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Conceitos, formação

e desenvolvimento
da personalidade
Maria Beatriz Rodrigues

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar as diferentes abordagens do conceito de personalidade.


> Caracterizar a formação e o desenvolvimento da personalidade.
> Descrever as estruturas da personalidade.

Introdução
O conceito de personalidade é importante para todas as abordagens teóricas da
psicologia. Mesmo que seja definido e estruturado de diferentes formas, é central
para o entendimento dos sujeitos e para as propostas de intervenção psicológica. A
personalidade é, de forma geral, o jeito de ser de cada um, estruturado a partir de
vivências e características individuais, que sofrem influências sociais e culturais.
Algumas teorias consideram que a personalidade é construída pela aprendi-
zagem, tanto por resposta a estímulos quanto pela criação de repertórios a partir
da percepção e da memória. Outras consideram que certos conjuntos de traços
distinguem ou identificam os indivíduos. Há teorias que sugerem que as vivências
infantis são preponderantes, associadas à bagagem genética, para a formação
de uma estrutura de personalidade estável, não necessariamente saudável. As
diferenças entre as abordagens, portanto, são significativas.
Neste capítulo, você vai estudar as principais abordagens da psicologia que
propõem teorias para a personalidade, associando-as com as questões epistemo-
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lógicas da psicologia como ciência e conhecendo o que é considerado estrutura


de personalidade.

Diferentes abordagens para a


personalidade
A personalidade é um tema essencial na psicologia, motivo de inúmeras
indagações e diferentes concepções teóricas. A primeira teoria moderna
sobre a personalidade foi desenvolvida por Sigmund Freud (1856–1939) com
a observação de seus pacientes na atividade clínica. A partir dessa elabo-
ração, várias teorias concorrentes foram surgindo no intuito de explicar a
diversidade humana e por que as pessoas são como são. A tendência, hoje,
é propor teorias com base em evidências científicas, mais do que clínicas,
mas a de Freud continua válida, sendo continuamente revista e atualizada
(FEIST; FEIST; ROBERTS, 2015).
Todas as espécies de animais têm variações individuais de aparência e
comportamento, mas a espécie humana tem a maior variedade física e psi-
cológica, entre todas. Somos altos e baixos, quietos e extrovertidos, calmos
e agitados, loiros, morenos, ruivos, brancos, negros, entre outras tantas
possibilidades. Não é por acaso que a personalidade tem fascinado os autores
da psicologia. É um desafio para as teorias conseguir abarcar esse universo
de diferenças. Em uma coisa, porém, elas concordam: “personalidade” vem
do latim persona, que era uma máscara usada no teatro romano para dife-
renciar os papéis dos personagens. No entanto, quando as teorias falam em
personalidade, referem-se a muitas outras características das pessoas, além
dos papéis (FEIST; FEIST; ROBERTS, 2015).
Segundo Schultz e Schultz (2021), são três as definições básicas de per-
sonalidade nas teorias:

1. o estado de ser uma pessoa;


2. as características e qualidades que formam o caráter distinto de uma
pessoa;
3. a soma de todas as características físicas, mentais, emocionais e
sociais de uma pessoa.

Os autores também mencionam as grandes diferenças entre as teorias e


as características próprias do período em que foram elaboradas e publicadas.
Entre elas, está o fato de serem generalistas. Partindo da realidade europeia
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 15

e norte-americana, os autores do século XX não levavam em consideração as


diferenças culturais, sociais e étnicas, além de atributos como idade, orien-
tação sexual, crenças religiosas, deficiências, entre outros, na formulação
de suas teorias (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). É importante também pensar nas
transformações sociais que ocorreram desde então, que mudaram a realidade
de crianças e pais até os dias atuais. Os pais ficam mais tempo longe de casa,
e as crianças começam cedo a socialização secundária, ou seja, vão para a
creche ou escolinha pouco tempo após o nascimento. Outras influências na
personalidade do mundo atual são significativas, como o uso da tecnologia
e os relacionamentos pelas redes sociais. Esses são parâmetros de vida que
diferenciam os sujeitos observados para a elaboração de grande parte das
teorias da personalidade. Para garantir as suas readequações, os autores
continuam trabalhando e atualizando as teorias.
Todos temos personalidade, que, desde muito cedo, define as nossas
experiências e continuará definindo até o fim de nossas vidas. A personalidade
pode coibir ou propiciar experiências e escolhas, pode favorecer ou limitar a
absorção de oportunidades, impedir ou agir ativamente para fazê-las acon-
tecer. O fato de ser quem somos, ter a saúde que temos, fazer escolhas que
fazemos é fruto de nossa personalidade. Popularmente, julgamos pessoas
por não terem personalidade, acusando-as de serem influenciáveis, ou por
terem personalidade forte ou fraca, querendo dizer que são impositivas ou
flexíveis. Na realidade, a personalidade distingue e caracteriza os sujeitos,
mas não pode ser julgada como forte ou fraca, boa ou ruim, etc. Costuma-se
dizer que personalidade é como uma impressão digital: todos temos, e cada
uma é única.
Segundo Feldman (2015), independentemente da área da psicologia que a
pessoa escolhe trabalhar, ela transitará entre uma das cinco grandes pers-
pectivas atuais: neurociência, cognitiva, comportamental, humanística e
psicodinâmica. Apesar das significativas diferenças entre as abordagens, o
autor afirma que existem questões epistemológicas essenciais na psicolo-
gia que precisam ser discutidas e respondidas por cada uma das vertentes
(Quadro 1). Mesmo que tenham diferentes argumentos e concepções sobre o
desenvolvimento da personalidade, as vertentes teóricas precisam abordar
e oferecer respostas às questões-chave, que unificam a psicologia de forma
epistemológica. As questões não são excludentes nem binárias, mas seguem
um continuum em que as teorias se posicionam.
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Quadro 1. Questões epistemológicas importantes nas perspectivas da psicologia

Questão Neurociência Cognitiva Comportamental Humanística Psicodinâmica

Hereditariedade Hereditariedade Ambos Ambiente Ambiente Hereditariedade


versus ambiente

Consciente versus Inconsciente Ambos Consciente Consciente Inconsciente


inconsciente

Comportamento Processos mentais Processos mentais Comportamento Processos mentais Processos mentais
versus processos observável
mentais

Livre arbítrio versus Determinismo Livre-arbítrio Determinismo Livre-arbítrio Determinismo


determinismo

Diferenças Princípios Diferenças Ambos Diferenças Princípios


Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

individuais universais individuais individuais universais


versus princípios
universais

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Fonte: Adaptado de Feldman (2015).
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 17

É importante frisar que a classificação das perspectivas, ou aborda-


gens, da psicologia apresentadas no Quadro 1 não é consenso entre
os estudiosos. Alguns ainda consideram o clássico tripé, próprio da psicologia
de meados do século XX: psicanálise, behaviorismo e gestalt (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2009). No entanto, a classificação proposta por Feldman (2015) tenta
novas abordagens que foram sendo desenvolvidas e moldando o panorama
teórico e de pesquisas que temos hoje, principalmente a partir das décadas
de 1960 e 1970, como a psicologia cognitiva e a neurociência (EYSENCK; KEANE,
2017; SCHULTZ; SCHULTZ, 2014).

As teorias diferem em relação à prevalência das influências do ambiente


e da hereditariedade na formação e no desenvolvimento da personalidade. A
hereditariedade é o conjunto de características herdadas geneticamente, e o
ambiente refere-se à criação, ao meio social e familiar. Porém, atualmente, a
tendência é aceitar que a personalidade e os comportamentos não recebem
uma única influência. A resposta a essa questão, portanto, está em algum
ponto entre os dois fatores, embora as escolas continuem diferindo quanto
à prevalência de um sobre o outro (FELDMAN, 2015).
A consciência ou inconsciência do comportamento é outra questão dis-
cutida pelos psicólogos de diferentes abordagens teóricas. Os psicólogos
psicodinâmicos acreditam que a personalidade é principalmente desen-
volvida em torno a fatores inconscientes, vividos precocemente na vida. Os
psicólogos cognitivistas sugerem que a personalidade tenha relação estreita
com o funcionamento mental e com a aprendizagem. Nesse ponto, entra em
jogo outra questão essencial: processos mentais versus comportamento.
O comportamento é observável, e os processos mentais são invisíveis. A
perspectiva comportamental defende o estudo do primeiro, e a cognitiva, por
exemplo, do segundo. De acordo com a abordagem cognitiva, para conhecer
o comportamento, é preciso saber o que e como a pessoa pensa.
As abordagens que defendem o livre-arbítrio defendem a liberdade e
a capacidade de decidir por si mesmo. Já para as teorias deterministas, as
decisões são produzidas por fatores alheios ao controle das pessoas. As
abordagens diferem desde posições extremas até mais moderadas. Estas
últimas reconhecem a possibilidade de que alguns comportamentos sejam
determinados pelo passado, enquanto outros podem ser espontâneos e
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controláveis (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). As diferentes posições têm reflexos


diretos no entendimento do funcionamento psíquico, dos transtornos e das
formas de intervenção. Por exemplo, alguns psicólogos consideram que uma
pessoa psicologicamente frágil ou doente em determinado momento pode
se responsabilizar por suas ações, e outros acreditam que ela precisa ser
tutelada.
A suposta oposição entre diferenças individuais e princípios universais
é outra questão epistemológica essencial, ou seja, o quanto o comporta-
mento é ditado por características pessoais e o quanto reflete a cultura e a
sociedade em que vivemos. A primeira opção seria individual, e a segunda,
universal entre humanos. Os neurocientistas, por exemplo, tendem a defender
a universalidade, pois os comportamentos dependeriam do funcionamento
cerebral. Seus estudos, portanto, buscam estabelecer padrões. Os psicólogos
humanistas, por outro lado, acreditam na expressão autêntica e genuína de
cada indivíduo (FELDMAN, 2015).
A psicologia como ciência produziu em sua história teorias para o en-
tendimento das funções mentais, dos comportamentos e da vida psíquica
utilizando concepções e métodos inspirados em diferentes visões sobre a
natureza humana. Porém todas elas propõem o estudo da personalidade como
o elemento central para o conhecimento do sujeito. O Quadro 2 apresenta a
posição de cada abordagem que desenvolveu teorias da personalidade em
relação às questões-chave da ciência psicológica.
Quadro 2. Múltiplas perspectivas da personalidade

Determinantes Natureza (fatores


Abordagem teórica e da personalidade hereditários) versus Livre arbítrio versus Estabilidade versus
principais autores conscientes versus criação (fatores determinismo modificabilidade
inconscientes ambientais)

Psicodinâmica Dá ênfase ao Enfatiza a estrutura Enfatiza o determinismo, Enfatiza a estabilidade


Sigmund Freud, Carl inconsciente. inata, herdada da a visão de que o das características
Jung, Karen Horney e personalidade, comportamento é durante a vida.
Alfred Adler valorizando a direcionado e causado
(1860 – atualidade) importância da por fatores externos ao
experiência infantil. próprio controle.

Traços Desconsidera o As abordagens variam. Enfatiza o determinismo, Enfatiza a estabilidade


Gordon Allport, consciente e o a visão de que o das características
Raymond Cattell e Hans inconsciente. comportamento é durante a vida.
Eysenck direcionado e causado
(1904 – 1960) por fatores externos ao
próprio controle.

Aprendizagem Desconsidera o Centra-se no ambiente. Enfatiza o determinismo, Enfatiza que a


Frederic Skinner e consciente e o a visão de que o personalidade
Albert Bandura inconsciente. comportamento é permanece flexível e
(1870 – atualidade) direcionado e causado resiliente durante a vida.

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por fatores externos ao
próprio controle.
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

(Continua)
19
(Continuação)
20

Determinantes Natureza (fatores


Abordagem teórica e da personalidade hereditários) versus Livre arbítrio versus Estabilidade versus
principais autores conscientes versus criação (fatores determinismo modificabilidade
inconscientes ambientais)

Biológica e evolucionista Desconsidera o Enfatiza os Enfatiza o determinismo, Enfatiza a estabilidade


Therese Tellegen (1980 consciente e o determinantes a visão de que o das características
– atualidade) inconsciente. inatos, herdados da comportamento é durante a vida.
personalidade. direcionado e causado
por fatores externos ao
próprio controle.

Humanista Enfatiza o consciente Enfatiza a interação Enfatiza a liberdade de Enfatiza que a


Carl Rogers e mais do que o entre a natureza e a os indivíduos fazerem as personalidade
Abraham Maslow inconsciente. criação. próprias escolhas. permanece flexível e
(1960 – atualidade) resiliente durante a vida.

Fonte: Adaptado de Feldman (2015).


Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

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Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 21

As perspectivas, ou abordagens, apresentadas no Quadro 2 são


fundamentais para pensar a psicologia como ciência. As teorias pre-
cisam responder a questões epistemológicas colocadas pela ciência para serem
reconhecidas como sustentáveis do ponto de vista da comunidade acadêmica.
Nem todas as perspectivas existentes propuseram teorias da personalidade,
por isso as diferenças entre os Quadros 1 e 2.

Formação e desenvolvimento da
personalidade
Como vimos, as abordagens e teorias da personalidade têm diferentes po-
sições quanto às questões epistemológicas da psicologia. Essa discussão é
basilar para estabelecer as concepções de personalidade, de como se forma,
se desenvolve e se manifesta. Nesta seção, vamos estudar as principais
teorias da personalidade enfatizando suas semelhanças e diferenças e, acima
de tudo, como se posicionam quanto à formação e ao desenvolvimento da
personalidade.
A abordagem psicanalítica, que dá origem à psicodinâmica, foi a primeira
a propor uma teoria estruturada sobre a personalidade. Ela é conhecida po-
pularmente como o principal trabalho do psicólogo: a clínica psicoterápica. O
psicólogo é colocado nessa posição genericamente e, tantas vezes, de forma
anedótica, trabalhando com o divã, que é o símbolo da psicanálise. Mesmo
estudantes iniciais de psicologia têm dificuldade de entender as diferenças
entre as terapias de abordagem psicodinâmica e a psicanálise. As duas se
diferenciam pelo setting terapêutico, ou seja, como objetivos, intervenções
e contrato entre terapeuta e paciente são estabelecidos.
A psicodinâmica é oriunda do entendimento psicanalítico da personali-
dade. Considera que o comportamento é motivado por forças inconscientes
e conflitos internalizados precocemente e difíceis de serem acessados. A
abordagem clínica da psicanálise foca em formas de trazer à consciência e
resolver alguns conteúdos inconscientes da psique que causam desconfortos
psíquicos. A abordagem caracteriza-se pelo determinismo na formação da
personalidade, que dependeria de características inatas, vivências precoces de
difícil controle do sujeito e que o marcam fortemente em seu desenvolvimento.
A abordagem psicodinâmica posiciona a personalidade como inconsciente,
com estrutura inata, determinista e estável. Pode parecer incoerente para
uma abordagem que tem uma proposta de intervenção tão reconhecida, mas,
22 Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

apesar do determinismo, a psicanálise acredita na mudança, partindo, porém,


do princípio de que determinados conteúdos psíquicos são difíceis de acessar
e mudar. Isso também explicaria a estabilidade, pois a abordagem defende o
desenvolvimento significativo da personalidade até à adolescência. Outras
teorias chamadas de ciclo da vida questionam essas afirmações.
É importante pensar nas diferenças entre personalidade, temperamento,
caráter e traços. A personalidade, como vimos, é o padrão de comportamento
que define o estilo de vida e os valores de uma pessoa. É a forma de ser, de se
manifestar, e é reconhecida no meio em que a pessoa vive. O temperamento
é a parte inata da personalidade, e o caráter é o temperamento modificado
e inserido no meio. Temperamento e caráter, portanto, são parte desse con-
ceito amplo de personalidade. A personalidade tem também traços, mais ou
menos dominantes, que são padrões de percepção e de relacionamento com
o ambiente, pois podem diferir ou se transformar, dependendo do contexto
em que atuamos. Os traços de personalidade são estudados desde o início
do século XX, originando-se da psicologia norte-americana, baseada na
aplicabilidade dos conhecimentos. A história do funcionalismo é controversa
no início, por ter sido utilizada de forma preconceituosa para dar rótulos
às pessoas, como aparentemente criminosas e pouco inteligentes, além de
instigar a discriminação de raças, etc. Os estudos que geraram essa utiliza-
ção exagerada dos traços nasceram da necessidade de fixar padrões para
a medição por meio de métodos de avaliação da personalidade (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2014). Posteriormente, outros autores, como Allport (1897 – 1967) e
Eysenck (1916 – 1997), propuseram teorias com outros objetivos.
Allport é um psicólogo muito famoso na descrição da estrutura da perso-
nalidade. Ele propõe que os traços seriam elementos que não enxergamos,
mas são manifestados no comportamento. Como um único traço tem várias
maneiras de se manifestar dependendo da pessoa, ele classificou-os em
comuns e individuais. Os traços comuns são ligados a características presentes
em muitas pessoas e são os que servem para os inventários, pois são gerais e
difusos. Os individuais, ao contrário, são únicos e definem profundamente uma
pessoa ao longo da vida. Podemos nos referir a um povo de forma genérica,
como dizer que os italianos são efusivos. Culturalmente, temos razões para
pensar que esse é um traço dos italianos, mas muitos indivíduos italianos
podem não ter essa característica. Portanto, a cultura interfere, mas não
determina os traços (ALLPORT, 1973).
O autor também propõe outra classificação para entender os traços
de personalidade: as disposições, que são conjuntos de traços. Podem ser
pessoais, ou centrais, referem-se às características dominantes, que podem
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 23

ser inúmeras, mas variam em um número de até 10 traços por pessoa. As


disposições cardinais são significativamente características nos indivíduos,
preponderantes em cada pessoa. As secundárias fazem parte da pessoa, mas
de forma menos importante. O autor sugere que as disposições cardinais
são próprias de pessoas que têm propósitos e os buscam persistentemente
até fazerem parte de si. Nem todas as pessoas as têm. A personalidade, na
teoria dos traços de Allport (1973), tem um núcleo, chamado propium, ou self.
Esse núcleo é um componente muito importante da personalidade, único e
autoidentitário, mas não é sinônimo da personalidade.

Às vezes, é difícil classificar um autor em uma única abordagem, e


esse é o caso de Eysenck, cognitivista, enquadrado na abordagem
dos traços pelos estudos e inventários que criou, mas também considerado um
representante das teorias biológicas e evolucionistas da personalidade. Eysenck
será discutido na abordagem biológica e evolutiva a seguir.

A abordagem da aprendizagem pode ser dividida em dois grupos de teorias


com concepções diferentes: as do condicionamento e as cognitivistas. As pri-
meiras definem a aprendizagem como a estrutura da personalidade, como se o
indivíduo nascesse como uma tábula rasa, a ser escrita por suas experiências.
A aprendizagem levaria ao comportamento, que é o único processo importante,
observável e mensurável. O ambiente seria o propulsor da aprendizagem por
meio de estímulos, que geram respostas. As segundas, cognitivistas, também
relacionam o sujeito com o ambiente, mas valorizam a organização cognitiva,
como o funcionamento mental determina a aprendizagem. Isso significa
que a interação com o ambiente vai propiciando experiências e ações que,
armazenadas, servirão para outras aprendizagens por meio da organização
e da integração das informações na estrutura cognitiva (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2009; SCHULTZ; SCHULTZ, 2021).
Como podemos perceber, mesmo focando a aprendizagem, as duas linhas
teóricas divergem em muitos aspectos. Uma das divergências fundamentais
entre elas é a manutenção do comportamento aprendido. Os teóricos do
condicionamento sugerem que a sucessão de comportamentos bem-sucedidos
serviria como reforço à repetição. Para os cognitivistas, a manutenção dos
comportamentos depende das funções mentais, como atenção e memória,
entre outras. Além dessa, existem outras divergências em relação ao pro-
cesso de aquisição da aprendizagem, conteúdos e formas, transferência da
aprendizagem, etc. (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2009; SCHULTZ; SCHULTZ, 2021).
24 Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

A abordagem humanista rejeita a influência de forças biológicas no


comportamento e acredita que as pessoas tendem naturalmente a buscar
autorrealização de seus potenciais. O livre-arbítrio, capacidade de decidir
autonomamente, pode ser impedido ou dificultado pelas condições sociais,
mas todas as pessoas o têm. Maslow (1908 – 1970) é um representante da
teoria holística-dinâmica. Pressupunha que as pessoas estão constantemente
sendo motivadas por alguma necessidade e têm condições de atingir o nível
mais alto das realizações, que seria a autorrealização. Para atingir esse ideal
e crescer em direção à saúde psicológica, seria preciso satisfazer primeiro
as necessidades de níveis inferiores, como fome, segurança, amor e estima.
Essa teoria é representada pela pirâmide de necessidades de Maslow (FEIST;
FEIST; ROBERTS, 2015).
Eysenck descreveu as diferenças de personalidade entre indivíduos com
a teoria do traço biológico. Segundo o autor, o comportamento resulta de
interações entre as tendências pessoais e o ambiente. As tendências são as
dimensões biológicas da personalidade, e o ambiente contribui com estímulos
que as modificam e, portanto, propiciam aprendizagens. A teoria distingue
traço, que significa características pessoais, e tipo, que significa o conjunto
de traços correlacionados. As três dimensões tipológicas básicas são: in-
troversão versus extroversão; neuroticismo versus estabilidade; psicotismo
versus controle dos impulsos. Eysenck também desenvolveu um inventário
de personalidade, ainda hoje muito estudado e utilizado (HALL; LINDZEY;
CAMPBELL, 2000).
Muitos autores são representantes das abordagens discutidas, e os apre-
sentados são significativos na psicologia e representantes de suas abordagens.
Quando falamos em teorias da personalidade, criamos a expectativa de uma
explicação de como se apresenta e de como se processa. A estrutura da per-
sonalidade pode responder em parte essas indagações. Na próxima seção,
vamos estudar a estrutura da personalidade conforme a psicanálise como
exemplo de uma teoria que traz detalhadamente respostas para algumas de
nossas indagações sobre a organização da personalidade no sujeito.

Estruturas da personalidade
Estrutura significa uma disposição. Pode ser mais simples ou mais complexa,
estável e composta por partes. Aplicada à personalidade, podemos pensar,
de forma genérica, como sendo o modo de organização permanente do in-
divíduo. Aqui cabem ao menos duas ressalvas: a permanência é verdadeira,
mas pode sofrer algumas alterações a partir, principalmente, de tratamento
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 25

psicoterápico. As estruturas da personalidade são concebidas de formas


diferentes pelas teorias.
A primeira teoria da personalidade da psicanálise aborda claramente a
estrutura do psiquismo. A estrutura da personalidade para a psicanálise foi
proposta pela primeira vez em 1900 no texto A interpretação dos sonhos, de
Freud, e era baseada nas três instâncias psíquicas a seguir (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2009).

„ Inconsciente: conteúdos não presentes na consciência, derivados de


repressões, não facilmente acessíveis à consciência. O inconsciente é
composto por conteúdos já inconscientes por natureza e outros pro-
duzidos pelas ações de censura dos sujeitos. A censura busca remover
conteúdos indesejáveis, inaceitáveis e geradores de sofrimento. O
inconsciente tem suas regras próprias de funcionamento, como ser
atemporal e desconhecer noções de passado e presente.
„ Pré-consciente: instância que abriga conteúdos ainda acessíveis à
consciência, que podem ser conscientizados com um pequeno esforço
mental.
„ Consciente: instância perpassada por conteúdos conscientes por meio
da percepção e inconscientes, que ficam dinamicamente forçando a
passagem à consciência ou se manifestando por meio de atos falhos,
sonhos, etc.

Posteriormente, Freud modificou a teoria do aparelho psíquico na se-


gunda tópica, entre 1920 – 1923, e introduziu as três instâncias da estrutura
da personalidade, que são expressões usadas até hoje: id, ego e superego
(BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2009).

„ Id: onde a energia psíquica e as pulsões habitam. É regido pelo princípio


do prazer. As características do inconsciente se aplicam para o id.
„ Ego: regido pelo princípio da realidade, que se complementa com o
princípio do prazer para o funcionamento psíquico. Dessa forma, o ego
intermedia as exigências tanto do id quanto as da realidade. É uma
instância conciliatória, que busca satisfação considerando as pulsões
do id e as condições objetivas da realidade. As funções básicas do ego
são percepção, memória, sentimentos e pensamento.
„ Superego: origina-se com o complexo de Édipo, com a internalização das
interdições, proibições e autoridade. Tem como funções a consciência
da moral e a observância às regras sociais e culturais.
26 Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

As três instâncias apresentadas — id, ego e superego — são inter-


dependentes, mas conservam as suas autonomias (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2009).

Além dessas tópicas, em que a primeira, topográfica, foi substituída pela


segunda, dinâmica, podemos considerar que a estrutura da personalidade
implica uma organização estável e definitiva, com as ressalvas feitas ante-
riormente. Observe alguns elementos importantes à essa estrutura:

„ mecanismos de defesa;
„ modos de relacionamento a partir do padrão original de diferenciação
com a mãe ou o cuidador;
„ evolução libidinal a partir do desenvolvimento psicossexual;
„ grau de evolução do ego;
„ intermediação entre o princípio do prazer e o da realidade.

A estruturação da personalidade para a psicanálise acontece a partir da


diferenciação da criança de quem a cuida — mãe, pai ou outro. A princípio, a
criança não sabe ter o próprio corpo e, por isso, recebe cuidados de outras
pessoas. Essa seria a primeira etapa da estruturação da personalidade. Pouco
a pouco, vai percebendo a distinção entre si e o outro. A segunda etapa é
marcada pela percepção do outro, que pode frustrar e satisfazer. A criança vai
desenvolvendo defesas contra as reações aos impulsos internos e estímulos
externos. Essas defesas nascem de um crescente controle e uma interme-
diação entre as pulsões e a realidade e, para isso, os seus relacionamentos
afetivos e sociais são fundamentais. Em um terceiro momento, estabelece-se
a estrutura permanente da personalidade, que não poderá mudar de forma
significativa, mas somente adaptar-se ou desadaptar-se.
Segundo Freud esses elementos são determinantes para a estruturação
da personalidade com disposição neurótica ou psicótica. Mesmo com essas
disposições, se o sujeito não for submetido a problemas excessivamente
traumáticos, grandes frustrações e traumas, ele poderá se manter estável,
sem adoecer. Porém, se ele adoecer, isso ocorrerá pelas disposições precoces
para neurose ou psicose (BERGERET, 1998).
É importante ressaltar o desenvolvimento psicossexual da criança, que,
segundo a psicanálise, passa por estágios centrados em diferentes zonas
erógenas, estimuladas de forma indireta durante os cuidados com a criança,
ou de forma autoerótica: oral, anal, fálica, latência, genital. A fase oral, que
Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade 27

vai do nascimento ao segundo ano de vida, tem a boca e os atos de mamar,


morder e engolir como principais fontes de prazer. A fase anal coincide com
o treinamento para controle dos esfíncteres, e o prazer migra para a região
anal. O estágio fálico, por volta dos quatro anos, a fantasia sexual com o
genitor do sexo oposto, marca o complexo de Édipo. Nesse estágio, a criança
estimula e acaricia os próprios genitais, e isso pode causar alguns problemas
com os adultos. A criança pode estabelecer, também, uma relação competi-
tiva com os pais. A resolução dessa fase vem por meio da identificação e do
apaziguamento com o genitor do mesmo sexo. A partir das resoluções, a fase
de latência acontece em torno dos 5 aos 12 anos. A criança vai para a escola e
começa a focar nos amigos e em outros círculos sociais. A fase genital começa
com a puberdade, e o indivíduo adquire a possibilidade de manter relações
sexuais (FEIST; FEIST; ROBERTS, 2015; HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2000).
A estrutura da personalidade representa, portanto, os elementos funda-
mentais para o estabelecimento psíquico do sujeito, o que definirá a sua forma
de estar no mundo. Para que seja possível, segundo a psicanálise, existem
fatores coadjuvantes no funcionamento ou no adoecimento psíquico: a dis-
posição constitucional, as experiências dos primeiros cinco anos de vida e as
circunstâncias do sujeito ao longo da vida adulta (BERGERET, 1998). Os aspectos
constitutivos (hereditariedade) associados às experiências significativas dos
cinco primeiros anos, em que a criança está se individuando e adquirindo a
sua identidade, são propiciadores de estruturas de personalidade mais ou
menos adaptadas. A vida do sujeito e suas circunstâncias vão colocá-lo à
prova em termos de possibilidade de manter a estrutura da personalidade
em equilíbrio ou não.

Neste capítulo, você estudou questões fundamentais para diferenciar as


teorias da personalidade e compreender como se posicionam frente aos
parâmetros epistemológicos da psicologia como ciência. Conheceu as dife-
rentes abordagens que propuseram teorias para explicar a personalidade,
confirmando as diferenças entre elas, tanto em relação ao foco de estudo
delas quanto em relação à concepção de homem e às influências de outros
fatores na formação e no desenvolvimento da personalidade. Por fim, você
viu o conceito de estrutura e como ele se aplica às teorias da personalidade,
tendo como exemplo a estrutura psíquica proposta pela psicanálise.
28 Conceitos, formação e desenvolvimento da personalidade

Referências
ALLPORT, G. W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. 2. ed. São Paulo: E.P.U., 1973.
BERGERET, J. A personalidade normal e patológica. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo
de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2009.
EYSENCK, M. W.; KEANE, M. T. Manual de psicologia cognitiva. 7. ed. Porto Alegre: Art-
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FEIST, J.; FEIST, G. J.; ROBERTS, T.-A. Teorias da personalidade. 8. ed. Porto Alegre:
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FELDMAN, R. S. Introdução à psicologia. 10. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015.
HALL, C. S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J. B. Teorias da personalidade. 4. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cengage
Learning, 2014.
SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. Teorias da personalidade. São Paulo: Cengage Learning,
2021.

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