Você está na página 1de 12

Sumário: 3.1 O conceito de obrigação e seus elementos constitutivos: 3.1.

1 Elementos subjetivos
da obrigação; 3.1.2 Elemento objetivo ou material da obrigação; 3.1.3 Elemento imaterial, virtual ou
espiritual da obrigação – 3.2 Diferenças conceituais entre obrigação, dever, ônus e direito potestativo
– 3.3 As fontes obrigacionais no Direito Civil brasileiro – 3.4 Breve estudo dos atos unilaterais como
fontes do direito obrigacional: 3.4.1 Da promessa de recompensa; 3.4.2 Da gestão de negócios;
3.4.3 Do pagamento indevido; 3.4.4 Do enriquecimento sem causa – 3.5 Principais classificações
das obrigações. Modalidades previstas no Código Civil de 2002: 3.5.1 Classificação da obrigação
quanto ao seu conteúdo ou prestação; 3.5.2 Classificação da obrigação quanto à complexidade do
seu objeto; 3.5.3 Classificação das obrigações quanto ao número de pessoas envolvidas. Estudo
das obrigações solidárias; 3.5.4 Classificação das obrigações quanto à divisibilidade (ou
indivisibilidade) do objeto obrigacional – 3.6 O adimplemento das obrigações (teoria do pagamento):
3.6.1 Primeiras palavras; 3.6.2 Do pagamento direto; 3.6.3 Das regras especiais de pagamento e
das formas de pagamento indireto – 3.7 Da transmissão das obrigações: 3.7.1 Introdução; 3.7.2 Da
cessão de crédito; 3.7.3 Da cessão de débito ou assunção de dívida; 3.7.4 Da cessão de contrato –
3.8 Do inadimplemento obrigacional. Da responsabilidade civil contratual: 3.8.1 Modalidades de
inadimplemento; 3.8.2 Regras quanto ao inadimplemento relativo ou mora; 3.8.3 Regras quanto ao
inadimplemento absoluto da obrigação; 3.8.4 Dos juros no Código Civil de 2002; 3.8.5 Da cláusula
penal; 3.8.6 Das arras ou sinal.

3.1 O CONCEITO DE OBRIGAÇÃO E SEUS ELEMENTOS


CONSTITUTIVOS
Tanto a obrigação quanto o contrato assumem hoje o ponto central do Direito
Privado, sendo tido por muitos como os institutos jurídicos mais importantes de todo
o Direito Civil. Assim também os visualizamos. Para a compreensão dessas figuras
negociais, é imprescindível que o estudioso e aplicador do direito domine os
conceitos básicos que decorrem da relação jurídica obrigacional, matéria que muitas respectivamente), cujo objeto é uma prestação pessoal, positiva ou negativa, garantido o

vezes é relegada a um segundo plano, supostamente por não ter grande aplicação cumprimento, sob pena de coerção judicial”.5

prática, o que constitui um erro jurídico imperdoável.


Diante de sua primaz importância social é que a teoria geral das obrigações é o Reunindo todos os pareceres expostos, conceitua-se a obrigação como a relação
primeiro tema a ser tratado pela parte especial da codificação, entre os seus arts. 233 jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro
a 420. Os pontos que serão a partir de agora abordados não interessam somente ao sujeito passivo, o devedor, e cujo objeto consiste em uma prestação situada no
Direito Contratual ou Obrigacional, mas também a todo o Direito Privado. âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou
Quanto à divisão básica entre direitos pessoais patrimoniais e direitos reais, o inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do
direito obrigacional funciona como cerne principal dos primeiros. De toda sorte, devedor.
superando essa clássica divisão, cumpre lembrar que existem obrigações que geram Como se pode notar, a questão do descumprimento ou inadimplemento ingressa no
efeitos reais. É o caso da obrigação propter rem, ou própria da coisa; também próprio conceito de obrigação. Isso porque, para o Direito, interessa mais o
denominada obrigação ambulatória, pois segue a coisa onde quer que se encontre. A descumprimento do que o cumprimento da obrigação, já que se trata de uma ciência
título de exemplo, podem ser citadas as obrigações tributárias que recaiam sobre o que lida com o conflito. Desse modo, de acordo com essa construção, são elementos
imóvel (v.g., IPTU) e a obrigação do proprietário de pagar as despesas de constitutivos da obrigação:
condomínio.
Partindo para o conceito de obrigação, vejamos a definição da doutrina clássica e
a) Elementos subjetivos: o credor (sujeito ativo) e o
contemporânea:
devedor (sujeito passivo).
– Washington de Barros Monteiro – a obrigação é “a relação jurídica, de caráter transitório, b) Elemento objetivo imediato: a prestação.
estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal
econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o
c) Elemento imaterial, virtual ou espiritual: o vínculo
adimplemento através de seu patrimônio”.1 existente entre as partes.
– Rubens Limongi França – “é o vínculo jurídico ou de equidade, pelo qual alguém está adstrito
a, em benefício de outrem, realizar uma prestação”.2
– Álvaro Villaça Azevedo – “a obrigação é a relação jurídica transitória, de natureza econômica, Não se pode afastar a constante influência que exercem os princípios da eticidade
pela qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação e da socialidade sobre o direito obrigacional, notadamente a boa-fé objetiva e a
positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele
função social, princípios esses relacionados com a concepção social da obrigação e
para a satisfação de seu interesse”.3
– Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho – obrigação é a “relação jurídica pessoal por com a conduta leal dos sujeitos obrigacionais. Será demonstrado que essa
meio da qual uma parte (devedora) fica obrigada a cumprir, espontânea ou coativamente, visualização é indeclinável, o que vem ocorrendo na melhor doutrina e em inúmeros
uma prestação patrimonial em proveito da outra (credor)”.4 julgados.
– Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald – “relação jurídica transitória, estabelecendo
vínculos jurídicos entre duas diferentes partes (denominadas credor e devedor, No que concerne à função social das obrigações, Fernando Noronha elenca as
mesmas em três categorias: obrigações negociais, de responsabilidade civil e de Superados tais esclarecimentos categóricos, passa-se ao estudo detalhado dos
enriquecimento sem causa, destacando que “na atual sociedade de massas se exige elementos obrigacionais.
uma acrescida proteção, em nome da justiça social, daqueles interesses que aglutinam
grandes conjuntos de cidadãos”.6 No que concerne à boa-fé objetiva, Judith Martins- 3.1.1 Elementos subjetivos da obrigação
Costa prega uma nova metodologia quanto ao direito das obrigações e uma nova
construção da relação obrigacional que deve ser tida como uma relação de São os elementos pessoais, os sujeitos ou pessoas envolvidas na relação jurídica
cooperação.7 Nesse contexto, Nelson Rosenvald sintetiza muito bem como deve ser obrigacional, a saber:
encarada a obrigação atualmente:
a) Sujeito ativo – é o beneficiário da obrigação, podendo ser uma pessoa
natural ou jurídica ou, ainda, um ente despersonalizado a quem a prestação
“A obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um
é devida. É denominado credor, sendo aquele que tem o direito de exigir
conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas, compreendendo uma
o cumprimento da obrigação.
série de deveres de prestação, direitos formativos e outras situações
jurídicas. A obrigação é tida como um processo – uma série de atos b) Sujeito passivo – é aquele que assume um dever, na ótica civil, de cumprir o
relacionados entre si –, que desde o início se encaminha a uma finalidade: a conteúdo da obrigação, sob pena de responder com seu patrimônio. É
satisfação do interesse na prestação. Hodiernamente, não mais prevalece o denominado devedor. Recomenda-se a utilização da expressão deveres
status formal das partes, mas a finalidade à qual se dirige a relação dinâmica. que consta do art. 1.º do atual Código Civil, em detrimento do termo
Para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor obrigações, previsto no art. 2.º do CC/1916 e que está superado.
existe o bem comum da relação obrigacional, voltado para o adimplemento,
Interessante deixar claro que, na atualidade, dificilmente alguém assume a posição
da forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor. O bem
isolada de credor ou devedor em uma relação jurídica. Na maioria das vezes, as
comum na relação obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperação
partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, presente a
dos indivíduos para a satisfação dos interesses patrimoniais recíprocos, sem
proporcionalidade de prestações denominada sinalagma, como ocorre no contrato de
comprometimento dos direitos da personalidade e da dignidade do credor e
compra e venda. Tal estrutura também é denominada relação jurídica obrigacional
devedor.”8
complexa, constituindo a base do negócio jurídico relacionada com a obrigação. O
esquema a seguir demonstra muito bem como é a estrutura do sinalagma
Quando o doutrinador faz menção à obrigação como um processo, está fazendo
obrigacional.
referência ao trabalho de Clóvis do Couto e Silva. Esse jurista, inspirado na doutrina
alemã, ensina que a obrigação deve ser encarada como um processo de colaboração
contínua e efetiva entre as partes, a conduzir ao adimplemento ou ao cumprimento da
obrigação.9 Com tais premissas teóricas deve ser encarada a obrigação, o que será
feito no presente capítulo.
Visando a delimitar e distinguir tais conceitos, este autor criou um desenho lógico
que esquematiza as categorias. Assim, a obrigação pode ser comparada a uma
piscina, com duas camadas:

Como se pode verificar, o desenho tem um formato geométrico retangular,


conduzindo a um ponto de equilíbrio. De fato, o sinalagma é um todo equilibrado, e
sendo quebrado, justifica-se a ineficácia ou a revisão da obrigação. A quebra do
sinalagma é tida como geradora da onerosidade excessiva, do desequilíbrio negocial, Pelo desenho que simboliza a obrigação, na parte rasa, está o elemento imediato
como um efeito gangorra. da obrigação: a prestação; e, no fundo, está o seu elemento mediato, que é a coisa,
tarefa ou abstenção. Pois bem, o elemento mediato da obrigação é o elemento
imediato da prestação, o que pode ser facilmente percebido pelo esquema.
3.1.2 Elemento objetivo ou material da obrigação
A encerrar o tópico, esclareça-se que para a obrigação ser válida no âmbito
Trata-se do conteúdo da obrigação. O objeto imediato da obrigação, perceptível jurídico, todos os elementos mencionados, incluindo a prestação e seu objeto, devem
de plano, é a prestação, que pode ser positiva ou negativa. Sendo a obrigação ser lícitos, possíveis (física e juridicamente), determinados ou, pelo menos,
positiva, ela terá como conteúdo o dever de entregar coisa certa ou incerta (obrigação determináveis e, por fim, ter forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do CC). A
de dar) ou o dever de cumprir determinada tarefa (obrigação de fazer). Sendo a obrigação em si, para ter validade, deve ser também economicamente apreciável. A
obrigação negativa, o conteúdo é uma abstenção (obrigação de não fazer). violação dessas regras gera a nulidade da relação obrigacional, sendo aplicado o art.
Por outro lado, percebe-se que o objeto mediato da obrigação pode ser uma 166 do CC/2002.
coisa ou uma tarefa a ser desempenhada, positiva ou negativamente. Como exemplo
de objeto mediato da obrigação, pode ser citado um automóvel ou uma casa em 3.1.3 Elemento imaterial, virtual ou espiritual da obrigação
relação a um contrato de compra e venda. Esse também é o objeto imediato da
prestação. Alguns doutrinadores apontam que o objeto mediato da obrigação ou O elemento em questão é o vínculo jurídico existente na relação obrigacional, ou
objeto imediato da prestação é o bem jurídico tutelado, entendimento esse que, seja, é o elo que sujeita o devedor à determinada prestação – positiva ou negativa –,
igualmente, é bastante plausível.10 em favor do credor, constituindo o liame legal que une as partes envolvidas.
A melhor expressão desse vínculo está estabelecida no art. 391 do CC 2002, com
a previsão segundo a qual todos os bens do devedor respondem no caso de a unificação do tema, o que pode ser percebido pelo sistema adotado pelo Código de
inadimplemento da obrigação. Esse artigo traz o princípio da responsabilidade Defesa do Consumidor.
patrimonial do devedor, sendo certo que a prisão civil por dívidas não constitui regra No que concerne à redação do art. 391 do CC, é preciso um esclarecimento
de nosso ordenamento jurídico, mas exceção. Como se sabe, a prisão civil somente importante. Isso porque prevê o dispositivo que “pelo inadimplemento das obrigações
seria possível em duas hipóteses, conforme prevê literalmente o art. 5.º, inc. LXVII, respondem todos os bens do devedor” (destaquei). Ora, o dispositivo consagra
da CF/1988, nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação expressamente a responsabilidade integral de todos os bens do devedor. Entretanto,
alimentícia ou nos casos envolvendo o depositário infiel. como é notório, existem alguns bens do devedor que estão protegidos, particularmente
Quanto à última hipótese legal, houve uma mudança substancial diante da Emenda aqueles reconhecidos como impenhoráveis. Melhor era, portanto, a redação do art.
Constitucional 45. Isso porque o Supremo Tribunal Federal afastou a possibilidade de 591 do CPC/1973, pela qual “o devedor responde, para o cumprimento de suas
prisão por dívida do depositário infiel, havendo depósito típico, atípico ou judicial. obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições
A conclusão girou em torno da Emenda Constitucional 45, que deu aos tratados estabelecidas em lei”. Os bens absolutamente impenhoráveis constavam
internacionais de direitos humanos o status constitucional, ou supralegal. É cediço expressamente do art. 649 do mesmo CPC/1973.
que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto O CPC/2015 repetiu essas regras, com uma pequena mudança. De início, o seu art.
de São José da Costa Rica), que proíbe a prisão civil por descumprimento contratual, 789, na linha exata do antigo art. 591, estabelece que “o devedor responde com todos
não sendo a prisão civil no depósito compatível com a realidade constitucional os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as
brasileira (cf. julgados publicados no Informativo n. 531 do STF, de dezembro de restrições estabelecidas em lei”. Quanto aos bens que estão protegidos, constam do
2008). Em 2009, deixando bem clara essa opção, foi editada pelo STF a Súmula rol do art. 833, que não utiliza mais a expressão “bens absolutamente impenhoráveis”,
Vinculante 25, com seguinte teor: “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, mas apenas bens “impenhoráveis”, em um sentido de relativização ou abrandamento,
qualquer que seja a modalidade do depósito”. pela retirada do superlativo, o que veio em boa hora.
Superado esse ponto, é interessante lembrar que o art. 391 do CC, quando Ainda sobre o elemento imaterial obrigacional, deve-se compreender que está
analisado em conjunto com os arts. 389 e 390, consagra a responsabilidade civil superada a teoria monista ou unitária da obrigação, pela qual essa seria
contratual ou negocial, presente nos casos em que uma obrigação assumida por uma consubstanciada por um único elemento: o vínculo jurídico que une a prestação e os
das partes não é cumprida. O art. 389 deve ser aplicado para os casos de elementos subjetivos. Prevalece atualmente na doutrina contemporânea a teoria
inadimplemento absoluto ou relativo da obrigação positiva (dar e fazer), enquanto o dualista ou binária, de origem alemã, pela qual a obrigação é concebida por uma
art. 390 para aqueles envolvendo a obrigação negativa (não fazer). relação débito/crédito. A teoria é atribuída, no Direito Alemão e entre outros, a Alois
No plano técnico, para denotar a responsabilidade civil contratual, não devem ser Brinz, tendo sido desenvolvida no final do século XIX.
utilizados os arts. 186 e 927 da codificação vigente, pois tais comandos legais A superação daquela velha teoria pode ser percebida a partir do estudo dos dois
fundamentam a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana. Ainda prevalece, elementos básicos da obrigação: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung),
na doutrina, a visão clássica de divisão dualista da responsabilidade civil, em sobre os quais a obrigação se encontra estruturada.11
responsabilidade contratual e extracontratual. Adverte-se, contudo, que a tendência é Inicialmente, o Schuld é o dever legal de cumprir com a obrigação, o dever
existente por parte do devedor. Havendo o adimplemento da obrigação surgirá apenas subjetivo de exigi-lo, constituindo, segundo Francisco
esse conceito. Mas, por outro lado, se a obrigação não é cumprida, surgirá a Amaral, na “situação passiva que se caracteriza pela
responsabilidade, o Haftung. Didaticamente, pode-se utilizar a palavra Schuld como necessidade do devedor observar um certo
sinônima de debitum e Haftung, de obligatio.
comportamento, compatível com o interesse do titular
Sem dúvida é possível identificar uma situação em que há Schuld sem (ohne)
do direito subjetivo”.12 O dever jurídico engloba não só
Haftung ou debitum sem obligatio, qual seja, na obrigação natural, que mesmo
existente não pode ser exigida, pois é uma obrigação incompleta. Cite-se, a título de
as relações obrigacionais ou de direito pessoal, mas
exemplo, a dívida prescrita, que pode ser paga – por existir –, mas não pode ser também aquelas de natureza real, relacionadas com o
exigida. Tanto isso é verdade que, paga uma dívida prescrita, não caberá ação de Direito das Coisas. Podem ter ainda por objeto o
repetição de indébito (art. 882 do CC). Direito de Família, o Direito das Sucessões, o Direito
Por outro lado, haverá Haftung sem (ohne) Schuld, obligatio sem debitum, na de Empresa e os direitos da personalidade. Para
fiança, garantia pessoal prestada por alguém (fiador) em relação a um determinado diferenciá-lo da obrigação, salientam Giselda Hironaka
credor. O fiador assume uma responsabilidade, mas a dívida é de outra pessoa. O e Renato Franco que “em sentido mais estrito, situar-
contrato de fiança é celebrado substancialmente entre fiador e credor. Confirmando
se-á a ideia de obrigação, referindo-se apenas ao
essa assertiva, a lei estabelece que pode ser celebrado sem o consentimento do
devedor ou até contra a sua vontade (art. 820 do CC).
dever oriundo à relação jurídica creditória (pessoal,
Justamente por tais possibilidades é que se entende, como parte da doutrina, que a
obrigacional). Mas não apenas isto. Na obrigação, em
teoria monista ou unitária encontra-se superada, prevalecendo atualmente a teoria correspondência a este dever jurídico de prestar (do
dualista ou binária. A última visão, mais completa, acaba sendo a mais adequada devedor), estará o direito subjetivo à prestação (do
para explicar o fenômeno contemporâneo obrigacional, principalmente nos casos credor), direito este que, se violado – se ocorrer a
descritos. inadimplência por parte do devedor –, admitirá, ao
seu titular (o credor), buscar no patrimônio do
3.2 DIFERENÇAS CONCEITUAIS ENTRE OBRIGAÇÃO, responsável pela inexecução (o devedor) o necessário
DEVER, ÔNUS E DIREITO POTESTATIVO à satisfação compulsória do seu crédito, ou à
Os conceitos apontados são fundamentais para a compreensão da matéria. reparação do dano causado, se este for o caso”. 13 O
Vejamos de forma detalhada: dever jurídico, contrapondo-se a direitos subjetivos de
cunho patrimonial, está relacionado a prazos
– Dever jurídico e obrigação – Contrapõe-se a um direito prescricionais (arts. 205 e 206 do CC).
– Ônus jurídico – Para Orlando Gomes, o ônus jurídico é A solidariedade tem A indivisibilidade tem Diferença aplicável
“a necessidade de agir de certo modo para a tutela de origem origem objetiva, da tanto para a
interesses próprios”. 14 São exemplos de ônus, para o pessoal/subjetiva e natureza do objeto da solidariedade ativa
autor baiano: “levar o contrato ao registro de títulos e decorre da lei ou de prestação. quanto passiva.
documentos para ter validade perante terceiro; acordo das partes.
inscrever o contrato de locação no registro de imóveis
para impor sub-rogação ao adquirente do prédio”. Convertida em Convertida em perdas Diferença aplicável
Pode-se afirmar, nesse sentido, que o desrespeito ao perdas e danos, é e danos, é extinta a tanto para a
ônus gera consequências somente para aquele que o mantida a indivisibilidade. solidariedade ativa
detém. Cite-se, na ótica processual, o ônus de provar, solidariedade. quanto passiva.
previsto no Código de Processo Civil (art. 373 do
CPC/2015, correspondente ao art. 333 do CPC/1973). Com a referida Com a conversão em Diferença relacionada
Efetivamente, caso a parte não prove o que alegou conversão, havendo perdas e danos, apenas com a
em juízo, suportará as consequências da procedência culpa de apenas um havendo culpa de solidariedade
ou improcedência da demanda, que também poderá dos devedores, todos apenas um dos passiva.
repercutir na sua esfera patrimonial. Tal efeito continuam devedores, ficarão
diferencia a categoria do dever, pois se o último não responsáveis pela exonerados
for cumprido haverá consequências para todas as dívida. Pelas perdas e totalmente os demais
partes envolvidas, surgindo daí a responsabilidade. danos, somente (art. 263, § 2.º, do
– Direito potestativo – É aquele que se contrapõe a um responde o culpado CC) – entendimento
estado de sujeição, pois encurrala a outra parte. Para (art. 279 do CC). seguido por este
Francisco Amaral “direito potestativo é o poder que a autor.
pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem,
sem que este possa fazer algo que não se sujeitar.
3.6 O ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES (TEORIA DO
(...) Opera na esfera jurídica de outrem, sem que este
PAGAMENTO)
tenha algum dever a cumprir”. 15 Em suma, no estado
3.6.1 Primeiras palavras deslocar os institutos para o capítulo próprio dos contratos, nesta seção as categorias
serão estudadas. Feitos esses esclarecimentos iniciais, passa-se ao estudo de tais
Por meio do pagamento, cumprimento ou adimplemento obrigacional tem-se a categorias obrigacionais.
liberação total do devedor em relação ao vínculo obrigacional. A matéria engloba os
seguintes tópicos, que consubstanciam a teoria do pagamento – expressão de Orlando
3.6.2 Do pagamento direto
Gomes –, assim subdivididos:
3.6.2.1 Elementos subjetivos do pagamento direto. O solvens e o accipiens
Quem paga e quem recebe
I) Pagamento Direto: De acordo com o que consta do Código Civil em vigor e reunindo o que de melhor
– Elementos subjetivos – Quem paga e quem recebe? existe na doutrina, pode-se dizer que são elementos subjetivos ou pessoais do
– Elementos objetivos – O que se paga e como paga? pagamento o solvens (quem deve pagar) e o accipiens (a quem se deve pagar). Deve-
– Lugar do pagamento – Onde se paga? se ter muito cuidado para não denominar as partes como o devedor e o credor, uma
– Tempo de pagamento – Quando se paga? vez que a lei civil não utiliza tais expressões. Como se sabe, outras pessoas, que não
o devedor, podem pagar; ao mesmo tempo em que outras pessoas, que não o credor,
II) Regras especiais de pagamento – atos unilaterais:
podem receber.
– Pagamento em consignação.
– Imputação do pagamento. a) Do solvens ou “quem deve pagar” (arts. 304 a 307 do CC)
– Sub-rogação legal. Como regra geral, o solvens será o devedor. Porém, outras pessoas também
podem pagar, além do próprio sujeito passivo da relação obrigacional. Nesse sentido,
III) Formas de pagamento indireto – atos bilaterais ou negócios
enuncia o art. 304 do CC/2002 que qualquer interessado na dívida pode pagá-la,
jurídicos: podendo usar, se houver oposição do credor, dos meios conducentes à exoneração do
– Sub-rogação convencional. devedor. A título de ilustração, havendo oposição do credor, poderá o terceiro
– Dação em pagamento. interessado utilizar-se do pagamento em consignação, judicial ou extrajudicial,
– Novação. previsto nos arts. 334 do CC/2002, 539 do CPC/2015 e 890 do CPC/1973).
– Compensação. Outro conceito que pode gerar dúvida é o de terceiro interessado na dívida. Este
– Confusão. corresponde à pessoa que tenha interesse patrimonial na sua extinção, caso do fiador,
– Remissão. do avalista ou do herdeiro. Havendo o pagamento por esse terceiro interessado, esta
pessoa sub-roga-se automaticamente nos direitos de credor, com a transferência de
todas as ações, exceções e garantias que detinha o credor primitivo. Em hipóteses
Além das figuras acima, existem também contratos que geram o pagamento: a tais, ocorre a chamada sub-rogação legal ou automática (art. 346, inc. III, do CC).
transação e o compromisso. Como a opção metodológica do Código Civil de 2002 foi
Mas deve ser tomado o devido cuidado, uma vez que interesse patrimonial não credor terá todos os direitos, garantias e ações que detinha o antigo credor (art. 349
significa interesse afetivo. Dessa forma, um pai que paga a dívida do filho por intuito do CC). No direito de reembolso isso não ocorre, podendo haver necessidade de se
afetivo não pode ser considerado terceiro interessado no campo do direito provar a dívida e o correspondente pagamento, eventualmente. No direito de regresso,
obrigacional. O pai que paga a dívida deve ser considerado, na verdade, um terceiro não há substituição automática do credor em direitos, garantias e ações.
não interessado na dívida. Esse também tem direito de realizar o pagamento. Em Em continuidade, preconiza o art. 306 da atual codificação material que se
casos tais, duas regras devem ser observadas: ocorrer o pagamento por terceiro não interessado e em seu próprio nome, sem o
conhecimento ou havendo oposição do devedor, não haverá obrigação de reembolso
do devedor em relação a esse terceiro, se o primeiro provar que tinha meios para
– Se o terceiro não interessado fizer o pagamento em seu ilidir a ação, ou seja, para solver a obrigação.
próprio nome tem direito a reembolsar-se no que Exemplo típico é o caso em que o devedor tinha a seu favor a alegação de
pagou, mas não se sub-roga nos direitos do credor prescrição da dívida. Se ele, sujeito passivo da obrigação, provar tal fato e havendo o
(art. 305 do CC). Se pagar a dívida antes de vencida, pagamento por terceiro, não haverá o mencionado direito de reembolso. Nesse
somente terá direito ao reembolso ocorrendo o seu sentido, com interessante aplicação prática:
vencimento (art. 305, parágrafo único, do CC).
“Monitória. Embargos rejeitados. Compromisso de compra e venda firmado
– Se o terceiro não interessado fizer o pagamento em nome entre as partes onde o embargante (vendedor) assumiu dívidas existentes
e em conta do devedor, sem oposição deste, não terá sobre o bem até a data da alienação. Descoberta pelos embargados
direito a nada, pois é como se fizesse uma doação, um (compradores) de dívida junto à empresa responsável pelo abastecimento de
ato de liberalidade (interpretação do art. 304, água e saneamento da localidade, referente a obras para implantação da rede,
parágrafo único, do CC). Em casos de dúvidas, executadas no ano de 1979. Pagamento precipitado pelos embargados, sem
comunicar o embargante, efetivo devedor, para que pudesse se opor à
prevalece a premissa segundo a qual o terceiro pagou
cobrança de dívida prescrita, ficando dessa forma privados do reembolso.
em seu próprio nome, eis que os atos de liberalidade
Inteligência do art. 306 do atual Código Civil. Embargante que reunia meios
não admitem interpretação extensiva (art. 114 do de se opor à cobrança, em virtude da evidente prescrição da dívida. Sentença
CC). reformada. Recurso provido para julgar procedentes os embargos e decretar a
improcedência da ação monitória, invertidos os ônus da sucumbência” (TJSP,
No primeiro caso apontado, não há sub-rogação legal, como ocorre quando o Apelação com Revisão 443.430.4/8, Acórdão 4129838, 8.ª Câmara de
terceiro interessado paga a dívida, mas mero direito de reembolso. Os dois institutos Direito Privado, Campinas, Rel. Des. Salles Rossi, j. 14.10.2009,DJESP
não se confundem, uma vez que na sub-rogação legal há uma substituição automática 28.10.2009).
do credor, o que prescinde de prova quanto à existência da dívida. Ademais, o novo
Ainda a respeito do solvens, dispõe o art. 307 do CC/2002 que somente terá Como regra geral, o accipiens será o credor. Mas o pagamento também pode ser
eficácia o pagamento que importar transmissão da propriedade quando feito por quem feito ao seu representante, que tem poderes para receber o pagamento, sob pena de só
possa alienar o bem em que ele consistiu. Desse modo, somente se o solvens for valer depois de ratificação, de confirmação pelo credor, ou havendo prova de
titular de um direito real, será possível o pagamento. Esse dispositivo veda a reversão ao seu proveito (art. 308 do CC). Esclareça-se que apesar de a norma
alienação por quem não seja o dono da coisa (a non domino). A solução dada pela mencionar a validade – assim como os dois comandos seguintes –, o pagamento é
norma, em sua literalidade, é a ineficácia, e não a invalidade do pagamento. resolvido no plano da eficácia. Nessa linha, enunciado aprovado na V Jornada de
Pelo parágrafo único desse dispositivo, se a parte der em pagamento coisa Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal em 2011, com o
fungível (substituível) de terceiro, não será mais possível que este reclame do credor seguinte sentido: “o pagamento repercute no plano da eficácia, e não no plano da
que a recebeu de boa-fé e a consumiu. E isso ocorre mesmo no caso de alienação do validade como preveem os artigos 308, 309 e 310 do Código Civil” (Enunciado n.
bem por insolvente. Dessa forma, se for entregue coisa de terceiro, o mesmo deverá 425).
demandar o devedor se a coisa já tiver sido consumida mesmo de boa-fé, baseando-se O pagamento também poderá ser feito aos sucessores do credor, como no caso do
no princípio da vedação do enriquecimento sem causa. Mas, se não houve ainda o herdeiro e do legatário, que podem ser reputados como representantes.
consumo, o terceiro poderá demandar o accipiens, segundo a nossa interpretação do Segundo enuncia o art. 309 do CC, válido será o pagamento ao credor putativo
dispositivo. Vejamos um exemplo. A entrega a B de cem sacas de café pertencentes a (aquele que aparentemente tem poderes para receber) desde que haja boa-fé do
C, como forma de pagamento. Três são as possibilidades nesse caso: devedor. Eis uma das principais aplicações da teoria da aparência, que procura
valorizar a verdade real, em detrimento da verdade formal. Para ilustrar, imagine-se
um caso em que um locatário efetua o seu pagamento na imobiliária X, há certo tempo.
• Se o café já foi consumido por B, de boa-fé, a ação de C Mas o locador rompe o contrato de representação com essa imobiliária e contrata a
é contra A. imobiliária Y. O locatário não é avisado e continua fazendo os pagamentos na
• Se o café não foi consumido por B, a ação de C é contra imobiliária anterior, sendo notificado da troca seis meses após. Logicamente, os
B. pagamentos desses seis meses devem ser reputados válidos, não se aplicando a regra
pela qual quem paga mal, paga duas vezes. Dessa forma, cabe ao locador acionar a
• Se o café foi consumido por B, de má-fé, a ação é contra imobiliária X e não o locatário.
B. Havendo má-fé e perdas e danos, quanto às De interessante julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo também pode ser
últimas respondem todos os culpados solidariamente. retirado outro exemplo de aplicação do conceito de credor putativo, envolvendo
pagamento realizado em estabelecimento do credor, pela aparência que se revelava:
Essas conclusões partem da análise do último dispositivo à luz dos princípios da
função social e da boa-fé que também regem a teoria do pagamento. “Compra e venda. Bem móvel. Existência de instituição financeira no interior
do estabelecimento comercial. Negócio concretizado mediante pagamento em
b) Do accipiens ou “a quem se deve pagar” (arts. 308 a 312 do CC) parcelas feito diretamente à loja comercial conforme os recibos juntados aos
autos. Validade. Dívida devidamente quitada, mesmo porque, nos termos da sem que tivesse conhecimento do fato nem se consignando eventual má-fé no
Lei, o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado acórdão recorrido. 2. Inexistindo, pois, prova da má-fé e elemento que
depois que não era credor. Art. 309 do Novo Código Civil. Ausência, pudesse cientificar o devedor que o representante da credora não mais
ademais, de prova hábil do contrato autônomo de financiamento da dívida. detinha poderes de administração, é de se reputar válido o pagamento feito a
Declaratória de inexigibilidade de título de crédito procedente. Recurso credor putativo. Inteligência do artigo 309, do Código Civil. 3. Agravo
desprovido” (TJSP, Apelação 1.247.830/3, 11.ª Câmara de Direito Privado, regimental provido” (STJ, AgRg no Ag. 1.225.463/SP, 4.ª Turma, Rel. Min.
Paraguaçu Paulista, j. 12.06.2006, Rel. Des. Gilberto Pinto dos Santos, v.u., Maria Isabel Gallotti, j. 11.12.2012, DJe 19.12.2012).
V. 7.662).
“Direito civil e processual civil. Obrigação de fazer. Pedido de outorga de
Seguindo nos exemplos, podem ser colacionados dois arestos do Superior escritura definitiva de compra e venda. Deferimento de outorga de escritura
Tribunal de Justiça, que igualmente servem como interessantes concretizações do art. de cessão de direitos hereditários. Julgamento extra petita. Não ocorrência.
309 da atual lei geral privada e da teoria da aparência que fundamenta o comando: Bem transacionado objeto de inventário. Pagamento ao credor putativo.
Eficácia. Sucumbência recíproca. Falta de prequestionamento. 1. Não há
“Recurso especial. Civil. Seguro DPVAT. Indenização. Credor putativo. vício na sentença que determina a outorga de cessão de direitos hereditários e
Teoria da aparência. 1. Pela aplicação da teoria da aparência, é válido o não a de escritura definitiva de compra e venda, conforme pedido na inicial
pagamento realizado de boa-fé a credor putativo. 2. Para que o erro no se, sendo válido o negócio realizado pelas partes, até o proferimento da
pagamento seja escusável, é necessária a existência de elementos suficientes decisão não houver se encerrado o inventário, por ser a cessão um minus em
para induzir e convencer o devedor diligente de que o recebente é o relação ao pedido da autora. 2. Considera-se eficaz o pagamento realizado
verdadeiro credor. 3. É válido o pagamento de indenização do DPVAT aos àquele que se apresenta com aparência consistente de ser mandatário do
pais do de cujus quando se apresentam como únicos herdeiros mediante a credor se as circunstâncias do caso assim indicarem. A atuação da corretora
entrega dos documentos exigidos pela lei que dispõe sobre seguro obrigatório e do recorrente indicaram à recorrida, compradora do bem, que aquela tinha
de danos pessoais, hipótese em que o pagamento aos credores putativos legitimidade para as tratativas e fechamento do negócio de compra e venda.
ocorreu de boa-fé. 4. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 3. O prequestionamento, entendido como a necessidade de o tema objeto do
1.601.533/MG, 3.ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 14.06.2016, recurso haver sido examinado pela decisão atacada, constitui exigência
DJe 16.06.2016). inafastável da própria previsão constitucional, ao tratar do recurso especial,
impondo-se como um dos principais requisitos ao seu conhecimento. Não
“Agravo regimental. Agravo de instrumento. Obrigação securitária. Acordo. examinada a matéria objeto do especial pela instância a quo, incidem os
Pagamento ao falido. Credor putativo. Artigo 309, do CC. Provimento. 1. No enunciados 282 e 356 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. 4. Recurso
caso em apreço, a recorrente foi condenada ao pagamento de seguro e Especial improvido” (STJ, REsp 823.724/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Sidnei
entabulou acordo com a credora, cuja falência fora decretada anteriormente, Beneti, j. 18.05.2010, DJe 07.06.2010).
No que interessa à antiga regra quem paga mal, paga duas vezes, está implícita Determina o art. 311 do CC/2002 que deve ser considerado como autorizado a
no art. 310 do Código Civil em vigor. Por tal comando legal, não vale o pagamento receber o pagamento aquele que está munido do documento representativo da quitação
cientemente feito ao credor incapaz de dar quitação, se o devedor não provar a (o recibo), salvo se as circunstâncias afastarem a presunção relativa desse mandato
reversão do valor pago em seu benefício. Essa incapacidade deve ser tida em sentido tácito. Exemplificando, se de imediato perceber o devedor que no recibo consta uma
genérico, significando falta de autorização, ou mesmo incapacidade absoluta ou assinatura do credor aparentemente falsificada, poderá negar-se a fazer o pagamento.
relativa daquele que recebeu (arts. 3.º e 4.º do CC). Em casos tais, o pagamento O dispositivo deve ser complementado pelo art. 113, caput, do CC, segundo o qual os
deverá ocorrer novamente. negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé objetiva e os usos e os
Aplicando essa nossa posição de interpretação ampliada na ideia de incapacidade costumes do seu lugar de celebração (regras de tráfego). Em suma, caberá análise
de receber, destaque-se recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo caso a caso, de acordo com as circunstâncias fáticas que envolvem o pagamento.
(Apelação 0017943-67.2009.8.26.0114, 12.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal A encerrar o presente tópico, preconiza o art. 312 do CC que, se o devedor pagar
de Justiça de São Paulo, Campinas, Rel. Des. Márcia Cardoso, j. 04.05.2016). No ao credor, apesar de intimado da penhora feita sobre o crédito ou da sua impugnação
caso, a devedora efetuou o pagamento da dívida, objeto da demanda, diretamente na oposta por terceiro, não deverá ser tido como válido o pagamento em relação a este
conta bancária de uma pessoa física, quando a credora era pessoa jurídica, que nunca terceiro. O terceiro, na verdade, poderá constranger o devedor a pagar novamente
deu quitação formal dos valores pagos. Nos termos do julgamento, “tais pagamentos (quem paga mal, paga duas vezes), ressalvado o direito de regresso do devedor em
foram realizados, inclusive, contrariando as instruções constantes das próprias notas face do credor.
fiscais que eram acompanhadas dos respectivos boletos bancários. Nesse contexto, A ilustrar, se no caso descrito o devedor for citado em interpelação judicial, em
não há como considerar válido o pagamento, eis que realizado em dissonância com a que terceiro reivindica o crédito, não poderá pagar ao suposto credor. Se assim o faz,
boa-fé objetiva e os usos e costumes comerciais”. O acórdão estadual foi confirmado deverá pagar ao terceiro novamente, se este for o verdadeiro legitimado a receber,
em decisão monocrática do Superior Tribunal de Justiça, proferida pelo Ministro Luis cabendo ingressar com ação de repetição de indébito (actio in rem verso) contra
Felipe Salomão em março de 2018, nos autos do Agravo Interno no Agravo em aquele que recebeu o indevido.
Recurso Especial 1.210.049/SP, novamente citando este autor.
Advirta-se, contudo, que tais conclusões não obstam que aquele que pagou 3.6.2.2 Do objeto e da prova do pagamento direto (elementos objetivos do
ingresse com ação de repetição de indébito (actio in rem verso) contra aquele que pagamento direto). O que se paga e como se paga
recebeu, aplicação direta das regras relacionadas com o pagamento indevido e com a Pela interpretação do art. 313 do CC/2002 pode-se afirmar que o objeto do
vedação do enriquecimento sem causa. pagamento é a prestação, podendo o credor se negar a receber o que não foi
No entanto, vale lembrar a parte final do dispositivo (art. 310 do CC), pelo qual pactuado, mesmo sendo a coisa mais valiosa. Trata-se de concretização da antiga
se ficar provado que o pagamento foi revertido a favor do credor, haverá exoneração máxima romana nemo aliud pro alio invito creditore solvere potest . Essa regra
daquele que pagou. O dispositivo valoriza, mais uma vez, a busca da verdade real reforça a individualização da prestação na obrigação de dar coisa certa, como outrora
(teoria da aparência), em sintonia com a vedação do enriquecimento sem causa, com exposto. Concretizando, se a obrigação do devedor é de entrega de um lote
a eticidade e a socialidade. imobiliário, não pode o credor ser obrigado a receber outro, ainda que seja mais

Você também pode gostar