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Capítulo III  As fontes de direito

1. Os vários sentidos da expressão «fontes de direito»

Já vimos que a norma jurídica é uma entidade histórica. Como se


terá formado? Quais os processos de formação e de revelação das nor-
mas que compõem determinada ordem jurídica? Esta é a questão que
iremos abordar, sob a designação corrente de «fontes de Direito».
Todos nós temos a noção intuitiva de fonte (por exemplo, o Sol é a
fonte, origem, princípio, causa da luz solar e do calor). No entanto, a
expressão «fontes de Direito» é equívoca, pois pode ser aplicada a
realidades muito diversas.
Assim, podemos distinguir os seguintes quatro sentidos dife-
rentes:

1. Em sentido sociológico ou causal  são «fontes de Direito» todas


as circunstâncias históricas (causas, factores sociais, etc.) que presidi-
ram à formação de determinada norma. As normas do Código da Estra-
da, por exemplo, tiveram possivelmente como fontes, quer o aumento do
parque automóvel, quer o aumento do volume de acidentes de viação.

2. Em sentido histórico, instrumental ou material  são «fontes


de Direito» os documentos ou suportes físicos (diplomas ou monumentos
legislativos) que contêm os textos das normas reguladoras da vida jurídi-
ca. Neste sentido, as pedras dos Dez Mandamentos de Moisés ou as tá-
buas da Lei das Doze Tábuas são «fontes de Direito».

3. Em sentido político ou orgânico  são «fontes de Direito» os ór-


gãos com competência legislativa. Exemplo: uma assembleia, um gover-
no, um imperador, etc., quando ditam as normas.

4. Em sentido técnico-jurídico ou formal  são «fontes de Direito»


os processos de criação e de revelação das normas jurídicas (do direito
objectivo). As normas jurídicas são criadas por órgãos próprios e revela-
das, isto é, dadas a conhecer aos seus destinatários (antigamente, atra-
vés da sua leitura em praças públicas; hoje, em Portugal, por exemplo,
através da sua publicação no Diário da República).

2. Fontes imediatas e mediatas do direito

Chamam-se fontes directas ou imediatas do Direito às formas de


aplicação directa do Direito, isto é, às formas de onde nasce directa-
mente o Direito positivo. Inversamente, fontes indirectas ou mediatas
do Direito são as formas de aplicação indirecta do Direito, ou seja, as
formas que não dão origem a normas de Direito positivo, embora pos-
sam contribuir para a sua formação. É o caso da doutrina e de grande
parte da jurisprudência.
Segundo o art.º 1.º n.º 1 do Código Civil, são fontes imediatas do
Direito, no nosso País, as leis e as normas corporativas, conforme se
pode ler no referido artigo:

Artigo 1.º
Fontes imediatas
1. São fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas.
2. Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos
órgãos estaduais competentes; são normas corporativas as regras dita-
das pelos organismos representativos das diferentes categorias morais,
culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribui-
ções, bem como os respectivos estatutos e regulamentos internos.
3. As normas corporativas não podem contrariar as disposições le-
gais de carácter imperativo.

Portanto, como se verifica pela leitura do art.º 1.º do Código Civil,


também as normas corporativas são consideradas fontes directas ou
imediatas do Direito já que, desde que não sejam elaboradas em des-
obediência à lei, impõem-se como formas de Direito positivo.
Mas por que razão se chamam normas corporativas? Naturalmen-
te porque são ditadas pelos chamados organismos corporativos (asso-
ciações de entidades patronais, agrícolas, piscatórias, comerciais e in-
dustriais, bem como agrupamentos de trabalhadores em sindicatos).
Todos estes organismos são chamados a cooperar e a desenvolver uma
acção regularizadora da actividade sócio-económica, evitando-se os ma-
les que o capitalismo individualista do século passado acarretava. As-
sim, por exemplo, em vez de o trabalhador se encontrar sozinho e em
condições de total dependência do patronado poderoso, que aproveitan-
do-se da sua supremacia lhes impunha salários e condições de trabalho
insustentáveis, os contratos de trabalho obedecem, hoje, rigorosamente,
ao estabelecido em acordo entre as associações do patronato e os sindi-
catos de trabalhadores, no Conselho de Concertação Social, liderado pe-
lo Governo.

3. As fontes de direito em sentido técnico-jurídico

Em Portugal, as fontes de Direito em sentido técnico-jurídico são


quatro:

1. Lei escrita  é toda a disposição genérica provinda do órgão es-


tadual competente.

2. Costume  é toda a prática repetida, habitual, acompanhada da


consciência ou convicção da sua obrigatoriedade.

São consideradas fontes directas ou imediatas do Direito porque,
por si sós, produzem directamente Direito positivo, isto é, são os verda-
deiros modos de criação do Direito. Todavia, em Portugal, só a lei é ver-
dadeira fonte imediata do Direito.

3. Doutrina  traduz-se nas opiniões dos jurisconsultos que, no


nosso Direito antigo, assumiam força vinculativa, já que as respostas
ou interpretações feitas pelos jurisconsultos constituíam normas que os
tribunais deviam aplicar. Hoje, os tribunais não estão submetidos a es-
sas opiniões porque o juiz é livre.

4. Jurisprudência  é a doutrina resultante da interpretação da lei


feita pelos tribunais na aplicação dela.

São consideradas fontes indirectas ou mediatas do Direito porque,
por si sós, não produzem directamente normas jurídicas, dando apenas
um contributo para a sua formação.

Analisemos, com algum pormenor, estas quatro fontes de Direito.

4. A lei

Nos sistemas jurídicos europeus, a lei constitui o processo mais


vulgar de criação do Direito, sendo, por isso mesmo, a principal fonte de
Direito e, segundo alguns autores, até a única fonte admissível.

4.1. Os vários sentidos da lei

A lei pode ser entendida nas seguintes três acepções diferentes:


 Lei em sentido amplo e em sentido restrito;
 Lei em sentido material e em sentido formal;
 Lei constitucional e lei ordinária.

Analisemos em pormenor cada uma destas acepções de lei.

Em sentido amplo, a lei abrange todos os diplomas emanados das


autoridades competentes (com poderes legislativos ou executivos) que
formulem regras de conduta social obrigatórias. Abrange, por isso, a lei
da Assembleia da República e, extensivamente, os decretos-leis, os de-
cretos, os regulamentos, as instruções, as portarias e os decretos le-
gislativos regionais (toda e qualquer norma jurídica, portanto).
Em sentido restrito, a lei, sendo prerrogativa apenas do poder le-
gislativo, somente pode ser emanada da Assembleia da República (lei
propriamente dita) ou do governo na sua função exclusivamente legisla-
tiva (decreto-lei) ou das assembleias regionais (decretos legislativos
regionais). É uma concepção mais rígida que a anterior, prescrita no
art.º 112.º n.º 1 da Constituição: «São actos legislativos as leis, os de-
cretos-leis e os decretos legislativos regionais».
Em sentido formal, a lei é todo o acto normativo emanado solene-
mente de um órgão constitucionalmente incumbido da função legislativa.
São, por isso, as leis da Assembleia da República, as que conferem au-
torizações legislativas ao Governo, bem como os decretos-leis elabo-
rados com base nestas mesmas autorizações legislativas.
Em sentido material, lei é todo o acto normativo emanado de um
qualquer órgão do Estado, ainda que não incumbido da função legislati-
va. Exemplos: uma portaria do Ministro da Educação a aprovar um re-
gulamento de exames ou uma postura camarária a regular o trânsito
no respectivo concelho.
Podemos acrescentar que, quando o órgão de que dimana a norma
jurídica é o órgão legislativo competente (Assembleia da República ou
Governo quando autorizado por aquela), estamos em presença de lei
em sentido formal. Diz-se lei em sentido formal porque, para qualificar
como tal essa declaração, abstrai-se do conteúdo dela, abstrai-se de sa-
ber se essa declaração cria uma norma geral e abstracta, ou simples
preceitos concretos e particulares. Desde que provenha de órgão ou ór-
gãos detentores do poder legislativo e se apresente segundo as formali-
dades prescritas, essa declaração assume o carácter de lei em sentido
formal ou, como também se diz, de lei formal.
Em oposição a esta ideia, está a lei material, em que é indiferente
o órgão de onde dimana. Desde que haja um acto solene de criação de
uma norma geral e abstracta por um órgão competente, temos lei mate-
rial.

Lei constitucional é a lei que contém a organização e o funciona-


mento dos órgãos supremos do Estado e os princípios fundamentais que
os devem orientar na sua actuação. É, por definição, a lei que tem mais
alto valor e que, portanto, não poderá ser contrariada por nenhuma ou-
tra, sob pena de inconstitucionalidade.
Leis ordinárias ou comuns são, por definição, todas as outras.

4.2. O processo de elaboração de uma lei

FASES DE FORMAÇÃO DA LEI

1. Criação da proposta ou projecto de lei, submetida à aprecia-


ção da Assembleia da República, por iniciativa dos Deputados, dos gru-
pos parlamentares, do Governo ou de grupos de cidadãos eleitores (bem
como, nas regiões autónomas, às respectivas assembleias legislativas
regionais)  ver art.º 167.º da Constituição. A qualquer desses órgãos
compete ainda a iniciativa da proposta do referendo.

2. Discussão e aprovação. A discussão dos projectos e propostas


de lei na Assembleia da República compreende um debate na generali-
dade e outro na especialidade, findos os quais se procede à votação
(uma na generalidade, outra na especialidade e uma votação final glo-
bal)  art.º 168.º da Constituição. A Assembleia da República, através
da votação, rejeita ou aprova o projecto ou proposta de lei discutido, na
totalidade ou em parte, com ou sem emendas.

3. Promulgação. A proposta ou projecto de lei aprovado ainda não


é lei. Terá que passar, agora, pela fase de promulgação. Para o efeito, a
Assembleia da República deverá enviar essa proposta ou projecto de lei
aprovado ao Presidente da República para a promulgar e mandar publi-
car como lei. No prazo de 20 dias após a sua recepção, o Presidente
da República deverá promulgá-la ou exercer o direito de veto (a falta
de promulgação ou de assinatura pelo Presidente da República não con-
fere a qualquer decreto da Assembleia da República nenhum valor jurí-
dico  art.º 137.º da Constituição). Caso exerça o direito de veto, de-
verá devolver o decreto à Assembleia da República, solicitando-lhe
nova apreciação do diploma em mensagem devidamente fundamen-
tada. Se a Assembleia da República, ao apreciar, de novo, o diplo-
ma, confirmar o voto por maioria absoluta dos Deputados em efec-
tividade de funções, o Presidente da República não poderá recusar
a promulgação, o que deverá fazer no prazo de oito dias a contar da
sua recepção  n.ºs 1 e 2 do art.º 136.º da Constituição. Contudo, pa-
ra certas matérias (ver n.º 3 do mesmo artigo) é exigida a maioria de
dois terços dos Deputados presentes.

4. Publicação no Diário da República. A lei só se torna obrigatória


depois de publicada no jornal oficial.

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO DECRETO-LEI

O processo de formação do decreto-lei é menos complexo. O proces-


so inicia-se com o pedido de autorização legislativa por parte do Gover-
no à Assembleia da República e desde que a matéria se enquadre numa
das alíneas a) a aa) do art.º 165.º da Constituição. Depois de obtida a
indispensável autorização, apresentará o decreto ao Presidente da Re-
pública para promulgação como decreto-lei. O Presidente da República,
de acordo com o n.º 4 do art.º 136.º da Constituição, dispõe de 40 dias
após a sua recepção (ou da publicação da decisão do Tribunal Constitu-
cional que não se pronuncie pela inconstitucionalidade de norma cons-
tante do decreto) para promulgá-lo ou vetá-lo. Nesta última hipótese,
deverá o Presidente da República devolver o decreto ao Governo, comu-
nicando-lhe, por escrito, o sentido do veto, a fim de que o Governo, se o
desejar, o possa reformular de acordo com o sentido do veto do Presi-
dente da República. Caso o Presidente da República promulgue o decre-
to, este deverá ser referendado pelo Primeiro-Ministro (art.º 140.º da
Constituição), antes da publicação no Diário da República, podendo ser
depois submetido a apreciação da Assembleia da República para efeitos
de alteração ou de recusa de ratificação, de acordo com o art.º 169.º da
Constituição. Se a ratificação for recusada, o decreto-lei deixará de vigo-
rar e não poderá voltar a ser publicado no decurso da mesma sessão le-
gislativa.
4.3. Início e termo da vigência da lei

Com a publicação completa-se o processo de formação da lei. Isso


não significa, todavia, que ela entre imediatamente em vigor. A fim de
que os cidadãos possam tomar efectivo conhecimento da lei e possam
ajustar a sua vida às exigências da norma, o legislador estabelece,
normalmente, um intervalo de tempo entre a publicação da lei e a
sua entrada em vigor, espaço de tempo esse a que se dá o nome de
VACATIO LEGIS. É o que se encontra estabelecido no art.º 5.º do Códi-
go Civil, que se transcreve:

Artigo 5.º
Começo da vigência da lei
1. A lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial.
2. Entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a
própria lei fixar ou, na falta de fixação, o que for determinado em legis-
lação especial.

Este período entre a publicação e a vigência da lei (vacatio legis) po-


de ser maior ou menor ou até nem existir quando houver urgência que
a lei entre imediatamente em vigor; bastará, para tanto, que o legislador
o ordene.
A título de exemplo, vejamos as seguintes situações:

1. Quando o legislador nada disser: no Continente, as leis entram


em vigor 5 dias após a publicação; 15 dias nos Açores e Madeira. Deve
notar-se que o dia da publicação não se conta.

2. Encurtamento do prazo: o legislador pode impor a entrada ime-


diata em vigor e deve fazê-lo quando, por exemplo, o Governo decide au-
mentar os preços de bens essenciais, a fim de evitar açambarcamentos.

3. Dilatação do prazo: o legislador dilata o prazo sempre que a lei


contemple matérias muito complexas. Assim, por exemplo, o Código das
Sociedades Comerciais somente entrou em vigor 60 dias após a publica-
ção.

As leis têm uma vida limitada pela entrada em vigor e pela cessa-
ção da vigência. Sobre a entrada em vigor nada mais há a acrescentar.
Sobre a cessação da vigência é fenómeno de fácil observação leis que se
sucedem umas às outras, revogando as mais antigas, para, mais tarde,
serem elas também revogadas por outras mais recentes. O art.º 7.º do
Código Civil preceitua, da seguinte maneira, a cessação da vigência da
lei:
Artigo 7.º
Cessação da vigência da lei
1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa
de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompati-
bilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da cir-
cunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a inten-
ção inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei
que esta revogara.

Sintetizemos, então, as duas modalidades de cessação da vi-


gência de uma lei.

Uma lei pode deixar de vigorar nos seguintes casos:

1. Por caducidade, nas seguintes circunstâncias:

 Quando a lei indica expressamente o prazo da sua vigência. Cadu-


ca, automaticamente, uma vez atingido esse prazo.

 Quando a lei foi criada para vigorar só enquanto durar uma deter-
minada situação (uma guerra, uma epidemia, etc.).

 Quando desaparecem os pressupostos da sua aplicação. As leis


relativas à caça, por exemplo, caducariam, naturalmente, se as espécies
animais se viessem a extinguir.

2. Por revogação  quando surge uma nova lei que vem substituir
uma anterior. Pode ser:

 Revogação expressa  quando a nova lei indica expressamente


quais as leis que deixarão de vigorar.

 Revogação tácita  quando falta essa indicação, pelo que preva-


lece a vontade mais recente do legislador (a nova lei pode não referir a
lei anterior, mas estabelecer preceitos novos contrários, incompatíveis
com os preceitos daquela).

 Ab-rogação ou revogação total  quando a nova lei atinge todas


as disposições, sem excepção, da lei anterior.

 Derrogação ou revogação parcial  quando a nova lei atinge


apenas algumas das disposições da lei anterior, mantendo-se as restan-
tes em vigor.
É evidente que a revogação expressa não é sempre necessária, vis-
to que, pela própria natureza das coisas, uma lei posterior, representan-
do a «última vontade» do Estado, extingue e destroi as anteriores mani-
festações da vontade na medida em que com ela sejam contraditórias.
Tal revogação só será indispensável quando o legislador quiser fazer
cessar a vigência de uma lei anterior sem a substituir por outra. Mas
mesmo na primeira hipótese, a revogação expressa é conveniente na
medida em que exclui quaisquer dúvidas sobre a cessação ou subsis-
tência da lei antiga  e, nesse sentido, é tanto mais vantajosa quanto é
certo, por vezes, ser muito difícil saber-se se há ou não contradição en-
tre duas normas.
Este problema da determinação de incompatibilidade entre duas
normas  intimamente ligado ao da interpretação  assume particular
acuidade quando as normas em questão são de âmbito diferente. Embo-
ra se possa dizer que, em princípio, nem a lei geral revoga a espe-
cial, nem esta aquela, o problema tem de ser resolvido caso a caso,
com os elementos fornecidos pela interpretação.
Acontece, por vezes, que o legislador resolve regular de novo todo o
instituto. Neste caso, deve entender-se que fica revogada totalmente a
lei anterior; mesmo os preceitos desta que a lei nova mantenha ou não
regule, devem considerar-se revogados. Ainda é uma modalidade de re-
vogação tácita.

4.4. A hierarquia das leis

Chama-se hierarquia ao conjunto de elementos num todo, coloca-


dos uns a seguir aos outros por ordem de importância (do mais para o
menos importante ou vice-versa). Pela mesma ordem de ideias, chama-
-se hierarquia das leis à ordenação das leis de acordo com a sua im-
portância, partindo da mais importante até chegar à menos importante.
A hierarquia das leis está manifestamente ligada à hierarquia
dos órgãos respectivos; nesta ordem de ideias, um decreto de um
Ministro, por exemplo, pode revogar um regulamento de um gover-
nador civil (e uma norma que não esteja em conformidade com a
hierarquia superior, acarreta a sua invalidade).

Vamos procurar estabelecer a hierarquia das leis em Portugal, co-


meçando pela distinção entre leis especiais e leis gerais, ordinárias
ou comuns. Enquanto estas últimas são leis que surgem todos os dias,
provenientes dos mais diversos órgãos do Estado e autarquias, as pri-
meiras são leis cujo processo de formação é complexo e só surgem de
tempos a tempos. Assim, por exemplo, a Constituição, que é a lei funda-
mental de um país, é uma lei especial que só surge quando há alteração
de regime ou é alterada em situações especiais, que a própria Constitui-
ção prevê.

Verificamos, pois, que há várias categorias de leis, cada uma com o


seu valor relativo. Se quisermos estabelecer entre elas uma ordenação,
estaremos a hierarquizar as leis. Assim, começando pelas que se apre-
sentam com maior valor relativo, podemos estabelecer a seguinte hie-
rarquia das leis:
TIPOS DE NOME DOS
ORDEM CATEGORIA FUNÇÕES
LEIS DIPLOMAS
Lei fundamental (tem o mais alto valor)
Lei Constituição do Estado, que fixa os grandes princí-
1.º da República pios de ordem política, social e económi-
Constitucional
Portuguesa ca e que não pode ser contrariada por
nenhuma outra.
Acordos celebrados entre o Estado Por-
tuguês e os outros Estados da comuni-
dade internacional sobre as mais diver-
sas matérias (devem ser aprovados pela
Leis Tratados Convenções Assembleia da República ou pelo Gover-
2.º internacionais Internacionais
no e ratificados pelo Presidente da Repú-
Especiais blica, que tem ainda competência para
solicitar a fiscalização preventiva de
qualquer norma constante de um trata-
do internacional, ao Tribunal Constitu-
cional).
Podem provir do Governo quando este
Normas Decretos aprova tratados internacionais, ou do
3.º Presidente da República, quando este
especiais especiais
nomeia ou demite o Primeiro-Ministro e
os membros do Governo.
Normas de carácter geral, elaboradas pe-
4.º Leis formais  Leis la Assembleia da República.
são as que,
provindo do
Normas emanadas do Governo, enunci-
5.º poder legislati- Decretos-leis ando princípios gerais e fundamentais.
vo, enunciam
princípios ge-
Decretos
rais dos regi- Normas elaboradas pelas Assembleias
6.º legislativos Regionais (Açores e Madeira).
mes jurídicos
regionais
Normas elaboradas pelo Governo, atra-
Decretos
vés das quais pormenoriza as leis ou os
7.º regulamen- decretos-leis já existentes, por forma a
tares poderem ser bem executados.
Normas de carácter regional elaboradas
Decretos pelos Governos das Regiões Autónomas
regionais dos Açores e da Madeira, pormenorizan-
8.º do os decretos legislativos regionais ela-
regulamen-
Leis borados pelas respectivas Assembleias
tares
Gerais, Regionais.
Ordinárias Leis não Provêm do Conselho de Ministros, sobre
ou Comuns formais  são Resoluções do matérias da sua competência (resolução
9.º as que se Conselho de de aumentar os preços, por exemplo).
destinam a Ministros Mas também pode dimanar da A.R. ou
pormenorizar das Assembleias Regionais.
os princípios Ordens emitidas em nome do Governo,
10.º gerais Portarias todavia, da exclusiva responsabilidade
enunciados do(s) ministro(s) signatário(s).
pelas leis Ordens dadas por um Ministro ou Minis-
formais tros aos subordinados do seu Ministério.
11.º Despachos
Também podem ser emitidas pelos Se-
cretários de Estado.
Ordens ou regulamentos internos dados
12.º Instruções pelos Ministros aos respectivos funcio-
nários.
Instruções dirigidas a um ou mais servi-
13.º Circulares ços de um Ministério.
Atribuições policiais que não são objecto
Regulamentos de lei, emitidas pelos Governadores Ci-
14.º policiais vis.
Regulamentos Emitidas pelas Autarquias (Câmaras
15.º e posturas Municipais e Juntas de Freguesia) nos
locais limites da hierarquia jurídica superior.
Resta salientar que a hierarquia das leis se estabelece atendendo
aos seguintes três princípios:

1. As leis especiais prevalecem sobre as leis gerais.

2. As leis provenientes dos órgãos de administração geral pre-


valecem sobre as emanadas dos órgãos de administração autárquica
e ambas sobre as criadas pelos órgãos corporativos (sindicatos, asso-
ciações, etc.).

3. Dentro de cada uma destas ordens, a hierarquia das leis esta-


belece-se em harmonia com a hierarquia dos respectivos órgãos.

Disse-se que as leis da Assembleia da República se limitam às «ba-


ses gerais dos regimes jurídicos». Para que essas leis se possam apli-
car, necessitam, por isso, de ser pormenorizadas; nisto consiste a
sua regulamentação, função que compete, por excelência, ao Gover-
no e à Administração.

4.5. A interpretação da lei

A lei traduz sempre um dever-ser que se quer rigorosamente deter-


minado. Como realidade espiritual que é, a lei serve-se de símbolos e si-
nais, que são as palavras, através das quais se comunica; torna-se, por
isso, indispensável descobrir, antes de mais, o sentido das palavras que
utiliza.
Acontece frequentemente o legislador exprimir-se incorrectamente:
aquelas palavras que usou designarem, por si sós, mais ou menos reali-
dades do que as que ele pretendia abranger. Daí a necessidade de se in-
terpretar a lei. Porém, o intérprete não se deve contentar com a inter-
pretação das palavras (interpretação literal), já que a maior parte das
vezes não lhe fornece o verdadeiro querer do legislador. É preciso, en-
tão, que ele faça igualmente a interpretação do espírito da lei, procu-
rar saber o que terá estado no espírito do legislador quando fez a lei.

O art.º 9.º do Código Civil salienta, a este propósito:


«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconsti-
tuir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em
conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi
elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência
verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá
que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir
o seu pensamento em termos adequados.»
Portanto, na interpretação das leis o que se pretende é alcançar
o verdadeiro sentido espiritual delas. O intérprete não deve ficar pre-
so às palavras, antes deve procurar atingir, custe o que custar, a autên-
tica voluntas legis.
Mesmo para concluir que a lei é clara, torna-se necessário um
trabalho de interpretação.

Vejamos um exemplo: no Código da Estrada existe uma norma


que exige cuidados especiais ao automobilista sempre que passa por
uma escola devidamente sinalizada. Aparentemente, a lei é muito clara.
Todavia, imagine-se a seguinte situação: é Domingo, não há aulas e o
automobilista A, ao ver o sinal de aproximação de escola nas imedia-
ções, não abranda a velocidade e, sem saber como, atravessa-se-lhe
uma criança na estrada, que atropela mortalmente. Ao sair do carro, ve-
rifica que outras crianças saem em grande correria da escola: embora
Domingo, decorria na escola uma festa, uma representação teatral.
O problema que poderemos imediatamente colocar é este: o auto-
mobilista A é culpado por não ter tomado as devidas cautelas face ao si-
nal, abrandando a velocidade, ou, pelo contrário, é inocente por pensar
que a escola estaria fechada, uma vez que era Domingo?
Ora, estamos aqui perante um problema, pura e simplesmente,
de interpretação da lei. Neste como noutros casos, o julgador terá a
necessidade de investigar qual o efectivo sentido da norma que impõe
cautelas ao automobilista quando passa por escolas.

O juiz, antes de aplicar a lei a um caso concreto, deve proceder


sempre à sua interpretação, verificar, pela determinação exacta do seu
significado, se é ela que realmente deve aplicar e como deverá aplicá-la.
É que a lei tem sempre um conteúdo espiritual (um dever-ser que o juiz
deverá determinar rigorosamente) e um conteúdo literal, através de pala-
vras, cujo sentido o juiz deve igualmente tentar descobrir. Temos, as-
sim, que o jurista deve ter em conta os seguintes dois momentos de in-
terpretação da lei:

 Interpretação literal, textual ou gramatical da lei  é o primei-


ro momento da interpretação da lei, que consiste em retirar do seu texto
o significado ou significados possíveis, tendo em conta a construção
da(s) frase(s), o significado das palavras utilizadas, a pontuação usada
(a deslocação de uma simples vírgula pode, muitas vezes, dar um senti-
do diferente a uma frase), etc.

 Interpretação lógica, racional ou do espírito da lei  consiste,


num segundo momento, em o jurista procurar atingir aquilo que estava
no espírito do legislador, aquilo que ele queria dizer ou atingir, quando
fez a lei. O intérprete não pode, por isso, ficar preso, simplesmente, às
palavras. Deve procurar conhecer (logicamente, racionalmente) o que é
que terá levado o legislador a fazer essa lei.
Tendo em conta a entidade que faz a interpretação, pode falar-
-se dos seguintes dois tipos de interpretação:

1. Interpretação doutrinal ou hetero-interpretação: é a interpre-


tação da lei efectuada segundo regras científicas e técnicas, pelos juris-
consultores teóricos (interpretação teórica ou meramente doutrinal) ou
pelos jurisconsultores práticos (interpretação prática ou jurisprudencial).

2. Interpretação autêntica ou legal ou auto-interpretação: é a


que é feita pelo próprio legislador através de uma lei interpretativa (cha-
ma-se lei interpretativa àquela que tem por objectivo determinar o
sentido de uma lei anterior; a Assembleia da República pode fazer leis
interpretativas destinadas a esclarecerem o sentido de leis suas que se-
jam porventura ambíguas).

A diferença entre hetero e auto-interpretação reside no facto de as


primeiras não serem vinculativas, não se imporem obrigatoriamente, ao
contrário das segundas que, surgindo sob a forma de leis, são imperati-
vas.

Utilizando os elementos anteriores, o intérprete estará em condi-


ções de indicar qual o verdadeiro sentido da lei. Mas esse sentido da lei
estará em harmonia com o seu enunciado literal? Traduzirá a letra da
lei aquilo que o legislador queria dizer, tudo o que quis dizer e só o que
queria dizer? Nem sempre, e daí as seguintes espécies de interpreta-
ção da lei:

 Quando há coincidência entre o sentido literal (ou um dos


sentidos literais) e o sentido da lei, a interpretação diz-se DECLA-
RATIVA, isto é, o intérprete verifica que o sentido da lei cabe dentro do
seu texto.
Um exemplo: reparemos na seguinte norma de Direito Civil: «Só o
homem é susceptível de direitos e obrigações». O que se entenderá aqui
por homem? Qualquer pessoa, seja do sexo masculino ou feminino?
Qualquer pessoa só do sexo masculino? Só do sexo masculino e adulto?
Seja qual for a escolha, far-se-á sempre uma interpretação declarativa,
visto que o sentido que atribuímos a «homem» cabe sempre dentro das
palavras empregadas pelo legislador.

 Quando se entende que o legislador disse menos do que que-


ria porque as palavras o traíram, pelo que o intérprete vai estender,
alargar o sentido da lei para além daquilo que as palavras podem
abranger, a interpretação diz-se EXTENSIVA. O conteúdo do art.º
877.º n.º 1 do Código Civil pode servir-nos de exemplo: «Os pais e avós
não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não
consentirem na venda». Ora, esta norma nada refere quanto aos bisa-
vós; porém, como não se justifica essa proibição apenas para os dois
primeiros graus, o intérprete deve alargar o preceito a outros ascen-
dentes.
 Quando o intérprete chega à conclusão de que o legislador
disse mais do que queria, pelo que deve reduzir ou restringir o alcance
da lei, a interpretação diz-se RESTRITIVA.
Exemplo: muitas vezes, o legislador menciona apenas «menor»,
quando, na realidade, o que pretendia significar era «menor não eman-
cipado».

 Quando, entre duas leis, há uma contradição absoluta e o in-


térprete não descobre nenhum meio de as conciliar, então o intér-
prete vai fazer uma interpretação AB-ROGANTE ou REVOGATÓRIA,
ou seja, vai aceitar aquela lei que se mostre mais harmónica com o fim
em vista, repudiando a outra.

 Quando o intérprete, depois de apurar o sentido da lei, tira


dela todas as suas consequências, a interpretação diz-se ENUNCIA-
TIVA. Não é mais, pois, do que o desenvolvimento lógico da interpreta-
ção efectuada.

4.6. A integração das lacunas da lei

Muitas vezes, a lei aparece com lacunas (espaços em branco), ha-


vendo mesmo casos que não são previstos na lei (casos omissos), ou
seja, infelizmente existe no Direito, e em grande quantidade, falta
de preceitos legais que regulem, directamente, determinadas situa-
ções  são as LACUNAS DA LEI. Porém, mesmo assim, os juizes têm
de fazer justiça, não à face da norma que não têm, mas recorrendo quer
a normas aplicáveis a casos análogos quer, na falta destas, decidindo
como se tivesse ele mesmo de legislar. Nenhum juiz se pode negar a
fazer justiça com o argumento de que o caso não está previsto na
lei. Poderá parecer que, nestas condições, o juiz pode criar direito; po-
rém, rigorosamente, não é assim. É preciso não confundir direito com
lei, pois esta pode ter lacunas; porém, o direito não as tem, porque
há sempre princípios nele consagrados à luz dos quais o juiz pode
resolver um caso omisso na lei.

A vida social atingiu hoje uma complexidade tal, as situações da vi-


da social são tão densas, que o legislador não consegue abranger na lei
as normas capazes de as regular, na sua totalidade.
Mas existem outras razões que justificam a não existência espe-
cífica de normas jurídicas a regularem muitas situações da vida so-
cial. Analisemos algumas:

 Acontece muitas vezes que o legislador, quando vai procurar


regular determinada situação, não consegue prever todas as hipóte-
ses que podem surgir, deixando, por isso, espaços em branco, a que
se dá o nome de LACUNAS DA LEI.
 Noutras vezes, em especial quando o legislador vai regular certa
situação pela primeira vez, deixa por regular, intencionalmente, al-
guns sectores em que se sente pouco seguro, não confiando nos seus
próprios juízos de valor, preferindo que certas situações não sejam re-
guladas a que sejam mal ou rigidamente reguladas.

 Finalmente, o caso mais vulgar: o aparecimento de situações


novas, completamente imprevisíveis no momento da elaboração da
lei, vai originar, inevitavelmente, lacunas da lei.

Ora, essas deficiências são sanáveis através de um processo deno-


minado integração das lacunas da lei, que só deverá ter lugar depois
de se interpretar devidamente os preceitos que parecem regular a maté-
ria e de se concluir que, não a abrangendo eles, se está perante uma la-
cuna da lei.
A obscuridade ou a falta específica de uma norma que regule um
determinado caso, não é motivo para que o juiz mande embora as par-
tes em litígio com o fundamento de que tal situação é extra-jurídica.
Muito pelo contrário, o juiz tem de resolver juridicamente o caso, preen-
chendo, por processos que a lei estipula, a lacuna da lei.
Esses processos encontram-se previstos no art.º 10.º do Código
Civil, que se transcreve:

Artigo 10.º
Integração das lacunas da lei
1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma
aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões jus-
tificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma
que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espíri-
to do sistema.

Sempre que o juiz preenche, de harmonia com estes comandos


legais, uma lacuna da lei, diz-se que procede à INTEGRAÇÃO DA LA-
CUNA DA LEI.
Esses comandos legais são, conforme preceitua o art.º 10.º do Có-
digo Civil:

1. A analogia, que consiste em aplicar, a um caso omisso na lei (la-


cuna), uma norma ou um princípio que regule juridicamente um caso
semelhante (análogo).

Na ordem jurídica portuguesa, a analogia não é possível nos se-


guintes casos:

 nas normas excepcionais (normas que introduzem uma situação


oposta aos princípios fixados pelas normas gerais), de acordo com o
art.º 11.º do Código Civil: «As normas excepcionais não comportam apli-
cação analógica, mas admitem a interpretação extensiva».

 nas normas penais incriminadoras, de acordo com o n.º 3 do


art.º 1.º do Código Penal:
«1. Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado
passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.
2. A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigo-
sidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preen-
chimento.
3. Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto co-
mo crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou
medida de segurança que lhes corresponde.»

 nas normas de incidência do imposto e nas que definem ga-


rantias dos contribuintes, de acordo com o n.º 2 do art.º 103.º da
Constituição: «Os impostos são criados por lei, que determina a incidên-
cia, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».

2. O livre critério do juiz. Se não for possível aplicar a analogia,


por não existir a necessária identidade jurídica de essência entre o caso
omisso e o caso previsto na norma que se quer aplicar, o juiz deve, en-
tão, conforme preceitua o n.º 3 do art.º 10.º do Código Civil, resolver a
questão como se fosse legislador, devendo ter em conta, nessa integra-
ção da lei, os princípios fundamentais de Direito Natural.

O art.º 4.º do Código Civil prevê especificamente as hipóteses em


que os tribunais podem resolver segundo a equidade:
«a) Quando haja disposição legal que o permita;
b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja in-
disponível;
c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso
à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.»

4.7. A aplicação da lei no tempo e no espaço

Quando uma lei deixa de vigorar, mormente quando é revogada por


outra, pode levantar-se o seguinte problema: que lei deve regular
aquelas relações jurídicas que, nascidas à sombra de uma lei antiga,
ainda se mantêm de pé e exigem uma regulamentação legal? Deve-
rá aplicar-se a lei nova, como se afigura lógico (dado que a lei antiga,
por ter sido revogada, já não é lei), ou deverá aplicar-se a antiga como
parece mais justo, por ser aquela que serviu de base à relação jurí-
dica?
É este o problema a que se dá o nome de aplicação das leis no
tempo ou também de conflito de leis no tempo. E como a questão
fundamental é a de saber se a lei nova se aplica ou não às situações
criadas à sombra de lei antiga, também se costuma chamar-lhe o pro-
blema da retroactividade das leis.
De facto, se a lei nova vier regulamentar os factos passados antes
dela, essa lei retroage, isto é, age sobre o passado. É evidente que
não se pode admitir como princípio geral a retroactividade das leis, pois
isso criaria o caos, a insegurança total e a mais completa das injustiças.
Ora, o que tem acontecido é que, desde há séculos, o Direito
tem adoptado o princípio da não retroactividade das leis, mas há
excepções.

Comecemos por analisar as seguintes duas situações práticas:

1.ª Situação:
Suponhamos que o senhor A comete, em 1 de Setembro de 2002,
um delito grave, punível, na altura, com prisão até 6 meses. Antes do
julgamento, em Julho de 2003, a lei é modificada, deixando o facto de
ser considerado criminoso. Em Fevereiro de 2004, também por hipóte-
se, surgiu uma nova lei considerando de novo o acto punível, mas agora
com multa até 750 Euros. A pergunta que se coloca é esta: qual das
três leis deverá efectivamente aplicar-se ao senhor A?

2.ª Situação:
O senhor B, que é casado, morre sem testamento. Suponhamos
que, nos termos da lei em vigor, a herança cabe não à mulher ou filhos,
mas sim aos irmãos do falecido. No próprio dia em que a herança iria
passar legalmente para as suas mãos, surge uma nova lei que manda
atribuir a herança ao cônjuge sobrevivo. Pergunta: a quem caberá, efec-
tivamente, a herança do senhor B?

Poderíamos multiplicar os exemplos, mas estas duas situações vêm


comprovar a grande complexidade de problemas quando duas ou mais
leis vêm regular, de modo diverso, a mesma situação jurídica.

Para sabermos como resolver estas duas situações, analisemos


o que é que a lei diz em termos de Direito Processual, Direito Penal
e Direito Civil:

1. Em matéria de Direito Processual, vigora a regra de que a nova


lei deve ser aplicada imediatamente, isto é, os processos judiciais que se
encontram em curso devem adaptar-se imediatamente aos trâmites es-
tabelecidos pela nova lei.

2. Em matéria de Direito Penal, vigora o princípio da não retroacti-


vidade da lei, mas com excepções (conforme os n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 2.º
do Código Penal), e também o princípio da aplicação da lei mais favorável
(n.º 4 do mesmo artigo).
Artigo 2.º
Aplicação no tempo
1. As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei
vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pres-
supostos de que dependem.
2. O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática
deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções;
neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em jul-
gado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
3. Quando a lei valer para um determinado período de tempo, con-
tinua a ser punível o facto praticado durante esse período.
4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática
do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores,
é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorá-
vel ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transi-
tada em julgado.

Assim, na 1.ª situação que demos, o senhor A, tendo em conta o


estipulado no n.º 4 do art.º 2.º do Código Penal, não seria punido porque
uma lei intermédia o considerou não criminoso.

3. Em matéria de Direito Civil, a lei civil não tem efeito retroactivo,


isto é, a lei só dispõe, em princípio, para o futuro (art.º 12.º n.º 1 do Có-
digo Civil). Exceptua-se, no entanto, a chamada lei interpretativa, salvo
se já foi cumprida a obrigação ou proferida a respectiva sentença, de
acordo com o art.º 13.º do Código Civil.

O que é uma lei interpretativa?


Uma lei interpretativa é aquela que vem esclarecer ou interpretar
uma lei inicial. Esclareçamos melhor através do seguinte exemplo: supo-
nhamos que a Assembleia da República faz uma lei relativamente a su-
cessões por morte, mas que ela oferece dúvidas na sua aplicação  en-
quanto uns lhe dão o sentido, por exemplo, de que ela se aplica a todas
as hipóteses de sucessão por morte, outros acham que ela se restringe,
apenas, à sucessão em virtude do testamento. Perante esta situação de
divergência e de insegurança, a Assembleia da República resolve fazer
uma outra lei que venha esclarecer a lei anterior, declarando qual das
interpretações é a verdadeira. A Assembleia da República criou, assim,
uma lei interpretativa.

Assim, relativamente à 2.ª situação, e por se tratar de uma situa-


ção que é regulada pelo Direito Civil, a herança do senhor B cabe, de
acordo com a lei da altura, aos irmãos do falecido, isto porque a nova lei
não é retroactiva (art.º 12.º n.º 1 do Código Civil).

4. Em matéria de Direito Fiscal (conjunto de normas que dizem


respeito às receitas públicas, especialmente as provenientes de tributos,
contribuições e impostos, cobradas impositivamente pelo Estado aos ci-
dadãos), vigora o princípio da não retroactividade do lançamento de tribu-
tos.

Existem dois aspectos importantes do problema da aplicação das


leis no espaço. O primeiro pode acontecer quando uma qualquer situa-
ção é regulada por mais do que uma lei, fazendo assim surgir um con-
flito de leis no espaço. O segundo aspecto, que é o mais importante,
põe-se no plano internacional, quando uma dada relação jurídica está,
por algum ou alguns dos seus elementos, em contacto com leis aplicá-
veis de diversos Estados. Estes últimos conflitos fizeram surgir um cor-
po autónomo de normas jurídicas, denominado Direito Internacional
Privado e que tem por objecto, precisamente, a resolução destes confli-
tos, a determinação de qual a lei que deve ser aplicada. A designação de
Direito Internacional Privado é infeliz já que, em rigor, nem são interna-
cionais nem são privadas: não são internacionais porque não vêm regu-
lar relações entre Estados; não são privadas porque essas normas resol-
vem apenas as dúvidas que se levantam sobre se se deve aplicar tal ou
tal lei, e não se destina a regular directamente as relações jurídicas.
Assim, as principais normas de conflitos no campo do denominado
Direito Internacional Privado, são os arts. 16.º, 25.º e 65.º do Código
Civil e o art.º 8.º da Constituição, para além das Convenções inter-
nacionais concretas, denominadas, por vezes, de Leis uniformes.

5. O costume

O costume resulta fundamentalmente de duas tendências naturais


do homem: a tendência para o hábito e a tendência para a imitação.
Um certo indivíduo, colocado perante determinados problemas, ac-
tua de uma dada forma. Se ao mesmo indivíduo se apresentarem situa-
ções semelhantes, é possível e natural que ele actue da mesma forma; e
se as situações se repetirem, é provável que crie um hábito de assim
proceder. Se um indivíduo se encontra perante determinado problema
igual ao do vizinho e vê este actuar de certa forma, é provável que, pela
sua tendência de imitação, ele actue de harmonia com a atitude que ob-
serva no vizinho. É muito mais fácil imitar os outros do que pensar e re-
solver por si.
Chega-se assim à criação de usos generalizados, de acções ou
condutas colectivas. Estes usos generalizados passam muitas vezes de
geração em geração. E se pensarmos nas sociedades primitivas, em que
a tradição tinha um poder extraordinário, em que, por vezes, até se divi-
nizavam os antepassados, compreende-se facilmente a força vinculativa
com que aqueles usos generalizados e recebidos dos ascendentes sur-
giam às consciências dos indivíduos.
Assim nasceu o costume.
E de tal maneira importante se apresentava o costume como fonte
de direito nessas épocas longínquas, que não é de excluir a hipótese
de as primeiras normas de conduta ditadas pela autoridade política
não serem mais do que a expressão, sob a forma de lei, de normas
consuetudinárias. Aliás, a actividade legislativa corresponde já a uma
fase relativamente adiantada do desenvolvimento político-jurídico das
sociedades humanas.

Os elementos do costume são dois: a prática repetida, habitual


e generalizada de certo comportamento (o «corpus», elemento mate-
rial ou externo) e a convicção da sua obrigatoriedade (o «animus», ele-
mento espiritual ou psicológico).
Portanto, para haver costume, não basta que se verifique uma
prática constante e uniforme, uma prática repetida e generalizada
dos mesmos actos (elemento material ou externo); é também necessá-
rio que essa prática seja determinada pela convicção da sua obriga-
toriedade (elemento espiritual ou psicológico).
Há certas práticas habituais, herdadas dos nossos antepassados,
mas não acompanhadas da consciência de que sejam obrigatórias. É o
caso das normas de cortesia, que são cumpridas com a convicção da
sua utilidade, da sua conveniência para se estabelecer na sociedade um
convívio agradável, mas não com a convicção da sua obrigatoriedade ju-
rídica.

Em resumo: o costume é fonte de direito na medida em que


uma prática uniforme, constante e geral, acompanhada da convic-
ção da sua obrigatoriedade, gera uma norma reconhecida e protegi-
da pelos tribunais.

No entanto, praticamente, é através da lei que o Estado regula-


menta o costume. Na verdade, o costume só cria direito no silêncio
do Estado: não se opondo a ele, o Estado exprime a sua vontade e,
na sua abstenção, dá-lhe força de Direito. Mas se o Estado se quiser
opor, ou, mesmo se opondo, se o quiser limitar ou regular, fá-lo através
da lei.
Daqui resulta que, embora teoricamente tenham a mesma dignida-
de, no campo prático o costume está subordinado à lei, só se aplica
na medida em que a lei o permita ou para ele recorra. Há, na lei, co-
mo que um espaço em branco em que o costume pode actuar, mas os li-
mites desse espaço são determinados pela lei.

O nosso Código Civil refere-se, da seguinte maneira, ao valor jurídi-


co dos usos e ao Direito consuetudinário, local ou estrangeiro:

Artigo 3.º
Valor jurídico dos usos
1. Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são
juridicamente atendíveis quando a lei o determine.
2. As normas corporativas prevalecem sobre os usos.
Artigo 348.º
Direito consuetudinário, local ou estrangeiro
1. Àquele que invocar direito consuetudinário, local ou estrangeiro,
compete fazer a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal de-
ve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento.
2. O conhecimento oficioso incumbe também ao tribunal, sempre
que este tenha de decidir com base no direito consuetudinário, local ou
estrangeiro, e nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrá-
ria tenha reconhecido a sua existência e conteúdo ou não haja deduzido
oposição.
3. Na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito aplicá-
vel, o tribunal recorrerá às regras do direito comum português.

Como se verifica, o nosso Direito actual afasta o costume como


fonte imediata do Direito. Mas já o mesmo não acontece em Inglater-
ra, onde o costume tem um peso elevado.
É princípio assente entre nós aquele segundo o qual o juiz conhece,
por dever de ofício, as leis vigentes. Portanto, nem pode exigir prova das
leis aplicáveis, nem está adstrito à lei que as partes invocam. A matéria
de facto é que terá de ser objecto de prova pelas partes.
Mas seria absurdo exigir ao juiz que conhecesse as normas con-
suetudinárias. Já não é pouco exigir-lhe o conhecimento das leis que
estão contidas em textos oficiais.
Assim se compreende que o art.º 348.º do Código Civil determi-
ne que o juiz, além de poder exigir à parte prova dos usos e costu-
mes invocados, ele próprio deva também averiguar da existência e
conteúdo desses mesmos usos e costumes.

6. A jurisprudência

Chama-se JURISPRUDÊNCIA à actividade dos tribunais nas de-


cisões das causas que lhes são submetidas. Essa actividade, concre-
tizada numa pluralidade de decisões, não é fonte imediata de direito
na medida em que a decisão do juiz, que tem de julgar unicamente de
harmonia com a lei e a sua consciência, não é geral, mas sim individual;
quer dizer, embora a decisão do juiz possa ser contrária à decisão toma-
da por outro tribunal, ainda que de categoria mais elevada, ela não se
refere a um conjunto indeterminado de hipóteses, mas apenas àquela
trazida pelas partes ao juiz.

Existem três categorias de tribunais judiciais: de 1.ª instância,


de 2.ª instância ou da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça
(com sede em Lisboa). Por sua vez, existem duas categorias de deci-
sões:

 Sentenças  quando proferidas por um tribunal singular, consti-


tuído por um só juiz em tribunal de 1.ª instância.
 Acórdãos  quando proferidos por um tribunal colectivo, consti-
tuído por mais do que um juiz. Dizem, pois, respeito às decisões toma-
das quer pelo Tribunal de 1.ª instância, quando constituído por mais do
que um juiz, quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal
de Justiça.

7. A doutrina

Chama-se DOUTRINA às opiniões sustentadas pelos técnicos de


direito, ou seja, à actividade intelectual dos juristas teóricos ou prá-
ticos, com vista a determinar o sentido das normas jurídicas, a descobrir
as relações de conexão existentes entre elas, a enunciar os princípios que
as dominam e que presidem a essas conexões e a alcançar o sistema ge-
ral que dá unidade a todas as normas.
Tratando-se de uma actividade importante e delicada, exige daque-
les que a exercem uma formação especial e qualidades de bom senso, de
equilíbrio e de espírito de justiça, de entre outras.
No nosso direito antigo, a doutrina constituía verdadeira fonte ime-
diata de Direito, dado que as respostas dos jurisconsultos constituíam
normas que os tribunais deviam aplicar; bastava que os jurisconsultos
de maior nomeada se pronunciassem comummente para que a sua opi-
nião assumisse força vinculativa.
Hoje, a doutrina não constitui fonte imediata de direito. De fac-
to, o juiz é livre na interpretação da lei, não estando de modo al-
gum submetido à opinião sustentada pelos técnicos de direito, pe-
los doutrinadores; apenas se deve guiar pelo seu bom senso, pelos
seus conhecimentos, pela sua sensibilidade, não se encontrando vincu-
lado às posições tomadas pelos jurisconsultos.

8. Os tratados internacionais

Não existe hoje uma distinção precisa, tanto na linguagem corrente


como na linguagem diplomática, entre tratados, convenções e acor-
dos. Assim, sempre que dois ou mais Estados aceitam fazer um
acordo ou negócio jurídico idênticos aos do âmbito do Direito pri-
vado, diz-se que esses Estados assinaram um tratado internacional.

Mas dentro do Direito Internacional Público pode falar-se dos


seguintes dois tipos diferentes de tratados internacionais:

1. Quando dois Estados fazem um acordo concertando, entre si, inte-


resses comuns ou divergentes, como, por exemplo, um tratado de comér-
cio ou um tratado de rectificação de fronteiras, pode falar-se de um trata-
do-contrato. Como se verifica, estes tratados destinam-se, exclusiva-
mente, à regulamentação de interesses dos Estados contratantes, pelo
que são apenas relevantes para eles.
2. Quando dois ou mais Estados, para além de fazerem um acordo
de conjugação de interesses, enunciam uma norma geral ou um princípio
geral de Direito Internacional Público que se aplica a todos os Estados da
comunidade internacional, está-se em presença de um tratado-lei. Um
exemplo histórico de tratado-lei é o Tratado de Viena de 1815, através
do qual os Estados congressistas não se limitaram a remodelar a carta
política do continente, sob o princípio da legitimidade proposto por
Talleyrand, mas enunciaram princípios gerais para serem respeitados
por todos os Estados da comunidade internacional, tais como a proibi-
ção do tráfico de escravos, normas de guerra marítima e a posição dos
Estados neutros. Como se verifica e contrariamente aos tratados-con-
tratos, os tratados-leis são aplicáveis a todos os Estados, não sendo
obrigatórios apenas para os signatários. Todos os outros Estados podem
aderir e muitas vezes várias das suas normas impõem-se a toda a co-
munidade internacional. Acontece, muitas vezes, serem os tratados-leis
discutidos e votados em congressos de paz ou em reuniões internacio-
nais.

O Estado Português, depois de se ter inserido em amplas organiza-


ções internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), a União da Europa
Ocidental (UEO) e a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), que
abandonou para aderir à CEE, aderiu, em 1 de Janeiro de 1986, à Co-
munidade Económica Europeia (CEE) através de um tratado denomina-
do tratado de adesão.
Portanto, para além de fazer parte da comunidade internacional,
Portugal encontra-se hoje inserido na União Europeia, a qual alberga,
actualmente, 25 Estados-membros.
Desde 1976 que Portugal decidiu receber na sua ordem jurídica in-
terna o Direito Internacional, impondo que os preceitos de direito inter-
nacional geral ou comum devem fazer parte integrante do direito interno
português. E essa imposição está expressa no seguinte artigo da Consti-
tuição:

Artigo 8.º
Direito internacional
1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou co-
mum fazem parte integrante do direito português.
2. As normas constantes de convenções internacionais regularmen-
te ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publi-
cação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado portu-
guês.
3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações
internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na or-
dem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tra-
tados constitutivos.
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as
normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas
competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos
pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do
Estado de direito democrático.

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