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V- Direito da Insolvência
1. Considerações gerais introdutórias
A falência teve a sua origem na Idade Média no âmbito das relações entre comerciantes. A
falência caracteriza-se pelo comerciante estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações,
ou seja, de não conseguir fazer devidos pagamentos aos seus credores.
Sendo o comércio uma cadeia de pagamentos, a insolvência tem efeitos sobre os credores desse
sujeito, podendo conduzir à sua própria insolvência. Mesmo quando se trate de empresas em
boa saúde económica e financeira cria-se um efeito sistémico em toda a cadeia, trata-se do
conhecido fenómeno das “falências por arrastamento”. Na Idade Média prevenia-se este efeito
sistémico pelo quebramento da Banca do comerciante falido, e daí surgir o termo “banca rota”.
Além disso, previa-se as seguintes sanções: (i) prisão do comerciante por dívidas, (ii) expulsão
do comerciante da cidade, (iii) difamação do comerciante. Por conseguinte, o comerciante
fugia, e assim a fuga do comerciante passou a ser um índice da situação de insolvência.
Em 1980, distinguiam-se dois regimes:
✓ Falência – regime privativo dos comerciantes. O comerciante estava impossibilitado
de cumprir as suas obrigações, isto é, não tinha meios líquidos suficientes, porém, podia
ter meios ilíquidos de valor superior às obrigações (exemplo: um imóvel), porém os
meios ilíquidos demoram tempo a serem alienados no mercado.
✓ Insolvência – regime dos não comerciantes. Utilizava-se o critério de relevo
matrimonial, isto é, para um não comerciante estar insolvente era necessário que o
passivo fosse superior ao ativo.
Nesta época não havia instrumentos de recuperação de uma empresa próxima de uma situação
de falência. Estes instrumentos de recuperação de uma empresa foram criados com a entrada
em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (1993),
o CPEREF.
Com o CPEREF eliminou-se a diferença entre o regime de falência e o regime de insolvência.
Isto é, a falência que estava ligada unicamente aos comerciantes, passou a designar-se por
insolvência, e este regime estendia-se aos não comerciantes. Declarada a insolvência tínhamos
duas vias: (i) a recuperação de uma empresa ou se ela não fosse suscetível de recuperação (ii)
iniciava-se o processo de insolvência a que se seguia a liquidação.
Em 2004, entrou em vigor o novo Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas
(CIRE), substituindo o CPEREF, que vigorou uns escassos 11 anos, embora tenha sido alterado
em 1998.
Este novo diploma revela uma filosofia básica diversa do anterior centrando-se unicamente na
satisfação do interesse dos credores. Enquanto no CPEREF o resultado a ser alcançado de
forma prioritária era a recuperação da empresa sempre que a empresa declarada insolvente
fosse economicamente viável e financeiramente recuperável, no CIRE a recuperação da
empresa é meramente um instrumento para o referido fim, ou seja, a recuperação da empresa
está dependente da decisão dos credores. Esta é a solução que resulta do regime estabelecido
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3. A situação de insolvência
Na teoria podemos atender a dois critérios para determinar se alguém está em situação de
insolvência:
✓ Critério de caixa (cash flow)
Trata-se da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Este critério não exige que a empresa tenha um passivo superior ao ativo, isto porque é possível
ter o ativo superior ao passivo e o devedor não conseguir cumprir as suas obrigações, na medida
em que parte dos bens desse património podem ser ilíquidos. Exemplo: imóvel, armazém.
Desvantagens:
• Por um lado, pode levar à aplicação do regime da insolvência quando se podia recorrer
ao processo executivo. Isto é, o regime da insolvência é relevante para trazer ao
processo todos os credores quando não há forma de todos serem satisfeitos. Ora, se um
sujeito tem um património superior às dívidas incumpridas, todos os credores serão
pagos;
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• Por outro lado, uma empresa pode ter um património negativo, isto é, ter mais dívidas
do que créditos, mas continuar a ter acesso a crédito e enquanto tiver acesso poderá
cumprir as obrigações, e segundo este critério não se encontrará numa situação de
insolvência.
1Não está em causa uma impossibilidade objetiva que constitui causa de extinção de obrigações, nem há impossibilidade se o
devedor tem meios para cumprir mas não o faz porque contesta a existência da obrigação.
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Assim, quanto a essas pessoas e patrimónios, a lei considera que também são considerados
insolventes “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo
as normas contabilísticas aplicáveis”.
Estamos perante um critério autónomo, pretendendo a lei evitar que se mantenha ou agrave
uma situação claramente perigosa para quem se relaciona com o devedor.
A eventual manifesta 2superioridade do passivo em relação ao ativo segundo as normas
contabilísticas aplicáveis não conduz necessariamente à existência de uma de uma situação de
insolvência. Com efeito a lei prevê regras especiais de reavaliação referidas no artigo 3.º/3
CIRE:
✓ Critério do justo valor - têm de ser considerados “no ativo e no passivo os elementos
identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor”. Na aferição
do valor dos bens temos de atender ao valor contabilístico dos bens, de acordo com o
artigo 3.º/2 do CIRE, mas com grande frequência, este valor contabilístico não
corresponde ao valor de mercado dos bens. Exemplo: um imóvel que está contabilizado
pelo seu preço inicial de 150 000€. Decorrido um determinado período, o imóvel pode
se valorizar, por exemplo para 200 000 € mas isso por norma não é refletido nos
documentos de contabilidade. Assim, é possível reavaliar os bens, mas através de
critérios de mercado, tendo em conta o que o bem vale atualmente.
✓ Se o devedor é titular de uma empresa “a valorização baseia-se numa perspetiva de
continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável”. Assim, se
estamos perante uma empresa, devemos atender ao valor da empresa enquanto
organização, isto é, àquilo que a empresa vale como tal e não à mera soma dos diversos
elementos que a compõem isoladamente considerados, mas isto se se perspetivar a sua
continuação no património do devedor, ou seja, se houver um plano de recuperação, ou
no património de terceiros;
✓ O passivo não incluirá “dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos
distribuíveis ou do ativo restante depois de satisfeitos e acautelados os direitos dos
demais credores do devedor”. Assim, do passivo devem ser excluídas as dívidas que
apenas hajam de ser pagas à custa do ativo restante depois de satisfeitos ou acautelados
os direitos dos demais credores. Um dos instrumentos principais de financiamento das
sociedades por quotas consiste nos suprimentos.
Se da reavaliação resultar que o passivo não é superior ao ativo então a sociedade não está
insolvente de acordo com este critério.
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1.1.2.1. Suprimentos3
Podem ser:
✓ Empréstimos que o sócio concede à sociedade com caráter de permanência. Presume-
se que tem carácter de permanência os empréstimos concedidos por prazo superior a
um ano.
✓ Dilações de pagamento que um sócio confere a uma sociedade pelo período superior a
um ano. Exemplo: a sociedade deve dinheiro ao sócio, ele não lho exige e mantém o
dinheiro na sociedade.
O regime dos suprimentos é diferente dos empréstimos concedidos por terceiros à sociedade,
desde logo porque:
✓ o sócio credor não pode pedir a declaração de insolvência da sociedade por
incumprimento de um crédito de suprimentos;
✓ as garantias reais prestadas pela sociedade a créditos de suprimentos são nulas.
✓ Em termos insolvenciais são considerados créditos subordinados, nos termos do artigo
48.º CIRE. Ou seja, só serão satisfeitos depois de pagos os credores comuns. Mais, no
elenco de créditos subordinados são os últimos a serem pagos. Isto significa que, em
termos práticos, os créditos por suprimentos quase nunca serão pagos, por isso é que
se diz que os suprimentos são quase capital social.
Por tudo o exposto é que se justifica o critério do artigo 3.º/3, alínea c) CIRE, ou seja, das
dívidas decorrentes de suprimentos terem de ser retiradas do passivo.
3É um instrumento muito comum de financiamento das sociedades, porque, em particular, as sociedades por quotas têm
um capital social muito reduzido, portanto para funcionar precisam de dinheiro e quem realiza suprimentos são os sócios.
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Há autores que entendem que se trata de uma ineficácia absoluta. Mas que será de aceitar a sua ratificação
pelo administrador da insolvência de modo a aproveitar as eventuais vantagens que resultem do ato para a
massa insolvente.
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Os titulares dos órgãos sociais não podem sequer renunciar aos cargos se não tiverem procedido
ao “depósito de contas anuais com referência à data da decisão de liquidação em processo de
insolvência” (artigo 82.º/2 do CIRE).
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A não pode compensar estes créditos. Assim, A vai ter de pagar os 500€ e esperar ser satisfeito
depois da satisfação dos créditos da massa, garantidos e privilegiados e dos créditos comuns.
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Causa de extinção das obrigações segundo o artigo 847.º Código Civil.
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5.3.2. O artigo 102.º do CIRE - Princípio geral quanto aos negócios ainda
não cumpridos
O artigo 102.º CIRE tem por epígrafe “Princípio geral quanto aos negócios ainda não
cumpridos”. Contudo, lendo o seu n. º1 verificamos que afinal parecem estar em causa apenas
contratos bilaterais ainda não cumpridos na totalidade por qualquer das partes à data da
declaração da insolvência. Por outro lado, o seu âmbito de aplicação parece ser essencialmente
a compra e venda de coisas genéricas. Exemplo: A vende a B 30 computadores daqueles que
tem em armazém por 3000€, o comprador é declarado insolvente e não houve entrega da
mercadoria. Evidentemente, não houve ainda transmissão da propriedade sobre as coisas.
Para os negócios abrangidos pelo artigo 102.º/1 do CIRE, a lei estabelece que o respetivo
cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela
execução do contrato ou pela recusa do cumprimento. Embora o CIRE não defina um prazo
para essa opção o artigo 102.º/2 do CIRE permite que a outra parte no negócio fixe um prazo
“razoável” ao administrador da insolvência para que este opte por uma das duas alternativas.
Caso, porém, não indique, dentro do prazo fixado, deve-se considerar que o administrador
recusa o cumprimento.
A opção não existe se for “manifestamente improvável” o cumprimento pontual das obrigações
contratuais pela massa insolvente. No exercício do direito de optar, o administrador da
insolvência deve necessariamente olhar para o que é vantajoso para a massa insolvente e para
o conjunto dos credores.
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De acordo com o disposto no artigo 102.º do CIRE, que estabelece o regime geral para os
negócios bilaterais do insolvente em que não tenha havido total cumprimento nem por este nem
pela outra parte, o cumprimento fica suspenso, podendo o administrador optar pela execução
ou recusar o cumprimento. O vendedor poderá fixar um prazo razoável ao administrador da
insolvência para que este exerça a sua opção, findo o qual “se considera que recusa o
cumprimento” (artigo 102.º/2 CIRE). Neste caso, o prazo “não pode esgotar-se antes de
decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório” (artigo 104.º/3
CIRE).
8Repare-se que o vendedor não poderá resolver o contrato depois de declarada a insolvência enquanto se mantiver o direito
de escolha do administrador.
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2 A SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
IMINENTE INSOLVÊNCIA
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REQUERIMENTO DE INSOLVÊNCIA
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Estes sujeitos não precisam de provar o preenchimento A iniciativa da apresentação à insolvência de pessoas
dos critérios do artigo 3.º/1 do CIRE, apenas precisam coletivas cabe ao órgão social incumbido da
de demonstrar um dos “factos-índices ou presuntivos administração do devedor ou, se não for o caso, a
da insolvência” que o artigo 20.º/1 do CIRE enumera. qualquer dos seus administradores (artigo 19.º CIRE)
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EFEITOS PROCESSUAIS
A declaração de insolvência obsta à
O administrador da insolvência com instauração ou prosseguimento de qualquer
“fundamento na conveniência para os fins ação executiva intentada pelos credores da
do processo” pode requerer a apensação insolvência contra o devedor insolvente, mas
ao processo de insolvência das ações não impede que a execução prossiga contra
declarativas outros executados
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Dentro do PRAZO DE 15 DIAS subsequentes ao No prazo de 10 dias subsequentes pode qualquer interessado
termo do prazo das reclamações, “o impugnar a lista de credores reconhecidos através de
administrador da insolvência apresenta na requerimento dirigido ao juiz (artigo 130.º CIRE)
secretaria uma LISTA DE TODOS OS
CREDORES POR SI RECONHECIDOS E UMA
LISTA DOS NÃO RECONHECIDOS, ambas por
ordem alfabética” (artigo 129.º/1 do CIRE).
A GRADUAÇÃO GERAL PARA A GRADUAÇÃO ESPECIAL PARA OS BENS NÃO É ATENDIDA A PREFERÊNCIA
OS BENS DA MASSA A QUE RESPEITEM DIREITOS REAIS DE RESULTANTE DE HIPOTECA
INSOLVENTE GARANTIA E PRIVILÉGIOS JUDICIAL, NEM A PROVENIENTE DA
CREDITÓRIOS ESPECIAIS PENHORA
Dívidas que recaem sobre o insolvente e assumem caráter patrimonial, que sejam garantidos por bens da massa
insolvente e cujo fundamento seja prévio à declaração de insolvência, bem como aqueles cujos titulares demonstrem
que os adquiriram no decurso do processo de insolvência (artigo 47.º/1 e 3 do CIRE)
Preenchimento dos pressupostos legais da compensação O crédito sobre a insolvência ter preenchido os
seja anterior à data da declaração da insolvência requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código
Civil antes do contra crédito da massa
“PRINCÍPIO GERAL QUANTO AOS NEGÓCIOS AINDA NÃO CUMPRIDOS” (ARTIGO 102.º CIRE)
Aplica-se aos contratos bilaterais ainda não O cumprimento do contrato fica suspenso até que o
cumpridos na totalidade por qualquer das administrador da insolvência declare que opta pela execução do
partes à data da declaração da insolvência. contrato ou pela recusa do cumprimento
Não confere às partes o direito à Confere à massa insolvente o direito de As dívidas resultantes do contrato
restituição do que já tiver sido exigir “o valor da contraprestação
serão dívidas da massa insolvente
prestado. correspondente à prestação já efetuada
(artigo 51.º/1 alínea f) CIRE).
pelo devedor na medida em que não
tenha sido ainda realizada pela outra
parte”
A outra parte tem direito a
exigir, como crédito sobre a
insolvência, o valor da A outra parte tem direito à indemnização
prestação do devedor, na parte dos prejuízos causados, que constitui
incumprida, deduzido do valor crédito sobre a insolvência
da contraprestação
correspondente que ainda não
tenha sido realizada. 27
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EXECUTA O CONTRATO
RECUSA O CUMPRIMENTO
Previsto nos artigos 17.º ss CIRE, destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em
SITUAÇÃO ECONÓMICA DIFÍCIL ou em SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA MERAMENTE
IMINENTE, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos
credores de modo a concluir com este acordo conducente à sua revitalização.
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