.
— Eu não consigo quebrar este ferro, Homem-Murtagh. Você também não
consegue.
— Não... Você disse que ela, Bachel, usou o Sopro em mim?
A cabeça pesada de Uvek se moveu para cima e para baixo em um aceno.
— É assim que ela chama.
— O que é? Sopro de quê?
O Urgal deu de ombros.
— Ela não me contou, então não posso te contar.
Murtagh sentiu que estava franzindo a testa enquanto tentava pensar.
— Sortilégio... Como você sabe que não posso usar magia?
— Porque — disse Uvek ao se curvar para a frente com um olhar sério no rosto
bestial — eu também não posso. Eles nos dão venenos que roubam nossas forças,
nos tornam fracos e indefesos. Então eu fico aqui sentado como chukka esperando
por uma faca.
Murtagh achou difícil entender essa nova informação.
— Você... Você é um conjurador?
— Não. Eu sou xamã. Há diferença. Mas estou familiarizado com sortilégios e
conheço algumas palavras de poder. — Uvek puxou a ponta de um chifre,
pensativo. — Eles te deram mais veneno, eu acho. Ou a mesma quantidade, mas,
como você é menor, dói mais.
Um momento de silêncio se passou enquanto Murtagh estudava Uvek
novamente, reavaliando. Ele sabia que os Urgals tinham os próprios mágicos, mas
nunca tinha conhecido um. A aliança entre Galbatorix e a espécie deles já havia
sido rompida quando os Gêmeos o arrastaram de volta para Urû’baen.
Os joelhos de Murtagh ficaram subitamente fracos, e ele se abaixou até o chão,
usando as barras como apoio. Murtagh estendeu a mão para trás, puxou a capa e a
colocou sobre os ombros.
— Tem que haver uma maneira de escapar — murmurou.
Uvek riu, um som desagradável.
— Sou mais forte que você e tenho a cabeça mais clara, e ainda assim não
consigo escapar. A bruxa é inteligente e forte também.
Murtagh pestanejou. Ele não conseguia desanuviar os olhos. Tudo parecia um
pouco embaçado.
— Se eu conseguisse falar com Thorn...
— Se os desejos fossem reais, o mundo acabaria.
— O... o mundo pode estar acabando de qualquer maneira.
— Humm. Isso depende do que a bruxa quer fazer.
— Como você... como você foi... — A luz da lamparina pareceu diminuir, as
sombras estreitaram a visão de Murtagh, e tudo ficou escuro e cinza.
— Humano? Humano? Abra os olhos, Homem-Murtagh. Abra...
Os sonhos dessa vez foram mais fragmentados. Imagens passando rápido, cada uma
com uma carga de emoção forte o suficiente para derrubar um homem. Murtagh se
viu lançado das alturas do deleite frenético para as profundezas da morbidez
horrível, e vice-versa. Às vezes, ele achava que sentia Thorn, e os sonhos dos dois
pareciam se entrelaçar, e então os dois eram separados pelas correntes rodopiantes
de imaginações febris: marés estranhas levando a terras mais estranhas.
Durante todo o tempo, Murtagh tentou manter o senso de identidade, mas foi
difícil, pois ele não sabia o que era real e não tinha uma pedra-ímã para definir o
rumo. A experiência foi exaustiva e aterrorizante, ainda mais porque ele sentiu um
abismo escancarado subjacente a todas as visões — e, dentro desse abismo, uma
presença à espreita tão grande e malévola que Murtagh se encolheu com medo de
enlouquecer.
Em desespero, ele gritou na língua antiga, tentando acalmar as águas
tempestuosas da mente. Embora pudesse expressar as palavras de poder, não
conseguia dar a elas a força necessária para operar uma mudança nos estilhaços
irregulares de imagens desconexas.
Desamparado, ele não teve escolha a não ser enfrentar os altos e baixos das ondas
tempestuosas e torcer — torcer — que elas logo diminuíssem.
Obliteração
D uas viradas no corredor os levaram a uma porta de madeira. Ela se abriu para
uma sala de pedra com um braseiro cheio de carvão incandescente e uma mesa de
madeira com algemas de ferro.
A visão o atingiu com uma força chocante. Tinha uma semelhança horrível com o
Salão da Profetisa em que Galbatorix o forçou a torturar Nasuada. Cada parte do ser
de Murtagh se rebelou contra o que estava diante dele. Murtagh rejeitou, repudiou e
renegou tanto o passado quanto o futuro e, por um segundo, o fogo abrasador da
compreensão queimou os efeitos da vorgethan.
Não! Ele cravou os calcanhares no chão e se contorceu nas mãos dos captores em
uma tentativa inútil de se libertar. Desesperado, curvou-se e mordeu a mão de um
dos homens. O cultista gritou enquanto o sangue quente pulsava na boca de
Murtagh.
Os homens o jogaram contra a mesa, e ele viu estrelas quando a cabeça bateu na
madeira. Murtagh continuou a lutar mesmo enquanto os homens colocavam
algemas à força em seus pulsos e tornozelos.
— Não — rosnou Murtagh, quase inaudível.
Os cultistas o ignoraram. Os dois se retiraram para os cantos da sala e
permaneceram em posição de sentido, e um deles ficou segurando a mão enquanto
o sangue escorria das marcas de dentes deixadas em sua carne.
Mais uma vez, Murtagh tentou usar magia. Mais uma vez, falhou.
A porta se abriu e — com uma lufada de ar semelhante a uma batida de asas
gigantes — Bachel entrou. A bruxa usava um robe longo e preto de gola alta com
bordados dourados nos punhos. Na testa havia um adereço combinando, rígido e
chanfrado, feito de fios trançados e decorados com pérolas e crânios polidos de
corvos. O fundo escuro do adereço emoldurava o rosto anguloso, como em um
retrato cuidadosamente pintado. Mas, ao contrário da maioria dos retratos, uma
máscara cobria a metade superior do rosto de Bachel e parecia se fundir à pele,
conferindo-lhe um aspecto estranho e dracônico, como se a forma de um dragão
fosse de alguma maneira imposta sobre o corpo dela, talvez por encantamento ou
ilusão.
Era mais do que um simples truque. Murtagh podia sentir uma presença adicional
na sala, uma força sufocante e inumana da qual Bachel era apenas o receptáculo.
O efeito da máscara foi o mesmo que... que... Murtagh lutou para lembrar. Então
lhe ocorreu: Capitão Wren. Foi o mesmo que as máscaras que o capitão guardava no
gabinete, e pareceu a Murtagh que elas deviam ter vindo do mesmo lugar. Talvez
Wren tivesse dado a máscara aos Draumar. Ou talvez eles tivessem lhe dado suas
máscaras.
De qualquer maneira, Bachel assumiu uma aparência assustadora e
desproporcional, e cada som e movimento que ela fazia adquiriam uma realidade
aumentada, como se ele estivesse diante de um deus em carne e osso.
Por mais desorientadora e intimidadora que fosse a experiência, isso não foi o
pior. Não para ele. Pois a máscara o lembrava, mais do que tudo, de quando
Galbatorix lhe ordenou que usasse uma meia máscara enquanto interrogava
Nasuada. Murtagh nunca soube o motivo exato, mas suspeitava que o rei queria
forçar uma distância entre eles, para que ela não se consolasse com qualquer olhar
ou expressão de Murtagh, e para que ele pudesse assumir mais facilmente o papel
de torturador.
Murtagh odiava aquela máscara maldita.
— Bem-vindo, Regicida.
As palavras da bruxa ressoaram como se saíssem dos picos das montanhas: um
som sobrenatural que em nada se parecia com a voz de um humano ou de um elfo.
Bachel avançou em direção à mesa e Murtagh viu que ela usava joias nas mãos:
em cada dedo, uma garra de ônix presa a um engaste de ouro esculpido. As garras
eram afiadas e Murtagh se enrijeceu quando a bruxa as passou na curva de seu
ombro. Mesmo através da camisa, elas o arranharam.
— O que… você quer, bruxa? — perguntou ele, com um esforço de
determinação.
— Quero você. — Ela sorriu e, sob a máscara, os dentes demonstraram uma fome
selvagem.
— Nunca.
— Você vai se curvar a mim, Regicida, e vai servir a mim e, então, a quem eu
sirvo. — Os olhos de Bachel brilhavam com uma luz melíflua. — E será ricamente
recompensado por ajudar a forjar nosso futuro temível. Não mais um príncipe, mas
um rei apto a governar o mundo.
Era atordoante estar perto da figura da bruxa, enorme e semelhante ao de um
dragão, e Murtagh hesitou diante daquela força, vacilou e se sentiu diminuído.
— Não — disse ele, mas a palavra pareceu lamentavelmente fraca.
— Um rei — sussurrou Bachel, se inclinando a fim de que ele pudesse sentir sua
respiração no ouvido. — Um rei como o mundo precisa, e eu sua sacerdotisa, e
traremos vingança há muito esperada a esta terra corrompida.
Murtagh balançou a cabeça, tentando bloquear a voz insidiosa. Uma provação
estava próxima, ele sabia, e iria testá-lo ao máximo.
— Por quê?
A bruxa se empertigou, alta e distante como uma estátua de rosto cruel.
— Somos os devotos de Azlagûr, o Devorador. Azlagûr, o Primogênito. Azlagûr,
o Sonhador. Aquele que dorme e cuja mente adormecida tece a trama do mundo
desperto. Mas o adormecido está ficando inquieto, Regicida, e nós somos Seus
olhos, Seus ouvidos e Suas mãos. Com nossas ações, prepararemos o mundo para
Sua temida chegada. Aqueles que servem a Azlagûr, aqueles que O agradam, serão
elevados por Ele e Dele receberão poder. Poder como não existe no mundo desde os
tempos antigos, quando a magia era incontrolável e ilimitada e o Povo Pardo ainda
era composto por primitivos abrindo caminho para fora da lama.
Com uma expressão terrível, ela se inclinou novamente sobre Murtagh, que
pensou ver chamas saltando dos olhos dela e sangue pingando das garras de ônix.
— Junte-se a mim, Regicida. Junte-se a mim por vontade própria. Tudo o que
você deseja será seu se você tiver fé.
— Nunca — disse ele, arfando.
O ar parecia quente, e Murtagh tinha dificuldade para respirar. Ele sentiu como se
estivesse sufocando.
— Que assim seja. Terei você de qualquer maneira, pois sou o avatar de Azlagûr
e Ele não pode ser negado.
E Bachel raspou as garras no peito dele. Faíscas voaram das pontas afiadas de
ônix quando atingiram as proteções mágicas de Murtagh, que ficou fraco quando os
feitiços consumiram sua força na tentativa de defendê-lo.
A expressão dela ficou sisuda, e o rosto encantado era assustador de se ver. Com
um movimento calculado, Bachel colocou as garras em um círculo sobre o coração
de Murtagh e pressionou para baixo com força cada vez maior. As pontas das garras
começaram a brilhar em vermelho, e Murtagh ficou tonto e sem fôlego.
As proteções mágicas poderiam tê-lo defendido para sempre... se ele tivesse
energia para alimentá-las. Mas não tinha. Sustentar os feitiços era como tentar
segurar uma pedra enorme com as mãos estendidas: o peso era esmagador e, em um
instante — para evitar matá-lo —, as proteções mágicas falharam. As garras de
Bachel, então, afundaram no peito de Murtagh.
Ele se enrijeceu e gritou.
— Como... — Murtagh conseguiu falar, ofegante.
— O poder de Azlagûr é maior do que você pode imaginar, Regicida. Ele não
será negado.
E a mente da bruxa atacou a de Murtagh com uma torrente de pensamentos
sombrios, rápidos e ágeis.
Ele não tinha forças para mantê-la afastada. Não naquele momento. Então tentou
uma abordagem diferente, mais perigosa, mas não menos eficaz. Murtagh se curvou
como um junco ao vento e permitiu que a consciência de Bachel fluísse em torno da
dele. Onde e quando ela tentava agarrar um dos pensamentos de Murtagh, ele
escorregava para o lado e voltava a atenção para outro lugar. A distração se tornou
uma defesa, e, com ela, Murtagh frustrou Bachel repetidas vezes.
A bruxa não desistiu. Ela possuía recursos que ele não tinha, e toda vez que um
pensamento ou memória passava pela mente de Murtagh, Bachel aprendia um
pouco mais a respeito dele.
— Ahhh!
As garras dela cortaram listras sangrentas no peito de Murtagh, que arqueou as
costas. Ele puxou as algemas de ferro e tentou quebrá-las, mas eram muito grossas e
estavam bem presas.
A dor concentrou a mente de Murtagh, e a bruxa usou isso para fixar a
consciência dele, para segurá-la e encurralá-la enquanto tentava subjugá-lo à sua
vontade. Mas, mesmo drogado, Murtagh conhecia aquele jogo. Ele havia jogado
com Galbatorix mais vezes do que gostaria de lembrar e sabia como se curvar e
desviar para escapar das garras de Bachel.
Nasuada também havia jogado o jogo com ele durante o tempo que passou no
Salão da Profetisa. E ela — feroz, orgulhosa, forte — nunca cedeu. O pensamento
deu a Murtagh uma pequena dose de esperança.
Ainda assim, escapar do controle mental da bruxa era um trabalho exaustivo,
semelhante em esforço a uma luta corporal, e mais difícil por causa das feridas que
Bachel infligiu a ele.
— Eu não tenho nenhum desejo de desfigurar você, Regicida. — A bruxa
sacudiu uma gota de sangue das garras de ônix, que brilhou à luz do braseiro
enquanto caía, uma esfera perfeitamente reluzente do vermelhão mais intenso. —
Mas é preciso muito pouco para causar agonias que deixariam louco até mesmo um
elfo.
Bachel pressionou a ponta da garra em um dos arranhões no peito dele,
encontrando um nervo, e um fogo elétrico disparou pelo torso e pescoço de
Murtagh.
Ele lutou para manter o rosto imóvel. Quanto mais caretas fazia, pior parecia a
dor. Quando, após uma eternidade de sofrimento, Bachel levantou a garra, ele falou,
ofegante:
— Você... quer... me deixar... louco?
— Se louco é o que posso ter, então louco é o que terei. Você é uma ferramenta
útil de qualquer maneira, Regicida, mas minha preferência seria tê-lo como você é,
inteiro, bonito e apto para lutar contra um exército. — Ela riu, e foi um som
desconcertante que emanou da sombra dracônica que envolvia a bruxa. — Mas
acho que você seria um louco muito divertido. A escolha é sua, Regicida. Junte-se
aos Draumar. Junte-se a mim e sirva nosso terrível mestre Azlagûr como fizeram
aqueles que vieram antes de nós.
— Nunca.
— Tsc-tsc-tsc. Tão repetitivo. Tão chato. Você deve pensar em respostas mais
criativas, meu filho rebelde. Não me force a castigá-lo, embora eu o castigue para o
seu próprio bem.
Ela levantou a mão com garras novamente e Murtagh se forçou a dizer, o mais
rápido que pôde:
— Az... Azlagûr fala com você?
Um sorriso secreto se formou no rosto de Bachel, que deteve as garras no ar.
— De certa forma. Ele fala com todos nós, Regicida, até mesmo com você, se
tiver ouvidos e olhos para entender. Quando você sonha, esses são os sonhos de
Azlagûr, e através deles entendemos Sua vontade. Como a sacerdotisa e como a
Oradora Dele, Azlagûr me envia sonhos de forma particular, e eu os compartilho
com meu povo e interpreto para eles os sonhos que eles têm. É assim que
recebemos a sabedoria de Azlagûr.
— Com que finalidade?
— Que ocasionemos a destruição desta era e o início de outra. Que refaçamos o
mundo por meio de fogo e sangue, e que realizemos profecias e planos que
abrangem milênios. Você não entende, Regicida? Nós somos os instrumentos do
Destino. Nós fomos escolhidos para definir o padrão da história e, por meio dela,
teremos uma recompensa além da imaginação mortal.
As garras de Bachel desceram novamente e Murtagh mais uma vez deu voz à sua
dor.
No fundo da mente, ele sentiu uma agonia igual vindo de Thorn, e o sentimento
aumentou o tormento de Murtagh, pois não podia ajudar aquele que lhe era mais
importante.
CAPÍTULO XVI
Sonhando acordado
A bruxa atormentou Murtagh por horas. Bachel pedia repetidamente para ele
ceder ou se submeter.
Murtagh sempre recusava.
Mas ele deu à bruxa todo o resto que ela exigia. Quando ela ordenou que
Murtagh concordasse, ele concordou. Quando mandou que ele virasse a cabeça ou
dissesse que a causa dos Varden estava errada e equivocada, Murtagh obedeceu. Era
um truque que ele havia aprendido em Urû’baen. Se Murtagh concordasse, isso lhe
daria um pequeno alívio, físico e mental. Se fosse cooperativo, isso apaziguaria
Bachel até certo ponto. Mas, quanto à questão central, ele nunca cedeu e, tanto
quanto pôde, desviou, dissimulou e tentou ofuscar os esforços da bruxa.
Se não tivesse sido drogado, Murtagh teria tentado dominar a mente de Bachel e
torná-la sua própria serva. Do jeito que estava, ele só podia suportar.
A bruxa não estava interessada somente na obediência dele. Ela questionou
Murtagh a respeito de Eragon e Saphira, Arya e Fírnen, e, especificamente, sobre o
estado do reino de Nasuada, incluindo a dispersão dos mágicos da Du Vrangr Gata,
a localização dos exércitos e muitas outras informações úteis de inteligência. A
respeito de muito do que ela perguntou, Murtagh não tinha conhecimento especial,
embora Bachel nem sempre acreditasse nele e insistisse duramente em todos os
pontos.
As perguntas lhe mostraram duas coisas. A primeira foi que Bachel parecia
pensar que um ataque em grande escala ao reino de Nasuada não era apenas
desejável, mas uma possibilidade real. Com que exército? E, segundo, que Bachel e
os Draumar estavam muito mais bem informados do que a quantidade de cultistas
ou a localização pareciam indicar. Quantos simpatizantes eles têm?
Tais pensamentos coerentes apareciam apenas nas breves pausas entre as
indagações de Bachel. Na maioria das vezes, Murtagh vagava em meio a uma
confusão mental de dor, incapaz de entender qualquer coisa além da necessidade de
escapar das garras da bruxa.
E... ele estava assustado.
O medo não fez com que se acovardasse, porém quanto mais via o rosto
distorcido de Bachel, quanto mais sentia as garras de ponta vermelha, e quanto mais
a consciência intrusa da bruxa puxava as partes mais íntimas de sua personalidade,
maior o terror dele se tornava.
Murtagh tinha feito muitas coisas difíceis na vida, muitas coisas vergonhosas e
sanguinárias, algumas impostas, algumas nascidas de sua própria fraqueza, mas ali,
naquele momento, estava o maior desafio que já enfrentara. Porque, ao contrário de
como fora com Galbatorix, Murtagh não podia — não queria — se permitir ceder.
Ele sabia quais tormentos existiam naquele caminho, e eram piores do que qualquer
dor física.
Ou disso ele se convenceu. Mas, por esse motivo, não havia fim à vista, e isso
tornava difícil manter a esperança.
Ele tentou não pensar, apenas fazer o que tinha que ser feito na expectativa
infundada, e talvez inútil, de que, em algum momento, Bachel se cansaria dele e
direcionaria a crueldade para outro lugar.
O rosto de Nasuada muitas vezes enchia a mente dele, com uma expressão leve,
às vezes de empatia, em outras contorcida de dor e medo. E isso forçou Murtagh a
se lembrar do que fez com ela. O sofrimento que ele infligiu não foi menor do que o
que agora suportava, e reconhecer isso fez seu estômago revirar. Havia uma parte
dele que acolheu o tormento como penitência por seus crimes. Mas não importava o
tamanho da agonia, os erros do passado continuavam sendo uma prova de seus
fracassos.
Bachel notou, pois, enquanto ele lutava com as lembranças, aproximou o rosto do
dele e o estudou com um humor frio.
— O que sua rainha pensaria de você agora? — murmurou a bruxa. — Será que
teria pena de você? Não, acho que ela ficaria enojada com sua fraqueza, meu
pequeno príncipe indefeso. É uma fraqueza fatal, da qual você nunca se recuperará,
a menos que jure fidelidade a mim e a Azlagûr.
— … Não.
As garras de Bachel desceram, e ele gritou novamente.
Depois de um tempo interminável, a bruxa ficou entediada. Ela tirou outro frasco
de cristal do corpete, destampou e soprou uma nova nuvem de vapor sobre o rosto
dele.
Murtagh prendeu a respiração, mas, como aconteceu com Thorn, a nuvem se
agarrou a ele e, quando finalmente seus pulmões cederam, o fedor pútrido de
enxofre entupiu nariz e boca. A sala se inclinou e tudo o que era sólido pareceu sem
substância.
A não ser Bachel. A forma dele manteve sua substância. O rosto da bruxa ficou
incrivelmente grande quando ela se inclinou sobre ele.
— Vamos tentar novamente amanhã, Regicida. Deixe esse conhecimento
preencher seus pensamentos. Enquanto isso, que o Sopro de Azlagûr lhe traga
sabedoria através do sonho, e sonhando você encontrará seu caminho.
O rosto de Bachel se afastou.
— Leve-o para o poço antes de devolvê-lo à câmara. O cheiro dele me ofende.
— Como quiser, Oradora — respondeu um homem fora de vista.
A bruxa saiu da sala e mãos invisíveis removeram as algemas dos pulsos e
tornozelos de Murtagh. Ele foi arrastado pela construção e, por um tempo, tudo o
que percebeu foram as batidas das pernas no chão de pedra, a tensão nos braços e
nos ombros, e o balanço da cabeça, que o deixou enjoado.
Sangue escorria de seu corpo. Menos do que ele temia, mas qualquer quantidade
era indesejável.
Água gelada foi despejada em sua nuca. O choque desanuviou um pouco a mente
de Murtagh. Ele arfou e olhou em volta: estava sentado ao lado do poço do lado de
fora do templo, e os dois cultistas jogavam baldes de água sobre ele. Depois, o
arrastaram até o pátio do templo.
Thorn estava lá. Correntes de ferro pesadas prendiam o dragão às lajotas, o
focinho estava envolto em tiras grossas de couro e as asas, presas às laterais do
corpo por voltas de corda. Sangue semelhante a alcatrão cobria as membranas
rugosas.
O coração de Murtagh deu um salto. Ele sentiu como se houvesse palavras que
precisavam ser ditas e ações que precisavam ser tomadas, mas não conseguia se
mexer.
Murtagh olhou para Thorn, e Thorn para ele — os olhos de rubi do dragão
estavam opacos, derrotados, esmaecidos por drogas ou magia ou alguma
combinação dos dois. Havia uma tristeza na expressão de Thorn que atingiu o
âmago de Murtagh, mesmo nos extremos da própria angústia, e ele lutou para se
livrar das mãos dos captores, mas não conseguiu fazer mais do que se debater
fracamente.
— Deixe disso — disse um dos cultistas.
Do outro lado do pátio, Alín apareceu — de robe branco e rosto pálido — entre
as colunas do templo. Ela pareceu abalada diante da visão dele e de Thorn, embora
Murtagh não conseguisse entender por quê. Por um instante, ele pensou que Alín
estivesse prestes a falar, mas então os captores se viraram e o arrastaram em direção
à pequena porta lateral do templo, e o momento passou.
Murtagh caiu de lado com um impacto doloroso e a porta da cela se fechou atrás
dele com um estrondo.
Ficou deitado em cima da capa amassada por um longo tempo, tentando juntar os
pedaços de si mesmo o suficiente para dar sentido ao mundo.
Apesar dos esforços em contrário, os olhos dele se fecharam...
Ele estava sentado em um trono... aquele trono: a mesma monstruosidade negra
e dourada de onde Galbatorix recebia a corte. Thorn estava à esquerda enquanto
Eragon ajoelhava-se no piso de mármore encerado diante dos dois, com a cabeça
baixa para esconder o rosto e com o mesmo cabelo de mechas castanhas
desgrenhadas de que Murtagh se lembrava. Havia marcas vermelhas em volta dos
pulsos dele e — com a certeza encontrada apenas em sonhos — Murtagh sabia que
o havia subjugado e que o outro estava sob seu comando, assim como ele mesmo
estivera sob o comando de Galbatorix.
Atrás de Eragon estavam as formas ajoelhadas de Arya, do rei anão Orik e, por
último... de Nasuada. Assim como Eragon, os rostos de todos estavam virados para
o chão. De todos, exceto Nasuada. Ela olhou para Murtagh com uma expressão de
devoção amedrontada, e ele soube que ela também estava sob seu comando e que,
ainda mais do que os outros, era uma escrava da palavra dele.
Mais adiante ainda havia filas intermináveis de soldados: humanos em cotas de
malha e gibões acolchoados; elfos vestidos nas cores da floresta, com arcos
elegantes nas mãos e espadas longas e graciosas nos quadris; anões com martelos,
piques e batalhões de lanceiros montados em Feldûnost — as altivas cabras
montesas das Montanhas Beor —, e Urgals também, com as armas toscas, alguns
da altura de um homem, e outros com mais ou menos três metros: os Kull, enormes,
musculosos, aterrorizantes.
E Murtagh sabia que cada soldado lhe devia fidelidade, que poderia mandá-los
para o campo de batalha e que morreriam por ele.
Sentiu que o poder era dele e acolheu a sensação de controle, pois com isso ele
poderia fazer o que era certo — o que era necessário — e, mais importante,
poderia manter Thorn e a si mesmo seguros. Ninguém poderia comandá-los ou
escravizá-los se eles governassem o reino. Tão simples. Tão direto. Por que ele
nunca havia pensado nisso antes? Não teria mais que debater a questão de se
manter ou não afastado dos acontecimentos da Alagaësia. Ao assumir seu lugar de
direito no trono, Murtagh poderia contornar o problema e todos no reino poderiam
se tornar parte dele, em vez de Murtagh se tornar parte deles.
Murtagh sorriu ao contemplar seu domínio. Pela primeira vez na vida, sentiu
como se tivesse encontrado seu lugar.
No final da câmara de audiências incrivelmente grande, uma janela de três
folhas dava vista para o oeste e, enquadrada nela, um sol negro descia...
Fragmentos
Havia uma monotonia na dor. Cada ferida trazia um novo desconforto — imediato,
insistente e exigindo a atenção de Murtagh — e, no entanto, possuía uma mesmice
mortal que se confundia em uma única mancha de agonia. O caráter repetitivo era
quase tão insuportável quanto os próprios ferimentos. O processo era tão
sordidamente previsível. Ele odiava saber a direção das cruéis intenções de Bachel e
como os cuidados não tão ternos assim da bruxa eram eficazes. Ter experiência
naquilo não trazia proteção. Na verdade, isso tornava as provações mais difíceis de
suportar, e a confusão contínua que emaranhava os pensamentos de Murtagh apenas
aumentava a tensão desumana de cada instante eterno.
Mesmo assim, ele ainda conseguiu escapar e confundir os ataques mentais de
Bachel. A bruxa ficou frustrada e usou o Sopro mais uma vez. O tempo se quebrou
em volta dele, que não conseguiu ordenar o acontecimento dos eventos. Murtagh
parecia pular entre os momentos, sem amarras a um presente constante, um
náufrago jogado de um momento fragmentado para o seguinte, como um pedaço de
destroço indo de onda em onda.
Ele se apegou à única coisa de que tinha certeza: o próprio senso de identidade.
Isso ele sabia. O cerne da pessoa que ele era — a verdade de seu nome na língua
antiga — lhe deu forças mesmo nas profundezas do desespero.
A dor não era mais só dele. Murtagh sentia tormentos adicionais vindos de Thorn,
que aumentavam sua angústia. Ele xingou Bachel, mas a bruxa apenas riu como
sempre fazia e mais uma vez exigiu a fidelidade de Murtagh.
Foi um exercício inútil da parte dela, mas Murtagh sentiu lágrimas no rosto — a
primeira vez que chorava por causa daqueles suplícios. Chorava não por si, mas por
Thorn. O dragão não merecia a dor, nunca mereceu tal tratamento. Eu falhei,
pensou o Cavaleiro, e essa constatação foi esmagadora. Mais uma vez, ele foi
incapaz de proteger o amigo. Mais uma vez, outro sofreu por causa de seus erros.
Murtagh gostaria de poder pedir ajuda a Eragon. Teria engolido o orgulho de bom
grado se isso significasse que Eragon e Saphira viriam voando para resgatá-los. De
que adiantava o orgulho quando a pessoa era reduzida à parte mais ordinária e
mesquinha da existência? Orgulho, vaidade, ambição, raiva — nada foi deixado
para Murtagh. Apenas a necessidade de sobreviver. E de alguma forma salvar
Thorn.
Os cultistas estavam jogando água nele; lavando-o como antes. Os velhos hábitos
da corte fizeram Murtagh querer agradecer, para mostrar que, embora estivesse à
mercê deles, não haviam retirado seu autocontrole e boas maneiras. Mas as palavras
não saíam da boca.
Thorn jazia no pátio, espancado e sujo. Murtagh nunca tinha visto um dragão tão
intimidado — um cão maltratado se encolhendo diante do dono. A visão fez com
que algo se rompesse no peito dele, que tentou falar.
— Thorn... — foi tudo o que conseguiu dizer entre lábios rachados, em um tom
suave.
Os olhos do dragão o encararam de volta com um olhar opaco e sem vida.
Murtagh sentiu uma roçada na mente e, por um momento, vislumbrou uma
paisagem sombria e tenebrosa de pensamento, onde nenhuma centelha de esperança
brilhava e a escuridão cinzenta se aproximava por todos os lados.
Bachel estava ficando cada vez mais impaciente e, como resultado, usava métodos
cada vez mais cruéis.
Murtagh conhecia seus limites e já os alcançara. As proteções mágicas tinham
acabado — aquelas que o teriam protegido contra dano físico, pelo menos —, o
corpo estava fraco e a mente era uma névoa confusa. Às vezes, parecia que a bruxa
controlava a consciência dele. Em outras ocasiões, ele ainda era capaz de escapar
dos ataques mentais profundos de Bachel. Muitas vezes, porém, ele não sabia se
estava livre ou não, e temia que seus pensamentos não fossem mais seus.
Quando Murtagh não conseguia mais reagir como a bruxa desejava, ela
conjurava magia sem palavras e curava as feridas dele. Mas não todas, e apenas o
suficiente para restaurá-lo à aparência de consciência. Era a forma mais cruel de
cuidado, e Murtagh odiava a falsidade do ato quase mais do que as torturas em si.
Um corvo crocitou.
Era noite. Tarde ou cedo, ele não sabia dizer. As pedras estavam frias e úmidas
embaixo do corpo. A respiração de Uvek era um som constante na masmorra
inteira.
Murtagh olhou fixamente para a escuridão. Padrões de luz se formaram diante
dos olhos, uma exibição iridescente de decoração caótica, laranjas, vermelhos e
azuis pulsantes de uma pureza raramente encontrada na natureza.
Ele não conseguia dormir. Tentou compor um poema para acalmar a mente, mas
as palavras lhe escaparam. Até o próprio conceito do poema fugiu. O que Murtagh
não conseguia nomear, ele não conseguia descrever, e tudo parecia sem esperança.
Novamente, o corvo crocitou.
Enquanto estava nos extremos da agonia, Murtagh sentiu um estalo na mente e foi
tomado por uma enxurrada de emoções. Mesmo atordoado, ele reconheceu a
sensação dos pensamentos de Thorn e se agarrou a eles como um homem se
afogando se agarraria a um galho passando em uma enchente.
Imagens do pátio flutuaram diante dos olhos de Murtagh; era difícil dizer qual
parte dele estava na masmorra embaixo do templo e qual parte estava em cima,
deitado nas lajotas. Thorn sofria uma dor igual à dele e, de alguma forma, a
intensidade do tormento compartilhado pelos dois superou a resistência sufocante
da vorgethan e do Sopro.
Thorn transmitiu reconhecimento, alívio e afeto. Pesar também, e confusão, pois
tudo era uma névoa borrada...
Murtagh viu Alín parada na porta da cela mais duas vezes. A mulher parecia cada
vez mais incomodada e, quando falava com ele, sua voz parecia vir do fim de um
grande túnel...
Ela o alimentou. Disso Murtagh se lembrava. Comida sólida. Ele ficou grato por
comer algo diferente da gororoba forçada goela abaixo pelos cultistas. Mas sólida
ou não, ainda ardia com o gosto odioso de conhaque.
Bachel se curvou sobre Murtagh, o rosto distorcido e meio escondido, decorado por
um tom dourado berrante causado pela luz do braseiro de cobre. Ele sentiu o cheiro
do suor na pele da bruxa e o calor da sua respiração.
— Você vai me servir e, através de mim, Azlagûr — sussurrou ela. — Se não
posso ter sua obediência prometida por sua língua, vou obtê-la por outros meios. No
final, você se curvará diante de mim, meu filho, e cumprirá minhas ordens neste fim
dos dias.
— Nunca — ele conseguiu resmungar.
— Nenhum ser foi feito para o nunca. Nem mesmo Azlagûr. Somos criaturas de
mudança. Seja assim agora, Regicida. Mude. Torne -se!
A bruxa ergueu os braços e a aparência dracônica se fortaleceu até que parecia
que ele estava encarando os olhos de uma grande fera de fogo. Bachel gritou com
uma voz que não era dela, e ele sentiu as forças da magia girando ao redor. A bruxa
baixou os braços e atirou um frasco no chão. Murtagh foi envolvido por uma nuvem
pegajosa do Sopro. A seguir, as garras dela se cravaram com selvageria renovada na
carne dilacerada de Murtagh, que gritou com tanta força que a voz falhou e sangue
encheu a garganta.
Através dos olhos de Thorn, ele viu Grieve, de cara fechada, estalar um chicote
de ferro, e o dragão rugiu com tormento igual ao de Murtagh.
Para cima e para baixo perderam todo o significado. A razão e a lógica os
abandonaram, deixando apenas o sentimento. E o que eles sentiam era insuportável.
O que não podia continuar... não continuou.
Murtagh capitulou. Ele sentiu, percebeu, mas no momento não se importou. Tudo
o que queria era que a dor parasse. Não podia jurar fidelidade a Bachel, isso estava
além de qualquer chance, mas não podia mais continuar lutando.
Assim sendo, ele parou.
Ele desistiu, e sua mente se retirou dos horrores da situação, e uma estranha casca
de passividade se formou em volta dele, entorpecendo as emoções, embotando os
pensamentos. O que ele era encolheu até quase desaparecer.
Murtagh notou uma sensação de triunfo irradiando de Bachel. Mas ele não se
importava. Isso não importava.
Nada daquilo importava. Apenas que a dor havia parado.
E parou. Thorn também havia desistido e os dois jaziam em seus respectivos
lugares — acorrentados e algemados —, esperando as ordens a que obedeceriam.
CAPÍTULO XVIII
Sem defeitos
Era noite, e Murtagh se viu olhando fixamente para o reflexo na água que enchia o
balde mantido dentro da cela. Ele não reconheceu o rosto barbudo que devolvia o
olhar da superfície imóvel.
Murtagh foi tomado por um desejo, e os lábios se moveram enquanto ele tentava
falar seu verdadeiro nome. Sua língua conhecia as palavras, porém elas não soavam
mais verdadeiras. Ele sentiu um desespero vazio ao perceber que havia se tornado
um estranho para si mesmo mais uma vez.
Teve um acesso de raiva e deu um tapa na água, espalhando o reflexo em mil
direções diferentes.
A raiva passou. Ele se ajoelhou, molhou as mãos na água que restava no balde e
as lavou várias vezes. Como parecia que o sangue do javali ainda estava grudado na
pele, Murtagh esfregou até que ficasse vermelha e em carne viva, mas o sangue
parecia nunca sair.
Ele se sentou ajoelhado diante do balde, olhando para os arranhões nas mãos, e
desejou... Ele não tinha certeza do que desejava, apenas algo que de alguma forma
aliviasse a queimação em seu peito.
Os sonhos daquela noite foram piores do que os anteriores. Pareciam mais potentes
e imediatos, e também mais distorcidos e perturbadores. Vilarejos massacrados
surgiram na mente dele, e as memórias da batalha o fizeram suar frio. Uma corrente
de notas graves — discordantes demais para serem chamadas de melodia — ecoava
por toda parte e era como compartilhar a mente de um dragão, só que muito maior,
mais distorcida e estranha do que até mesmo o mais louco dos Eldunarí.
Eis que, em meio à cavalgada de imagens sangrentas, surgiu uma lembrança.
Uma memória de verdade.
A sala de armas cheirava a ferrugem, óleo, couro e suor velho. A luz da tarde
jorrava como mel pelas janelas estreitas e iluminava as lâminas das lanças
armazenadas em suportes nas paredes. Era uma sala de muitas esperanças... e
muitos medos.
Tornac puxou as fivelas laterais do peitoral de Murtagh para verificar se
estavam bem apertadas. A seguir, deu um tapa no ombro do rapaz.
— Está pronto. Mantenha a respiração sob controle e não terá nada a temer.
— Nada?
— Não de gente como Goreth. Ele é bem rápido, mas não tem a técnica. —
Tornac deu a volta até a frente de Murtagh e o examinou de cima a baixo. — Não
está perfeito, mas vai servir.
As palavras eram mais reconfortantes do que a armadura. Mesmo assim,
Murtagh sabia que o espadachim pragmático estava fingindo tranquilidade. Goreth
era um dos duelistas mais temidos da corte do rei. Ele havia ferido três homens nos
últimos quatro meses e, em vinte e sete duelos, tinha perdido apenas cinco.
Tornac leu os pensamentos de Murtagh com bastante facilidade. Sempre lia.
— Seja valente. É uma exibição. O rei não quer ver você morto. Seria como ver
um cavalo excelente sendo abatido.
— Eu sei.
— Lembre-se do que lhe ensinei e não terá nada a temer.
Tornac o surpreendeu ao lhe dar um breve abraço. Era a primeira vez que o
espadachim mostrava tal emoção — e também era a primeira vez que Murtagh
travava um duelo.
Eles se separaram, e Murtagh soltou uma risada trêmula.
A areia brilhosa da arena o fez parar e apertar os olhos enquanto a visão se
ajustava. Era um dia frio de outono, mas as expectativas pelo combate aceleraram
o pulso, e ele já se sentia superaquecido dentro da armadura.
As arquibancadas estavam lotadas de nobres, presentes ali para testemunhar o
espetáculo do filho único de Morzan em uma disputa de armas aparentemente
amistosa contra Goreth de Teirm, o da espada de prata. O duelo tinha sido ideia de
Galbatorix. Ele havia passado por acaso pelos pátios de treino enquanto Murtagh
recebia as instruções diárias de Tornac e, ao vê-los, sugeriu que seria mais
adequado se as habilidades de Murtagh fossem testadas de forma mais formal.
Como sempre, o que o rei desejava logo se tornou realidade.
Murtagh viu muitos rostos conhecidos nas arquibancadas, mas nenhum amigo.
Ele sabia que Tornac iria assistir da sala de armas, o que lhe deu coragem e
determinação. Não queria decepcionar seu mentor. Além disso, preferia morrer a
passar vergonha diante da multidão. O menor sinal de fraqueza lhe renderia uma
vida inteira de escárnio na corte, e a posição em que se encontrava já era bem
difícil.
Goreth entrou pelo portão oposto a ele. Alto, tinha braços e pernas bem
definidos e a graça sinuosa de um guerreiro experiente. Apesar das garantias de
Tornac, não havia dúvida: Goreth era um lutador formidável e Murtagh sabia que
seria levado ao limite de suas habilidades.
Eles saudaram o rei, que era apenas uma forma nas sombras, sentado no trono
sob um dossel de veludo. Os arautos fizeram as declarações e o mestre de
cerimônias leu as regras de combate: proibido morder, proibido chutar enquanto
um homem estivesse no chão. Proibido arrancar os olhos. Proibido golpear a
virilidade (ou seja, proibido golpear abaixo da cintura).
Ao final dos discursos intermináveis, soou uma trompa, o mestre de cerimônias
deixou cair o lenço e o duelo começou.
Apesar do fogo nas veias, Murtagh sentiu como se estivesse preso em areia
movediça, mal conseguindo mover as pernas ou levantar os braços. No entanto, ele
se esquivou e aparou e bateu na espada do oponente como deveria. Nenhum dos
dois usava escudo, pois a competição seria um teste de pura esgrima, e Murtagh
havia se recusado a colocar braçadeiras para poder se mover mais rápido. Ele
confiava na cota de malha para proteger os braços de cortes.
Na maioria das vezes, protegeria. Mas a ponta da espada de Goreth encontrou o
punho da manga esquerda de Murtagh, e o pedaço de aço afiado deslizou por baixo
do gibão usado sob a cota de malha. Uma linha trêmula, quente, fria e agonizante,
a lâmina percorreu a parte externa do antebraço dele.
Por instinto, Murtagh puxou o braço para trás e gritou quando a espada o
cortou novamente no retorno.
Os dedos da mão esquerda se contraíram e se fecharam em um nó inútil. Se não
fosse pelos espectadores, ele teria concedido o duelo, mas o orgulho, o medo e a
pura raiva teimosa o impediram.
Goreth aproveitou a vantagem e estocou novamente, rápido. Enquanto recuava,
Murtagh bateu com a espada e desviou o ataque. Seu oponente fez pressão intensa
com vários golpes e investiu. Murtagh levou um golpe de raspão no quadril, na
saia da cota de malha. Em uma tentativa desesperada de se recuperar, ele reagiu
com um golpe e acertou o cotovelo de Goreth com a ponta da espada.
Goreth deixou cair a arma.
Foi um golpe de sorte. Murtagh não tinha esperanças de repeti-lo mesmo se
treinasse por uma semana. Ele não hesitou, dando continuidade ao ataque como
havia sido ensinado por Tornac: passou a ponta da espada sob o braço de Goreth e
espetou a axila, onde a armadura não cobria.
Foi um ferimento estreito, mas profundo o suficiente para fazer Goreth gritar e
cair no chão, marcando o fim do duelo.
Ou foi o que Murtagh pensou.
Com sangue pingando do braço esquerdo caído, ele olhou para o rei em busca
do veredito final. Era tradição que Galbatorix declarasse o vencedor de qualquer
competição que presenciasse; a palavra do rei era final e, até que ele falasse,
nenhum resultado — nenhuma verdade — era oficial.
A sombra se inclinou para a frente no trono e as pontas da coroa cintilaram, mas
o rosto do rei permaneceu muito escuro para ver a expressão.
— Acabe com ele, filho de Morzan.
A princípio, Murtagh não acreditou no que ouviu, mas a voz de Galbatorix soou
com uma força sobrenatural e não havia como confundir as palavras. A multidão
ficou tensa, com vários suspiros de susto e gritos soando entre as fileiras de
assentos, mas ninguém se pronunciou contra a ordem do rei. Ninguém foi tão tolo.
Goreth não teve tais escrúpulos. Ele começou a implorar em voz alta. Em um
instante, a imagem do guerreiro famoso desapareceu, substituída por mais um
soldado assustado rastejando no campo de batalha, implorando pela misericórdia
do inimigo que se aproximava.
Murtagh hesitou. Ele tentou achar qualquer via de fuga pela arena. Então, viu
Tornac parado dentro do túnel de entrada da arena, fora da vista do público, mas
bem na linha de visão de Murtagh. O rosto do mestre espadachim estava pálido e
contraído, e ele parecia querer falar, mas os lábios permaneceram bem fechados, a
expressão severa. Ele assentiu, um movimento único e curto, e Murtagh entendeu.
Não havia como escapar. E não havia ajuda também.
— Acabe com ele, filho de Morzan.
Então, Murtagh fez o que tinha que fazer, embora se sentisse mal em cumprir
aquela ordem. Ele foi até Goreth e tentou dar ao homem uma morte rápida com um
corte no pescoço. Mas Goreth levantou o braço, e a lâmina de Murtagh patinou na
braçadeira de ferro. O homem não estava a fim de desistir e morrer. Murtagh o
odiou por isso e, ainda assim, sentiu pena dele. Perdeu todo o senso de controle e
começou a golpear Goreth enquanto o homem continuava tentando repeli-lo. O
tempo todo Goreth gritou e implorou. Murtagh também gritou, sons sem sentido
para abafar a voz do homem.
Quando acabou, o sangue manchava a areia batida por metros ao redor deles, e
o corpo retalhado e desfigurado de Goreth finalmente ficou imóvel.
Murtagh se apoiou em um joelho e usou a espada como muleta para não cair.
Foi um abuso terrível da arma, mas, naquele momento, ele não se importava com o
tamanho da bronca de Tornac por arruinar o fio da lâmina.
Um aplauso solitário soou do trono. Galbatorix ficou de pé. O resto dos
espectadores se levantou em resposta.
— Muito bem, Murtagh.
Ele gesticulou com um dedo. Murtagh soltou um suspiro de susto e agarrou o
antebraço ferido enquanto a pele e os músculos se contorciam como cobras e se
uniam até ficarem inteiros.
— Traga-o para meus aposentos assim que ele tiver se banhado e trocado de
roupa — disse o rei, como um aparte ao mestre de cerimônias.
— Claro, meu senhor.
O rei partiu junto com os seguidores, e a arena se esvaziou rapidamente,
deixando Murtagh sozinho com o primeiro homem que matou. O mestre de
cerimônias se aproximou e, antes que pudesse falar, Tornac apareceu ao lado de
Murtagh.
— Cuidarei para que ele vá até o rei — disse Tornac com voz ríspida, e o mestre
de cerimônias não discutiu.
— Eu… Eu… Ele não… — disse Murtagh, enquanto era guiado por Tornac para
fora da arena.
— Você fez o que era necessário. Não pense nisso.
Mas Murtagh pensou. Depois de se encontrar com Galbatorix nos aposentos dele
— no qual o rei lhe deu a tarefa de destruir um vilarejo que acreditava estar
abrigando traidores dos Varden —, Murtagh decidiu, com o consentimento absoluto
de Tornac, fugir da capital e do próprio Galbatorix.
Ele nunca mais falou a respeito do duelo.
Escolhas
Com as orientações de Grieve, Thorn voou para fora da fenda que continha Nal
Gorgoth e virou para o norte a fim de seguir a costa da Baía do Fundor. Na foz do
vale, onde o rio desaguava na baía, Murtagh viu um navio atracado no cais de
madeira: um veleiro alto, elegante e bem-feito, com um casco construído em
clínquer, como era comum em Ceunon.
Rajadas de neve acossaram o trio enquanto eles seguiam para o norte. O inverno
estava se intensificando e não demoraria muito para que as montanhas ficassem
intransponíveis para quem estava a pé.
O ar tinha um cheiro estranho para Murtagh. Demorou muito para que ele
entendesse o motivo: ali não fedia a enxofre. Em vez disso, o ar era limpo, frio e
fresco — revigorante em sua pureza.
Nunca o ar pareceu tão… tão gostoso.
Rastros de muitos animais marcavam o cobertor branco lá embaixo: coelhos,
cervos, ursos e muito mais. As pegadas deixavam linhas semelhantes a veias entre
árvores, rochas e riachos gelados, um mapa dos movimentos da vida, mais aleatório
do que o curso da água e, ainda assim, muito mais significativo.
Entre as trilhas de caça, uma única linha de terra escura e batida corria ao longo
da costa. Era muito reta e regular para ter sido feita por qualquer fera estúpida, e
não havia como confundir sua natureza: uma trilha feita por homens, sem neve por
ter sido limpa por muitos pés e patas. Um grupo a cavalo, talvez, ou então viajantes
a pé, o que parecia improvável devido ao local e à estação. Qualquer que fosse a
resposta, o grupo não poderia estar muito à frente ou então a neve teria apagado a
trilha e deixado o rastro branco e difícil de seguir.
Uma gaivota soltou um grito irritante sobre a água e desviou para o leste quando
Thorn se aproximou.
Eles voaram por metade da manhã, seguindo cegamente as ordens de Grieve.
Quando ele mandava virar, Thorn se virava. Quando ele mandava subir ou descer,
Thorn obedecia. E o tempo todo Murtagh se manteve ereto na sela, com a face
inexpressiva e a pele do rosto tão fria que ficara dormente.
Ele agiria quando necessário — ou quando recebesse uma ordem —, mas, caso
contrário, não havia nada para fazer além de existir.
Finalmente, um grupo de homens a cavalo apareceu ao longo da costa. Quando
eles viram Thorn, frearam as montarias.
— Pouse — ordenou Grieve.
Enquanto Thorn descia, os cavalos recuaram diante da visão do dragão e os
homens sofreram para mantê-los parados. De perto, a verdade ficou evidente: o
bando de homens era um dos três grupos de guerreiros que Bachel havia
despachado de Nal Gorgoth.
— A que distância estão os Orthroc? — perguntou Grieve.
Um dos homens apontou para a frente, em direção a uma crista coberta de
pinheiros.
— Do outro lado daquela elevação. Eles estão reunidos perto de um riacho dando
água aos cavalos, mas logo voltarão a se movimentar.
Murtagh sentiu Grieve balançar a cabeça, satisfeito.
— Excelente. Vocês vão atacar ao meu sinal. O dragão e o Cavaleiro irão à
frente, mas vocês têm que deixar espaço para o dragão. Seus cavalos vão se
assustar, e não posso prometer que esses dois vão se comportar como planejado.
O guerreiro demonstrou desdém, e os outros homens riram com ironia.
— Eles estão tão enfeitiçados que não sabem nem onde estão — disse um deles,
um sujeito baixo de cabelos louros, nariz vermelho e cílios congelados.
— Não importa — retrucou Grieve, curto e grosso. — Bachel conta conosco, e
não devemos decepcioná-la.
Murtagh sentiu novamente a pontada da adaga de Grieve nas costelas.
— Muito bem, então. Você e Thorn voarão adiante e atacarão os Orthroc do outro
lado daquele pico. Capturem os suprimentos deles e matem todos que estiverem
diante de vocês, mas, se algum deles fugir, não devem persegui-lo. Deixe isso para
os meus guerreiros. Entenderam?
— Sim — disse Murtagh, que afrouxou as tiras em volta das pernas.
Sim, disse Thorn.
— Então, vamos! — E, para os homens a cavalo, Grieve fez um gesto e disse: —
Ataquem!
Os guerreiros viraram os cavalos para o norte, cravaram as esporas e começaram
a galopar em direção ao pico.
Thorn esperou até que o grupo chegasse ao pé da elevação antes de se agachar e
alçar voo atrás deles. Murtagh se curvou sobre o pescoço do dragão quando o vento
frio o atingiu de frente e o obrigou a franzir os olhos. A ferocidade gelada do vento
clareou um pouco sua mente, como uma camada fina de pátina sendo arrancada de
cobre envelhecido.
Thorn passou por cima do pico, dos homens a cavalo, dos pinheiros carregados
de neve e desceu em direção a um leito largo de riacho, quase seco no inverno.
Perto dele, havia um bando amontoado de figuras vestidas com peles entre uma fila
comprida de cavalos. Para Murtagh, os Orthroc em trajes bárbaros pareciam
volumosos e ameaçadores, e ele viu chifres curvos nas cabeças de vários deles.
Urgals!
Thorn rugiu. Os Orthroc recuaram com medo e começaram a correr, mas foram
impedidos pela neve. Eles eram muito lentos. Muito, muitíssimo lentos.
Os cavalos gritaram quando Thorn pousou no chão diante deles com um
estrondo. O som era enlouquecedor e os animais empinaram-se, se debateram e
fugiram. Alguns caíram, esmagando os Orthroc que estavam por perto. Pacotes
escorregaram para o chão e as cordas se esticaram, derrubando os cavalos ou
estalando como chicotes.
Murtagh não pensou. Não precisava. Havia uma luta a ser travada, uma espada na
mão e inimigos que pretendiam matar a ele e a Thorn. Era um problema simples.
Uma figura correu na direção deles, e Thorn deu um tapa com a pata e quebrou o
guerreiro.
Murtagh saltou para o chão. O impacto o deixou de joelhos, mas ele se recuperou
e avançou com o escudo erguido. Uma flecha passou zunindo por sua cabeça, um
traço borrado quase invisível.
Um dos Orthroc surgiu diante dele com uma lança na mão. Murtagh bateu com a
espada na lança para desviá-la, depois rasgou o casaco de pele do guerreiro até o
pescoço. O homem desmoronou com sangue jorrando do ferimento mortal como
uma fonte da cor de rubi.
Murtagh já estava passando por ele. Dois Orthroc enormes se aproximaram. Um
cavalo deu um coice em um deles, que caiu. O outro golpeou Murtagh com uma
acha de armas enferrujada. Ele saiu do alcance, se esquivou de duas investidas e,
em seguida, diminuiu a distância e estocou o Orthroc na barriga. Então, ao passar
por ele, jarretou o Urgal com um golpe de esquerda.
A princípio, a luta parecia separada de quem e do que era Murtagh. Ele se
percebeu em movimento e não sentiu nada. Mas os instintos da carne não podiam
ser negados. Mesmo através da cortina de indiferença, sentiu o sangue acelerar, a
respiração se intensificar e a ardência dos músculos sobrecarregados. E uma fúria
sanguinária cresceu dentro dele, junto com um medo de igual intensidade, até que o
coração sentiu como se estivesse prestes a explodir e…
Toc.
Uma flecha atingiu o broquel e varou o braço.
Tec.
Uma flecha atingiu o ombro e perfurou a armadura de escamas.
Ele não tinha mais as proteções mágicas contra ataques físicos. A ponta da flecha
perfurou pele e músculo, enviando uma pontada de dor lancinante através do braço
e do ombro. Naquele momento, Murtagh ficou frio como gelo; parecia que o pulso
tinha parado e tudo o que ele via adquiriu um brilho azulado. Ele não estava mais
com raiva ou com medo. Em vez disso, Murtagh era um instrumento de violência
pura e implacável, desprovido de pensamento, misericórdia ou qualquer coisa que
se assemelhasse a uma emoção humana. Ele se movia com uma perfeição nascida
da prática, da experiência e da intenção inconsciente.
Uma flâmula de chamas riscou o céu cinzento: o fogo lançado por Thorn pintou o
campo de corpos em combate com uma luz macabra.
Pelo que parecera uma eternidade, Murtagh lutou. O braço esquerdo estava
dormente e inútil, mas isso nem de longe diminuiu seu ímpeto. Ele fora treinado por
um dos melhores espadachins do reino, cunhado nas batalhas mais ferozes da
memória recente, e sua força e velocidade foram potencializadas por ser um
Cavaleiro.
Os Orthroc não tiveram chance contra ele. Murtagh abateu os Urgals como feixes
de trigo seco com uma foice, e a espada ficou vermelha de sangue. Os poucos
Orthroc que tentaram fugir não deram mais do que alguns passos antes que Murtagh
os alcançasse e os matasse por trás, ignorando seus gritos.
Enquanto matava, uma alegria terrível se enraizou dentro dele. Era como se os
sonhos que teve em Nal Gorgoth tivessem se tornado reais, e uma nova onda de
força percorreu seus braços e suas pernas. Por que ele não deveria conquistar e
matar? Por que não deveria assumir o trono e governar com Bachel ao seu lado? Por
que não poderia moldar o mundo à sua vontade?
Por fim, não restavam mais Orthroc. O último jazia aos pés dele, soltando um
suspiro de morte.
Murtagh se virou. Um caminho de neve manchada de sangue levava de volta ao
riacho. Corpos jaziam espalhados pelo chão salpicado e apenas os cavalos dos
Orthroc permaneciam de pé, com os dentes compridos arreganhados, olhos rolando
e arregalados, e cascos afiados batendo no chão.
Thorn estava agachado dentro de um círculo de cadáveres — tanto de Orthroc
quanto de cavalos. O focinho estava franzido em um rosnado, e dentes, garras e
patas dianteiras estavam salpicados de sangue e de vísceras alheias. O dragão estava
ofegante e tremendo, e pequenas labaredas de chamas saíam das narinas a cada
exalação.
Grieve ainda estava sentado nas costas de Thorn. O homem parecia abalado, mas
triunfante.
Atrás de Thorn, os outros Draumar circularam o campo de batalha. Nenhum
parecia ter sujado as armas de sangue.
O Orthroc aos pés de Murtagh soltou um último suspiro e logo em seguida o
corpo vestido de peles ficou mole. O movimento chamou a atenção dele. Pela
primeira vez, olhou para o rosto de um dos Orthroc e viu… não um Urgal, mas um
homem com bochechas queimadas pelo vento, uma espessa barba ruiva e tranças
decoradas com contas que pendiam de ambos os lados da testa larga. Um homem
como qualquer outro que poderia ter sido encontrado em várias tribos errantes da
parte norte da Alagaësia.
Murtagh ergueu o olhar a fim de analisar os cadáveres. Todos humanos, e não
apenas homens, mas mulheres e… corpos menores também.
Ele começou a tremer quando, em um instante, a febre da batalha se transformou
em repulsa doentia e as promessas sedutoras de sonhos mal concebidos se tornaram
uma realidade nua e crua. Bachel não havia enviado os dois para atacar um comboio
de guerreiros armados, mas sim um grupo de integrantes de uma tribo, e a única
razão que Murtagh poderia imaginar para tais pessoas estarem se deslocando no
inverno era porque procuravam segurança — ficar a salvo de gente como os
Draumar.
Apesar do estado de confusão mental, Murtagh sentiu vontade de vomitar. A dor
da flecha no ombro veio à tona com força paralisante, e ele engasgou sem querer.
Murtagh queria negar a evidência diante dos próprios olhos, mas possuía uma
mente muito prática para se iludir. Ele sabia o que suas mãos tinham feito.
Não, não só suas mãos. Ele.
Murtagh olhou para Thorn e viu o dragão o encarando com uma expressão
atormentada que o Cavaleiro reconheceu da época em que estiveram presos em
Urû’baen. O fogo se extinguiu nas narinas de Thorn, que estremeceu e soltou um
gemido leve.
O dragão começou a dar um passo à frente.
— Parado! — vociferou Grieve, ainda montado na sela.
Thorn congelou.
Enquanto Grieve deslizava para o chão, Thorn e Murtagh continuaram a olhar um
para o outro, incapazes de quebrar a compulsão que os prendia.
A neve ensanguentada estalou sob as botas do homem enquanto ele se
aproximava de Murtagh. Grieve estudou a flecha fincada no ombro do Cavaleiro.
— Teria sido melhor se eles tivessem matado você — disse Grieve em um tom
indiferente.
Ele pegou um amuleto de caveira de pássaro de dentro do robe, pressionou no
ombro de Murtagh e puxou a flecha.
A dor fez com que a visão de Murtagh escurecesse e as pernas fraquejassem.
Ele caiu de joelhos e olhou. Não havia sangue. A ferida havia cicatrizado e estava
vermelha e enrugada, como se tivesse se passado uma semana de cicatrização.
Murtagh se apoiou nos calcanhares e moveu o braço esquerdo: ainda estava fraco,
mas os músculos pareciam funcionar.
Ele estremeceu novamente.
— Fique de pé, larva de verme — disse Grieve, que se virou antes de gritar para
os guerreiros a cavalo: — Reúnam os suprimentos para que o dragão possa carregá-
los! Sejam rápidos! Bachel está ficando impaciente. Quando partirmos, peguem
todos os cavalos que puderem e levem-nos para Nal Gorgoth.
— Da forma como é sonhado, assim será — responderam os homens em
uníssono.
O voo de volta para Nal Gorgoth foi frio e silencioso. Apesar do fardo adicional de
Thorn, não foi mais lento do que antes, pois o vento estava a favor.
Murtagh desejou que não estivesse.
Fios de luz alaranjada opaca se estendiam sob as nuvens a oeste e passavam entre
as saliências dos picos das montanhas quando o vilarejo apareceu.
Thorn pousou no pátio do templo e Bachel saiu para cumprimentá-los junto com
os liteireiros, guerreiros e assistentes. Alín estava perto da bruxa, com o rosto pálido
e abatido, e os olhos dela se arregalaram ao ver as patas de Thorn e as mãos de
Murtagh.
Junto a Bachel e sua comitiva estavam também os convidados recém-chegados,
incluindo o homem que Murtagh não conseguiu identificar, e...
— Murtagh! Parece que você escorregou e caiu no matadouro de um açougueiro!
Bastante desajeitado de sua parte, devo dizer!
Lyreth. Em toda a sua elegância cheia de bordados, com um cálice de vinho em
uma das mãos e a outra apoiada na cintura de uma cultista. Outrora, aquelas
palavras teriam incomodado Murtagh. Agora eram como palha ao vento.
Quando Murtagh desceu da sela, Bachel mandou que os guerreiros retirassem a
espada dele, o banhassem e o levassem de volta para a cela sob o templo. Eles
obedeceram.
Na saída, um dos cultistas roçou no lampião no final do corredor da masmorra,
apagando a chama. As celas caíram numa escuridão total.
Murtagh ficou deitado no chão de pedras, com frio e tremendo enquanto gotas de
água pingavam do cabelo. A escuridão parecia um túmulo para a culpa: ela o
envolveu com uma força terrível, revirando suas entranhas e estrangulando sua
respiração.
Ficou imóvel por um tempo infinito, a sensação angustiante de erro tão dolorosa
quanto uma ferida.
A partir disso, uma verdade se formou no centro da mente confusa, um núcleo
inflexível de realidade inescapável: ele não podia continuar como estava, mas nem
ele nem Thorn conseguiriam mudar as coisas. Fazer isso estava além da capacidade
deles.
Um arranhão intenso soou no corredor, como se algo muito pesado se deslocasse
pelas lajotas.
— Homem-Murtagh, qual é o problema?
Foi necessária toda a recém-adquirida acuidade mental de Murtagh para forçar as
palavras a saírem da boca.
— Me ajude...
CAPÍTULO XX
Qazhqargla
— Não— Não posso ajudar você, Homem-Murtagh — disse Uvek, com uma
voz que parecia triste.
— Por favor… Me ajude… Eu…
Passos rápidos se aproximaram pelo corredor e vacilaram por um momento. Uma
reclamação aborrecida foi sussurrada e, então, uma batida de pederneira e aço.
Murtagh lutou para se sentar. Usando o braço direito, ele se apoiou nas barras de
metal da cela. O ferro estava tão frio que parecia queimar. Ele ajeitou a capa em
volta da camisa fina de lã.
Uma chama se acendeu no lampião no início do corredor e Alín correu até a cela
de Murtagh, carregando uma tigela de sopa rala com meio pão dentro. Ela hesitou
ao vê-lo.
— Sinto muito — sussurrou Alín, passando a tigela pelas barras. — Nunca
deveria ter sido assim.
E ela se virou e saiu correndo, com passos que soaram leves como penas nas
pedras.
Do outro lado do corredor, Uvek virou a enorme cabeça na direção de Murtagh.
Iluminado lateralmente pela luz do lampião, o rosto bruto do Urgal estava sombrio e
preocupado. Havia uma tristeza sábia naqueles olhos amarelos.
— Foi tão ruim assim, Homem-Murtagh, o que eles mandaram você fazer?
— Sim... — Murtagh abriu as pálpebras e, sem virar a cabeça, olhou para o
Urgal. — Me ajude... Não posso... Não posso… continuar…
Falar demandava toda a força que ele ainda tinha e, depois, Murtagh ficou mole e
teve que se concentrar na respiração enquanto esperava que o chão se estabilizasse
sob ele.
— Humm.
Quando Murtagh se recuperou o suficiente para abrir os olhos novamente, viu
Uvek o observando com preocupação.
— Dragão-Thorn não pode ajudar Homem-Murtagh? — perguntou o Urgal. —
Dragão e Cavaleiro juntos? Dragões muito fortes.
— Não… Não desta… vez.
— Humm. Não sei o que fazer. Eu sou xamã, falo com espíritos. Você conhece
espíritos, certo?
Murtagh conseguiu assentir.
— Eu falo com espíritos. Às vezes eles respondem. Mas não conseguem me
ouvir agora. Não neste lugar, não com veneno no estômago.
— Se eu pudesse… usar… magia… poderia… libertar… — disse Murtagh,
reunindo toda a sua força.
Mas ele não conseguia manter a concentração mental por tempo suficiente para
continuar falando.
Uvek cutucou o lábio inferior grosso com uma unha em forma de garra.
— Humm. Olhe, Homem-Murtagh.
Do cinto de couro bruto, Uvek tirou um pequeno objeto: um pedaço de pedra
negra esculpida que estava amarrada com uma tira fina de cordão trançado.
— Viu? Eu tenho amuleto. Os sem chifre não pegaram porque acharam que era
só uma pedra. Hrr-hrr-hrr.
Levou um momento para Murtagh perceber que o Urgal estava rindo. Uvek
ergueu a pedra para que refletisse a luz do lampião. A superfície brilhava como se
fosse incrustada com pontinhos de ouro.
— O amuleto é para curar. Poderia ajudar com o Sopro, mas…
— Mas?
— Está fraco, Homem-Murtagh. Amuleto vazio. Eu costumava curar cervos com
a perna quebrada. Tentei dar força ao amuleto, mas… — Uvek balançou a cabeça.
— Não funciona. Mas talvez funcione com você. Você é um Cavaleiro.
Um levíssimo lampejo de esperança se formou em Murtagh.
— Talvez... — Ele lutou para se sentar.
Uvek se curvou para a frente, segurando a pedra negra como se fosse um frágil
ovo de azulão.
— Se você escapar, Homem-Murtagh, vai me libertar? Vai libertar Uvek Voz do
Vento?
— Sim...
— Humm. Os Urgralgra têm muitas relações ruins com os sem chifres. Hrr. E os
sem chifres têm muitas relações ruins com os Urgralgra. Antes de dar o amuleto,
preciso que Homem-Murtagh jure que nunca quebrará a palavra.
— Não posso jurar… não vou…
A expressão de Uvek permaneceu impassível como pedra.
— Então não dou o amuleto.
Frustrado, Murtagh deixou a cabeça pender contra as barras. Ele não tinha forças,
só que não podia desistir, por mais doloroso que fosse continuar.
— Não posso… Não posso jurar para… a raça inteira… — Ele fez uma pausa,
tentando atravessar a névoa no cérebro. — Não ficarei… preso… preso
novamente… desse jeito.
Afinal, todo o motivo pelo qual Murtagh estava na cela foi porque ele e Thorn se
recusaram a se comprometer com Bachel.
— Humm.
Uvek fechou as mãos ao redor da pedra negra enquanto permanecia sentado e
curvado, pensando.
— Há outro jeito, se você quiser, Homem-Murtagh, mas… — O Urgal deu de
ombros. — Não é feito com frequência e nunca com os sem chifres. É o rito de
qazhqargla. Você se torna irmão de sangue de Uvek. Então sua palavra é minha, e a
minha é sua, e nós compartilhamos nossa honra.
Murtagh cerrou os dentes enquanto encarava o teto escuro. Suas escolhas eram
poucas, e se ele e Thorn não conseguissem se livrar de Bachel… Thorn. Murtagh
enviou a mente em busca do dragão e, com toda a energia que conseguiu reunir,
tentou transmitir para ele a natureza do dilema.
Em troca, ele recebeu uma resposta vaga e sem foco, com um toque de
compreensão e resignação. Murtagh sabia o que Thorn queria dizer. O dragão
aceitaria qualquer escolha que Murtagh fizesse. Confiava no Cavaleiro, e Murtagh
nunca, jamais queria quebrar essa confiança. Ele já se sentia culpado por ter
insistido em ir até Nal Gorgoth e continuar ali, apesar da sugestão feita por Thorn
de irem embora.
— O que você me diz, Homem-Murtagh?
Murtagh fez uma careta ao se erguer mais.
— Minha honra… é posta em… dúvida por… muita gente… Você… talvez…
não a queira.
Uvek franziu o lábio superior e mostrou as presas em um sorriso grotesco.
— Vou arriscar e aceitar o fardo, Homem-Murtagh. E você?
O ar fresco do subterrâneo acalmou a garganta de Murtagh enquanto ele enchia
os pulmões e tentava clarear seus pensamentos. Ele não confiava em si mesmo para
resolver o problema mais básico e, por mais que examinasse a questão, não
conseguia pensar em outra solução.
As muralhas que ele e Thorn construíram em volta de si mesmos não podiam
resistir. Não mais.
— Tudo bem — resmungou Murtagh. — Eu… farei o juramento.
— Não é tão fácil assim, Homem-Murtagh.
— Nunca é...
Uvek começou a murmurar em sua língua nativa, balançando para a frente e para
trás. Murtagh fechou os olhos e deixou que as palavras ríspidas o envolvessem em
ondas rítmicas. Depois de um minuto, Uvek grunhiu.
— É isso que você vai precisar dizer, Homem-Murtagh. — E ele falou várias
frases em língua Urgal, que, na opinião de Murtagh, poderiam muito bem ter sido
um complicado exercício projetado especificamente para impedi-lo de completar o
rito.
Pelo que pareceu quase uma hora, Uvek o treinou na pronúncia correta das
palavras. Murtagh teve que descansar com frequência e, com a mesma frequência,
esqueceu o que Uvek já havia lhe ensinado.
— Assim vai servir — disse o Urgal, depois de soltar um suspiro de frustração.
— Os deuses entenderão sua intenção.
Uma percepção tardia ocorreu a Murtagh.
— Espere… Você não vai me fazer jurar na… língua antiga?
Uvek inclinou a cabeça.
— Quer dizer palavras de sortilégios, Homem-Murtagh? Não. Elas não são
próprias dos Urgralgra, então por que usá-las? Se um homem ou Urgralgra não
mantiver um juramento em um idioma, não manterá em outro.
Alívio e uma leve sensação de graça fizeram Murtagh rir.
— Creio… que você tenha razão. — Ele pensara que Uvek o obrigaria a usar a
língua antiga, o que foi em grande parte o motivo de sua relutância.
— Humm. — Uvek bateu no antebraço e apontou para Murtagh. — Para terminar
qazhqargla, devemos unir sangue e falar as palavras. Entende?
Murtagh assentiu, cansado.
— Por que… Por que é sempre… sangue?
— O sangue é poderoso, Homem-Murtagh. Sangue é vida. Os sem chifre também
sabem disso, não sabem?
— Sim... sabemos.
Murtagh enrolou a manga do braço esquerdo e encarou a pele nua por um
momento.
— Não tenho… faca.
Uvek franziu a testa.
— Por que precisa de faca, Homem-Murtagh? Use as unhas. — Ele ergueu o
dedo indicador esquerdo e mostrou a unha grossa em forma de pá crescendo na
ponta.
Murtagh ergueu o próprio dedo.
— Muito... fraco.
— Ghra. Eu esqueço como os sem chifres são frouxos. E se…
— Espere.
Murtagh abriu o fecho que prendia a capa em volta do pescoço. Havia um
alfinete na parte de trás e, embora não fosse muito afiado, poderia funcionar.
— Vou usar... isso.
Uvek grunhiu.
— Bom. Corte aqui… — Ele traçou uma linha logo abaixo da mão. — Aí nos
tocamos e compartilhamos sangue.
Murtagh fez uma leve careta, mas assentiu. O corredor era estreito o suficiente
para que eles conseguissem se tocar.
— Pronto agora, Homem-Murtagh?
— Pronto...
Na cela dele, Uvek se curvou sobre o braço e raspou a unha do polegar esquerdo
no pulso direito com um movimento lento e controlado. O Urgal não demonstrou
nenhum sinal de dor quando uma linha de sangue negro brotou da carne cortada.
Murtagh desviou o olhar. Ele respirou fundo, franziu a mandíbula e então — o
mais rápido que pôde e com toda a força que parecia necessária — arrastou a ponta
do alfinete na pele do pulso esquerdo, criando uma faixa ardente de dor.
Xingou baixinho. O alfinete cortou apenas metade da pele. Ele franziu a
mandíbula mais uma vez e, sem hesitar por causa da dor que viria, passou o alfinete
no pulso uma segunda vez.
Mais sangue jorrou da ferida ardente e Murtagh soltou a respiração em um
suspiro.
Uvek passou o braço entre as barras da cela — precisou forçar bastante, mas ele
conseguiu — e Murtagh fez o mesmo, então ambos apertaram os pulsos
ensanguentados um ao outro. O braço do Urgal estava quente ao toque e o sangue
ardeu na pele de Murtagh.
Uvek falou a metade dele do juramento na língua Urgal, e então foi a vez de
Murtagh. Ele falou sem pressa, pronunciando as palavras como foi ensinado e se
esforçando para evitar erros. O significado das palavras era, segundo Uvek, algo no
sentido de: “Eu, Murtagh Cavaleiro de Dragão, me torno irmão de Uvek Voz do
Vento. Que o sangue dele corra em minhas veias e o meu, nas dele. Isso eu juro por
Svarvok do Grande Chifre. Se eu falhar em manter este vínculo sagrado, que todo
tipo de infortúnio recaia sobre mim e minha tribo.” O juramento podia não ter sido
falado na língua antiga, mas era um assunto sério mesmo assim. Murtagh sentiu o
peso das palavras ao pronunciá-las.
Após a conclusão, eles recolheram os braços e cuidaram dos ferimentos. Uvek
grunhiu.
— O qazhqargla está completo. Agora somos irmãos, Homem-Murtagh.
— Irmãos...
Era algo estranho de dizer. O único irmão — meio-irmão, na verdade — que
conhecia era Eragon, e o relacionamento deles estava longe de ser fraterno. Embora
Murtagh ainda se preocupasse com as obrigações impostas por aquele juramento,
também achou... reconfortante, de certa forma, se ligar daquela maneira a Uvek. Os
costumes dos Urgals eram diferentes dos costumes dos homens, mas ele tinha
certeza de que, se pedisse ajuda a Uvek, o Urgal responderia sem hesitação.
Primeiro, obviamente, os dois tinham que escapar de Nal Gorgoth.
— Aqui, Homem-Murtagh. O amuleto de cura. Talvez ajude você.
— Talvez... — murmurou Murtagh, aceitando a pedrinha negra de Uvek.
Ela estava quente e a tira amarrada em torno dela tinha uma textura agradável.
Murtagh tentou duas coisas então: primeiro, extrair qualquer energia remanescente
da pedra, o que não deu em nada. Uvek não tinha mentido: não havia o menor
fragmento de energia dentro do amuleto. Então tentou imbuir um pouco da própria
força na pedra negra. Mesmo que não pudesse conjurar um feitiço diretamente,
Murtagh esperava conseguir pelo menos usar a energia do corpo para alimentar o
amuleto.
A esperança provou ser em vão. Por mais que tentasse, Murtagh não conseguia
quebrar a represa dentro da mente que o impedia de soltar o poder que continha.
Uvek notou a frustração dele.
— Não funciona, Homem-Murtagh?
— Não... Não! — Murtagh fechou os olhos e sentiu lágrimas escorrerem. —
Não... Eu preciso de… força para o amuleto, mas...
— Pode não ter acontecido por causa do Sopro. — Uvek concordou com uma
expressão pensativa, parecendo perturbado. — Eu tive o mesmo problema. Não há
solução? Homem-Murtagh, você ainda está acordado?
Murtagh se obrigou a abrir os olhos.
— Sim... Solução?
Ele balançou a cabeça, deprimido, e se deitou no chão. Como as lajotas estavam
frias, puxou a capa sobre o corpo.
— Preciso… pensar… Dormir…
— Homem-Murtagh. Homem-Murtagh! Ouça! Você...
Mas Murtagh não ouviu mais nada e, pela primeira vez, teve uma trégua dos
pesadelos lívidos de Nal Gorgoth.
Quando Murtagh acordou, a princípio não sabia quem era ou onde estava. Ele
encarou o teto abobadado por um longo tempo antes que as memórias vagas e
encharcadas de sangue da matança no riacho fizessem o pulso disparar, então foi
tomado pela culpa.
Ele rolou de lado com a intenção de se sentar e sentiu algo duro embaixo do
quadril direito. Olhou, pensando que devia ser o amuleto de pedra negra, mas tudo o
que viu foi a ponta dobrada da capa.
Murtagh deu um tapinha nela.
Mais uma vez, ele sentiu um caroço duro do tamanho de uma avelã. Franziu a
testa.
— O que foi, Homem-Murtagh?
Uvek estava agachado na mesma posição em que se encontrava quando Murtagh
adormeceu. Não parecia que ele havia se movido durante aquele tempo todo.
Com a pergunta, Murtagh percebeu o latejamento no pulso esquerdo. Parecia que
havia sido marcado. O ombro também doía, e aquela dor em especial trouxe
lembranças indesejadas.
Murtagh balançou a cabeça. Ele estava se distraindo. Olhou de volta para a capa
e tateou a ponta… Passou os dedos na bainha… e puxou um diamante amarelo em
forma de lágrima que brilhava como uma gota de luz solar cristalizada na cela
escura.
Uvek contraiu o lábio inferior e soltou um som baixo ao vê-lo.
Levou um momento para Murtagh lembrar o que o diamante era... e onde o
encontrara... Wren… a porta de pedra… Murtagh começou a sentir uma
empolgação se formando e ergueu a joia para Uvek.
— Energia... — sussurrou ele.
O Urgal se inclinou para a frente com olhos brilhando com um fogo semelhante
ao do diamante.
— É suficiente, Homem-Murtagh?
Ele concordou com a cabeça.
— Deve… ser.
Murtagh abriu a mente e expandiu os pensamentos para o diamante. Sentiu o
redemoinho de energia contido na gema: tão perto, tão tentador. Por mais que
tentasse, no entanto, não conseguia… pegá-la e canalizá-la através do corpo para o
amuleto de pedra negra.
Ele gemeu de frustração e novamente projetou a mente no diamante. Parecia que
estava tentando agarrar gelo líquido. A energia não parava de escorregar por entre
os dedos mentais, deixando Murtagh tateando no vazio.
— Não… adianta — disse ao se sentar sobre os calcanhares, balançando a
cabeça. — Você quer… tentar?
Uvek estendeu a manzorra e Murtagh — confiando no juramento que haviam
feito — passou a gema para ele.
Por vários minutos, Uvek ficou imóvel, encarando o diamante com a testa
franzida e a respiração lenta e pesada. Os músculos dos braços se retesaram como
se ele estivesse lutando contra um grande peso. Então, finalmente, o Urgal disse:
— Guh. Eu não consigo tocar o fogo na gema. Ele fica escapando.
Uvek devolveu o diamante para Murtagh, que se sentou apoiado na parede da
cela. Os olhos se fixaram na gema. Depois de um momento, ele cerrou o punho,
apertando o diamante, balançou a cabeça e descansou a testa contra o braço.
— Tem que haver um jeito...
Por um tempo, os dois ficaram sentados em silêncio. O tempo todo, Murtagh
lutou contra a neblina constante que obstruía a mente. Se ao menos conseguisse
pensar com clareza…
Ele franziu a testa. O Sopro de Azlagûr confundia seus pensamentos e a
vorgethan o impedia de usar magia — embora talvez os efeitos de ambos fossem
piores quando combinados. Se pudesse remover um ou outro, ele e Thorn — e
Uvek — poderiam ter uma chance.
Murtagh se sentou ereto e olhou para Uvek, que ergueu as sobrancelhas pesadas.
— O que foi, Homem-Murtagh? Teve ideia?
— Talvez...
— É boa?
— Talvez… Espere…
Eles esperaram. Murtagh não sabia que horas eram. As celas não tinham janelas,
mas ele achava que não tinha dormido a noite inteira. O corpo lhe dizia que era
muito cedo ou muito, muito tarde.
Murtagh permaneceu no chão, de olhos semicerrados enquanto economizava as
forças, sabendo que precisaria muito delas.
Então… Passos no final do corredor.
Era Alín, vindo buscar a tigela que trouxera antes. Como ele esperava. A mulher
de robe branco lhe deu apenas um olhar breve e preocupado antes de se ajoelhar e
estender a mão entre as barras para pegar a tigela.
— Espere… — disse Murtagh, que se mexeu para tocar o pulso dela.
No último momento, um instinto deteve a mão dele, embora Murtagh não
pudesse dizer por quê.
Ela fez uma pausa com o braço estendido, os olhos arregalados e redondos, como
uma corça assustada.
— Você poderia… falar com Bachel… dar um jeito… de trazer… trazer todas as
minhas refeições?
Murtagh viu que Alín tremia.
— Por quê, Regicida? — sussurrou ela.
— Para que você… deixe de fora a droga. — Ele a olhou nos olhos, tão sério
quanto conseguia. — Para que… Thorn e eu possamos… escapar.
O tremor de Alín aumentou e ela balançou a cabeça, como se negasse as palavras
dele, mas ainda assim não recolheu o braço.
— E-eu não posso.
— Por favor… Bachel vai… lavar o mundo… com… sangue… se puder.
Alín balançou a cabeça novamente e se retirou, fugiu de volta pelo corredor com
o robe esvoaçando atrás dela.
Com um gemido, Murtagh desabou contra a parede.
— Foi uma boa tentativa, Homem-Murtagh — disse Uvek.
— Não… o suficiente.
— Humm. Veremos. Leva tempo para acalmar um animal selvagem. — O Urgal
lançou um olhar astuto por baixo da testa baixa. — Às vezes, é melhor deixar o
animal se aproximar da pessoa. Caso contrário, a pessoa assusta.
— Sem… tempo… para isso.
— Nem mesmo os deuses sabem o que o futuro reserva.
Murtagh olhou para Uvek. A expressão do Urgal era impossível de interpretar,
mas ele parecia tranquilo. Murtagh não conseguia decidir se aquela atitude vinha de
fatalismo, de fé ou de algum outro aspecto da cultura ou personalidade do Urgal,
mas achava impossível ficar tão calmo.
Calmo ou não, Murtagh não tinha escolha a não ser aguardar e esperar. E nos
recessos confusos da mente, aquelas mesmas palavras continuavam se repetindo:
por favor… me ajude…
CAPÍTULO XXI
Uma questão de fé
Naquela noite, os cultistas mal haviam levado Murtagh de volta à cela e partido
quando Alín veio de mansinho pelo corredor. O rosto dela estava terrivelmente
vermelho, a pele sob olhos estava inchada e o cabelo, emaranhado.
Ela ficou parada por um tempo, olhando fixamente para Murtagh. Lembrando o
conselho de Uvek, ele esperou que ela falasse, uma expressão convidativa em seu
rosto.
Alín se abraçou e, por fim, disse:
— Você não entende… Como poderia? Mas você não entende. Você não
consegue. — A expressão dela se tornou suplicante. — Eu acreditei em Bachel. Eu
acredito. Ela não é uma falsa profeta. Ela fala com a autoridade de Azlagûr, e como
alguém pode questionar Azlagûr quando vivemos nos sonhos dele? Todos nós
compartilhamos o sonho de Nal Gorgoth e a visão do que pode vir. E quando essa
visão se manifestar…
Ela estremeceu violentamente.
— O mundo será refeito de acordo com a vontade de Azlagûr. — Ela esfregou os
braços, como se estivesse com frio. — Sempre me perguntei o que havia além deste
vale. Bachel sempre nos fala dos males que habitam a Alagaësia, das guerras e das
injustiças.
Alín balançou a cabeça.
— Mas você não é mau, Regicida. Thorn também não. E a forma como Bachel
tratou o dragão… Vai contra tudo o que sei. Contra cada princípio em que acredito.
Contra tudo o que ela nos pregou no decorrer dos anos!
Ela se virou e andou de um lado para o outro entre as celas, perturbada. Ainda
assim, Murtagh permaneceu calado. Com uma expressão transtornada, a jovem se
virou para ele com os dentes pequenos à mostra, como os de um animal
encurralado.
— Os dragões são a força vital da terra, Regicida! Eles são a fonte de tudo o que
é bom, a fonte da vida e da magia e… e… Eles devem ser adorados.
Reverenciados. Honrados. Servidos. E, no entanto, Bachel diz que esse maltrato de
Thorn é necessário. Essencial. De acordo com a vontade de Azlagûr! Eu… eu… —
Ela se interrompeu e estremeceu como se estivesse com febre.
Murtagh se levantou com as pernas trêmulas e foi até a porta da cela.
— O que… você… quer? — perguntou ele, suave e devagar.
Uma película de lágrimas deixou os olhos de Alín reluzentes como prata.
— Quero ajudar Thorn. E… Não, é muito egoísta da minha parte.
— O quê?
— Quero ver a verdade do mundo antes que ele seja limpo por Azlagûr.
— Então… nos ajude.
— Não é tão simples, Regicida. Bachel é a Oradora. Ela é nossa mehtra! Fiz
juramentos a ela e a Azlagûr. Não posso quebrá-los! Se isso acontecesse... ah! Se os
quebrasse, minha alma seria abandonada para sempre. — A pele dela brilhava
graças a uma camada de suor, e Murtagh sentiu o cheiro azedo do medo de Alín. —
Você está me pedindo para jogar fora minha vida e condenar meu futuro eterno por
isso.
— Pelo que é certo...
As palavras atingiram o alvo. Ele notou isso na tristeza da expressão de Alín e
lutou para colocar os pensamentos em ordem.
— Juramentos... obrigam, mas você… pode mudar… se libertar… Eu… sei. Eu
fiz isso.
Alín olhou para ele com angústia.
— Como?
Ele não queria dizer, mas não tinha outro recurso senão o mais profundo
reservatório da verdade.
— Pelo bem… de outro.
Os olhos de Alín se arregalaram e Murtagh sentiu como se ela estivesse
enxergando seu lado mais íntimo. Então os ombros dela cederam e a jovem
balançou a cabeça e soltou um soluço baixinho.
— Não posso. Eu não tenho forças.
O chão pareceu se inclinar sob Murtagh e a cela girou. Ele cambaleou e agarrou
as barras de ferro para se apoiar. Respirou fundo, tentando manter uma aparência de
clareza.
— Família...?
Alín balançou a cabeça.
— Não. Eu fui encontrada quando criança. Como muitos Draumar.
Sangue no chão. Orthroc caídos em pilhas de corpos mutilados. Corpos grandes e
pequenos. Um calafrio tomou conta de Murtagh. Ele podia imaginar como as
crianças chegavam a Nal Gorgoth. Órfãos. Inocentes.
Foi dominado pela tristeza e estendeu a mão para o rosto de Alín, querendo
apenas confortá-la.
Ela se encolheu, mas não recuou.
A pele de Alín tinha um calor febril contra a palma da mão dele. Ela soltou um
gritinho ao ser tocada por Murtagh, que sentiu um tremor passar pelo corpo da
jovem. Ainda assim, ela não se afastou. De alguma forma, ele sabia que isso era
significativo. Uma linha foi cruzada e nunca mais poderia ser descruzada.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Alín.
— Eu quero… quero um sonho melhor, um sonho de alegria, esperança e amor
— sussurrou ela.
— Então... nos ajude.
Alín o encarou com uma esperança tão desesperada quanto a dele, e Murtagh não
sentiu nenhuma malícia no coração dela.
— Se você for embora, vai me levar junto, Regicida?
— Sim… Eu juro.
Um momento se passou e ela se afastou da mão de Murtagh e voltou a esfregar
os braços. A boca dela se abriu, como se fosse falar, mas, em vez disso, a jovem
saiu correndo antes que ele pudesse fazer qualquer coisa para detê-la.
Murtagh virou um olhar desamparado para Uvek, que estava assistindo como
sempre.
— Eu assustei… ela?
O Urgal grunhiu e coçou o pescoço.
— Humm. Talvez sim, mas…
Mais passos soaram, e eis que Alín reapareceu carregando uma tigela e um jarro.
Ela evitou os olhos de Murtagh enquanto se ajoelhava e colocava os pratos do lado
de fora da cela. Então fez uma rápida reverência, como faria para Bachel, e saiu
correndo novamente.
— Essa aí está sempre correndo — disse Uvek.
Sem responder, Murtagh puxou os pratos para o interior da cela. Ele provou
cautelosamente o vinho aguado na jarra e depois o pão e a sopa na tigela. Nenhum
deles ardeu como conhaque.
Murtagh olhou para Uvek e assentiu.
O Urgal ficou muito quieto, como se estivesse se preparando para a ação.
— Acha que vai demorar, Homem-Murtagh?
— Eu não… sei. Um dia? Talvez mais… Depende… de quanto… me deram.
— Faltam apenas um ou dois dias para a festança da fumaça preta. Acho ruim se
ainda estivermos aqui quando acontecer.
— Tão pouco assim?
Ele não tinha percebido que o festival estava tão próximo.
— Humm. Cure-se mais rápido, Homem-Murtagh.
Depois disso, Alín lhe trouxe comida sem vorgethan em todas as refeições. Ele
esperava que o corpo conseguisse eliminar a droga em algumas horas, mas, para a
irritação e decepção de Murtagh, o processo foi muito mais lento.
Outros cultistas continuaram a alimentar Uvek, e o Urgal permaneceu sob os
efeitos da droga. Murtagh perguntou a Alín se ela também poderia ajudar Uvek,
mas ela balançou a cabeça e explicou que outro cultista, um homem chamado Isvar,
preparava a comida do Urgal, e que Isvar havia sido especialmente indicado por
Bachel e não abriria mão da honra.
Assim sendo, os dois esperaram e, sempre que Murtagh estava acordado, ele
tentava de poucos em poucos minutos acessar a energia contida no diamante
amarelo, de modo a transferi-la para o amuleto de pedra negra. Em algum
momento, ele teria de obter sucesso. A questão era se isso aconteceria antes da
fumaça negra.
Murtagh estava ficando cada vez mais apreensivo com aquele festival. Por certos
trechos de conversa que ouviu, tinha a impressão de que Bachel estava planejando
algo dramático, e se preocupava porque os planos dela poderiam envolver ele e
Thorn.
Embora não estivesse mais recebendo a vorgethan, a mente de Murtagh parecia
mais nublada do que nunca. A bruxa continuou a usar o Sopro nele sempre que os
dois se encontravam, e o fedor do miasma rodopiante parecia nunca sair de suas
narinas.
Na manhã seguinte, Murtagh notou que uma boa parte dos convidados de Bachel
estava partindo. Eles se reuniram no pátio, montados em seus belos cavalos com
flâmulas coloridas, e saudaram a bruxa.
— Adeus, Bachel — disse o homem que Murtagh achou que deveria reconhecer.
— Enviaremos notícias de nossos planos em breve.
A bruxa pegou na borda da taça amassada.
— Seria melhor se vocês ficassem para a hora da fumaça negra.
O homem de expressão séria inclinou a cabeça.
— Vamos deixar essas coisas para você e seus seguidores. — Ele olhou para
Murtagh com uma expressão de leve desgosto. — E para o que quer que você tenha
feito dele.
— Ah, mas eu e meus companheiros ficaremos e lhe faremos companhia,
ilustríssima Bachel — disse Lyreth.
Ele estava parado em um canto do pátio junto com outros quatro homens. As
bochechas de todos estavam rosadas, como se eles tivessem andado bebendo.
Bachel não pareceu impressionada. Para o primeiro homem, ela sorriu e
gesticulou, como se estivesse dando permissão.
— Vá então e navegue com segurança em sua jornada. Que o apogeu de nossos
planos chegue da maneira mais rápida.
— Minha senhora.
E com isso o grupo trotou para fora de Nal Gorgoth, indo para a Baía do Fundor e
o navio que Murtagh sabia que estava atracado lá.
A cada hora que passava, Murtagh sentia como se o corpo se tornasse mais leve,
mais reativo. Infelizmente, a mente não seguiu o exemplo. Cada pensamento dava
trabalho e era difícil mantê-los por muito tempo. No entanto, sentia que a droga
estava lentamente saindo de seus braços e pernas.
Mas não rápido o suficiente. Os aldeões estavam cada vez mais entusiasmados
com a perspectiva do festival, até mesmo Grieve, com sua cara feia, parecia
animado.
Bachel dispensou Murtagh mais cedo naquele dia, pois estava preocupada com os
preparativos para o festival. Ele não se importou. Quanto menos a visse, melhor.
Assim que voltou à cela, ele não se sentou nem se deitou. Apesar da mente lenta,
Murtagh se forçou a ficar de pé e andar de um lado para o outro. O movimento,
como Tornac lhe dissera, sempre limpava o sangue. Por isso, ele se moveu, com a
esperança de que a vorgethan saísse mais rápido das veias.
Uvek observou com paciência impassível. Perguntou apenas uma vez se Murtagh
tinha obtido sucesso com o diamante. Fora isso, parecia contente em esperar o
tempo que fosse necessário. Ao vê-lo agachado dentro da cela, com a luz
bruxuleante projetando sombras intensas dos chifres, Murtagh pôde imaginá-lo no
interior de uma caverna em uma montanha alta, imóvel e silencioso como uma
estátua, um oráculo esperando que os fiéis se reunissem diante de si.
O Cavaleiro continuou andando de um lado para o outro.
Estava quase conseguindo acessar a energia do diamante. Sentia isso, como uma
cócega delicada, uma coceira no nariz. Se ao menos…
Um barulho no início do corredor. Era Alín trazendo o jantar. Pão, sopa de carne
de javali e vinho aguado.
Antes de ela sair, Murtagh disse:
— Espere… Você pode me trazer… minha espada, Zar’roc?
Alín balançou a cabeça e o cabelo escondeu seu rosto.
— Não posso — sussurrou ela.
— Onde... está?
— Bachel mantém sua espada e armadura no templo, na câmara de audiência.
Fazia sentido. Ele assentiu lentamente.
— Estou quase… livre. Você consegue… ajudar a preparar Thorn? Água…
Sela… Grilhões?
Alín hesitou. O cabelo ainda lhe cobria o rosto, e ela não fez movimento algum
para afastá-lo.
— Vou tentar, Regicida — disse ela, suave como uma pétala caindo.
— Obrigado… Cairiam bem… suprimentos para… nós… também.
Novamente uma pausa, e a seguir Alín se virou e partiu.
Murtagh permaneceu onde estava, observando.
— Ela ainda está insegura, Homem-Murtagh. — Foi a primeira coisa que o Urgal
disse em horas.
Murtagh grunhiu enquanto se sentava nas pedras.
— Ela vai fazer… o que é certo.
Uvek balançou a cabeça.
— Depende do que ela acha que é certo.
— Sempre… depende.
Murtagh olhou para o Urgal. Sentia-se cansado de uma maneira inexpressável.
Preocupação, culpa e a luta constante para desanuviar os pensamentos consumiram
suas forças limitadas. Por um momento, ele queria esquecer Bachel e tudo a
respeito de Nal Gorgoth.
— Conte-me uma… história, Uvek.
A testa baixa do Urgal se enrugou quando ele ergueu a sobrancelha.
— Que tipo de história?
— Do... seu povo.
— Humm. Eu tenho muitos povos. Minha família. Meu clã, que deixei. Meus
companheiros Urgralgra.
Murtagh acenou com a mão. Estava cansado demais para se preocupar com
detalhes.
— Você… escolhe.
Por mais um minuto, Uvek ficou em silêncio, ruminando. Então o cenho franzido
clareou.
— Já sei. Vou falar a respeito do filho de Svarvok, Ahno, o Trapaceiro. Isso foi
na época do trevo vermelho, quando os rios tinham gosto de ferro. Ahno havia se
transformado em cervo, e Svarvok enviou lobos para persegui-lo, mordiscando seus
calcanhares, mas Ahno riu do pai e se transformou em lobo. Por sete invernos,
Ahno correu com lobos, viveu como lobo, comeu como lobo. Fazia parte da
alcateia. Liderou a alcateia. Está ouvindo, Homem-Murtagh?
— Estou...
— Bom. Hrr. O problema era que os lobos não escolheram Ahno. Não o queriam.
Mas não conseguiam expulsá-lo do bando. Ahno era muito forte, mesmo em forma
de lobo. Mas… — Os olhos de Uvek brilharam com deleite matreiro, e as pontas
das presas apareceram entre os lábios. — Lobos são astutos. Uma noite, uma loba
de pele negra conhecida como Presa Afiada foi para a reunião de lobos sob a lua
cheia. Estava claro como o dia, por causa do luar refletido na neve. Os lobos
uivaram e rosnaram, e Presa Afiada os convenceu a ajudá-la. No dia seguinte, a
alcateia de Ahno foi caçar cervos-nobres no interior da floresta, onde vivem
sombras e grandes chifres. Aí Presa Afiada foi até Ahno e o atraiu para longe da
alcateia.
A expressão de Uvek ficou um tanto travessa.
— Ele gostou da forma de Presa Afiada, dos pelos e dos dentes dela. Você
entende, Homem-Murtagh?
— Entendo...
— Hrr-hrr. Presa Afiada correu sem parar, e Ahno foi atrás dela até chegarem ao
penhasco. Todas as alcateias estavam esperando ali, escondidas no mato. No
penhasco, Presa Afiada deixou Ahno se aproximar. Aí ela o mordeu, e as outras
alcateias vieram, rosnaram, correram para cima de Ahno e o empurraram... — Uvek
fez um mergulho com a mão — pela borda do penhasco. A queda não o matou,
Homem-Murtagh. Os lobos sabiam disso. Ahno é filho de Svarvok, muito difícil de
matar. No fundo do penhasco havia uma caverna, e na caverna vivia ûhldmaq. Você
sabe o que é?
Murtagh balançou a cabeça.
— Não...
— É um Urgralgra que se tornou urso. Muito perigoso. É contado nas histórias de
tempos anteriores. Este ûhldmaq se chamava Zhargog e era muito velho, sentia
muita fome. Zhargog foi até Ahno, que estava ferido, e lutou com ele. O chão
tremeu, pedras caíram e, finalmente, Ahno teve que desistir da forma de lobo e
voltar a ser Chifrudo. Aí ele fugiu e Svarvok falou com ele: “Ho! Agora, Ahno!
Você desistiu de seus dentes, patas e pelos. O que você aprendeu com isso, meu
filho?” E Ahno riu apesar da dor e disse: “Que não é bom correr com uma alcateia
que não me quer. Vou encontrar a alcateia que me queira.” Aí ele se transformou em
águia e voou para longe. E como Svarvok lidou com o filho é outra história. Humm.
Murtagh voltou a olhar para o teto.
— Existem… muitas… histórias sobre Ahno?
— Ah, sim, Homem-Murtagh. Histórias para o inverno inteiro. Ahno era muito
esperto e se metia em muita confusão. No final, os deuses o colocaram no topo da
montanha e o amarraram à pedra para que não tivessem que ouvir sua conversa
interminável.
— Algum dia ele… encontrou sua alcateia?
— Por um tempo, Homem-Murtagh. Por um tempo.
Naquela noite, os sonhos que Murtagh teve romperam todos os limites das
restrições normais. Eles possuíam um imediatismo tão vívido e horrível que a
própria realidade parecia ter se partido em fragmentos ardentes: cada um era uma
imagem que continha significados de tamanho épico — significados que eram
compreendidos de maneira perfeita e total, sem palavras.
Ele passou por alucinações da mais alta ordem, onde o ar parecia se retorcer e
dobrar, e cada emoção, medo, esperança e alegria recebeu um instante para brilhar
sob o céu do sol negro.
A noite pareceu interminável, mas nem mesmo a própria eternidade poderia durar
para sempre e, por fim, as visões se firmaram em algo que Murtagh conhecia muito,
muito bem e que — se pudesse escolher — preferia ter esquecido.
O ar estava frio com o último suspiro do inverno, e ele viu o vapor subindo dos
excrementos do estábulo. Murtagh estava tentando fazer silêncio enquanto ele e
Tornac se apressavam para selar os cavalos. Os animais relinchavam e batiam com
as patas no chão, impacientes, ansiosos para partir. Eles não eram cavalgados
havia mais de uma semana e estavam empolgados para serem libertados da cidade.
— Calma aí — disse Murtagh, acariciando um cavalo.
A espada não parava de ficar no caminho, se enroscando nas pernas, enquanto
ele lutava para colocar a sela nas costas do cavalo de batalha. Tanto ele quanto
Tornac estavam armados, e, sob a capa, Murtagh usava uma cota de malha da
melhor qualidade.
Eles se moveram com medo apressado. Cobertores, selas, arreios, alforjes com
os suprimentos de que precisariam para se afastar de Urû’baen.
— E se ele vier nos procurar? — sussurrou Murtagh.
Ainda não conseguia acreditar que os dois estavam indo embora da capital de
uma vez por todas, deixando para trás tudo o que conhecera nos últimos quinze
anos.
Tornac olhou por cima do cavalo, uma égua ruana com uma estrela branca no
peito. O rosto magro e bronzeado do mestre espadachim estava sério, mas havia
algo na expressão dele que indicava expectativa e, talvez, uma dose de empolgação.
O perigo sempre acelerava o batimento cardíaco.
— Então nos escondemos. Olhos de dragão são aguçados, mas até mesmo eles
não conseguem ver através de folhas ou galhos, e o rei não pode perder tempo
vasculhando todos os bosques e matas do Império. Enquanto tivermos vantagem
suficiente, ele nunca nos encontrará.
Murtagh ainda estava preocupado.
— E se ele usar magia? O rei deve ter feitiços para procurar. E ouvi dizer que ele
consegue expandir os pensamentos e encontrar uma pessoa, mesmo que ela esteja
do outro lado de Urû’baen.
Tornac agarrou o ombro de Murtagh e o encarou com um olhar firme.
— Os amuletos que recebi daquela bruxa errante nos protegerão de qualquer
tipo de espionagem. O rei não é todo-poderoso, Murtagh. Ninguém é. Se todos os
sussurros ditos a respeito de Galbatorix fossem verdadeiros, os Varden teriam
sucumbido ao poder dele há muito tempo. O mesmo vale para elfos e anões.
Murtagh puxou a cilha do cavalo de batalha e apertou na medida apropriada.
— Você não deveria ter dito o nome dele — murmurou Murtagh.
Tornac parou o que estava fazendo.
— Você não quer ir embora?
— Quero...
Tornac assentiu ao voltar a ajustar os alforjes da ruã.
— Então chega disso. Precisamos estar longe daqui antes do amanhecer.
Murtagh grunhiu, e Tornac olhou para ele com uma expressão pensativa.
— Nós concordamos. Você não pode ficar. Se ficar, o rei…
— Se eu ficar, o rei vai me transformar em meu pai. Ele vai me transformar em
mais um de seus lacaios sanguinários, como Barst ou Yarek — disse Murtagh, sem
fazer nenhuma tentativa de esconder a amargura.
— Não é só isso — disse Tornac. — Mesmo que você não fosse filho de Morzan,
este não é um bom lugar para você, Murtagh. Aqueles sanguessugas na corte vão
arruiná-lo se você ficar.
O orgulho tomou conta de Murtagh.
— Eu nunca permitiria.
Tornac olhou sério para ele por cima da égua.
— Você diz isso agora, mas eles continuariam sendo cruéis, ano após ano. Esse
tipo de atenção acaba com a alma de um homem. Já vi acontecer. — Ele voltou a
atenção para a sela do cavalo. — Você precisa ser livre. Livre de Galbatorix. Livre
da corte. Livre para decidir por conta própria. Só então se tornará o homem que
sei que pode ser.
O carinho na voz do mestre espadachim surpreendeu Murtagh, mas o rosto de
Tornac estava escondido atrás do flanco do cavalo.
— Você merece uma chance de encontrar o próprio caminho, e eu não ficaria
parado, deixando eles o transformarem em algo parecido com Lyreth ou a laia dele.
Confie em mim. É melhor ir embora.
Só então Murtagh percebeu que a verdadeira motivação de Tornac não tinha
nada a ver com se opor ao rei e sentiu uma súbita sensação de gratidão.
— Eu confio em você.
Assim que as montarias ficaram prontas — com os cascos cobertos com trapos
para abafar o som —, eles partiram. O menino que dormia nos estábulos ainda
estava adormecido, e o vigia cujo dever era patrulhar aquela parte da cidadela
estava longe, no fim de sua rota. Tornac e Murtagh haviam planejado a fuga com
muito cuidado.
Os dois saíram pelo portão lateral da fortaleza da cidadela, aberto e sem guarda
durante a semana do festival, e se dirigiram para a muralha externa de Urû’baen.
A batida dos cascos dos cavalos era um acompanhamento suave enquanto
avançavam entre as fileiras de casas adormecidas. O céu estava quase negro e a
grande saliência de pedra que pairava sobre a metade leste da cidade bloqueava
qualquer visão dos primeiros raios do amanhecer.
A distância relativamente curta até as muralhas pareceu ser de pelo menos uma
légua, pois os nervos dos dois estavam à flor da pele. A cada leve lufada de vento,
Murtagh esperava que a forma negra de Shruikan irrompesse da cidadela quando o
rei viesse abordá-los.
Eles logo chegaram ao portão situado na parte de trás das defesas da cidade.
Murtagh havia subornado um vigia para deixá-lo aberto — e estava mesmo. Ele
segurou as rédeas enquanto Tornac o destrancava e, então, passaram correndo
pela saída escura, semelhante a um túnel, que conduzia através da enorme muralha
externa.
Então veio a consternação. O medo. A desesperança. Aguardando por eles no
campo do lado de fora estava um grupo de soldados. Doze lanceiros, com um
capitão altivo à frente, usando um capacete de plumas brancas que captava os
últimos resquícios do brilho das estrelas.
A princípio, Murtagh teve um pensamento transtornado e horrível de que tinha
sido traído por Tornac. Mas então viu o rosto do mestre espadachim. Tornac estava
tão aflito quanto ele. Talvez mais ainda.
— Então as ovelhas desgarradas foram encontradas — disse o capitão com
muita alegria. — O rei ficará satisfeito. Soltem suas montarias, Murtagh, filho de
Morzan, e Tornac, filho de Tereth. Larguem suas armas, e não serão feridos.
Quanto a isso vocês têm a minha palavra, e por decreto real.
Não havia escolha. Murtagh soltou as rédeas, assim como Tornac, e pegou a
fivela do cinturão da espada.
Se não conhecesse Tornac tão bem, não teria percebido a intenção do homem. A
mudança ligeira na postura do mestre espadachim quando ele firmou os pés no
chão, equilibrando o peso — foi todo o sinal que Murtagh recebeu.
Tornac fintou com a mão, primeiro parecendo agarrar o próprio cinto, mas
então, com velocidade mortal, desviou para pegar o cabo da espada e sacar a
lâmina.
O capitão mal conseguiu emitir a primeira nota de um guincho agudo antes de
Tornac acertá-lo no pescoço com uma investida executada com perfeição.
Os soldados gritaram e se dispersaram, pegos de surpresa, enquanto Murtagh
lutava para desembainhar a própria espada. A arma ficou presa na bainha e soltá-
la consumiu segundos preciosos.
Nesse tempo, Tornac feriu mais dois soldados e começou a avançar contra um
terceiro. Os homens encontraram coragem e começaram a cercar o mestre
espadachim com as lanças que formavam um círculo de pontas afiadas.
Enfim a bainha liberou a espada de Murtagh, que atacou os soldados pelo
flanco. Pela segunda vez em dois dias, Murtagh lutou e matou.
Nunca antes tinha se movido com tamanha combinação de crueldade fria e
selvageria desesperada. Mas ele não estava lutando apenas por si mesmo, estava
lutando para ajudar Tornac, e preferia levar um golpe antes de ver o mestre
espadachim ferido.
Os soldados eram todos veteranos: guerreiros treinados que foram
recompensados pela lealdade e bravura com um posto de guarda na cidadela de
Urû’baen. Mas foram surpreendidos, e a queda rápida de vários companheiros os
confundiu, fazendo com que recuassem, e toda vez que os soldados vacilavam,
Tornac ou Murtagh ceifavam outra vida em troca.
Na maior parte do tempo, os dois lutaram em silêncio, exceto por grunhidos e
batidas de metal e um ocasional grito rápido. Ninguém tinha fôlego para falar. Eles
estavam ofegantes e desesperados, e o suor escorria nos olhos.
No entanto… apesar de toda a habilidade de Tornac, e também de Murtagh, os
números estavam contra eles em larga escala. Doze contra dois. Mesmo com a
surpresa do lado deles, estava longe de ser uma luta justa. Murtagh vislumbrou
uma mancha de sangue no ombro direito de Tornac e mais sangue escorrendo de
um corte no couro cabeludo dele, e sentia uma linha ardente em algum lugar do
próprio quadril.
O mestre espadachim lutou como um gato encurralado, se contorcendo, saltando
e atacando com uma velocidade estonteante. Não havia tempo para as formas
estilizadas usadas nos duelos da corte. Não havia tempo para os ângulos e as
distâncias perfeitos dos treinos de esgrima. E, mesmo assim, foi uma exibição
deslumbrante, ousada e arrojada que teria conquistado aplausos até do público
mais saturado. Naquele momento, Murtagh acreditou que nenhum homem poderia
ter resistido frente a Tornac.
Mas, como todos os momentos perfeitos, mesmo em sonhos, aquele não poderia
durar.
Murtagh tropeçou e sentiu a ponta de uma lança atingir as costelas quando um
soldado avançou contra ele, então caiu. Antes que pudesse entender o que estava
acontecendo, Tornac estava diante dele com a espada enterrada no corpo do
soldado.
Outro soldado atacou Tornac por trás e, com uma faca de lâmina longa, estocou
entre as omoplatas dele e o jogou no chão.
Murtagh se libertou e matou o soldado antes que este pudesse retirar a faca das
costas de Tornac. Outro minuto de luta desesperada se seguiu enquanto ele
enfrentava os últimos quatro soldados.
Os homens poderiam ter fugido. Não eram páreo para Murtagh, mas ele sabia
que tinham jurado a Galbatorix o mais solene dos juramentos. Eles eram tão
incapazes de recuar quanto Murtagh de se render.
No final, na luz cinzenta do amanhecer, apenas ele permaneceu de pé em meio
aos corpos espalhados. A égua ruana saiu correndo do campo, mas o cavalo de
batalha de Murtagh ainda estava parado ao lado do portão, bufando e batendo
com as patas no chão.
Angustiado, Murtagh cambaleou até chegar a Tornac e o virou. Sangue
espumoso escorria dos lábios do mestre espadachim, mas os olhos ainda estavam
abertos. Ele sorriu ao ver Murtagh.
— Você acabou com eles da maneira correta? — perguntou Tornac.
Murtagh assentiu, lutando para encontrar fôlego suficiente para falar.
— Todos mortos.
Ele agarrou as mãos do mestre espadachim. Elas estavam surpreendentemente
frias.
Tornac sorriu.
— Eu te ensinei bem, Murtagh. — Então a expressão dele ficou tensa e o aperto
de mão enfraqueceu. — Peça… peça desculpas a Ola por mim… Se você tiver a
chance.
— Claro — disse Murtagh, que não suportava pensar em como a simpática
mulher de rosto redondo receberia a notícia.
— Ela vai me odiar por isso. — Os olhos de Tornac vagaram, mas o olhar se
aguçou novamente e, por um momento, ele ficou lúcido como Murtagh jamais tinha
visto. — Vá. Você tem que ir, maldição. Pegue meu amuleto e me deixe. Acabou
para mim. Vá e seja livre e me… esqueça…
Um último suspiro ruidoso soou dentro do peito de Tornac, o corpo ficou mole e
o brilho desapareceu dos olhos.
Então Murtagh chorou e não se envergonhou.
…
Uma disjunção, e Murtagh mais uma vez se viu encolhido de medo na planície
desolada, no fim de todas as coisas, com o sol negro ondulando com labaredas
finas de chama negra enquanto o dragão sem asas monstruoso, montanhoso e
corcunda se erguia no horizonte, eclipsando a luz e a esperança.
…
Outra disjunção. Um campo de grama dourada cobria a ondulação suave de
uma colina. Parada no meio da grama estava Nasuada usando um vestido de
veludo vermelho. Ela se virou para encarar Murtagh e estendeu a mão para ele,
mas estava com uma expressão triste. Por mais que Murtagh tentasse alcançá-la,
não conseguia diminuir a distância.
O céu escureceu, o sol perdeu o brilho e a terra e o céu ficaram da cor de
estanho manchado. Lágrimas marcavam o rosto de Nasuada, e Murtagh sentiu
lágrimas no próprio rosto, ardendo de arrependimento e dor pela separação.
Estrelas pontilhavam o céu enegrecido, e uma sensação de perdição iminente e
inevitável deixou um buraco em seu peito. E ao longe, uma massa corcunda se
mexeu no horizonte e começou a subir para devorar o sol minguante…
Murtagh acordou suando frio, desorientado, sem saber o que era real e o que não
era, e ainda assim consumido por uma súbita convicção de que o tempo era
desesperadamente curto e a perdição se aproximava.
A batida de sinetas, sinos e címbalos agudos soou fora do templo, alta o
suficiente para que a comoção penetrasse nas pedras da construção. E também
gritos selvagens e bárbaros: como se o vilarejo inteiro tivesse enlouquecido.
Do outro lado do corredor, com metade do corpo nas sombras, Uvek olhou para
fora com uma expressão séria e enrugada.
— A hora da fumaça negra chegou, Homem-Murtagh.
O medo estimulou Murtagh a agir. Ele tateou a capa até sentir o diamante
amarelo escondido na bainha. Onde estava o amuleto que Uvek lhe dera? Onde?
Onde? Onde? Por um momento, ele não conseguiu lembrar. Então lembrou: enfiado
no fundo da bota esquerda.
Murtagh agarrou o amuleto e tentou entrar em contato com a energia armazenada
no diamante. O vórtice rodopiante fez cócegas em seu cérebro, com uma
proximidade tentadora. Ele quase conseguiu tocar a energia. A droga devia ter sido
quase expurgada do corpo, porém, apesar das tentativas, ele não conseguiu
desbloquear o fluxo de energia.
Clang!
A porta invisível no final do corredor se abriu e botas marcharam em direção às
celas. Cultistas vindo buscá-lo.
Murtagh tirou a mão da bota e se levantou. Xingou baixinho. Demorara demais.
O tempo havia se esgotado. Ele tinha de enfrentar o que quer que os Draumar
tivessem planejado.
Fumaça negra. Sol negro. Perdição.
CAPÍTULO XXII
Fumaça negra
Fogo e vento
O s Draumar eram protegidos contra magia, mas não contra os efeitos da magia.
Diante da ordem gritada por Murtagh, uma torrente de vento feroz derrubou os
cultistas e prisioneiros e até fez alguns deles rolarem pelas lajotas. Atrás dele, a
fogueira rugiu repentinamente, as labaredas subiram mais de seis metros no ar e
uma nuvem de brasas rodopiantes encheu o pátio enquanto sombras agitadas se
estendiam para as construções ao redor.
Conjurar tanto vento assim deveria ter estado além das forças de Murtagh, mas
ele esvaziou o diamante amarelo e se valeu de Thorn e Uvek. Seu poder ficou maior
do que o de qualquer homem, até mesmo um Cavaleiro.
A ponta da adaga de lâmina negra ricocheteou no peito de Bachel, desviada por
um feitiço, e a arma voou da mão dele.
A bruxa gritou em uma língua gutural e desconhecida enquanto pulava para trás.
Uma das garras de ônix apontou para Murtagh.
— Skölir! — gritou ele.
Escudo. Era uma proteção mágica genérica, tão vaga que chegava a ser perigosa,
mas Murtagh só teve tempo para isso.
Gotas de escuridão intensa saíram do dedo da bruxa e fluíram em volta de
Murtagh como água ao redor de uma pedra teimosa, desviada pelo contrafeitiço
dele.
Mais uma palavra e Bachel poderia matá-lo. Aquela proteção improvisada
poderia ser contornada de várias maneiras. Então ele fez o que sempre deveria ser a
primeira coisa em um duelo entre mágicos: atacou a mente de Bachel. Agora livre
do Sopro e da vorgethan, ele sabia que tinha uma chance de vencê-la, se ao menos
conseguisse…
Bachel riu, e não havia humor ou leviandade no som, apenas zombaria cruel e
desdenhosa.
Ela deu um passo para trás e foi obscurecida por uma nuvem de asas e bicos e
olhos brancos no momento que o bando de corvos desceu para o pátio e a cercou.
Os pássaros dispararam na direção de Murtagh, que os ouviu e sentiu em todos os
lugares à volta. Eles bloquearam a luz.
À distância, Uvek berrou, e o medo lançou uma sombra sobre os pensamentos
dele.
No interior da tempestade de corvos, Murtagh sentiu a mente da bruxa escapando
como um fio de cabelo ao vento. Ele tentou encontrá-la novamente, mas não obteve
sucesso. As mentes dos pássaros esvoaçantes confundiram o olho interior de
Murtagh, que se sentiu perdido e desequilibrado.
Era uma posição insustentável. A qualquer momento, uma arma ou feitiço
poderia acabar com ele.
Desesperado, Murtagh pronunciou a palavra mais mortífera que conhecia, uma
que Galbatorix jamais teria ousado ensinar, mas que ele teve a sorte de encontrar no
compêndio. Era a mais simples e maior das palavras mortais.
— Deyja.
Morra.
Os corvos caíram como uma chuva pesada e escura.
Ele ficou sozinho ao lado do altar. A prisioneira havia rolado do bloco de basalto.
Ao redor de Murtagh, jazia uma roseta de corvos mortos, as penas caídas nas lajotas
como várias pétalas verde-escuras.
Bachel se fora. Desaparecera. Assim como Grieve e metade dos convidados na
mesa comprida.
Maldição. Ele precisava pegar Bachel antes que ela pudesse realizar um mal
ainda pior. Mas primeiro…
Os cultistas estavam se reunindo ao lado do pátio, tanto guerreiros quanto
Draumar comuns se juntando para uma investida.
— Vindr!
Murtagh os repeliu com a palavra e vento enquanto andava até Thorn.
Novamente a força do dragão serviu como dele.
— Kverst! — Com outro comando arcano, ele atingiu os grilhões e a focinheira
de Thorn, depois tirou o amuleto de pedra negra da bota, pressionou contra o
focinho do dragão e disse novamente: — Shûkva.
A mudança no comportamento de Thorn foi instantânea. Ele arqueou o pescoço e
rugiu, e uma onda reluzente passou pelo comprimento sinuoso de seu corpo.
Finalmente!, disse ele.
E a sensação da mente do dragão, novamente íntegra e sã, encheu os olhos de
Murtagh de lágrimas.
Foi um trabalho de segundos efetuar uma cura semelhante em Uvek e libertá-lo
dos grilhões.
O Urgal empertigou os ombros enormes e largos e soltou um rugido parecido
com o de Thorn.
— Que bom, Homem-Murtagh. Faz muito tempo desde que lutei. Acho que vou
gostar disso.
— Nada de crianças — disse Murtagh em tom severo enquanto devolvia o
amuleto de pedra negra ao Urgal.
Uma flâmula ondulante de chamas saiu da boca de Thorn e repeliu a massa
crescente de cultistas.
O mesmo vale para você, disse Murtagh com a mente. Deixe as crianças em paz.
Vou tentar.
Uvek levantou os chifres para mostrar a garganta.
— Como quiser, Homem-Murtagh. E peço que não mate mais corvos. É má sorte.
Murtagh assentiu.
— Eu prometo. Agora vamos…
Ele parou quando viu Alín surgir no meio dos pilares sombreados na frente do
templo, correndo em direção a eles com a sela de Thorn e alforjes empilhados nos
braços. Enquanto ela cambaleava sob o peso, Grieve e dois acólitos blindados
chegaram correndo por trás e a agarraram.
A sela e os alforjes caíram, e a jovem se debateu em uma tentativa frenética de se
libertar. Mas Grieve e os acólitos a arrastaram de volta para as profundezas do
templo e desapareceram de vista antes que Murtagh terminasse de preparar um
feitiço.
Ele gritou de raiva e foi atrás dela.
Depois de dois passos, Murtagh se voltou para Thorn e deu um tapa na lateral do
corpo do dragão.
— Vá! Quebre! Queime! Destrua este lugar.
As mandíbulas de Thorn se abriram em um rosnado cheio de dentes, e a ponta da
cauda se contraiu.
Pensei que você nunca fosse pedir.
Ele rugiu novamente e saltou no ar com um movimento estrondoso das asas. A
corrente de ar lançou redemoinhos de brasas, e cada um deles era uma tempestade
minúscula de fogo rodopiante.
Assim que Thorn passou por cima das construções que cercavam o pátio, colocou
uma parede de fogo entre Murtagh e a multidão reunida. Um punhado de flechas
perfurou a parede e passou pela cabeça do dragão, deixando um rastro de flâmulas
de chamas ondulantes.
Murtagh correu em direção ao templo enquanto as chamas se apagavam e os
cultistas avançavam. Atrás dele, ouviu Uvek soltar um bramido poderoso: um grito
de guerra capaz de fazer até o homem mais corajoso tremer.
Murtagh chegou às fileiras escuras de colunas facetadas, passou correndo pelas
portas abertas de carvalho enegrecido, desceu a passagem cheia de alcovas e entrou
no átrio com a estátua apavorante do sonho.
Um estrondo ensurdecedor soou atrás dele e um baque enorme fez o chão vibrar.
Murtagh se virou e viu uma nuvem de poeira subindo da frente do templo. Uma
sombra escura passou por cima quando Thorn voou sobre a sua cabeça.
Pronto, disse Thorn. Ninguém vai alcançá-lo vindo pela entrada. Eu bloqueei as
portas com pedra.
Enquanto falava, o dragão pousou sobre a Torre de Pederneira e começou a
arrancar as telhas de ardósia do telhado. Um fluxo interminável de corvos raivosos,
assustados e crocitantes voou pelos buracos e se dispersou na fumaça que escurecia
o vale.
Murtagh deu um sorriso tenso.
Obrigado. Tome cuidado.
Thorn rugiu em resposta.
Murtagh virou à esquerda e saiu do átrio em direção ao santuário interno do
templo, onde provavelmente encontraria Bachel, Grieve e Alín.
Ao longo do caminho, encerrou o feitiço de escudo. Era muito abrangente para
ser eficaz e, embora fosse uma proteção mágica, tinha um efeito contínuo pela
maneira como ele o conjurara, o que lhe custava uma energia que poderia — ou
melhor, temia — ser preciosa para derrotar Bachel. Melhor começar do zero com
proteções mágicas adequadas, que só seriam acionadas quando necessárias.
Ao passar entre os pilares da borda sul do átrio, ele se esforçou para lembrar as
palavras exatas das proteções mágicas mais antigas. Já fazia algum tempo desde que
havia conjurado os feitiços e não seria bom se amaldiçoar acidentalmente. Ah, é
isso, pensou, e abriu a boca para…
Um peso acertou nas costas dele entre as omoplatas. A cabeça de Murtagh foi
jogada para trás, a dor atingiu o pescoço, e ele caiu para a frente no chão
pavimentado. Faíscas brancas brilharam atrás dos olhos quando a testa ricocheteou
nas pedras.
Uma bota atingiu as costelas de Murtagh e arrancou o ar dos pulmões. E de novo.
E mais uma vez.
— Pronto! Isso mesmo! Você nunca foi mais do que lixo de sarjeta! — gritou
Lyreth.
O som da voz e a sensação dos golpes lembraram-no da emboscada na escada em
espiral da cidadela de Urû’baen. Uma sensação instintiva de pânico e desamparo
tomou conta dele, e Murtagh se encolheu como uma bola, tentando proteger a
cabeça e a nuca.
Magia. Essa era a resposta. Se ele pudesse conjurar um feitiço…
Algo duro atingiu sua têmpora e a visão vacilou. O chão pareceu se inclinar
embaixo dele. Atordoado, ele tentou se recuperar, mas era impossível pensar,
impossível se mover…
Perdeu o equilíbrio e rolou para o lado. Murtagh viu Lyreth diante de si, com um
cálice de latão manchado de sangue em uma das mãos e uma expressão feroz no
rosto, os dentes arreganhados. Lyreth ergueu a taça novamente e...
Alguma coisa o puxou para o lado e o jogou rolando pelo chão. O cálice caiu e
quicou com vários repiques agudos.
Uvek surgiu diante de Murtagh, oferecendo uma enorme mão cinza. Na outra, o
Urgal segurava uma lança tirada dos Draumar.
— Obrigado — Murtagh conseguiu falar, ofegante, enquanto se levantava com a
ajuda de Uvek, que o colocou de pé.
— Claro, irmão de sangue.
A vários pilares de distância, Lyreth se levantou, um tanto instável. Ele olhou
para Murtagh e Uvek e arregalou os olhos de medo. Fez menção de se virar, como
se fosse fugir.
— Nem pense nisso, Lyreth. Eu poderia matá-lo com uma palavra — disse
Murtagh.
O rosto do nobre perdeu a cor. Ele umedeceu os lábios.
— Absurdo. A magia de Bachel me protege.
Ah, ele tem um amuleto.
— Você acha que isso pode me impedir, Lyreth? A mim? Nem mesmo Galbatorix
conseguiu me impedir com os juramentos dele. Se não fosse por mim, você ainda
seria um escravo da vontade do rei.
Era um blefe, mas Murtagh de alguma forma acreditou nas próprias palavras. Se
fosse forçado, ele tinha certeza de que poderia encontrar uma maneira de passar
pelas proteções mágicas do amuleto. De alguma forma.
Lyreth empinou o queixo proeminente.
— Então me mate. O que está esperando?
Quando Murtagh não respondeu imediatamente, ele sorriu e começou a se afastar.
— Foi o que eu pensei. Uma bravata va…
— Não — disse Uvek, com uma voz que soou como pedras triturando, e apontou
para Lyreth com uma unha em forma de gancho. — Você fica.
Lyreth congelou. Não havia chance de ele correr mais do que um Urgal e todos
sabiam disso.
— Você quer que eu mate esse jovem sem chifres para você, Homem-Murtagh?
Murtagh ficou muito tentado, mas balançou a cabeça.
— Não. Deixe-o. Ele servirá melhor como prisioneiro. Vamos levá-lo de volta
para encarar os interrogadores de Nasuada.
O medo voltou ao rosto de Lyreth, mas ele assumiu a mesma expressão altiva e
desdenhosa que Murtagh havia aprendido a odiar enquanto crescia.
— Você acha que é tão fácil me fazer prisioneiro? Nunca conseguiu me derrotar
na corte, Murtagh.
— E você nunca conseguiria me derrotar na arena. Goreth de Teirm pode atestar
isso.
Em algum lugar do vilarejo, uma construção desabou em meio a gritos e
estrondos. Murtagh resistiu ao impulso de olhar. Ele não sentiu nenhuma dor vindo
de Thorn. O dragão estava seguro.
Lyreth fez um gesto desdenhoso com a mão.
— Você está sem uma espada agora, Murtagh, filho de Morzan. Se mandar esse
seu Urgal de estimação me pegar, é um covarde ainda maior do que eu pensava.
Aposto que não consegue me colocar de joelhos. Aposto a minha vida.
Murtagh sabia que era uma provocação, mas também não podia deixar o desafio
passar sem resposta.
— Pode muito bem custar a sua vida — disse ele em tom ameaçador e limpou
um filete de sangue da têmpora latejante. — Ninguém me chama de covarde sem
uma resposta apropriada.
Uvek assentiu com aprovação.
— Eu vou assistir, Homem-Murtagh. É bom lutar. Limpa o sangue, acrescenta
honra ao nome.
— E minha honra é sua honra. Sim.
O Urgal recuou vários passos enquanto Murtagh e Lyreth andavam em um
círculo entre os pilares. A coragem inesperada de Lyreth intrigou Murtagh. Ele
nunca o teria considerado corajoso. Astuto, sim. Charmoso, quando necessário, sim.
Cruel, sem dúvida. Mas Lyreth não era o tipo de homem que agarrava a
oportunidade de liderar uma investida em batalha.
Ele quer muito evitar ser capturado. O pensamento fez Murtagh hesitar. Se essa
fosse a verdadeira motivação de Lyreth, então…
Ele saltou para a frente. Se estivesse certo, demorar seria mortal. Com dois
passos, Murtagh encurtou a distância entre ele e Lyreth e, antes que o outro homem
pudesse recuar, o agarrou pelo ombro com uma das mãos enquanto dava um soco
no queixo dele.
Lyreth recebeu o golpe melhor do que o esperado e, um segundo depois, Murtagh
sentiu um soco em resposta no rim esquerdo. A dor fez seus olhos lacrimejarem, e
todo o seu corpo ficou rígido, exceto pelos joelhos, que cederam.
Lyreth se jogou contra ele e os dois caíram juntos no chão.
Um baque surdo ecoou com a colisão. Por um minuto, o único som foi de
respirações irregulares enquanto os dois se engalfinhavam por cima das lajotas. De
perto, Lyreth cheirava a vinho e a um perfume enjoativo de pêssego que Murtagh
achava desagradável.
O outro homem lutou com força desesperada, mas era muito mais fraco do que
Murtagh, que logo ganhou vantagem. Lyreth pareceu perceber a dificuldade da
situação, pois recorreu à mais baixa das táticas e enfiou os polegares nos olhos de
Murtagh.
A dor fez Murtagh jogar a cabeça para trás, a visão foi invadida por ondas de
branco e vermelho, e estrelas brilhantes explodiram nos pontos onde os polegares
de Lyreth fizeram contato.
Eles se separaram e, um momento depois, ambos estavam de pé, de punhos
erguidos, cabelos despenteados, dentes arreganhados. Murtagh pestanejou. O
mundo parecia pulsar com tons vermelhos e amarelos, cada linha e ângulo
contornado por um halo brilhante.
Vários socos rápidos se seguiram. Murtagh ficou impaciente e avançou contra
Lyreth. Ele não era mais criança e jamais seria maltratado por Lyreth novamente.
Murtagh o jogou contra um pilar e a cabeça do homem bateu na pedra esculpida.
Por um instante, Murtagh pensou que havia vencido. Então, um lampejo de prata
em seu cinto chamou sua atenção: Lyreth tentava atrapalhadamente tirar uma adaga
de lâmina curta de debaixo da bainha da túnica.
O susto provocou um pico no pulso de Murtagh. Ele deu um salto para trás, mas
era tarde: uma linha ardente cortou suas costelas quando Lyreth atacou.
Murtagh resistiu ao impulso de se afastar. Em vez disso, deu um passo à frente
novamente e prendeu o braço de Lyreth entre os corpos. Pegou o pulso do homem e
o dobrou para dentro, até que a adaga apontasse para Lyreth e, antes que ele pudesse
largar a arma, enfiou a faca bem fundo no peito dele.
Lyreth enrijeceu e soltou um grunhido, mas continuou lutando, aparentemente
sem vontade de reconhecer o ferimento. Murtagh sabia que tinha atingido seu
coração. Após algum tempo, ele morreria do sangramento, mas isso poderia levar
um minuto ou mais, e Lyreth lutava com a mesma tenacidade obstinada de um
cervo que levara uma flechada no peito e se recusava a cair.
Isso está demorando demais. O pensamento ocorreu a Murtagh com uma clareza
fria. Alín precisava ser resgatada. Mais importante, Bachel ainda estava à solta, o
que significava que Thorn estava em perigo, mesmo que as proteções mágicas do
dragão permanecessem ativas. Aquela disputa era uma distração desnecessária e,
além disso, perigosa.
Toda a raiva abandonou Murtagh, que deu um passo para trás e puxou a adaga do
peito de Lyreth. Um jato de sangue carmesim o atingiu, e a cor sumiu do rosto de
Lyreth. O homem se debateu e foi atrás de Murtagh, apenas para cair em seus
braços.
Mantendo uma das mãos firme na adaga, Murtagh o abaixou no chão. Ele já
podia ver a luz desaparecendo dos olhos do outro homem. Seu primeiro instinto foi
deixá-lo morrer, mas ele precisava descobrir tudo o que Lyreth sabia.
— Waíse heill — disse Murtagh, colocando a palma da mão esquerda na ferida
no peito do homem.
Foi um feitiço arriscado; ele poderia estar tentando curar algo que estivesse além
de sua força ou habilidade, mas Murtagh só teve tempo para isso.
O feitiço não teve efeito.
Lyreth riu. Ele parecia estar mesmo achando graça. Sangue manchava os cantos
da boca.
— Estou encantado, lembra? Seus feitiços… não vão… funcionar.
Murtagh rasgou a frente da túnica de Lyreth, convencido de que veria um dos
amuletos de caveira de pássaro de Bachel pendurado no pescoço do homem, mas
tudo o que encontrou foi a pele branca e a linha de lábios vermelhos que era a ferida
no coração de Lyreth.
— O que você fez? — disse ele, irritado.
Lyreth riu novamente, mais fraco desta vez.
— Proteções mágicas vinculadas… a mim… sem necessidade de… amuleto. —
O olhar vagou por um momento, e então ele se reanimou e olhou para Murtagh com
rancor indisfarçável. — Você sempre foi um… bastardo.
Então Lyreth ficou mole e o último suspiro deixou o corpo.
Murtagh se levantou e olhou para o cadáver.
— Não — disse ele. — Eragon é o bastardo. Eu, não.
— Um belo abate, Homem-Murtagh — disse Uvek.
Murtagh grunhiu e fez um gesto para o Urgal.
— É melhor nos apressarmos.
CAPÍTULO XXIV
Grieve
Criaturas da escuridão
O labirinto de túneis sob a câmara revestida de mármore era muito mais complicado
do que ele temia. Se não fosse capaz de sentir a mente de Thorn — mesmo à
distância —, logo teria perdido as esperanças e dado meia-volta.
Não muito longe da câmara, ele novamente se viu em passagens largas o
suficiente para acomodar o dragão. Os túneis sinuosos corriam em direções
aparentemente aleatórias, sempre levando mais para baixo, através de câmaras
naturais e construídas. Muitas vezes, Murtagh se deparou com o que pareciam ser
santuários, altares ou salas de guarda abandonadas.
Embora o brilho do lodo fosse muitas vezes intenso o suficiente para iluminar o
caminho, muitos espaços eram tão escuros quanto o vazio entre as estrelas. Para
impedir que os trechos de escuridão cegante retardassem o avanço mais do que o
aceitável, Murtagh cedeu e criou uma luz mágica vermelha que flutuava a uma
curta distância acima e à frente da sua cabeça. A combinação de cores da luz
mágica e do lodo pintava os objetos nos tons mais hediondos. Tanto que às vezes
ele tinha dificuldade em reconhecer a substância do que via. Murtagh quase alterou
a luz mágica para que emitisse o branco puro do brilho do sol do meio-dia, mas
valorizava demais a visão noturna.
O ar se tornou mais espesso à medida que ele descia, até ficar pesado e úmido ao
ser inspirado. Foi necessário um esforço consciente para respirar. Às vezes, nuvens
de fumaça passavam voando sobre ele, e Murtagh ficou grato pelas proteções
mágicas, pois elas pareciam filtrar um pouco do fedor.
A presença que Murtagh havia sentido na aldeia era ainda mais forte nas
cavernas. Ela o envolvia como mel velho, e ele teve um desejo inexplicável de se
agachar e se esconder ou fugir para muito, muito longe. Não havia nada de concreto
a que Murtagh pudesse atribuir essa sensação, mas era tão inescapável quanto o ar
sufocante.
A atenção dele começou a divagar, e a visão também. Concentrar-se em qualquer
coisa por mais de alguns segundos parecia… não impossível, mas seu olhar ficava
se perdendo e, alguns passos depois, Murtagh se pegava sem saber o que estivera
olhando e no que estivera pensando.
Estranho…
Murtagh balançou a cabeça para clarear a mente. O movimento foi um erro. O
chão se inclinou. Ele caiu apoiado em um joelho e precisou apoiar o escudo no chão
para se equilibrar.
Depois de um momento, ele se sentiu estável o suficiente para ficar de pé.
Será que havia bebida no ar? Hidromel ou outra coisa forte borrifada em uma
névoa fina? Ele provou o ar: enxofre e nada mais. Mesmo assim, conjurou outra
proteção mágica para purificar o ar em volta.
Não ajudou.
Preocupado, ele seguiu cambaleando.
Fantasmas começaram a atormentá-lo: lampejos de cores cintilantes do arco-íris;
gemidos dolorosos que serpenteavam pelos túneis; e — raras no início, mas depois
com frequência crescente — visões que surgiam diante de seus olhos e que
pareciam tão reais quanto as rochas.
Tornac estava parado diante dele, com uma espada de treino de madeira na mão.
O mestre espadachim tinha acabado de ser designado para Murtagh, e os dois
estavam prestes a começar o treino… O confronto foi rápido, e o resultado foi
Murtagh caído de costas com um hematoma se formando no lado esquerdo do
tronco. Ele esperava desprezo e escárnio de Tornac. Essa sempre tinha sido a sua
sina na corte. Mas não houve zombaria. Em vez disso, Tornac foi até ele e estendeu
a mão.
— É um começo — disse, em um tom prosaico.
A ausência de rancor abriu o coração de Murtagh. Ele demorou a admitir para
si mesmo, mas naquele momento aprendeu a confiar em Tornac e se agarrou às
instruções do mestre — não, à liderança dele — como a única rocha firme em uma
vida agitada por tempestades.
Murtagh pestanejou, desorientado. O que quer que fosse aquilo, ele não ia recuar.
— É com isso que você conta para se proteger, Bachel? — perguntou ele com a
voz baixa na vastidão da caverna. — Bem, não vai conseguir. Isso eu juro.
Com passos obstinados, Murtagh continuou.
… planície de sol negro varrida por um vento uivante que gelava a carne até os
ossos… Um homem estava curvado na terra estéril, com os braços em volta da
cabeça enquanto se balançava para a frente e para trás, gritando em um tom alto e
estridente…
O túnel que Murtagh estava seguindo fazia um ângulo íngreme para baixo. Os
passos se apressaram quando, aliviado, ele se deixou levar pela descida. Ele
manteve o olhar fixo à frente, torcendo para ver o fim do túnel, pois deveria levá-lo
para perto de onde Bachel estava esperando, se não para o local em si.
… uma revoada de dragões passou voando, tantos que até obscureceram o céu.
As escamas de todas as cores concebíveis brilhavam, uma profusão de beleza
aterradora. O ar batia como um tambor pela força das poderosas asas…
Murtagh acelerou o passo. Tentou bloquear as visões recitando um verso. Aquilo
ajudou por um tempo, mas sua atenção vagou por um instante.
… Nasuada jazia diante dele, acorrentada à laje cinzenta do Salão da Profetisa,
assim como os prisioneiros foram mantidos no altar em Nal Gorgoth. A súplica nos
olhos dela era perceptível, mas cada um tinha um papel a desempenhar, e ele não
podia ajudá-la. O rei ordenou, ele obedeceu e ela sofreu por causa disso. Todos
eles sofreram.
— Não, não, não — murmurou Murtagh.
Ele bateu com a borda do escudo na testa. O impacto ajudou a dissipar as
imagens que ainda passavam por trás dos seus olhos.
O túnel se abriu em outra caverna. Como as anteriores, aquela era iluminada pelo
lodo e havia fileiras de cogumelos roxos margeando um laguinho bem à direita.
Anéis se espalhavam pela superfície da água, como se algo tivesse acabado de pular
para fora — ou para dentro.
Havia um conjunto de cogumelos maiores diante dele, parecidos com árvores
atrofiadas e anãs.
Enquanto abria caminho entre as hastes lenhosas, um chiado agudo chamou a
atenção de Murtagh. Ele andou silenciosamente entre os cogumelos e logo viu…
uma forma branca agachada sobre o corpo de um cultista caído.
Quando o brilho vermelho da luz mágica tocou a criatura, ela se contorceu para
olhar na direção de Murtagh. Seu rosto parecia um pesadelo. Uma língua negra
reluzente, tão longa e grossa quanto o braço do Cavaleiro, pendia de mandíbulas
estreitas e pontudas, que eram finas demais para conter inteiramente o músculo. A
pele frouxa e flácida, tão rosada quanto a de um leitão — sem pelos, exceto por
uma penugem branca aqui e ali, brotando de protuberâncias verrugosas —, pendia
em rugas repulsivas sobre ossos protuberantes. Do crânio estreito espreitavam olhos
cor-de-rosa, sem pálpebras, menores do que uma ova de peixe e, aparentemente,
com muita sensibilidade, porque o brilho suave da luz mágica fez a criatura franzi-
los e recuar, como se sentisse dor. O mais perturbador de tudo eram as patas
dianteiras da fera, ou melhor… mãos. Os dedos eram longos e parecidos com dedos
humanos, abrindo e fechando como se fossem espremer a vida de uma vítima. As
unhas estavam quebradas e sujas com o sangue do cultista morto. A fera tinha
também uma cauda grossa como uma corda, tão mole quanto uma minhoca morta,
se arrastando pelo chão.
A repulsa tomou conta de Murtagh. A criatura — pensava nela como um rato-
com-dedos — parecia errada de uma maneira fundamental, como se sua existência
fosse uma perversão de tudo o que era bom e certo.
Ele expandiu a mente para entrar em contato com a do rato-com-dedos. O que
descobriu apenas aumentou a aversão que sentia: uma fome atroz dominava a
consciência do animal, e tudo o que o rato-com-dedos parecia pensar era no prazer
de comer a carne quente daquele homem recém-morto e na raiva por ter sido
interrompido. Os outros viriam logo e...
Outros?
Chiados soaram nas sombras. Uma horda de ratos-com-dedos pálidos se
aproximou de mansinho, tateando o caminho com os dedos compridos. As caudas
deslizavam pelo chão da caverna como cobras sem escamas.
A criatura agachada sobre o cadáver soltou um gemido descendente — Murtagh
reconheceu o grito como um dos muitos sons que tinha ouvido ecoando pelo
complexo subterrâneo — e voltou a dilacerar o corpo, usando a língua para arrancar
a pele e os músculos do peito do homem.
— Vá embora, criatura imunda! — gritou Murtagh e saltou para a frente,
brandindo Zar’roc.
O rato-com-dedos guinchou como um bebê sentindo dor enquanto se encolhia de
medo. Depois sibilou, mostrando fileiras de dentes translúcidos e finos como
agulhas. Com velocidade e agilidade chocantes, saltou na direção do pescoço de
Murtagh.
Ele recuou e cortou o ar à frente, torcendo para atingir a criatura.
Zar’roc acertou, mas o alinhamento do gume de Murtagh estava errado, e o
punho se torceu na mão dele, que quase deixou cair a espada.
Cambaleou quando o rato-com-dedos se chocou contra ele, e sangue quente
jorrou sobre o corselete de cota de malha. Dentes tentaram morder o seu pescoço,
mas foram detidos pelas proteções mágicas. Ele jogou longe a criatura, que caiu no
chão, quase cortada ao meio, gritando e se debatendo nos estertores da morte.
O fedor de vísceras fez Murtagh sentir ânsia de vômito. Quanto a isso, os feitiços
não ajudavam.
Os guinchos da fera ferida não fizeram nada para deter a aproximação das
demais. Elas continuaram a se aproximar de mansinho através do conjunto de
cogumelos enquanto emitiam gargalhadas roucas que causaram um arrepio em
Murtagh. Algo estava errado; aquelas criaturas pareciam meio malucas por viver no
subterrâneo, ou estavam tão enlouquecidas pela fumaça constante que não tinham
senso de autopreservação.
— Não façam isso — disse Murtagh, mantendo Zar’roc em prontidão. — Eu vou
matar todos vocês.
Mais ratos-com-dedos saíram da escuridão. Quantos eram agora? Trinta?
Quarenta? Ele tentou contar, mas era impossível ficar de olho em cada um enquanto
se moviam entre si.
— Naina — disse Murtagh, e a luz mágica acima dele aumentou em intensidade
até ficar tão brilhante que baniu todas as sombras abaixo.
Os ratos-com-dedos guincharam e giraram em círculos, como se uma abelha
tivesse picado seus flancos encovados.
— Fora! — berrou Murtagh de novo.
Isso foi um erro. O som da sua voz chamou a atenção das criaturas. Elas se
viraram para ele, com línguas se estendendo como órgãos sensoriais, bigodes
esbranquiçados se contraindo, mãos nodosas se estendendo.
— Kv…
A horda avançou contra Murtagh, com mãos e patas arranhando a terra e as
pedras do chão da caverna.
Murtagh abateu o primeiro rato, mas as demais criaturas o cercaram, mordendo,
arranhando e açoitando com as línguas pesadas. As proteções mágicas dispararam, e
a força dele diminuiu com uma velocidade alarmante enquanto os feitiços lutavam
para defendê-lo.
Ele tentou falar, mas a pele quente de um rato-com-dedos colou em seu rosto e o
impediu de emitir um som. Ele também não conseguia respirar.
Os animais cheiravam a bolor, almíscar e excremento quente.
Chega! Ele concentrou a determinação e, com os pensamentos, disse: Kverst!
Os corpos dos ratos-com-dedos caíram em cima dele como se fossem sacos de
farinha.
Murtagh estremeceu. Não teria demorado muito mais para esgotar suas reservas
imediatas de força e as proteções mágicas falharem, incapazes de impedir que ele
perdesse a consciência. Se os ratos-com-dedos tivessem insistido um pouco mais,
ou se ele tivesse hesitado por mais alguns segundos, as criaturas teriam vencido.
Murtagh foi tomado por uma sensação de satisfação enquanto olhava para o
monte de corpos. Não gostava de matança assim, mas, se tivesse tempo, caçaria o
resto dos carniceiros e cuidaria para que aquela laia nunca mais incomodasse outra
pessoa.
Mais chiados soaram nas sombras distantes.
Mas não agora. Ele reduziu o brilho da luz mágica ao nível anterior e saiu
correndo. Talvez os cadáveres dos parentes distraíssem os perseguidores inumanos,
proporcionando comida suficiente para que não se dessem ao trabalho de segui-lo.
Era uma esperança.
Enquanto avançava com passos rápidos, Murtagh pensou em todos os animais
que conhecia na Alagaësia. Ele nunca tinha ouvido falar de feras tão grotescas. Se
tivessem um nome na língua antiga, Murtagh nunca havia encontrado, e nenhuma
das velhas histórias falava delas.
Será que elas vivem apenas aqui ou em todos os lugares onde os Draumar
cultuam? Poderia ter encontrado os ratos-com-dedos em algum lugar embaixo de
Gil’ead? A possibilidade o perturbou.
Ele continuou correndo. Apesar de os chiados terem diminuído, nunca
desapareceram por completo. Dois ratos-com-dedos saíram da escuridão, um de
cada vez, e tentaram mordê-lo. Em ambas as vezes, Murtagh matou as criaturas
com um único golpe de Zar’roc.
Ele não conseguia se livrar da sensação de estar preso em um pesadelo acordado.
Os sons constantes ecoando em volta — e ele começou a questionar se alguns
vinham de outras criaturas à espreita no labirinto subterrâneo inteiro —; os túneis
que pareciam sem fim; as distorções cintilantes flutuando diante dos seus olhos; e o
calor, o suor e a esmagadora sensação de presença… tudo isso combinado causava
uma pressão latejante na parte de trás da cabeça e uma convicção de que ele não
podia confiar em nada ao redor.
… um corpo de dragão espalhado pela terra, com espinhos tão altos quanto
montanhas, dentes tão longos quanto torres, sangue fluindo como rios pelas
planícies devastadas…
Murtagh balançou a cabeça e continuou.
Em meio a chiados e gemidos, um novo conjunto de sons apareceu: cortes
semelhantes aos de uma tesoura e batidas baixas como pregos batendo em pedra.
Ele congelou quando algo grande e anguloso saiu de uma passagem lateral e
disparou até o meio da parede curva de um túnel. A coisa se agarrou lá,
estranhamente imóvel.
— Naina — murmurou Murtagh, embora não tivesse certeza de querer descobrir
que criatura era aquela.
A luz mágica brilhou e revelou… o quê, Murtagh não sabia. A criatura era do
tamanho de um lobo grande. Um lobo muito grande. Porém, parecia mais um inseto
do que qualquer animal peludo ou emplumado. Tinha quatro pernas articuladas com
espinhos nas juntas e mais outro par de pernas — ou melhor, braços — mantidos
junto ao peito estreito, logo abaixo da boca, que continha uma coleção de facas
cortantes de açougueiro. Da mesma forma, os braços terminavam em pinças afiadas
como navalhas, e a criatura as abria e fechava com o mesmo som cortante que
Murtagh tinha ouvido momentos atrás. Cabeça chata, semelhante a um carrapato,
corpo segmentado, braços e pernas irregulares: tudo coberto por placas pretas de
armadura natural, não muito diferentes da casca de um besouro. A criatura não tinha
olhos dignos de nota: apenas uma fileira dupla de caroços — do tamanho de
sementes — ao longo dos dois lados da cabeça.
No todo, a criatura parecia ser feita de trechos serrados e soldados em um
conjunto desagradável que lembrava até demais uma aranha.
Murtagh se endireitou da posição agachada. Ele não queria se encolher diante de
tamanho horror.
— Eu não gosto de você — disse em uma voz baixa e objetiva. — Se me atacar,
vou te matar.
A criatura ergueu a cabeça e bateu as lâminas da boca. Em seguida, disparou pela
parede do túnel e — antes que Murtagh pudesse fazer mais do que dar meio passo
para trás — desapareceu de vista.
— Sangue de Espectro — murmurou ele.
Quantos horrores sobrenaturais andavam à espreita embaixo de Nal Gorgoth?
Um arrepio formigou na nuca e nos braços de Murtagh enquanto ele voltava a
correr.
CAPÍTULO II
Liberdade da desgraça
A menos de trinta metros do túnel, o inseto gigante atacou Murtagh por trás.
Ele ouviu o tilintar metálico das patas batendo segundos antes de a criatura
atacar. Virou-se bem a tempo de bloquear uma pinça afiada como lança que mirava
em seu coração. A lâmina de Zar’roc retumbou ao resvalar na carapaça do inseto,
como se tivesse se chocado com outra espada.
O inseto atacou novamente. Era mais rápido do que qualquer humano. Mais
rápido do que qualquer elfo. As proteções mágicas bloquearam os ataques, mas o
inseto arrastou um membro no chão e deu uma rasteira em Murtagh.
Ele caiu. Por instinto, se cobriu com o escudo e, ao atingir o chão, conjurou mais
uma vez o feitiço mortal:
— Kverst!
A magia não surtiu efeito.
Ele ficou tão surpreso que, por um momento, não conseguiu agir. Então usou o
escudo para tirar o inseto de cima de si. A criatura era pesada, como se tivesse
metal na carapaça. Ainda assim, Murtagh a jogou para trás e, quando ela engatinhou
sobre as patas ossudas para atacar novamente, deu um golpe com Zar’roc com
muito mais força do que usaria contra qualquer inimigo humano.
Ele atingiu o inseto na parte chata da cabeça. A carapaça rachou sob a lâmina
carmesim de Zar’roc e sangue negro e espesso como alcatrão quente escorreu. O
inseto emitiu estalos, angustiado, e as superfícies cortantes na boca morderam e
rangeram.
Murtagh atacou novamente e, dessa vez, Zar’roc partiu a cabeça da criatura ao
meio. As pernas cederam e o inseto desabou no chão.
Murtagh encarou o monstro enquanto recuperava o fôlego. Por que o feitiço não
o matara? Uma proteção mágica? Em um animal que vivia em tamanha
profundeza? Não era impossível, mas a única explicação que fazia sentido era que a
própria Bachel havia encantado o inseto. A pergunta era: por quê? Para que a
criatura pudesse machucá-lo ou atrasá-lo, assim como os cultistas? As criaturas
também eram escravas da bruxa?
Estalidos ecoaram ao longe.
Ele se endireitou, sério. Não importava que lacaios imundos Bachel tivesse
dentro das cavernas, não iriam detê-lo. Murtagh tinha certeza disso.
Determinado, ele retomou o rumo.
Enquanto percorria as câmaras subterrâneas, os ratos-com-dedos e os insetos das
sombras continuaram a atacar. Um aqui. Dois lá. Um rato caiu sobre ele vindo de
uma fenda escondida no alto de uma parede infestada de lodo. Um inseto saltou em
cima dele de dentro de um abismo escuro. E mais. Muito mais.
Murtagh resistiu a cada ataque, respondendo à fúria selvagem com força igual. A
lâmina de Zar’roc ficou encharcada de sangue e as botas, molhadas de vísceras. Os
olhos ardiam de tanto suor. A fadiga retardou os passos de Murtagh, que começou a
se preocupar com o que aconteceria se não pudesse mais manter as proteções
mágicas.
Era difícil ter noção do tempo ou da distância. A consciência de Thorn havia
desaparecido da mente dele e, quando tentou entrar em contato, percebeu que não
conseguia mais sentir os pensamentos do dragão. Havia muita pedra entre eles.
Alarmado, Murtagh procurou Bachel. Se não conseguisse localizá-la, estava
perdido… Mas o Cavaleiro sentiu a força da bruxa. Só que ela não estava apenas
abaixo dele, mas também atrás, pelo que parecia ser uns bons quinhentos metros.
Murtagh foi atingido pelo desespero. Ele devia ter dado meia-volta durante os
combates.
O caminho parecia interminável. Sempre atormentado por chiados, estalidos e
sons de tesouras cortando. Ele não ousava baixar a guarda nem por um segundo, e o
constante estado de vigilância por si só era exaustivo.
Mesmo com a magia e a espada, Murtagh se sentia como uma criança sozinha no
escuro, com medo de monstros invisíveis à espreita. Mas dessa vez os monstros
eram reais e não menos aterrorizantes por isso.
Visões e fantasmas continuaram a atormentá-lo. Ele conseguiu ignorar a maioria
— mesmo quando ocorriam em momentos inoportunos, como no meio de uma luta
—, mas por fim:
Teto escuro, paredes escuras, piso de madeira formando desenhos… um fogo
rugindo na lareira de pedra em uma das paredes do grande salão. Pratos
espalhados pela longa mesa do banquete, mas todos os convidados já haviam
fugido… Na cabeceira da mesa, a silhueta do pai de Murtagh, ainda envolto na
capa de viagem, curvado, taciturno, com a taça de vinho sempre presente e
firmemente segura na mão. Pairando atrás dele, a figura esguia da mãe de
Murtagh, falando em tom baixo e tenso.
Murtagh estava sentado à beira da lareira. Os sons dos pais conversando às
vezes o distraíam — a voz do pai era alta, brusca —, mas a atenção dele se voltou
para o cavalo de madeira com o qual estava brincando. Era pintado de marrom e
branco, com cascos pretos viçosos e crina e rabo feitos de crina de cavalo de
verdade. Ele fez o cavalinho correr de um lado para o outro na lareira, imitando
pequenos sons. Fez o cavalo saltar sobre rochas e sebes imaginárias e, então, por
acidente, trouxe o cavalo muito perto do fogo e uma faísca pousou na cauda.
Uma chama acendeu no pelo. Assustado, Murtagh sacudiu o cavalo e a chama se
apagou, mas o cheiro de pelo queimado ardeu no nariz e a cauda estava arruinada.
Ele começou a chorar. Murtagh se lembrava disso. O cavalo era tão bonito antes
e estava arruinado. Ele não tinha outro igual.
A voz do pai se elevou em um grito raivoso.
— … não fizer aquele pirralho parar de choramingar, então eu vou!
E houve o som de uma cadeira sendo empurrada para trás, seguido pelo grito de
terror da mãe. Algo pesado atingiu Murtagh nas costas e o derrubou na lareira.
Zar’roc caiu ao lado dele com um estrondo, com o fio da lâmina tão afiado que
era invisível.
Murtagh sabia que tinha gritado, mas não sentiu dor, apenas uma sensação de
frio e fraqueza conforme o sangue se espalhava em uma poça em volta. O rosto da
mãe apareceu sobre ele, a expressão marcada pelo medo, e isso o perturbou mais
do que tudo. Murtagh não queria que ela se preocupasse, não queria que ela tivesse
medo.
Então, o salão ficou nebuloso, e a última coisa que Murtagh percebeu foi a mãe
murmurando em uma língua desconhecida enquanto o frio terrível se instalava nos
ossos dele.
Murtagh parou perto de um monte de cogumelos e arfou como se tivesse levado
um golpe no estômago. Ele cerrou a mandíbula e olhou para o teto rochoso por um
tempo enquanto lágrimas escorriam dos olhos arregalados.
— Você não tem direito a isso — murmurou Murtagh para qualquer força que
habitasse as cavernas.
Por que foi compelido a reviver aquele momento em especial? Murtagh fazia um
grande esforço para não pensar naquilo, embora a cicatriz nodosa nas costas tivesse
sido sempre um lembrete suficiente: uma lembrança tanto da crueldade do pai
quanto do amor da mãe. Ele manteve a cicatriz todo esse tempo por causa desse
amor. Removê-la teria sido fácil com um feitiço, mas fazer isso parecia repudiar o
passado a tal ponto que ele poderia muito bem ter se declarado sem nome e sem
parentes. Talvez devesse. O legado de Morzan não lhe trouxe nada além de dor.
Mas o de sua mãe… era mais complicado. Dela Murtagh tinha vida e amor, e só
porque a vida dele tinha sido difícil, isso não negava o amor dela.
Sons de passos rápidos rodearam Murtagh ao longe, nas sombras. Ele ouviu, mas
não se importou.
Olhou para Zar’roc, fez uma careta com aversão mal contida e a mão tremeu.
Cicatriz ou não, ele odiava a espada, odiava o que ela representava. Zar’roc.
Desgraça. A escolha do nome foi feita por seu pai e foi adequada, dada a história de
Morzan. Isso não era o que Murtagh queria para a própria vida. No entanto, havia
tirado a espada de Eragon para reivindicá-la como sua, como se de alguma forma
ela fosse protegê-lo.
Em vez disso, achava que estava sendo definido pela espada. Zar’roc. Desgraça.
Nomes eram importantes, mesmo para as menores coisas. Ao dar um nome, era
possível ganhar compreensão. Além disso, era possível reformular a própria
natureza de uma coisa. Ele mesmo não vivenciou isso na cidadela de Urû’baen,
quando seu verdadeiro nome mudou?
Uma ideia lhe ocorreu. Uma ideia brilhante e promissora que trouxe consigo uma
determinação intensa. Ele conhecia o Nome dos Nomes, a chave para a língua
antiga e seu poder arcano. Através do Nome dos Nomes, Murtagh poderia usar ou
definir ou mesmo mudar as palavras da língua.
O que significava… que ele poderia renomear Zar’roc. Se assim quisesse.
Murtagh não precisou parar para pensar. Ele queria.
Mas qual seria o novo nome? Se não fosse Desgraça, então Felicidade? Esse
estava longe de ser o significado certo para qualquer espada. Além disso, Murtagh
nunca teve uma tendência para a felicidade — ele não tinha certeza se sabia o que
era isso, de verdade — e teria se sentido ridículo carregando uma espada chamada
Felicidade.
Mesmo sabendo que o tempo era curto, ele ficou parado no escuro e deixou a
mente vagar enquanto classificava dezenas de nomes possíveis. No fundo, a questão
era simples: o que ele queria que Zar’roc representasse? Ou seja, o que queria
valorizar no âmago de sua personalidade?
Ao redor, continuou a ouvir as batidas das criaturas das sombras que desejavam
atacá-lo. Mas elas mantiveram distância e Murtagh lhes deu pouca atenção, pois o
problema com o qual estava lutando era abrangente e, segundo achava, crucial para
sua sobrevivência.
No final, a resposta veio de dentro, como deveria — da lembrança de ser ferido
por Morzan e do próprio nome verdadeiro, que ele enxergou com uma nova clareza:
o que tinha sido e o que se tornou. Murtagh era uma pessoa mudada. A dor à qual
tinha se agarrado com tanta perseverança já não o dominava mais. Tinha novas
preocupações e novos valores, e estava determinado a segui-los.
Impulsionado pela inspiração, Murtagh abriu a bolsa pendurada no cinto, tirou o
compêndio e, com uma das mãos, folheou as páginas de pergaminho até encontrar o
que procurava.
Estudou a linha curta de runas. Tinha certeza? Sim. Mais do que nunca.
O feitiço exigia energia que ele não tinha de sobra, mas, mesmo assim, Murtagh
extraiu forças do corpo e, tão suave quanto uma pena caindo, falou a Palavra. Com
ela, renomeou a espada.
— Ithring.
Liberdade.
Enquanto falava, o glifo farpado estampado na lâmina e na bainha brilhou e
mudou para uma nova forma, uma nova compreensão. Murtagh reconheceu o glifo
como aquele que os elfos usavam para o novo nome da espada.
O ódio e a raiva que estavam fervendo dentro dele esfriaram e viraram uma
determinação calma. Murtagh assentiu. Liberdade. O pai havia escolhido espalhar
desgraça pela vida e pelo reino. Talvez Murtagh pudesse fazer algo melhor.
Ele deu um sorriso torto. Não se enganava, sabia que tinha responsabilidades que
o prendiam. A Thorn, se não a mais ninguém. Mas eram responsabilidades que
Murtagh havia aceitado por si mesmo, não impostas de fora. Ele sempre aspirou à
liberdade, e sempre a estimaria. A espada poderia ser um símbolo disso. Quando
lutasse, como logo precisaria fazer, caberia a ele conceder aos inimigos a liberdade
final. Além disso, poderia usar Ithring para ajudar aqueles que, como Alín, não
podiam ajudar a si mesmos. Para cortar as amarras e libertá-los, assim como ele e
Thorn se libertaram dos juramentos de Galbatorix.
A mãe teria ficado orgulhosa dele por isso, pensou Murtagh.
— Ithring.
A palavra parecia estranha na língua, mas também adequada. A própria espada
parecia diferente: uma mudança inefável que deixou a lâmina mais brilhante e
limpa.
Murtagh também se sentia diferente. Ele guardou o compêndio e retomou a
jornada com uma nova sensação de leveza, como se renomear a espada tivesse de
alguma forma ajudado a afastar a presença opressiva das cavernas. Quando os
habitantes tenebrosos do subterrâneo voltaram a atacá-lo — as aranhas sombrias
com lâminas rangentes e os ratos-com-dedos tentando morder seu pescoço —,
Murtagh os despachou com uma eficiência calma que havia lhe escapado antes.
Pois ele sabia quem era e por que estava ali, e não buscava mais lutar em nome da
desgraça, mas em busca da liberdade.
CAPÍTULO III
Defendendo o centro
U m brilho claro apareceu à frente de Murtagh — saindo por trás de uma dobra de
rocha —, e o pulso dele acelerou. Finalmente! Bachel estava próxima. Murtagh
podia senti-la logo adiante. E não só ela, outras pessoas também. Treze, pelas contas
dele.
Murtagh se preparou, respirou fundo e lentamente recolheu a mente. Bachel
podia não ter uma legião de Eldunarí sob seu comando, como Galbatorix, mas não
era menos perigosa. Não tinha intenção de subestimá-la. A bruxa já havia levado a
melhor sobre ele antes, mas isso não aconteceria de novo, não importava qual fosse
a fonte do poder dela. Murtagh jurou isso para si mesmo.
Ele disparou um pensamento rápido para Thorn e foi em frente.
Os passos de Murtagh ecoavam baixo na pedra quando ele contornou a rocha.
Depois da passagem, ele viu uma câmara circular enorme que parecia ter sido
escavada no granito por uma grande mó. Mal notou as paredes com veios de lodo,
pois um emaranhado de cristais brancos brotava do solo em vários ângulos. Eram
cristais semiopacos e translúcidos, com bordas afiadas. Tinham tamanhos variados,
indo desde pequenas protuberâncias menores que o espinho de uma rosa até pilares
enormes, tão grossos quanto um carvalho antigo. Grandes ou pequenos, os cristais
reluziam com um brilho natural, branco, puro e bonito.
No centro da câmara havia uma clareira larga com um buraco escancarado no
centro: um vazio de vinte passos de largura que se abria para profundidades ainda
maiores.
No alto da câmara havia outra abertura e Murtagh teve a sensação de que ela
subia sem parar até o Poço dos Sonhos. Depois de toda aquela caminhada, ele
acabou logo abaixo de onde havia começado.
Bachel estava esperando por Murtagh no vazio.
Ele mal a reconheceu. A bruxa ainda usava a meia-máscara encantada que
transformava seu aspecto em um ser sombrio e dracônico, mas havia trocado o
vestido por uma armadura que blindava cada centímetro do corpo e não era feita de
couro ou metal, mas sim de escamas de dragão.
As escamas eram preto-avermelhadas e reluziam com um lustro oleoso. Elas
emitiam um brilho fraco, como brasas moribundas ainda pulsando com calor
contido. As escamas deviam ter vindo de um dragão antigo, pois algumas pareciam
ter sido cortadas de pedaços ainda maiores. Vendo a armadura, Murtagh percebeu
que o traje de couro que os cultistas usaram para o festival da fumaça negra tinha
sido feito para se parecer com a veste fantástica de Bachel.
Na mão, a bruxa segurava a Dauthdaert Niernen. A lâmina combinava com a luz
do lodo nas paredes.
Seis acólitos estavam à esquerda de Bachel e outros seis à direita, como se duas
grandes asas se estendessem da bruxa, que servia como o corpo central. A
impressão foi prejudicada pelo par de acólitos que mantinham Alín entre eles, com
mãos firmes em torno dos braços e pulsos dela enquanto a seguravam ajoelhada
sobre a pedra.
Um hematoma avermelhado marcava a bochecha da jovem e sangue manchava
um canto da boca. O pescoço estava erguido e uma esperança desesperada encheu
seus olhos quando ela viu Murtagh.
— Meu Senhor! — berrou Alín.
Uma raiva tenebrosa tomou conta dele ao ver a péssima situação da moça. Ele
acolheu a emoção, sabendo que o serviria na luta que estava por vir.
Os acólitos não carregavam espadas nem lanças, mas sim bastões altos de
madeira nodosa, cada um enfeitado com entalhes esquisitos. Por um momento
estranho, Murtagh se lembrou de Brom. Os cultistas bateram com as pontas dos
bastões no chão, o som ecoando sem parar no teto abobadado, e começaram a
cantar em um coro baixo que encheu a câmara com uma urgência crescente.
Murtagh abriu caminho entre os cristais, tomando cuidado para evitar as bordas
afiadas.
Ao se aproximar, Bachel ergueu Niernen e apontou a lança para ele. Não parecia
assustada.
— Estou impressionada, Murtagh, filho de Morzan. O poder dos sonhos de
Azlagûr leva à loucura a maioria dos que se aventuram nas profundezas abaixo de
Nal Gorgoth.
— Mas não você ou seus servos.
— Eu sou a Oradora. Sou a porta-voz escolhida. A proteção de Azlagûr concede
certos privilégios a mim e àqueles que escolho como meus assistentes.
Murtagh não tinha tanta certeza disso. Ele fingiu uma expressão casual e girou
Ithring na mão enquanto avançava, observando com atenção os cultistas.
— E aquelas… coisas nas cavernas? São suas também?
Sob a máscara, a boca de Bachel se contorceu, achando graça.
— Não são minhas, Regicida. São ácaros e pulgas de Azlagûr. Ferramentas úteis,
nada mais.
Ele assentiu, fingindo compreensão. Os doze acólitos inclinaram os bastões na
direção de Murtagh quando ele parou a uns dez passos de Bachel. Se conseguisse se
deslocar para trás deles, poderia conduzir a bruxa na direção do buraco no chão, e
isso limitaria o movimento dela…
Uma coluna de fumaça negra e espessa disparou buraco acima, tão alta e rápida
como uma cachoeira gigante, só que subindo. Em seguida, veio um calor intenso e
um fedor de enxofre tão insuportável que fez Murtagh recuar um passo.
Bachel não parecia afetada. Ela estendeu Niernen e deixou a ponta da lança
entrar no fluxo de fumaça. O brilho da lâmina iluminou a névoa densa por dentro e
lhe conferiu uma tonalidade sobrenatural.
Então, tão repentinamente quanto havia começado, a torrente cessou e o que
restou continuou subindo, levado pelas correntes aquecidas de ar. A fumaça negra
desapareceu nas sombras acima, mas Murtagh sabia que, em alguns minutos,
chegaria à superfície e dali se infiltraria no solo e no ar poluído ao redor de Nal
Gorgoth.
— Que lugar é este, bruxa?
Bachel se empertigou, os olhos brilhando de fúria, e a máscara emprestou à sua
voz um poder aterrorizante.
— Você vai se dirigir a mim pelo meu título legítimo, profanador! Este lugar é
Oth Orum, o coração oculto do mundo, o próprio centro de toda a existência. A sua
presença é uma afronta ao próprio Azlagûr. Nenhum forasteiro pôs os pés aqui em
todos os milhares de anos que os Draumar o guardaram. Vir aqui sem ser
consagrado é convidar a morte, e a morte você terá, a menos que perceba seu erro e
se ajoelhe diante de mim.
— Eu não vou me ajoelhar. Não para você. Não para Azlagûr. Para ninguém.
A fúria de Bachel aumentou, mas a bruxa se controlou.
— Por quê, Regicida? Eu lhe ofereci tudo e ainda assim você me despreza —
disse ela em tom frio.
— Não, você pegou, não ofereceu. — Murtagh não pestanejou ao encarar o olhar
dela. — Eu sou dono de mim. Pela minha vontade, sigo o meu caminho. Não
deixarei ninguém me tirar isso, muito menos você, bruxa. Renda-se agora, ou juro
que os vermes vão se alimentar de você hoje mesmo.
— Profanador! — declarou ela. — Profanador! Você vai se arrepender dessas…
O chão tremeu embaixo deles e um estrondo retumbante ecoou por cavernas e
túneis. Lascas de pedra caíram de cima e nuvens de poeira cinzenta nublaram a
câmara.
Murtagh ficou meio agachado, alarmado. Era mais uma demonstração da magia
de Bachel?
Não, a bruxa e os asseclas cambalearam, como se estivessem surpresos, e ela
soltou uma risada baixa, gutural, encantada.
— Sentiu isso, Regicida?! Sentiu? Isso é Azlagûr vindo para expurgar os
incrédulos! Ele varrerá os indignos como larvas diante das chamas! Entregue-se!
A preocupação consumia a confiança de Murtagh. Ele ainda não compreendia as
forças com as quais estava lidando. A coisa no fundo do buraco era preocupante.
Murtagh ergueu Ithring e a apontou para Bachel, assim como ela havia apontado
Niernen para ele.
— Solte Alín — disse ele, a voz soando alta. — Ela não tem nada a ver com a
nossa briga.
— Ah, tem sim. Ela é minha vassala, e você a colocou contra mim e contra o
próprio Azlagûr. Ela pagará por seus pecados, Cavaleiro. Pagará um preço muito
caro. O sangue dela será um sacrifício bem-vindo ao nosso deus terrível.
— Mentirosa! — gritou Alín. — Hipócrita! Você quebrou nosso credo! Foi
contra tudo o que nos disse que era sagrado!
Ela cuspiu no chão na direção de Bachel.
— Você é a profanadora! Você é a profanadora!
Bachel se virou, com um sorrisinho leve nas feições distorcidas.
— Menina tola. Existem verdades mais ocultas do que você imagina. Tudo o que
fiz foi a serviço de Azlagûr. Você ousa me questionar? A quem Ele escolheu como
Sua Oradora?
O cabelo voou sobre o rosto de Alín enquanto ela balançava a cabeça.
— Como pode dizer isso? Durante toda a minha vida adoramos os dragões, você
nos ensinou isso. Você disse…
— Os dragões? — perguntou Bachel, a voz tão alta que Alín tremeu em
submissão, e a bruxa riu. Não havia nada de agradável no som. — Você deseja
entender aquilo que está acima de sua classe social, miserável, mas farei a sua
vontade. Azlagûr não tem consideração pelos vermezinhos. Eles podem servi-Lo ou
não e, se não servirem, a calamidade de Sua chegada os varrerá de lado. É assim
que Ele deseja, e assim será. Os vermezinhos não são deuses. São instrumentos
úteis e nada mais.
Os doze Draumar com bastões não pareceram surpresos. Murtagh se perguntou se
eles eram do círculo interno de Bachel, a par de informações escondidas do restante
do culto.
— Não — disse Alín em voz baixa, tremendo. — Não pode ser. Por que…
Bachel bateu Niernen contra a pedra.
— Porque sim! Os vermezinhos são aspectos de Azlagûr, mas não o Próprio
Azlagûr. É o Grande Devorador que nós adoramos acima de tudo. — A bruxa
balançou a cabeça, como se estivesse enojada, e estendeu a mão em direção ao
Draumar mais próximo. — Dê-me sua faca.
O acólito obedeceu e tirou uma adaga de lâmina curta de dentro da manga do
gibão. A lâmina de ferro parecia um veludo cinza à luz dos cristais.
Bachel pegou a adaga e caminhou na direção de Alín.
— Não! — gritou Murtagh, lançando os pensamentos na mente de Bachel em um
ataque furioso.
Os passos da bruxa vacilaram e ela parou. Murtagh se esforçou para mantê-la
quieta enquanto avançava.
Bachel fez um gesto para os Draumar. O cântico deles aumentou e Murtagh
tropeçou, caindo apoiado em um joelho quando a força somada de mais doze
mentes colidiu com a dele. As vozes dos cultistas encheram seus ouvidos com um
ritmo pulsante. A cabeça de Murtagh parecia pulsar no mesmo compasso, e a
escuridão se insinuava nas bordas da sua visão.
Mover-se era impossível. A consciência de Murtagh encolheu quando ele se
concentrou no íntimo e se protegeu contra o ataque violento. Seu senso de
identidade se tornou o centro de sua existência: era tudo em que ele se permitia
pensar, tudo que ele se permitia imaginar. O que Murtagh viu, observou sem
julgamento ou reação, como se estivesse assistindo a eventos sem sentido.
Bachel levantou um braço e jogou um frasco na direção dele.
O vidro quebrou na pedra perto da mão de Murtagh. Uma nuvem de vapor branco
perolado flutuou até o rosto dele e o envolveu, mas Murtagh não sentiu o cheiro e
nenhum efeito o atingiu — as proteções mágicas estavam trabalhando.
A bruxa arreganhou os dentes.
— Suas magias não vão…
Outro tremor passou pela montanha e, por um momento, o chão pareceu se
erguer abaixo dele.
A confusão forneceu uma distração útil. Dois dos Draumar perderam a
concentração e Murtagh aproveitou a oportunidade para penetrar no fundo da mente
deles. Mas apenas por um segundo. O poder combinado dos cultistas o forçou a
recuar para o próprio íntimo.
Bachel abandonou Alín e avançou contra ele. A ponta do cabo de Niernen batia
no chão no ritmo de cada passo da bruxa. Os guardas a seguiram, dois deles
arrastando Alín.
A bruxa parou na frente de Murtagh e os acólitos se aproximaram, formando um
círculo ao redor dele. O volume do cântico aumentou, doze vozes martelando nos
ouvidos, doze mentes golpeando a consciência de Murtagh.
— Por que você luta tanto? — perguntou Bachel, ronronando baixo. — Renda-se
a mim, meu filho. Junte-se a nós. Junte-se a nós a serviço de Azlagûr e nunca mais
será atormentado pela dúvida. Seu lugar no mundo será assegurado e seu nome,
cantado por mil gerações.
Junte-se a nós, entoavam os pensamentos dos cultistas, um refrão constante e
enlouquecedor.
Murtagh se sentiu fisicamente preso, incapaz de se mover ou mesmo de pensar.
Havia corpos ao redor dele e vozes também, e cada integrante do grupo o atacava
da mesma maneira, de modo que parecia que estava lidando com uma criatura
enorme determinada a derrotá-lo e contê-lo.
A mão tremia no cabo de Ithring. A mera ideia de ficar de pé e atacar foi o
suficiente para os cultistas se agarrarem à consciência dele. O peso das mentes o
derrubou, achatando sua personalidade até que a identidade dele se diluiu e quase
desapareceu. Era difícil dizer quais pensamentos pertenciam a quem.
Mesmo assim, Murtagh não se rendeu. Ele era o senhor de si mesmo e preferia
morrer a deixar de sê-lo.
Um movimento súbito: Alín se contorceu e se livrou dos captores. Ela arrancou
alguma coisa do pescoço do homem à direita e correu na direção de Murtagh.
Bachel gritou e apontou para Alín. Uma lança de fogo saltou do dedo com garras
da bruxa e atingiu a jovem no peito.
Mas o fogo passou inofensivamente em volta dela.
Com um grito desesperado, Alín desabou em cima de Murtagh com os braços em
volta dos ombros dele. Os dedos de Alín se atrapalharam em sua nuca e…
Clareza. Alívio repentino. A pressão sobre a mente desapareceu e Murtagh se
levantou de um salto.
Um amuleto de caveira de pássaro quicou no seu peito.
Ithring cantou no ar enquanto atacava o cultista mais próximo. O homem não
tinha proteções mágicas e a lâmina carmesim passou por ele quase sem resistência.
O cântico se dissolveu e virou uma dissonância apavorada.
Murtagh deu um passo rápido até o Draumar seguinte e cortou-lhe a cabeça. Os
cultistas estavam amontoados perto dele, que se movia com uma eficiência
implacável, cortando braços e pernas e esfaqueando onde podia, determinado a
mantê-los tão ocupados que não pudessem imobilizá-lo novamente.
Bachel rosnou. Uma torrente de chamas disparou dela para Murtagh. Como
aconteceu com Alín, as chamas o envolveram sem causar danos. O fogo arcano
também tocou em dois dos três Draumar atrás dele. No entanto, o terceiro cultista
era o homem de quem Alín havia roubado o amuleto e o fogo o consumiu, a pele
rachou e o cabelo desapareceu em uma explosão de faíscas alaranjadas. Ele fugiu
gritando enquanto era envolvido por uma manta de chamas.
Tomado pela cegueira, ele passou correndo pela borda do grande buraco no
centro da câmara e caiu no vazio negro, com as labaredas deixando um rastro do
corpo dele como bandeiras tremulando.
Murtagh não parou para assistir, mas acelerou a carnificina, ansioso para abater o
resto dos guardas de Bachel antes que pudessem recuperar a vantagem.
Vários cultistas tentaram bloquear ou aparar os ataques, e alguns até o
golpearam, mas não eram guerreiros treinados — não como ele —, e Murtagh se
defendeu com facilidade.
Ao se virar, viu Alín lutando com um cultista. O homem a golpeou com o bastão
e ela caiu sobre a pedra, com o corpo mole e imóvel.
Ver aquilo estimulou Murtagh a acelerar ainda mais. Guiada pela mão dele,
Ithring traçou uma linha de corte fatal de corpo a corpo, um borrão sangrento rápido
demais para acompanhar. Os Draumar tombaram como talos de grama cortados por
uma foice.
Um estrondo passou pelo chão da caverna. Mais poeira caiu de cima enquanto
fragmentos se soltaram dos cristais e cascatearam, tilintando, por toda parte.
Murtagh tropeçou e parou com os braços estendidos.
Antes que o tremor diminuísse, Bachel veio correndo na direção dele — uma
forma escura varando as cortinas de poeira, com a antiga lança empunhada diante
de si.
Ele reagiu rápido, mas a bruxa foi ainda mais veloz, pois tinha os reflexos de um
elfo. A ponta de Niernen atingiu a lateral do corpo de Murtagh e, para espanto dele,
perfurou a cota de malha e o estocou entre as costelas.
Bachel puxou a lança e Murtagh caiu para trás, fazendo pressão na lateral do
corpo. Fogo ardeu em seu peito e sangue espirrou dos lábios quando ele tossiu.
Murtagh ficou gelado de medo e os pensamentos tornaram-se sérios e simples. A
lâmina havia tocado um pulmão. Era um ferimento potencialmente fatal, embora
não de maneira imediata. Ele tinha visto ferimentos assim no campo de batalha. O
pulmão entraria em colapso ou se encheria de sangue. De qualquer maneira, ele
morreria por falta de ar, a menos que pudesse se curar.
A bruxa exultou.
— Você não vai triunfar aqui, Regicida. Eu reino suprema neste lugar, pois sou a
campeã de Azlagûr.
Um acólito atacou Murtagh pelo flanco. Ele se esquivou de um golpe do bastão
do homem e varou o pescoço dele.
O cultista caiu, gorgolejando e batendo as pernas.
Murtagh olhou em volta, esperando outra emboscada. Não havia mais ninguém
de pé na câmara, exceto ele e Bachel. Manchas escuras de sangue cobriam as pedras
em volta dos corpos dos onze cultistas caídos — o décimo segundo tinha se jogado
no buraco.
A bruxa ergueu a mão esquerda e fez um gesto de esmagamento. O amuleto de
caveira de pássaro em volta do pescoço de Murtagh rachou e se desintegrou em um
pó branco que escorreu pela frente da cota de malha. Ao ser destruído, a proteção
do amuleto desapareceu, e Murtagh sentiu Bachel lançar um novo ataque à mente
dele.
Ele se preparou contra a tentativa de invasão.
Um sorriso deixou a boca de Bachel ainda mais torta.
— Você pensou que meus próprios encantamentos resistiriam a mim, Regicida?
Enquanto falava, ela caminhou na direção de Murtagh, como um grande felino
indo até a presa.
Apesar da dor, ele manteve a mente calma, clara — sem emoção. O pânico não o
ajudaria. A bruxa investiu novamente e ele aparou. A ferida na lateral do corpo
tornava impossível se mover com facilidade. Ele mancou ao desviar da Dauthdaert,
o que proporcionou a Bachel uma grande oportunidade de escapar do contra-ataque.
— Essa resistência trará apenas a morte! Ajoelhe-se diante de mim!
— Não.
A bruxa avançou de novo contra ele, que recuou em volta do buraco escancarado
no chão, tentando manter a distância entre os dois enquanto também a afastava de
Alín. Gotas brilhantes de sangue caíram da lateral do corpo, deixando um rastro de
manchas salpicadas como uma linha de moedas vermelhas espalhadas atrás dele.
Nunca antes Murtagh havia vivenciado uma sensação tão grande de luta
desesperada. Nem mesmo durante o combate contra Galbatorix e Shruikan. Pelo
menos naquela ocasião havia outras pessoas para ajudá-lo. Ali, ele estava sozinho,
sem Thorn, e o menor erro significaria a morte.
Talvez já estivesse morto.
A respiração chiava através do pulmão perfurado. Era difícil inspirar ar
suficiente.
Bachel avançou e atacou com intenção furiosa: meia dúzia de estocadas rápidas,
que deixaram Murtagh com um pequeno corte na panturrilha, logo acima das
grevas.
As proteções mágicas não conseguiam deter a Dauthdaert. Nenhuma conseguiria.
Galbatorix afirmara que as lanças eram as únicas armas que os dragões temiam.
Murtagh acreditou. Ele próprio tinha aprendido a temê-las.
Murtagh fingiu um tropeço e, quando Bachel avançou para aproveitar a suposta
abertura… ele desviou e cortou sob o braço estendido da bruxa.
Ithring resvalou em um feitiço de proteção. Mesmo sem a armadura, Bachel
estaria bem protegida contra a espada dele.
Murtagh reavaliou. Não derrotaria a bruxa pela força das armas, a menos que
pudesse de alguma forma quebrar suas defesas mágicas.
Quando Bachel se virou para encará-lo novamente, Murtagh dirigiu a mente
contra a da bruxa com toda a força que pôde reunir. O ataque invisível foi tão forte
que deteve Bachel imediatamente. O rosto dela ficou rígido com a tensão enquanto
lutava para afastar os pensamentos intrusivos.
Nenhum dos dois se mexeu. Eles não tinham atenção para dispensar.
A mente de Bachel era incomodamente familiar. Quantas noites tinha passado o
torturando, tentando quebrar a determinação dele na sala dos horrores sob o templo?
Mas dessa vez foi diferente. Murtagh estava de volta a si e, embora não fosse um
elfo, sua força mental era equiparável, assim como sua determinação. Bachel não
conseguia afastá-lo com facilidade, e cada triunfo que tivera contra ela — não
importava quão pequeno — alimentava ainda mais o ataque dele.
Ainda assim, a bruxa era forte e ardilosa. Tentar conter sua consciência era como
tentar segurar uma fera que ficava se contorcendo e mordendo. A menor das
aberturas permitiu que ela o atacasse. Murtagh ficou na defensiva até que pudesse
imobilizá-la de novo.
Embora não se mexessem, suas respirações ficaram pesadas e o suor escorria de
seus rostos e pingava no chão. E Murtagh sentia e ouvia o rápido tamborilar do
sangue que caía em gotas. Cada inalação era mais difícil que a anterior.
Por mais difícil que fosse, ele avançou contra Bachel. Cada vez que ela se
contorcia para fora de seu alcance mental, o espaço que ele lhe concedia diminuía.
Pouco a pouco, apertava com ainda mais força os grilhões que estava amarrando
sobre o ser dela.
Quando Bachel percebeu o que estava acontecendo, entrou em pânico. Era o que
Murtagh havia esperado. Mas, em vez de se debater, estocar ou fazer qualquer coisa
razoável, a bruxa ergueu a mão e apontou para ele. Murtagh ficou surpreso ao sentir
uma onda de energia na mente dela e...
… cacos pontiagudos de gelo dispararam na direção dele de um chão
repentinamente coberto de geada. As pontas afiadas como agulhas se quebraram
contra as proteções mágicas, mas o ar nos lábios de Murtagh ficou dolorosamente
frio.
Ele rosnou. A bruxa se recusara a aderir à única regra de um duelo de
conjuradores: não usar magia até que alguém tivesse estabelecido o controle sobre a
mente do oponente.
O primeiro instinto de Murtagh foi atacar com os feitiços mais terríveis que
conhecia — feitiços que extrairiam tanta energia dele que poderiam matá-lo, mas
que também poderiam ser a única chance de deter Bachel antes que ela o matasse.
Ainda assim, Murtagh hesitou. A ideia do suicídio não o seduzia — e lembrou que
Bachel era indisciplinada, destreinada. Ela não usava a língua antiga porque não a
conhecia e não aderia ao protocolo correto de duelo porque também o ignorava.
Isso não tornava a posição de Murtagh mais segura, mas significava que, se ele
usasse magia, Bachel não reagiria com força suicida como qualquer mágico
treinado faria.
Pelo menos, assim ele esperava.
— Brisingr! — gritou Murtagh, mantendo a pressão na mente dela, e permitiu
que uma corrente de chamas carmesins cintilantes brotasse da ponta de Ithring.
O fogo arcano derreteu rapidamente os pingentes de gelo antes de envolver
Bachel com intimidade intrusiva.
Ele encerrou o feitiço e viu que a bruxa estava ilesa e rindo.
— Curve-se, infiel! — gritou ela.
Outro tremor sacudiu o chão. A distração permitiu que ela afastasse ainda mais a
mente da de Murtagh. A bruxa apontou Niernen para ele, que sentiu uma
diminuição repentina e drástica de força quando as proteções mágicas defenderam
um ataque que ele não sentiu nem viu.
— Thrysta! — foi a resposta de Murtagh, e o feitiço teve um efeito semelhante
em Bachel, que caiu quando o ataque dele esgotou as reservas dela.
Os dois conjuraram feitiços com uma desinibição desenfreada, cada um tentando
dominar o outro. Murtagh pronunciou palavras na língua antiga o mais rápido que
pôde: uma vez esgotadas as vias de ataque mais óbvias, a quantidade se tornou mais
importante do que a qualidade. A velocidade era essencial.
Nisso, Bachel levava nítida vantagem. Murtagh nunca havia apreciado de
verdade o poder da magia sem palavras. A bruxa não precisava parar para pensar
em como formular os encantamentos; ela simplesmente determinava que eles
existissem, e os encantamentos existiam. Conceitos que teriam sido tediosos ou
impossíveis de expressar na língua antiga eram uma questão trivial para Bachel e,
de fato, muitos dos ataques que ela lançou contra Murtagh eram de um tipo que ele
teria tido dificuldade para replicar.
A limitação para ambos, obviamente, era a energia de que dispunham. Murtagh
esgotou o que restava do rubi de Ithring e ficou apenas com as reservas do próprio
corpo. E foi fácil sobrecarregá-las.
Se Bachel tinha estoques de energia escondidos, ele não sabia. Mas os lábios da
bruxa logo ficaram cinzentos e ela cambaleou ligeiramente enquanto avançava para
cima dele, que não estava se sentindo muito melhor. Cada feitiço consumia outra
porção de vitalidade, e uma letargia mortal se arrastava pelos braços, pelas pernas e
pela mente de Murtagh.
Entre os dois vibraram golpes estonteantes de calor e frio, luz e escuridão. O
vento uivava em rajadas brutais e desapareceria um segundo depois, substituído por
tentáculos de noite líquida, ou então forças invisíveis que procuravam cortar,
esmagar ou penetrar na carne frágil do inimigo. Em dado momento, uma sósia de
Bachel surgiu ao lado de Murtagh — realista em todos os aspectos, até mesmo nos
poros da pele —, e a ilusão o assustou tanto que a verdadeira bruxa quase conseguiu
estocá-lo mais uma vez.
Murtagh passou muitas horas, durante muitos dias, pensando em ataques e
contra-ataques para usar ao lutar contra outro mágico. Mas nenhum dos esquemas
planejados deu certo contra Bachel. Nem os feitiços que utilizara com sucesso no
passado foram eficazes. Ele até tentou atacar a bruxa como Eragon havia feito com
Galbatorix: ajudando Bachel. Isso também falhou.
Ataques indiretos pareciam ter o maior efeito. Se um feitiço não fosse
direcionado a Bachel em si, e sim ao ambiente em volta dela, ele cansava de forma
mais consistente as proteções mágicas da bruxa e, às vezes, chegava a contorná-las
até certo ponto.
Ter percebido isso lhe deu uma ideia.
Murtagh olhou em volta. Do outro lado da clareira, um enorme cristal branco se
debruçava sobre o espaço aberto, como uma árvore prestes a cair derrubada pelo
vento. Dependendo do peso do cristal, ele imaginou que até Thorn teria dificuldade
para erguê-lo.
O mais rápido que pôde, Murtagh revirou o cérebro confuso em busca das
palavras de que precisava e então murmurou:
— Ílf kona thornessa thar fïthrenar, thae stenr jierda.
Foi uma aposta, mas talvez…
Bachel rosnou, a boca ainda mais repuxada para o lado.
— Sua magia não tem efeito contra mim, Regicida. Abandone o orgulho e
ajoelhe-se! Você ainda não entende que não pode resistir a Azlagûr ou a Seus
discípulos? Renda-se!
Outro jato de fumaça preta subiu pelo buraco no centro da caverna.
— Prefiro morrer.
Murtagh começou a recuar em direção ao cristal inclinado. Ele fingiu mancar e se
moveu como se suas forças estivessem quase acabando e ele estivesse prestes a
desmaiar. Não era um exagero.
— Bah!
O rosto de Bachel se distorceu em uma expressão odiosa enquanto ela caminhava
em direção a ele de cabeça erguida, metendo a ponta do cabo de Niernen com força
no chão de pedra a cada passo.
Bom. Ela estava confiante. Muito confiante.
Conforme a bruxa se aproximava, Murtagh conjurou outro feitiço: uma tentativa
de cegá-la, dobrando a luz em volta do rosto dela. A magia teve sucesso, mas
apenas por um segundo. Bachel fez um gesto com a mão e lançou sua força contra a
de Murtagh. Ele não se defendeu. Liberou o feitiço. Mas o encantamento serviu ao
propósito de distrair a bruxa e satisfazer a expectativa dela de que ele continuaria a
lutar até o amargo fim.
O brilho suave do cristal apareceu acima de Murtagh quando ele passou por
baixo da estrutura.
Ele parou por um momento, apenas tempo suficiente para Bachel chegar a
poucos metros de sua posição.
Ela avançou com um sorriso cruel e triunfante nos lábios.
Murtagh deu um passo para trás.
Quando o pé de Bachel tocou a pedra sob o cristal, um grande estalo soou e os
joelhos de Murtagh se dobraram quando o feitiço agiu.
O cristal quebrou perto da base e desabou.
Bachel fez menção de sair do caminho, porém, por mais rápida que fosse, o
enorme tronco de pedra facetada acertou seu quadril e suas pernas, jogando a bruxa
no chão.
Um clarão semelhante a um raio a cercou e, no mesmo instante, as proteções
mágicas cederam e os milhares e milhares de quilos de cristal esmagaram a metade
inferior do corpo dela.
O impacto sacudiu e derrubou Murtagh. Ele caiu de costas com um golpe
doloroso, meio surdo com o som da queda.
Bachel gritou. Ela estava imobilizada, presa, e manchas de sangue que pareciam
asas de borboletas carmesim se espalhavam em volta. Um pedaço do cristal tinha
atingido a bruxa na cabeça, entortando a máscara e, aparentemente, interrompendo
seu efeito. O encantamento dracônico não mais a encobria com o aspecto terrível.
Ela voltou a parecer uma mulher — menor e diminuída, mas ainda tão furiosa como
sempre e longe de ser dissuadida.
Os dois falaram ao mesmo tempo.
— Kverst! — disse Murtagh.
— Pare! — gritou a bruxa em tom malévolo.
Os feitiços se chocaram. Um contra o outro. Nenhum dos dois estava disposto a
ceder. Um véu negro se formou em torno da visão de Murtagh enquanto o calor
fugia do corpo. No entanto, ele se levantou com dificuldade e deu os dois passos
necessários para diminuir a distância até Bachel.
O rosto da bruxa estava contorcido pelo esforço, os lábios cinzentos repuxados
em um rosnado. O pescoço de Bachel estava retesado e as veias se destacavam
como uma corda emaranhada sob a pele. Ela ainda segurava Niernen e, quando
Murtagh se aproximou, a bruxa recuou o braço e estocou com a lança.
Ele não tinha força ou velocidade para se desviar.
A ponta da Dauthdaert resvalou no elmo com um guincho metálico, e a cabeça de
Murtagh foi jogada para trás enquanto ele absorvia a força do impacto.
Então Murtagh adentrou o espaço pessoal de Bachel, onde ela não tinha mais
como atacá-lo com a lança.
Os olhos dos dois se encontraram, um instante de calma em meio a uma
tempestade, e Murtagh viu no olhar dela reconhecimento e, pensou, aceitação.
Experimentou uma sensação de intimidade com Bachel, como se ela fosse tão
querida para ele quanto Tornac ou Thorn, pois a chegada da morte destruía todos os
limites e fingimentos.
Com o último átimo de força, Murtagh brandiu Ithring. Um único golpe perfeito,
que atingiu Bachel no topo da cabeça e partiu o crânio.
A resistência da bruxa desapareceu. O feitiço dele, kverst, teve efeito, e a cabeça
da bruxa caiu para trás, fazendo o cabo de Ithring escapar da mão dele.
Uma escuridão fria tomou conta de Murtagh e ele desmoronou, inconsciente.
CAPÍTULO IV
Islingr
Ele pestanejou.
Tudo tinha ficado frio e silencioso. Cinzas caíam do teto de pedra, flocos
delicados e cinzentos lembrando neve.
Murtagh se apoiou nos antebraços.
O buraco no centro da caverna estava duas vezes maior do que era antes, e as
bordas reluziam com um brilho vermelho opaco. Dentro do buraco, no fundo…
nada era visível. Nenhum indício de movimento, a não ser os flocos caindo. Vazio.
Um pedaço de pedra caiu do teto e ricocheteou no chão a uma curta distância de
Murtagh, que não ouviu nenhum som.
Ele tentou se levantar, mas suas pernas não aguentavam o peso.
Tentou expandir a mente, mas isso também estava além de sua capacidade. A
garganta estava apertada, como se estivesse sufocando. A escuridão tomava as
bordas da sua visão.
Ele tentou.
Tentou tentar…
Não podia…
Chamas ondularam diante deles enquanto Thorn varria o interior de uma caverna
dentada com estalactites e estalagmites. Centenas de ratos-com-dedos guincharam
ao serem queimados pelo fogo. O fedor repugnante de pelo queimado encheu o
túnel, espesso como fumaça.
Mais daquelas criaturas grotescas subiram pelos flancos de Thorn. Uvek as
golpeou com o punho grande feito um martelo, e elas caíram quebradas no chão
cheio de lodo.
Thorn mordeu e dilacerou, e a seguir estava avançando novamente.
Em meio aos guinchos dos ratos-com-dedos, Murtagh se lembrou do que
precisava ser dito.
— Alín — murmurou ele, mas ninguém pareceu ouvir ou se importar.
O tempo tinha pouco significado. Murtagh estava acordado, mas a realidade surgia
e desaparecia ao seu redor: uma série de impressões desconexas que não lhe davam
nenhuma noção de lugar ou progresso, como se tivesse estado e fosse estar preso
para sempre nas costas de Thorn, sujeito a eventos sem razão ou explicação.
Ele sentiu como se estivesse sufocando. Cada respiração era uma luta, e, quando
não conseguia inspirar, a escuridão o invadia e outra ilha de realidade desaparecia.
Nos breves momentos de consciência, ele continuou tentando falar com Thorn,
mas não conseguia chamar a atenção do dragão. Foi angustiante.
Ele viu cavernas e túneis sem fim. Câmaras abobadadas cheias de cogumelos
podres. Aranhas feitas de sombras disparando pelas pedras rachadas, evitando o
fogo de Thorn. Pilares de cristal e paredes com entalhes estranhos que pareciam
mais velhos do que as antigas obras dos anões.
Os caminhos que Thorn estava seguindo eram diferentes dos que Murtagh havia
percorrido, e ele não reconhecia o ambiente.
A montanha continuava a tremer. Houve dois enormes desabamentos de pedras.
— Vire, vire! — gritou Uvek.
E sempre a respiração rouca de Thorn, como se o próprio dragão estivesse
lutando para respirar.
A luz mais fraca apareceu acima deles, laranja e fuliginosa, como uma fogueira no
alto de uma colina. Murtagh franziu os olhos e tentou erguer a cabeça.
Uma linha de degraus rústicos subia o paredão de pedra diante de Thorn, indo em
direção à boca avermelhada da caverna. Salvação. Liberdade.
Uvek berrou alguma coisa e Thorn disparou para a frente, grunhindo enquanto
subia às pressas para sair das profundezas da montanha. Estrondos abafados
ecoaram por toda a caverna que se alargava, mais altos do que nunca — trovões
ensurdecedores que vibraram nos ossos de Murtagh.
Ele arfou e tossiu. Sangue coagulado entupia a garganta; ele não conseguia cuspi-
lo, não conseguia o ar de que precisava.
Os degraus quebraram sob o peso de Thorn. A caverna estremeceu e pedregulhos
despencaram do teto bruto e racharam e quicaram em volta deles. Um pedaço de
pedra tão grande quanto uma carroça resvalou no ombro esquerdo de Thorn e
derrubou o dragão de lado. Ele cambaleou, e a cabeça de Murtagh balançou de um
lado para o outro com o impacto.
Estrelas reluziram na visão de Murtagh enquanto uma gaze preta se enrolava nas
bordas.
A caverna inteira parecia estar desmoronando. Trechos inteiros de pedra se
soltaram e desabaram até se desintegrarem em uma chuva de estilhaços e
escombros. O som era entorpecente, surpreendente, impossível de compreender.
— Mais rápido, dragão! — gritou Uvek.
Os coágulos na garganta de Murtagh foram para o lado errado, e ele os inalou. A
respiração parou no peito. Ele não conseguia tossir, não conseguia emitir nenhum
som, não conseguia…
Sua cabeça foi jogada para trás quando Thorn saltou para a frente novamente. A
boca da caverna estava encolhendo à medida que o teto desmoronava, e a luz
laranja da liberdade diminuía.
Um pedregulho grande caiu na frente deles, e Thorn escorregou e caiu para a
frente sobre o peito.
O impacto foi brutal. A visão de Murtagh ficou branca, o peito se contraiu. Ele se
sentiu afundando no esquecimento no momento que o trovão descia em volta deles.
Não!, pensou ele.
O mundo deixou de existir.
CAPÍTULO I
Aceitação
M urtagh estava quente e havia um peso macio sobre ele, mantendo-o deitado
com uma intimidade reconfortante. Disso ele sabia.
Uma névoa de brilho leitoso se formou diante dele. Murtagh pestanejou, incapaz
de distinguir quaisquer detalhes dentro da mancha de luz.
Parecia importante levantar, mas seus braços e pernas se recusaram a responder.
Ele jazia de corpo mole e inativo, exceto pela respiração.
O fluxo de ar nos pulmões era suave e sem esforço.
Tentou se mover mais uma vez. Os braços se mexeram um pouco e um pequeno
gemido escapou dele.
Uma mão — escura e delicada — desceu para pressionar o peito de Murtagh.
— Calma. Você estava gravemente ferido. Descanse enquanto pode. — A voz era
gentil, reservada, mas ainda assim firme.
Ele conhecia aquela voz. Quantas vezes a tinha ouvido nos sonhos? Quantas
vezes desejou (e temeu) ouvi-la novamente? No entanto, ele se perguntou: aquilo
era outro sonho?
Mais uma vez, tentou se sentar, mas o esforço o derrotou. Murtagh afundou na
maciez. Apesar do protesto interno, as pálpebras baixaram e a escuridão que o
esperava o abraçou.
E ele perdeu a consciência.
Alagaësia — alaga-É-sia
Arya — a-RI-a
Azlagûr — AZ-la-gúr
Bachel — Ba-CHÉU
Brisingr — BRISS-ing-gur
Carvahall — CAR-va-hall
Ceunon — SI-u-non
Dras-Leona — DRÁS-li-Ó-na
Draumar — DRAU-mar
Du Weldenvarden — Du Velden-VAR-den
Eragon — É-ra-gon
Farthen Dûr — FAR-den DÚR
Galbatorix — galbato-RIX
Gil’ead — gile-A-de
Glaedr — gla-É-dur
Hrothgar — HRÓFI-gar
Ithring — IFI-ring
Lyreth — LAI-ref
Murtagh — mur-TA-gui
Nal Gorgoth — NAL GOR-gófi
Nasuada — Na-SU-Á-da
Niernen — ni-ER-nin
Oromis — O-ro-mis
Oth Orum — ÓFI Ó-rum
Ra’zac — RÁ-za-qui
Saphira — sa-FI-ra
Shruikan — SHRIU-kin
Teirm — TIRM
Tronjheim — tronj-RREim
Umaroth — u-MArot
Urû’baen — U-ru-BEIM
Uvek — U-véqui
Vrael — VRAIL
Zar’roc — ZAR-roqui
GLOSSÁRIO
A LÍNGUA ANTIGA
mehtra — mãe
sehtra — filho
A LÍNGUA URGAL
chukka — criatura semelhante à marmota nativa dos confins setentrionais da
Espinha
ghra — exclamação usada para expressar dúvida ou um sentimento de
reprovação leve
gzja — exclamação usada para expressar desprezo
qazhqargla — um ritual que une dois Urgals como irmãos de sangue; também
pode se referir a irmãos que foram unidos por tal ritual
shagvrek — uma raça antiga de seres sem chifres
shûkva — cure
ûhldmaq — Urgals que, segundo a lenda, foram transformados em ursos
gigantes das cavernas
Uluthrek — Comedor da Lua
Urgralgra — o nome que os Urgals usam para si mesmos (literalmente,
“aqueles com chifres”)
zhar — aleatoriedade
RUNAS HUMANAS
Por mais absurda que fosse, essa ideia grudou na minha mente e, em 2018,
quando decidi terminar uma coletânea de contos ambientada na Alagaësia, voltei a
pensar naquele tweet. Com uma adaptação, ele formou a base para a primeira
história do que se tornou O Garfo, a Bruxa e o Dragão: Contos da Alagaësia,
Volume 1. (Haverá o volume dois? Com certeza.)
Aquela história, como muitos leitores devem lembrar, foi escrita do ponto de
vista de Essie e, mesmo assim, percebi o esboço de uma história maior se formando
em torno daquele núcleo. Ela poderia servir como, de fato, um retorno à Alagaësia.
E assim aconteceu. Depois que Dormir em um mar de estrelas foi lançado e de
revisar e editar Fractal Noise (um prólogo de Dormir em um mar de estrelas escrito
originalmente em 2013) por meses, me senti pronto para tal retorno.
Conforme fui desenvolvendo a trama e me aprofundando cada vez mais nos
personagens de Murtagh e Thorn, encontrei uma terra fértil para trabalhar. De fato,
a fertilidade me surpreendeu. Minha primeira concepção de Murtagh seguia mais o
tipo de romance de aventura antiquado que Edgar Rice Burroughs poderia ter
produzido (e do qual gosto muito).
Mas, quanto mais eu pensava, tramava e escrevia, mais sentia pena desses dois, e
mais percebia este livro como uma oportunidade perfeita para explorar as questões
com as quais eles estavam lidando após os eventos do Ciclo A Herança, bem como
os da infância trágica de Murtagh.
A escrita em si foi surpreendentemente rápida. Ter um plano distinto faz toda a
diferença. Comecei em outubro de 2021, e o primeiro manuscrito foi concluído em
30 de janeiro de 2022. Nada mau, no geral. Claro, depois vieram ajustes, mudanças
e edições, mas as peças principais estavam no lugar.
Gostei muito de voltar para a Alagaësia com mais doze anos de vida e
experiência de escrita adquiridos. E assim como em O Garfo, a Bruxa e o Dragão,
revisitar esses personagens foi como visitar o próprio lar depois de uma longa
ausência. Foi bom para a alma, é o que estou tentando dizer. Lançá-lo no vigésimo
aniversário de Eragon apenas adoça a experiência.
Agora, há dois pontos adicionais que precisam ser abordados:
Em primeiro lugar, embora Murtagh atue como um registro independente neste
mundo, você deve ter notado que certas linhas narrativas estão longe de uma
conclusão. Isso é proposital e, embora eu não possa revelar meus planos no
momento, fique tranquilo, tenho muito mais a escrever na Alagaësia (e em seus
arredores).
Em segundo lugar, embora Murtagh seja o quinto romance completo que escrevi
ambientado neste universo, não é o Livro V. Ou melhor, o livro que sempre
considerei como o Livro V. Essa história em especial ocorre um pouco mais adiante
na linha do tempo, e ainda tenho a intenção de escrevê-la.
Então sim, há muito mais por vir, tanto na Alagaësia quanto no Fractalverso.
Tenho histórias para contar, pessoal!
Como acontece com todos os romances que escrevo, Murtagh não teria sido
possível sem a ajuda de muitas pessoas. Alguns de vocês estão aqui desde o início;
outros são novos na equipe. Mas no geral devo agradecimentos:
Em casa: à minha esposa, Ash, por seu amor e apoio e por me dar o tempo e o
espaço para que eu pudesse escrever, editar e promover Murtagh. Obrigado! Sei que
foi um esforço. Além disso, agradeço também aos nossos dois filhos, que, apesar de
não entenderem o que eu estava fazendo, proporcionavam tanta alegria todos os
dias.
À minha mãe, pelo olhar sempre atento quando se trata de edição, bem como por
ajudar nos negócios e na família. E ao meu pai por manter tudo funcionando, mês a
mês, para que eu pudesse me dedicar por completo ao livro.
Às minhas assistentes incrivelmente competentes, Immanuela e Holly, pelos
próprios comentários editoriais (muito úteis), bem como por todo o trabalho árduo
em sites, mídias sociais, produtos e muito mais. Não conseguiria sem vocês!
Na Writers House: a Simon Lipskar, por ser um agente tão maravilhoso. Vinte anos
e contando! Um brinde a mais vinte. (Ainda te devo um jantar de sushi por perder a
aposta de que eu conseguiria manter este livro abaixo da contagem de palavras de
Eragon.)
Também à assistente de Simon, Laura Katz, que faz um trabalho excelente
facilitando todo o processo. E, claro, muito obrigado a Cecilia de la Campa e à
equipe inteira de direitos autorais da Writers House por garantir todos os muitos
contratos de publicação de Murtagh em todo o mundo.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos
da imaginação do autor, foram usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas, vivas ou não, acontecimentos ou localidades é mera coincidência.
Preparação de originais
BIA SEILHE
Coordenação digital
MARIANA MELLO E SOUZA
P227m
Paolini, Christopher
Murtagh [recurso eletrônico] / Christopher Paolini ; tradução André Gordirro. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Rocco Digital, 2023.
recurso digital (Ciclo a herança ; 5)
1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Gordirro, André. II. Título. III. Série.
CDU: 82-3(73)
Guide
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Dedicatória
4. Sumário
5. Início
6. Adendos
7. Posfácio e agradecimentos
8. Créditos