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(C)AMÉLIA – MODERAÇÃO DA ORIENTAÇÃO PARA O OUTRO E

PROMOÇÃO DO AUTOCUIDADO

Vanessa Dordron de Pinho

Percepções e narrativas da terapeuta

O envelhecimento populacional tem ocorrido de forma rápida no nosso país e,


segundo Oliveira (2016), ainda se observa um despreparo dos profissionais da saúde no
atendimento às pessoas idosas. Assim, surge a necessidade de investigar abordagens de
tratamento efetivas, com vistas a favorecer um envelhecimento mais saudável. Para Costa
(2019), desenvolver pesquisas sobre o manejo da Terapia Cognitivo-Comportamental
(TCC) em cada faixa etária é de extrema relevância, dado que em cada grupo etário, o
indivíduo e a cognição respondem ao ambiente e se comportam de formas distintas, assim
como enfrentam situações e olhares sociais diferentes.
Em revisão da literatura sobre TCC com pessoas idosas, Costa (2019) percebeu
que apesar de o envelhecimento não ser sinônimo de doença, existem vários fatores
atrelados a essa etapa da vida que podem desencadear comorbidades e psicopatologias,
como o enfrentamento do luto, solidão e aposentadoria. Desse modo, é preciso
compreender melhor o processo terapêutico em pessoas idosas e os efeitos possíveis de
serem alcançados através da psicoterapia com essa população. Os estudos de casos dentro
de uma abordagem com idosas em diferentes momentos da velhice, tornam-se de suma
importância. Visando contribuir para a ampliação do conhecimento sobre o processo e a
resposta à terapia dessa população, o presente capítulo apresentará o caso clínico de uma
cliente idosa de 66 anos, a qual recebeu o nome fictício de Camélia.
Camélia foi atendida de forma remota durante a pandemia. A psicoterapia se deu
ao longo de 30 sessões, sendo que a última foi programada para ocorrer três meses após
a 29ª, esta dois meses após a 28ª, e esta quinze dias após a 27ª consulta. As demais sessões
tiveram frequência semanal. Considero que foi um caso bem-sucedido, com
acompanhamento da cliente até a alta. Isso não significa que a cliente ficou 100% bem.
Mas concordamos que, em certo momento, ela já poderia seguir sozinha e, em caso de
necessidade, eu estaria disponível para que ela retornasse às sessões em algum formato.
Não tenho mais pretensão de buscar a melhora “total” das clientes. Compreendi
que não podemos resolver todos os problemas da vida de alguém. Podemos
instrumentalizá-las para manejarem melhor seus problemas e/ou para conviver melhor
com aqueles que não podem ser modificados. Acredito que a terapia já é um grande
empreendimento se contribuir para promover o autoconhecimento e a identificação de
gatilhos que ativam os “botões” emocionais das clientes, contribuindo para ajudá-las a
parar, analisar e adotar estratégias de enfrentamento mais funcionais diante de situações
nas quais costumavam reagir de forma automática. Além disso, penso que efeitos
terapêuticos continuam acontecendo mesmo depois do encerramento da terapia.
A questão central trazida por Camélia para a terapia foi o sentimento de solidão
que aflorou no período de pandemia, em conjunto com uma experiência de decepção
interpessoal. Ao explorarmos mais a queixa, a cliente revelou um padrão de
funcionamento de orientação para o outro, o qual subjazia suas queixas e, naquele
momento, estava contribuindo bastante para ampliar sua dor.
Para compreender o caso, meus referenciais teórico-práticos foram a terapia
cognitivo-comportamental (TCC) de Beck e a terapia do esquema (TE) de Young. O
modelo cognitivo de Beck propõe que o pensamento disfuncional influencia o humor e o
comportamento da cliente. Quando as pessoas aprendem a avaliar seu pensamento de
forma mais realista, elas experimentam um decréscimo na emoção negativa e no
comportamento mal adaptativo. Para que haja melhora duradoura no humor e no
comportamento, os terapeutas cognitivos trabalham três níveis da cognição: além do
pensamento automático, trabalha-se com as regras e com as crenças nucleares da cliente
sobre si mesmo, os outros e o futuro (Beck, 2022).
O modelo teórico da TE nos auxilia a entender os temas psicológicos
fundamentais típicos de clientes com problemas crônicos de personalidade, que são
chamados de esquemas iniciais desadaptativos, ou simplesmente, esquemas. A TE
ampliou a TCC tradicional ao dar ênfase muito maior à investigação das origens infantis
e adolescentes dos problemas psicológicos (Young et al., 2008). Esse modelo foi de
grande importância para a compreensão do desenvolvimento da personalidade da cliente,
na qual eram marcantes seus esquemas de Subjugação e Autossacrifício do domínio de
Orientação para o Outro.
Os esquemas são padrões emocionais e cognitivos autoderrotistas iniciados desde
cedo no desenvolvimento e repetidos ao longo da vida. Pessoas com Autossacrifício e
Subjugação priorizam as necessidades dos outros para obterem aprovação e conexão
emocional e para se esquivarem de conflitos interpessoais (Young et al., 2008). Também
é comum a escolha por atuar em profissões de cuidado aos outros, o que alimenta,
fortalece e mantém ainda mais esse padrão (Schutz, 2023). A orientação para o outro, em
detrimento do próprio self, contribui para o ressentimento, o qual emerge quando o
indivíduo se dá conta que se doa muito às pessoas e a recíproca não é verdadeira.
Schutz (2023) discute que, apesar de frequentemente clientes com Autossacrifício
relatarem culpa ao fazerem as coisas para si e felicidade ao fazerem pelos outros, esse
discurso geralmente é acompanhado por ressentimentos e percepções de que os outros
são ingratos, ao não devolverem os cuidados que recebem. É um padrão que gera
sentimentos de injustiça e esgotamento nas relações, fazendo com que se voltar
excessivamente para os outros gere mais problemas que vantagens.
Camélia não conseguia evitar o foco excessivo nos outros e nas necessidades
deles, muitas vezes tratando com pouca importância as suas próprias necessidades e
desejos. Esse é um padrão que se estabelece quando a família de origem não atende ou
legitima as necessidades da criança. Em vez disso, os cuidadores condicionam a aceitação
a algum desempenho e são muito voltados ao atendimento excessivo de suas próprias
necessidades (Schutz, 2023).
Quando as necessidades emocionais de uma criança são negligenciadas, ela
desenvolve um padrão de funcionamento que permite lidar com suas condições adversas.
Na vida adulta, é comum que esses padrões se tornem disfuncionais em certo grau, pois
já não servem ao propósito de quando se originaram. Em sua infância, Camélia aprendeu
que as necessidades de sua irmã eram mais importantes do que as suas e desenvolveu um
hiper foco no atendimento dos desejos e caprichos da irmã, enquanto os pais
negligenciavam as necessidades de Camélia.
Conjecturou-se que a solidão, questão presente na etapa da velhice e que
aumentou durante a pandemia, trouxe maior sofrimento à Camélia em função do padrão
de funcionamento de sua personalidade. Assim, a terapia buscou acolher e manejar a
solidão e o ressentimento interpessoal da cliente, sempre considerando a necessidade de
trabalhar também seu estilo de se orientar em excesso para o outro, que a mantinha
ressentida e afastada socialmente.

Desenvolvimento do caso

Identificação da cliente
Camélia tinha 66 anos de idade, era branca, cisgênero, heterossexual, viúva há 30
anos e com um filho de 40 anos de idade. A cliente fez atendimento particular remoto.
Para manter seu anonimato, a cliente recebeu o nome de Camélia, em alusão ao nome
Amélia, que ganhou no passado o sentido de pessoa abnegada e cuidadora. A cliente
buscou terapia por conta própria, no período da pandemia. Os pais da cliente eram
falecidos. Camélia possuía uma irmã caçula com quem o vínculo não era saudável.
Camélia “mimava” demais a irmã, que era abusiva interpessoalmente.
Nesse cenário, Camélia era a pessoa mais forte, mais compreensiva, que entendia
e perdoava. O estilo de relacionamento entre a cliente e sua irmã era o mesmo desde a
infância e foi cultivado pelos pais. A irmã arranjava confusões e colocava a culpa em
Camélia, os pais não se importavam em saber quem estava certa ou errada e brigavam
com as duas da mesma forma. Cristal, nome fictício dado à sua irmã, era mais demandante
emocionalmente e os pais atendiam às suas vontades. Camélia era vista como a mais forte
e autônoma. Diante das chantagens emocionais que Cristal fazia, Camélia também
acabava atendendo aos seus caprichos, inclusive mais tarde, quando a cliente começou a
trabalhar.
Quando os pais ficaram idosos e adoeceram, foi Camélia quem cuidou de ambos.
Segundo seu relato, Cristal nunca podia colaborar, sempre tinha outros problemas com
que se preocupar e ainda trazia esses problemas para a família, sobrecarregando os
familiares ainda mais. Já Camélia se privou de várias coisas para se dedicar ao cuidado
da família. Depois de viúva, dedicou-se totalmente ao cuidado do filho, que tinha somente
10 anos na época que perdeu o pai. Camélia também contribuiu bastante para a formação
educacional e profissional dos sobrinhos e, mesmo assim, sua irmã, por ciúmes, tentava
mantê-los afastados o máximo que podia.
Camélia tinha formação profissional superior na área da saúde e só se aposentou
porque os pais adoeceram, poucos anos antes do início dos atendimentos. Sempre teve
muitas amizades e bons relacionamentos com as colegas do trabalho. Antes da pandemia,
tinha uma vida social ativa: as amigas se encontravam com frequência e participavam de
um grupo de turismo com o qual viajavam bastante. Com a pandemia, Camélia ficou
isolada em casa. O filho estava noivo, se organizando para o casamento e já ficava mais
tempo na casa da noiva do que com a mãe. Foi nesse contexto que Camélia buscou a
terapia.

Queixas e demandas da cliente


Camélia iniciou a terapia com as queixas de solidão, que atribuiu à pandemia, e
de dificuldade de expressar incômodo ou insatisfação diante de comportamentos de outra
pessoa que lhe chateavam ou magoavam, referindo-se especialmente a um evento
interpessoal recente no qual percebeu que levara uma “rasteira”. Explicou que mesmo
quando era lesada em uma relação, comportava-se como se estivesse tudo bem.
Identificamos como queixas que Camélia apresentava comportamentos passivos
diante de situações interpessoais nas quais era lesada, não conseguia ser assertiva e
manifestar suas preferências e desejos em ocasiões sociais, tendia a antecipar as
necessidades de outras pessoas e ajudá-las mesmo quando isso lhe gerava algum
desconforto ou prejuízo, mantinha relacionamentos desagradáveis por acreditar que
deveria preservá-los, temia envelhecer sozinha, e procurava agradar as pessoas para
manterem-nas próximas. Em suma, a cliente tinha um padrão de orientação para as
necessidades dos outros, enquanto procurava ser forte, não incomodar e não depender de
ninguém, como estratégias de enfrentamento.

Conceituação comportamental e/ou cognitiva do caso

Dados relevantes da infância – filha mais velha, temperamento passivo. Irmã


mais nova com temperamento mais irritável e demandante. Pais sempre fizeram as
vontades da irmã com muita frequência. Cliente acatava os pais com muita frequência.
Irmã fazia coisas erradas, ambas levavam a culpa e Camélia não se defendia. Aprendeu
com os pais que não deveria se colocar em primeiro lugar. Passou por negligência e
privação emocional nesta família que só considerava as necessidades e caprichos de sua
irmã caçula.
Crenças centrais – ‘‘não mereço ser prioridade, não sou importante para as
pessoas’’ (visão do eu); ‘‘as pessoas não se importam com minhas necessidades’’ (visão
dos outros); ‘‘vou acabar sozinha’’ (visão do futuro).
Crenças intermediárias – ‘‘devo colocar os outros em primeiro lugar’’; ‘‘é feio
se colocar em primeiro lugar’’; ‘‘se eu não agradar os outros, eles se afastarão’’; ‘‘devo
satisfazer a vontade das pessoas, assim serei importante e elas precisarão de mim, com
isso, nunca ficarei sozinha’’; ‘‘se eu pedir ajuda, vou causar incômodo às pessoas e
desagradá-las’’; ‘‘desagradar as pessoas é perigoso’’; ‘‘é horrível envelhecer sozinha’’.
Estratégias de enfrentamento – rendição às crenças (aceitar situações
desagradáveis; fingir que estava tudo bem, mesmo quando não estava; deixar que os
outros tomassem decisões); comportamentos evitativos (não expressar incômodo; não
pedir ajuda quando precisava; não falar dos seus sintomas para não preocupar os outros;
recusar cuidado de outrem para consigo); compensatórias (ser rápida em agradar e ajudar
as pessoas; se sacrificar pelos outros).
Situação 1: Amiga que lhe dera “rasteira” convidou para almoçar em seu
aniversário. Emoção: ressentida, indisposta para encontrá-la. Pensamento: “se eu não for,
ela vai pensar que eu estou chateada; não quero que ela pense que estou mal por isso”.
Comportamento: Ir ao almoço e fingir naturalidade. Consequências: clima desagradável
durante o almoço e arrependimento de ter ido. Manutenção da crença de que não pode
desagradar os outros, mas ela pode aguentar emoções ruins.
Situação 2: Encontro com amigas para lanchar à tarde. Estavam discutindo onde
iriam se encontrar. Gostaria que fosse em um local próximo à sua casa, pois sempre
escolhiam em um local mais conveniente para elas. Pensamento: “gostaria que elas
pensassem em mim e revezassem o lugar, para às vezes me favorecer; mas não posso
gerar incômodo às pessoas, é melhor que seja em um lugar mais conveniente para elas.
Por mim tudo bem”. Emoção: se sentia desconsiderada. Comportamento: dizer que elas
– as amigas – poderiam escolher onde preferissem ir. Consequência: desagrado, porque
gostaria de ser priorizada às vezes, mas achava que eram as outras pessoas que deveriam
ter essa iniciativa. Manutenção do senso de privação emocional.
Situação 3: Passando o final de semana no sítio com casal de amigos, saíram um
dia para almoçar fora. Pensamento: “devo pagar a conta deles, afinal já me trouxeram
para a casa deles e não me cobraram nada”. Comportamento: pegar a comanda dos dois
e insistir em pagar, mesmo após recusa deles. Consequência: manutenção do padrão de
orientação para o outro.
A formulação do caso indica que o temperamento mais dócil e passivo da cliente
e as experiências infantis de ter que se anular e privilegiar os desejos da irmã, bem como
a falta de atenção dos pais às suas necessidades e desejos, contribuíram para Camélia
desenvolver esquema de Privação Emocional e crenças de desamor. Para lidar com suas
necessidades emocionais de afeto e lutar contra suas crenças negativas, Camélia entendeu
que poderia dar prioridade às necessidades dos outros, não causar incômodos e cuidar das
pessoas. Assim, superdesenvolveu a Subjugação e o Autossacrifício como forma de ser
querida e importante, e para não correr o risco de ficar sozinha.
Ao se focar nas outras pessoas, desconsiderando seus próprios interesses e não
expressando seu desagrado e suas necessidades, Camélia mantinha suas crenças intactas
e inativas. Dessa forma, continuava acreditando que não merecia ser prioridade e que
terminaria sozinha caso pensasse em si em primeiro lugar e gerasse desconforto nas
pessoas. A pandemia e o consequente isolamento social foram eventos estressores que
ativaram suas crenças negativas e precipitaram as queixas e sofrimento que a cliente
trouxe à terapia. Para uma melhora significativa do seu sofrimento, seria necessário
desafiar suas crenças disfuncionais e mudar seus comportamentos desadaptativos que
atuavam na manutenção dos problemas. Sendo assim, os objetivos psicoterapêuticos
foram definidos, conforme se encontram a seguir.

Objetivos psicoterapêuticos

• Não fazer coisas contra sua própria vontade, como aceitar convites para eventos
que não queria participar, pelo medo de desagradar aos outros. Pensamento reestruturado:
“descontentamentos ocorrem mesmo em bons relacionamentos e isso não leva,
necessariamente, ao rompimento da relação’’.
• Permitir expressar suas necessidades, emoções e preferências. Pensamento
reestruturado: “todas as pessoas têm o mesmo direito de opinar, expressar emoções, tentar
que suas necessidades sejam atendidas, porém algumas vezes seremos atendidos e outras
vezes não. Isso não é incomodar. A negociação faz parte das relações e no geral se opta
por um caminho que seja razoável para todos os envolvidos, e não por aquele que atenda
100% a vontade de uma pessoa só’’.
• Buscar e aceitar ajuda quando realmente precisava. Pensamento reestruturado:
“ninguém é autossuficiente a ponto de nunca precisar da ajuda de outrem. As pessoas
precisam conhecer nossas fragilidades para oferecerem ajuda, se não, pensarão que somos
capazes de lidar com tudo sozinhas’’.
• Aceitar convites feitos pelo filho e pela nora para que estivesse presente na vida
deles. Pensamento reestruturado: “não é bom antecipar as necessidades das outras pessoas
e decidir o que é melhor para elas. As pessoas são capazes de avaliar o que é melhor para
si mesmas e têm recursos para se cuidar. Tenho valor e sou amada, mesmo quando não
ofereço nenhum tipo de ajuda’’.
• Não ficar se justificando diante das cobranças da irmã ou quando se sentia
impelida a isso.
• Pensamento reestruturado: “minha disponibilidade deve ser considerada antes de
atender as vontades dos outros, daí decido o que fazer, sem ficar achando que a relação
ficará ameaçada se eu não der justificativas ou se mantiver minha privacidade’’.
• Retomar vínculos antigos e fazer planos para depois da pandemia, para restaurar
a esperança. Pensamento reestruturado: “estou vivendo uma fase ruim; mas vai passar.
Não estou sozinha. Tenho um filho e uma nora que valorizam minha presença na vida
deles, há pessoas de quem posso me reaproximar, tem viagens em grupo que posso voltar
a fazer’’.

O desenrolar da terapia

O primeiro contato entre mim e a cliente foi por mensagem de texto, através do
aplicativo WhatsApp, seguido por chamada telefônica, para esclarecer algumas dúvidas
de Camélia a respeito de como funcionaria a psicoterapia, experiência pela qual nunca
havia passado. Neste contato foi acordado como seria a “operacionalidade” da terapia,
como valores, forma de pagamento, dia e horário do atendimento, etc. A cliente falou que
meu nome foi indicado por uma amiga, que é professora de psicologia de uma
universidade na mesma cidade.
Por ser período de pandemia de Covid-19, as sessões foram remotas. Logo no
primeiro contato, a cliente expressou que estava apreensiva com o tratamento mediado
pela tecnologia, pela sua falta de familiaridade. Pude tranquilizá-la de que seria simples
e de que iniciaríamos a primeira consulta mais cedo para que eu pudesse auxiliá-la no
manejo da videochamada. Dei algumas opções de plataformas com as quais eu vinha
trabalhando, mas ela optou por seguir usando o aparelho de celular e o WhatsApp nas
sessões, por já fazer uso desta tecnologia no dia a dia e ter familiaridade. Desde o início
do processo terapêutico com Camélia foi possível perceber que se tratava de uma pessoa
dócil, amorosa e com facilidade para fazer vínculo. O bom relacionamento com a cliente
se manteve durante todo o curso da terapia.
Os atendimentos clínicos em saúde mediados pela tecnologia e pela internet já
ocorriam no Brasil, mas ganharam força com a pandemia da Covid-19. Pessoas idosas,
classificadas como grupo de risco, permaneceram mais tempo em isolamento social e
puderam se cuidar de forma segura e eficaz por meio das intervenções digitais disponíveis
(Gama-Vieira et al., 2022). Um dos serviços em saúde disponíveis por meio de
tecnologias da informação e comunicação (TICs) é o atendimento psicológico, que pode
ser realizado on-line ou por telefone. Esse serviço, embora já autorizado pelo Conselho
Federal de Psicologia (CFP) desde 2012, possuía restrições. Foi com a pandemia que
surgiu a necessidade dos atendimentos se adaptarem à modalidade exclusivamente
remota. Então, o CFP regulamentou a psicoterapia por meio das TICs através da
Resolução 04/2020 (Freitas et al., 2022) e tornou o cuidado em saúde mental mais
acessível a diferentes grupos de risco.
O profissional que deseja atuar com pessoas idosas precisa de um cuidado especial
no estabelecimento da relação terapêutica, pois este é um fio condutor e fortalecedor da
adesão da idosa ao acompanhamento (Oliveira, 2016). Cuidados especiais também devem
ser adotados no atendimento remoto, seja na avaliação ou na intervenção, antes de iniciar
o tratamento. Freitas et al. (2022) ressaltam a importância de consultar previamente a
idosa, ou seu cuidador, sobre o letramento digital da cliente ou necessidade de promovê-
lo. Também deve-se informar sobre a necessidade de um ambiente privativo, que não
ofereça interferências externas. O uso de fones de ouvido pode ser necessário para
garantir o sigilo.
É recomendado que o terapeuta se atente à plataforma escolhida para realizar a
psicoterapia online com a cliente idosa. No geral, é importante usar o meio com o qual o
indivíduo já se sente familiarizado, o que propicia menos frustrações. Gama-Vieira et al.
(2022) salientam que quanto mais fácil for para a idosa manejar a plataforma e o meio
digital escolhidos, maior será o conforto de usá-los e, consequentemente, menos gasto de
energia e maior foco na terapia ela terá. É importante, ainda, posicionar o rosto no centro
da tela para manter bom contato visual com a cliente e adotar posição corporal e tom de
voz que indiquem disponibilidade (Freitas et al., 2022).
As chamadas por áudio e vídeo têm elementos similares em termos de
reconhecimento de padrões gráficos que promovem uma prática mais ou menos
estressante em função da experiência do usuário com esse recurso de comunicação e, por
já haver maior familiaridade, o celular tende a ser a ferramenta mais acessível (Gama-
Vieira et al., 2022). Isso foi verificado no caso de Camélia, que optou pelo uso do
smartphone e WhatsApp para a psicoterapia.
Na primeira sessão, no dia e horário combinados, Camélia atendeu a chamada
com facilidade e o telefone já estava posicionado de forma adequada. O mesmo ocorreu
em todas as sessões seguintes. Além disso, a cliente sempre mostrou cuidado com a
própria aparência.
Na primeira consulta, foi dado espaço para a cliente expressar porque estava
buscando psicoterapia neste momento de sua vida e também foi feito o contrato
terapêutico, já iniciado na chamada telefônica. Preferi deixar a cliente livre para expor
suas questões, fazendo uma ou outra pergunta que me ajudasse a melhor compreendê-la.
O relato inicial de Camélia permitiu a identificação de um sofrimento central que
se aflorou com a pandemia, a “solidão”, e de dificuldades de mais longo prazo: “tenho
dificuldade de colocar pra fora, vou aceitando tudo”; “mesmo estando chateada, finjo
que está tudo bem”. Logo ficou claro um padrão de funcionamento no qual
desconsiderava suas próprias necessidades, emoções e desejos em situações conflituosas
para não desagradar os demais. Esse padrão disfuncional veio se repetindo desde a sua
infância e ao longo de sua história familiar e de amizades. Camélia tinha desenvolvido de
forma excessiva a habilidade de antecipar os desejos dos outros e realizá-los, ao mesmo
tempo em que era autônoma para resolver seus próprios problemas, pois não gostava de
incomodar os demais, de modo que não chegava a receber ajuda das pessoas. Quando
realmente precisava de ajuda e não a recebia, ficava magoada.
Esta sessão também informou que a pandemia foi um evento estressor
significativo, que precipitou as queixas que trouxeram Camélia para a terapia, pois fez
com que percebesse que “as pessoas não estão disponíveis para mim da mesma forma
que eu estou para elas”. Ela se via como alguém que sempre se dedicou à família e às(aos)
amigas(os), e vinha se sentindo sozinha e abandonada, recebendo raros telefonemas para
saber como ela estava. As amigas encaminhavam mensagens pelo WhatsApp, mas não
faziam ligações, e Camélia classificava as mensagens como rasas, como os textos prontos
de ‘Bom Dia’, sem alimentar assuntos mais profundos. Isso fez com que concluísse que
cada um estava preocupado mesmo era com sua vida e com a família mais próxima.
Ela ainda abordou uma experiência recente de decepção interpessoal. Uma amiga
começou a namorar e logo foi morar junto com uma pessoa que havia conhecido por
intermédio de Camélia e com quem a cliente tinha um flerte. A cliente não havia
percebido nada entre eles e foi pega de surpresa. Sentiu que havia levado uma “rasteira”.
Com esse evento, passou a não haver mais espaço para ela na relação de casal que se
estabeleceu entre ambos os amigos. Assim, afastou-se deles por ter ficado muito
magoada, perdendo as duas amizades. Ainda, não queria compartilhar seus sentimentos
com os outros amigos, pois eram todos de um mesmo grupo.
À época do início da terapia, Camélia vivia um período familiar ruim. Estava
cansada de atender aos caprichos da irmã e de ser excluída por Cristal de várias formas.
Camélia fez um relato das inúmeras vezes que isso ocorreu e como ela sempre cedia, por
serem irmãs. Porém, na ocasião, o filho não queria que Camélia aceitasse as condições
dessa relação e se afastasse.
Camélia também lidava com a saída iminente do filho de casa para se casar. Ao
mesmo tempo que desejava sua felicidade e gostava da nora, a qual sempre buscava
incluí-la na vida do casal, sofria com a ambivalência de não querer que ele saísse porque
a casa ficaria muito vazia. Ainda que ele já não ficasse muito em casa, as coisas dele
estavam lá e existia a expectativa de ele chegar a qualquer momento.
Todos nós temos crenças negativas latentes que podem ser ativadas na presença
de vulnerabilidades ou estressores tematicamente relacionados (Beck, 2022). Foi possível
notar, neste primeiro encontro, que muitos fatores ambientais simultâneos contribuíram
para a ativação de crenças disfuncionais da cliente. Camélia vivia em função das viagens,
das amizades, do cuidado do filho, dos sobrinhos e da irmã. É provável que a pandemia
não a tivesse afetado tanto se não fossem tantos os eventos associados – a iminência do
casamento do filho, a “rasteira” que levou da amiga, o afastamento de outras amizades e
as complicações na relação com a irmã, fora a necessidade de mudança total no estilo de
vida decorrente do isolamento social proposto como medida de segurança na pandemia.
A entrevista inicial ofereceu muitos elementos para a formulação cognitivo-
comportamental do caso. Ao final da primeira sessão, conversamos sobre o que é ser uma
boa pessoa e o que é se prejudicar para fazer a vontade do outro. Camélia concluiu que
precisava encontrar um caminho em que pudesse ajudar os outros e, ao mesmo tempo, se
respeitar.
De acordo com Beck (2022), a TCC efetiva requer que avaliemos os clientes em
profundidade para que possamos formular o caso de maneira acurada, conceitualizar o
cliente específico e planejar o tratamento. No entanto, a avaliação não está limitada à
sessão inicial de avaliação. A coleta de dados é contínua e a avaliação prossegue a cada
sessão, podendo confirmar, modificar ou acrescentar elementos à conceitualização. O
processo de conceitualização também auxilia no desenvolvimento de empatia, um
ingrediente essencial no estabelecimento de uma boa relação terapêutica.
Na segunda sessão, foi realizada entrevista de anamnese. Destacando aqui a
relação familiar, observou-se que Camélia e sua irmã tinham temperamentos opostos.
Pelo seu relato, sempre foi uma pessoa fácil de lidar e evitava conflitos. Cristal, ao
contrário, desde pequena tinha um temperamento difícil e arranjava tumulto com todo
mundo. A irmã era chantagista emocionalmente e tudo tinha que ser para ela. A cliente
explicou que Cristal sempre se colocou como a coitada, induzia o sentimento de culpa em
Camélia, que ficava mal até se desculpar com a irmã. A mãe era mais próxima de Cristal
e só se tornou mais próxima de Camélia em sua vida adulta, quando adoeceu e precisou
ser cuidada.
Após uma festa de Cristal que Camélia e seu filho não foram convidados, este
resolveu cortar relações familiares e aconselhou a mãe a fazer o mesmo. Isso foi bastante
ansiogênico para a cliente, porque achava que o filho estava certo, não queria desagradá-
lo, mas não queria romper com a família. Esse foi um evento anterior à pandemia e, em
função dele, Camélia e Cristal estavam há um tempo sem se falar.
A partir dos dados coletados nesta sessão e na anterior, conjecturei que Camélia
possuía um esquema primário de Privação Emocional, dadas as suas experiências de
negligência em relação à família. Também tinha crenças de desamor e, como estratégia
de enfrentamento, buscava fazer tudo pelos outros a fim de ser amada e não ficar sozinha,
o que vinha dando certo até então. De fato, isso mantinha a cliente próxima das pessoas,
era bem quista, tinha muitas amizades, possibilitava a relação com sua irmã e era uma
pessoa independente. Com a pandemia e o isolamento social, avaliou que buscava muito
mais a proximidade com as pessoas do que as pessoas com ela. Estava experienciando
grande sensação de solidão e não tinha com quem conversar sobre isso. Parecia que
nenhuma amiga estava interessada. Mandava uma mensagem e a pessoa só ia ler no outro
dia, ou respondia com uma figurinha, reforçando sua Privação Emocional.
Ao final desta sessão, conversamos sobre os comportamentos induzidos pelo
sentimento de culpa e como desta vez ela estava agindo diferente, pois mesmo sentindo
culpa, um lado dela tinha certeza de que não era culpada e por isso não telefonou para
Cristal. Nesta sessão iniciamos a psicoeducação sobre o modelo cognitivo,
relacionando situações-gatilho, pensamentos, sentimento de culpa e comportamento
direcionado para o outro. Assim, busquei familiarizá-la ao modelo cognitivo utilizando
seus próprios exemplos. Foi proposta uma tarefa de casa de registro de pensamentos
associados às queixas.
Na terceira sessão, a cliente quis conversar sobre a culpa e afirmou ter clareza de
que a irmã era uma pessoa problemática e que sabia não ser culpada das coisas que Cristal
tentava fazê-la acreditar. Desse modo, não havia precisado fazer o registro (ou seja, a
tarefa de casa). Nesta sessão também foram levantadas as metas a serem trabalhadas a
partir das demandas terapêuticas apresentadas por Camélia. Os objetivos tiveram em
comum o propósito de reduzir o direcionamento para o outro e ampliar o autocuidado, o
autorrespeito e os limites interpessoais, bem como o fortalecimento das crenças de que
poderia fazer tudo isso sem se sentir culpada ou egoísta, e de que possuía motivos para
ser amada independentemente do seu comportamento.
Ainda nesta sessão, a cliente falou sobre o desânimo e sobre estar enjoada de ficar
muito tempo em casa sozinha. Na ocasião, e em vários momentos ao longo da
psicoterapia, procurei acolher suas emoções mais diretamente ligadas à pandemia, como
o tédio e a solidão, e compartilhar algumas experiências similares minhas. A
autorrevelação (e o relato de experiência de outras pessoas) foi uma estratégia que
possibilitou legitimar e humanizar o que Camélia estava sentindo e, ao mesmo tempo, dar
a perspectiva de ser algo temporário.
A quarta sessão foi bastante rica de insights e possibilitou mais levantamento de
informações sobre Camélia, fornecendo mais dados para completar a sua conceituação
cognitiva. A cliente identificou uma crença que elaborou desde cedo: “não mereço ser
prioridade”. Reconheceu que aprendeu desde pequena que não podia pensar em si em
primeiro lugar. Sempre esteve disponível para os demais e deixou que as escolhas fossem
feitas pelas outras pessoas, fosse o filme a assistirem, o restaurante onde iriam se
encontrar ou o prato que iriam comer. Revelou dificuldade de dizer “não” e facilidade de
pedir “desculpa”, corroborando seu esquema de Subjugação. Foi possível abordarmos o
tema da assertividade.
Na quinta sessão exploramos sua rede social e a possibilidade de fazer contato
com parentes com os quais havia perdido o contato. Verificamos que aconteceram
questões familiares no passado que a irmã não perdoou e Camélia estava com medo de
retomar relações com a família e ser reprovada pela irmã. Por temer a desaprovação da
irmã, conformava-se em não fazer o que realmente tinha vontade de fazer. Essa foi uma
oportunidade para compartilhar seu diagrama de conceituação cognitiva e preenchermos
juntas alguns dados que faltavam. Camélia mostrou ótima capacidade de elaboração
cognitiva sobre o que estávamos conversando e muita compreensão do seu
funcionamento pessoal e interpessoal, do qual já se dava conta, mas não percebia de forma
tão clara e organizada. Essa foi uma das oportunidades em que pudemos trabalhar a
reestruturação cognitiva visando à sua mudança de comportamentos orientados para o
outro.
Na sexta sessão, Camélia quis falar mais sobre a irmã e seu padrão de vitimização.
Ao longo da semana, parece que a cliente havia feito várias elaborações cognitivas e
associações depois do compartilhamento de sua conceituação cognitiva. Falou sobre
“joguinhos” da Cristal para culpá-la. Neste encontro, Camélia trouxe dados de que estava
mudando e aprendendo a ser mais assertiva com a irmã. Relatou que haviam se
encontrado na recepção de um estabelecimento e sua irmã veio “fazendo joguinho”,
dizendo que Camélia nunca mais ligou, e que soube que ela havia ligado para a prima.
Em vez de se justificar ou se desculpar, Camélia lembrou do seu direito à privacidade e
de não precisar ficar se explicando para Cristal. Apenas confirmou o fato e encerrou a
conversa o mais breve possível.
Esta foi uma sessão muito gratificante porque pude perceber que Camélia
reelaborou sua forma de vivenciar esse relacionamento abusivo. Ela alcançou a
compreensão de seu direito pessoal ao autorrespeito e essa nova forma de perceber a
realidade se concretizou através de comportamentos interpessoais mais assertivos.
Sessões posteriores continuaram mostrando o avanço da cliente a partir do trabalho com
a reestruturação cognitiva sobre suas cognições disfuncionais, com a assertividade e com
os experimentos comportamentais, sempre com a proposta de praticar nas interações com
os outros o que elaborava intelectualmente.
Na sétima sessão, pude notar em Camélia o medo de envelhecer sozinha. Ela
abordou sua história de viuvez precoce e de dedicação integral ao filho. Camélia não teve
outro relacionamento amoroso depois que o marido faleceu e estava reflexiva sobre ter
feito ou não a coisa certa: “À medida que o tempo vai passando, pessoas vão morrendo,
filho sai de casa, problemas de saúde aparecem, e surge esse confronto com a solidão”.
Camélia expôs que nunca compartilhou sua tristeza pela morte do marido com
ninguém. Só mostrava seu lado forte, o lado que não sofria, até porque achava que seria
melhor para proteger o filho da dor da perda do pai. Assim, além de esconder o que
pensava, Camélia também escondia seus sentimentos, não dando espaço para contar com
a solidariedade dos outros. Camélia começou a perceber seus comportamentos de
perpetuação dos esquemas.
O Autossacrifício leva o indivíduo à grande sensibilidade em relação ao
sofrimento do outro e à dificuldade de que suas próprias emoções e necessidades sejam
também consideradas (Schutz, 2023; Young et al., 2008). Compreender seu
funcionamento cognitivo-comportamental-emocional contribuiu para ampliar seu
autoconhecimento e dar significado a experiências anteriores, promovendo a
autorreflexão e revisão de sua história de vida. O padrão de direcionamento aos outros se
alimentava da crença de que não poderia deixar os outros sofrerem, mas que ela era forte
o suficiente para aguentar as dores. Assim, cuidava do outro e reprimia suas próprias
emoções. Nessa sessão, refinamos sua conceituação cognitiva de forma compartilhada e
trabalhamos com a reestruturação da regra de não poder expressar emoções.
Na oitava sessão, estava aberta para explorar seu sentimento de mágoa em relação
à amiga que lhe deu a “rasteira”. Detalhou episódios diversos em que se sentiu usada e
expressou toda a sua mágoa. Foi uma sessão de acolhimento e escuta sensível, que
possibilitou ventilar suas emoções, mas também houve espaço para reestruturação, na
medida em que Camélia identificou aspectos do padrão de Autossacrifício que favoreciam
o bem-estar do outro em detrimento do próprio. Embora ainda ferida, conseguiu ter uma
outra perspectiva para compreender essa situação.
Na nona sessão, Camélia quis falar sobre suas preocupações em relação ao futuro
do filho. Camélia pensava que agora estava aqui e podia ajudar, mas se preocupava com
o amanhã. Diferenciamos preocupações produtivas e improdutivas, de modo que pudesse
observar quando estava se preocupando com algo que demandava uma ação concreta para
ser resolvido ou com algo que não estava ao seu alcance resolver. Daí, ela poderia analisar
qual atitude tomar.
Ainda, observamos que o padrão de Autossacrifício estava evocando
ressentimento. Lamentava pelo filho não ser tão dedicado a ela como ela havia sido aos
pais, embora afirmasse que sabia que não era razoável pensar assim. Foi uma
oportunidade para reestruturar sua crença de ser capaz de dar conta de tudo, que, como
consequência, levava os demais a verem-na como alguém forte e que não precisava ser
ajudada. Ao mesmo tempo, avaliamos se seria razoável o filho ter o mesmo padrão de
funcionamento que ela.
Na décima sessão, Camélia tinha perdido uma amiga que morreu de Covid-19 e
comorbidades, o que a deixou bem abalada. O foco da sessão foram as perdas. O evento
da morte da amiga ativou em Camélia a solidão, a dúvida se fez a coisa certa sobre não
ter tido outro relacionamento após a morte do marido, o medo de passar mal e o filho não
estar em casa para socorrê-la e a preocupação de envelhecer sozinha. Apesar da empatia
ativa e acolhimento usual em momentos delicados como este, foi uma sessão em que me
senti mais impotente para ajudá-la. Pensei então sobre questionar meus próprios
pensamentos e reestruturá-los. Percebi que eu estava me cobrando muito sobre aliviar a
dor dela naquele momento e que existiam dores que não tínhamos como tirar, apenas
poderíamos estar juntas até passar.
Recorrer aos pressupostos da terapia de aceitação e compromisso (ACT) foi
importante nessa ocasião. Pensei que eu precisava acreditar na potencialidade da cliente
para encarar esse lado difícil do viver e que tudo bem ela estar assim nesta sessão. Era
justo, ela tinha perdido uma amiga e isso aflorou emoções desagradáveis de sentir. Ela
não ficaria assim o tempo todo. Então, pude ser empática e me colocar como ser humano
ao lado dela, refletindo sobre a vida de uma forma mais ampla, sobre o que temos controle
e o que não temos controle, e como estar vivo e ‘ser humano’ nos faz ter que confrontar
experiências tão dolorosas em determinados momentos. Também falamos sobre escolhas
e sobre não haver garantias de que fizemos a melhor. Mas só podemos lidar com as
consequências daquilo que escolhemos.
Ao final, Camélia estava mais serena e pensando sobre a viagem que faria quando
a pandemia acabasse. Como aponta Beck (2022), alguns problemas não podem ser
resolvidos e pode ser que nunca o sejam, e o cliente pode precisar de ajuda para aceitar
esse desfecho. Ele, em geral, precisará de assistência para aprender a focar em seus
valores centrais, buscar a ação de valor, enfatizar as partes mais gratificantes da sua vida
e enriquecer sua experiência de novas maneiras.
Na décima primeira sessão Camélia ainda estava ressentida com a amiga que lhe
feriu, porém, seu lado ‘adulto saudável’ estava presente, moderando a experiência e
reconhecendo que o evento da “rasteira” foi mais doloroso em função de todos os eventos
externos que estavam acontecendo ao mesmo tempo, mas sabia que tudo iria passar. Essa
sessão foi oportuna para reforçar positivamente esse lado da personalidade de Camélia.
O modo ‘adulto saudável’ do cliente é um conceito da TE que se refere à parte
saudável e adulta do self, que cumpre uma função executiva de moderação sobre outros
estados emocionais do indivíduo (Young et al., 2008). Beck (2022) ressalta que durante
boa parte da vida, a maioria das pessoas mantém crenças nucleares preponderantemente
realistas e equilibradas que são pelo menos consideravelmente positivas. Quando os
clientes estão em um modo adaptativo, suas crenças são mais realistas e flexíveis e as
crenças nucleares negativas tendem a estar relativamente latentes, tal qual observado
nessa sessão.
Na décima segunda sessão usamos técnica de relaxamento através da
visualização de imagens mentais positivas para manejo de sensações fisiológicas de
ansiedade, da qual a cliente se queixava naquele encontro específico. A ansiedade era
decorrente de seus pensamentos sobre a possibilidade de passar mal e seu filho não estar
em casa. Após breve exercício cognitivo, avaliamos que seria mais efetivo no momento
trabalhar para reduzir o desconforto corporal.
Já na décima terceira sessão, a cliente abordou seus sentimentos acerca da
relação com o filho e percebemos a interferência do esquema de Autossacrifício. Camélia
estava se privando da relação com ele e a nora, por pensar que não podia atrapalhar a vida
do casal. Avaliamos como essa postura de não querer incomodar o outro sustenta nos
demais a visão de que ela é forte e não precisa de cuidado. Acaba por suprimir seus
desejos e depois se ressente quando os outros ignoram a sua necessidade. Fiz uso da
confrontação empática e Camélia pode se conscientizar do seu ciclo cognitivo
interpessoal disfuncional, o que foi essencial para os insights que teve a partir de então e
para a mudança de atitude.
Na décima quarta sessão demos continuidade à temática da relação com o filho.
Algumas reestruturações cognitivas foram alcançadas. Refletimos sobre sua própria
história de vida e sobre a história de vida do filho. Falamos sobre semelhanças e
diferenças entre eles, entre gêneros e entre gerações. Também falamos sobre as diferentes
formas de perceber o mundo e as relações, sobre as necessidades emocionais de cada um,
sobre o seu padrão de funcionamento de se direcionar para as necessidades das outras
pessoas, o qual não era característico do filho. Analisamos como poderia ampliar o
investimento em si e no autocuidado, sem que isso implicasse em eliminar o prazer que
sentia ao cuidar dos outros.
Nesse momento, Camélia já tinha alcançado ampla compreensão de seu
funcionamento e demonstrava capacidade de dar novos significados aos eventos.
Queríamos romper o padrão de comportamentos disfuncionais relacionados ao
Autossacrifício. Planejamos experimentos comportamentais para a quebra de padrão. Na
semana seguinte, as primas de Camélia viriam à cidade da cliente e combinamos que elas
iriam se encontrar, independente da aprovação de sua irmã. Esse seria um experimento
em que Camélia agiria de acordo com seus desejos e convicções e não com base no que
pensavam os outros. Depois, avaliaríamos as consequências.
Na décima quinta sessão, Camélia exibiu uma mudança em seu padrão
comportamental maior do que eu esperava. Recebeu a visita de suas primas e sua irmã
também participou de um encontro para almoçarem. Relatou momentos muito agradáveis,
mas também um momento desagradável, quando a prima mencionou o casamento do filho
de Camélia. O semblante da irmã mudou. Cristal já estava se sentindo excluída e iria fazer
um “joguinho” de culpar Camélia, por ainda não saber sobre o casamento do sobrinho.
Porém a cliente avaliou que não tinha como ter compartilhado essa notícia com a irmã,
primeiro porque a irmã estava afastada e segundo porque o próprio filho tinha cortado
relações com a tia. Camélia conseguiu pensar e agir de forma diferente. Pensou que não
precisava dar explicações para a irmã, continuou aproveitando o momento de interação
com as primas e ignorou a “cara feia” de Cristal. Não se sentiu culpada depois por agir
dessa forma. Pelo contrário, expressou que sentiu uma grande sensação de liberdade. Pude
parabenizá-la e reforçar positivamente sua forma de pensar e agir, legitimando o quanto
era boa essa sensação de liberdade de não precisar ficar se justificando para os outros.
Para Beck (2022), depois que o cliente muda suas crenças (ou diminui sua
intensidade), passa a ser capaz de interpretar suas experiências de maneira mais objetiva
e funcional, começa a encarar as situações mais realisticamente, sente-se melhor e age de
forma mais adaptativa. Foi possível identificar esse progresso na cliente.
Na décima sexta sessão, Camélia relatou outro episódio em que seu padrão de
orientação para o outro apareceu e ela se sentiu mal depois por ter ‘recaído’. Não queria
atender a um pedido feito pelo filho, mas não conseguiu dizer ‘não’ por temer afastá-lo.
No entanto, foi uma sessão muito produtiva. Conversamos sobre a tendência desse padrão
de autoperpetuar-se, razão pela qual ela precisaria estar atenta às suas cognições e
motivações comportamentais. Ela conseguiu perceber tudo com clareza e boa capacidade
introspectiva, dentro do contexto de sua conceituação de caso, e concluímos identificando
formas de autocuidado e autorrespeito. Esse ‘lapso’ foi enquadrado como oportunidade
de aprender mais sobre o próprio funcionamento e planejar o que fazer em situações-
gatilho semelhantes.
Os clientes variam consideravelmente quanto ao grau em que são capazes de
modificar suas crenças nucleares. Não é possível ou mesmo realista para alguns clientes
reduzir a 0% a força dessas crenças. De modo geral, as crenças estão suficientemente
enfraquecidas quando os clientes têm probabilidade de continuarem modificando seu
comportamento disfuncional apesar de ainda se apegarem a um remanescente da crença
(Beck, 2022).
Na décima sétima sessão, Camélia estava bastante sentida com o filho. Fizemos
um levantamento de evidências para avaliar se o filho não se importava com Camélia e
concluímos que ele estava em um período mais desatento por estar sobrecarregado com
o casamento e os ajustes em relação à casa nova. Esta também foi mais uma oportunidade
para Camélia refletir que o Autossacrifício se associava ao ressentimento, pois, no fundo,
cultivava uma expectativa de que o outro iria estar disponível para ela na mesma
intensidade que ela estava para o outro.
Na décima oitava sessão Camélia falou que recebeu o convite de um casal de
amigos para passar o final de semana no sítio deles, porém não iria aceitar porque não
queria incomodar. Avaliamos que o convite foi feito porque queriam estar com ela, logo,
ela não estaria incomodando. Aproveitamos para trabalhar sobre suas regras de não poder
desagradar aos outros e de não poder causar incômodo a ninguém. Trabalhamos com o
duplo padrão que usa para julgar a si e aos outros, para receber e ofertar ajuda. Analisamos
como nem tudo que aprendemos na infância é uma verdade absoluta. Como adulta, podia
avaliar os prós e os contras de manter essas regras. Foi combinado, então, que iria aceitar
o convite como um experimento.
Na décima nona sessão Camélia relatou a experiência de ter sido mimada o fim
de semana inteiro pelos amigos que fizeram o convite para ir ao sítio: a buscaram e a
levaram de volta em casa, não deixaram Camélia fazer nada para ajudar na casa ou na
comida, fizeram de tudo para agradá-la. Se divertiram com jogos, caminhadas ao ar livre
e a cliente teve um quarto só para ela onde pode ficar com total privacidade. Avaliamos
que foi uma sensação diferente para Camélia, porém, necessária, pois sentiu e tolerou a
estranheza de se permitir sair do papel que sempre representou, o de cuidadora dos outros.
Na vigésima sessão Camélia falou da pressão alta e da medicação que o
cardiologista prescreveu para a ansiedade. Mencionou que antes se via como uma pessoa
forte e por isso era resistente ao uso de remédios. Trabalhamos a ideia de que só pessoas
fracas usavam medicação para as emoções. Indicou que tinha mudado sua visão e, como
confiava muito no seu cardiologista, estava disposta a experimentar o medicamento
prescrito. O experimento de começar a usar a medicação foi combinado, a fim de desafia
a regra de que usar medicamento psicoativo tinha a ver com ser forte ou fraco, portanto,
nada dizia sobre a pessoa que ela era.
Na vigésima primeira sessão voltou a falar sobre o sentimento de solidão e
redução de atividades durante a pandemia. Acolhi e incentivei estratégias de ativação
social, como ligar para outras amigas para conversar, em vez de apenas esperar uma
ligação ou enviar mensagem.
Na vigésima segunda sessão, falou sobre a viagem que filho e nora iriam fazer e
estavam insistindo para que ela fosse junto, em um feriado próximo. Ela estava resistente
e argumentava que não queria atrapalhar. Novamente avaliamos seu padrão de
funcionamento no contexto de sua conceituação cognitiva e a importância da quebra do
padrão comportamental. A literatura aponta que o Autossacrifício e a Subjugação são
esquemas secundários mais acessíveis e fáceis de lidar por serem confundidos
culturalmente com o altruísmo, pois trazem ganhos secundários como ser bem-quista
pelos outros (Schuz, 2023; Young et al., 2008). Considerei que seria importante propiciar
o contato da cliente com emoções e crenças mais arraigadas, dolorosas e mais difíceis de
serem expressas e mesmo reconhecidas. Para isso, a confrontação empática foi
empregada. Nessa ocasião, quis acessar esquemas primários, como a Privação Emocional,
para Camélia dar-se conta de que seu maior medo era não ser importante para os outros.
O Autossacrifício e a Subjugação a protegiam da Privação Emocional, pois se sentia
importante ao colocar os outros como prioridade. Contudo, a cliente não estava disponível
para explorar essas questões mais a fundo, pois alegava que seu desejo era dar privacidade
ao casal. No entanto, a confrontação empática contribuiu para a reflexão posterior da
cliente sobre a função do seu comportamento de priorizar o que achava que era importante
para as outras pessoas.
Na vigésima terceira sessão Camélia explorou como a sessão anterior havia
evocado emoções dolorosas durante a semana, pois se deu conta de que os outros não
precisavam tanto dela quanto ela supunha. Era uma realidade dolorosa, mas que precisou
encarar e vivenciar. Os outros poderiam sobreviver sem ela, as pessoas seriam capazes de
se virar sem sua ajuda, o que para ela significava o risco do abandono e da solidão, por
não ser prioridade para ninguém. Assim, pudemos acessar as emoções oriundas da
Privação Emocional que passou na infância para que fossem processadas não só
cognitiva, mas também emocionalmente.
Posteriormente, a cliente focou-se nos progressos alcançados com a terapia.
Resolveu aceitar viajar com o filho e a nora no feriado, o que a ajudaria no enfrentamento
de suas crenças disfuncionais. Disse estar mais tranquila sobre a saída do filho de casa e
fez uma observação de que muitas vezes a nora era até mais cuidadosa com ela que o
próprio filho.
Na vigésima quarta sessão, Camélia relatou que estava fazendo menos projeções
sobre as necessidades dos outros e se cobrando menos sobre precisar atendê-las. Com
isso, estava mais atenta às suas próprias necessidades. Compartilhei minha felicidade de
vê-la pensando dessa forma. A expressão natural de felicidade também funcionou como
reforço positivo para seus novos comportamentos. A cliente estava se sentindo muito bem
nesse dia e falou sobre um encontro com o grupo de amigos(as) para um jantar. Foi
agradável porque estavam várias pessoas e optou por ficar afastada daquela amiga que
havia lhe dado a “rasteira”. Ao falar sobre isso, me pareceu ter tomado essa decisão de
forma consciente, com seu lado adulto saudável.
Na vigésima quinta sessão, a cliente continuava muito bem. Camélia aproveitou
a sessão para fazer um resumo mostrando como tinha pensado diferente e como tinha
mudado seu modo de funcionar nas relações interpessoais, exibindo maior capacidade de
manejo do direcionamento para o outro. Revisamos como chegou à terapia, as queixas
que havia trazido e como estava se sentindo naquele momento.
Na vigésima sexta sessão, Camélia enfatizou as mudanças na relação com a irmã.
Falou que não ficava mais se justificando e que conseguia perceber que as coisas tinham
o peso que era dado a elas, então, quando a irmã cobrava alguma coisa, não se explicava
demais e mostrava que a questão tratada não merecia tanta relevância.
Na vigésima sétima sessão, que ocorreu quinze dias após a anterior em função de
um feriado, contou que se deu conta de que tinha a iniciativa de pagar a conta dos outros
quando ia a um restaurante. Percebeu que fazia isso de forma automática, mas queria
mudar a partir do momento em que se deu conta de que era mais uma manifestação do
padrão de orientação para os outros. Vimos que Camélia iria continuar identificando
formas do padrão antigo aparecer, pois estava apta a identificá-lo, de modo que poderia
fazer escolhas mais conscientes.
Combinamos que a sessão seguinte teria um intervalo quinzenal, dado que os
últimos encontros se focaram nos relatos das melhoras alcançadas e na capacidade de
manejar sozinha suas dificuldades. É comum, quando se aproxima o final do tratamento,
o terapeuta espaçar as sessões gradualmente, para dar ao cliente mais oportunidades de
funcionar de forma independente (Beck, 2022).
Na vigésima oitava sessão, as falas de Camélia expressavam significativa
melhora no domínio de orientação para o outro. Seus pensamentos, sentimentos e
comportamentos estavam em congruência, indicando reestruturação cognitiva e mudança
em diferentes níveis. Mostrou maior assertividade sem se sentir mal por isso. Pareceu-me
muito funcional e o retorno foi agendado para dali a dois meses, para verificar se as
melhoras se manteriam.
Na vigésima nona sessão, Camélia manteve as melhoras. Havia agendado uma
excursão devido à redução de risco decorrente da pandemia e já havia mais perspectivas
de ativação social. Dei alta para a cliente e agendamos uma sessão para dali a três meses,
o que deixou Camélia mais tranquila para prosseguir sozinha com as ferramentas que
havia desenvolvido ao longo da terapia.
Enviei uma mensagem na véspera da trigésima sessão, para conferir se a cliente
gostaria de realizá-la, e Camélia optou por sim. Neste encontro, o filho já havia casado e
saído de casa. Ela estava adaptando-se a essa mudança. Disse estar sentindo bastante, mas
entendia que esse momento chegaria, e deu sinais de que seu lado adulto saudável estava
sabendo lidar com as emoções desta fase. Falei sobre abrir espaço para essa dor passar e
conversamos sobre como estava encontrando seu lugar na vida do casal. Falou sobre o
autocuidado e como vem investindo em si mesma. Agradeceu muito pela terapia e buscou
reasseguramento de que poderia agendar nova sessão em caso de necessidade.
Quatro meses após o último encontro, enviei mensagem para saber como Camélia
estava e ela continuava bem, isto é, manejando bem os eventos de sua vida. Passaram-se
mais alguns meses desde então, e até a redação deste caso clínico, Camélia não me
contatou para agendar nova consulta.

Técnicas e procedimentos psicoterapêuticos

O caso iniciou com uma entrevista de avaliação para entendimento da queixa da


cliente, e anamnese, para a compreensão da sua história de vida e dos fatores de
vulnerabilidade que contribuíram para as dificuldades abordadas em terapia. Com a coleta
de dados, foi possível realizar a conceituação cognitiva do caso, apresentada acima. Foi
realizada psicoeducação sobre o modelo cognitivo, relacionando situações-gatilho,
pensamentos disfuncionais, emoções e comportamentos da própria cliente.
Ao longo da terapia, em momentos apropriados, foi utilizada a autorrevelação
por parte da terapeuta. Segundo Beck (2022), é importante para o profissional que os
clientes o percebam acuradamente como uma pessoa receptiva e autêntica, que quer e é
capaz de ajudá-los. A autoexposição criteriosa pode contribuir muito para fortalecer essa
percepção. Obviamente, a autorrevelação deve ter um propósito definido, por exemplo,
fortalecer a relação terapêutica, normalizar as dificuldades do cliente, demonstrar como
as técnicas da TCC podem ajudar, mostrar uma habilidade ou servir como modelo.
Também foi utilizada ao longo do processo psicoterapêutico de Camélia a técnica
de solução de problemas, sempre que era necessário levantar alternativas viáveis no
contexto pandêmico para melhorar o tédio e a solidão. Apesar do medo de aglomeração,
foram aventadas as possibilidades de ir a ambientes ao ar livre com uso de máscara para
fazer uma caminhada, de realizar atividades junto ao filho e à nora (das quais poderia
aceitar participar mais vezes quando fosse convidada), de desenvolver atividades que
poderiam ser feitas em casa, mesmo sozinha, de dar telefonemas em vez de enviar uma
mensagem breve, etc. Desse modo, a solução de problemas levou ao emprego da ativação
comportamental e social.
A inatividade relativa do cliente contribui para seu humor deprimido, pois ele tem
uma escassez de oportunidades para adquirir um senso de domínio, prazer ou conexão, o
que leva a mais pensamentos negativos, que conduzem a maior disforia e inatividade, em
um círculo vicioso (Beck, 2022). De acordo com Beck, os clientes com frequência acham
que não podem mudar a forma como se sentem emocionalmente. Ajudá-los a se tornarem
mais ativos é parte essencial do tratamento. Com isso, eles demonstram a si mesmos que
podem ter controle do seu humor e comportamento mais do que achavam previamente.
Corroborando isso, o emprego da ativação social foi de grande relevância para a melhora
da cliente.
A confrontação empática, técnica e estilo terapêutico proposto por Young et al.
(2008), foi utilizada para auxiliar Camélia a se sentir compreendida e validada acerca do
seu padrão de funcionamento, que foi desenvolvido como resposta a frustrações de
necessidades passadas, e ao mesmo tempo questioná-la sobre os prejuízos atuais,
decorrentes dos esquemas que se autoperpetuaram. Essa tomada de consciência foi
necessária para a cliente compreender a necessidade de mudança e se sentir motivada para
se engajar de fato neste processo.
Ao trabalhar com o padrão de orientação para o outro, é importante que o
psicoterapeuta estimule o cliente a realizar escolhas com base em suas necessidades e
identifique as situações passadas nas quais se subjugava ou sacrificava e por quê (Schutz,
2023). Nesse sentido, experimentos comportamentais foram propostos com o intuito de
reduzir a Subjugação e o Autossacrifício.
Beck (2022) indica que experimentos comportamentais, quando apropriadamente
planejados e executados, podem modificar as crenças de um cliente com mais força do
que técnicas verbais, tanto no nível emocional quanto intelectual. É muito importante que
os clientes mudem seu comportamento reduzindo sua evitação e entrando em situações
que estavam evitando. Caso contrário, não terão a experiência real de ter suas crenças
refutadas.
Para facilitar a adesão aos experimentos, foram abordados, de forma
psicoeducativa, os direitos assertivos, ressaltando que suas ideias, seus sentimentos, suas
necessidades e seus desejos são tão importantes quanto os de qualquer outra pessoa. A
cliente poderia pensar mais em si própria e, às vezes, escolher priorizar o outro. Usando
a psicoeducação para a compreensão do modelo cognitivo e da formulação cognitiva do
seu caso, de forma combinada com o questionamento socrático, foi possível favorecer
o entendimento da ligação entre sua história e suas dificuldades atuais e a reestruturação
da ideia de que seria abandonada e retaliada caso se priorizasse atualmente.
O questionamento socrático diz respeito a fazer perguntas que ajudem o cliente a
reavaliar a validade de suas cognições e a adotar uma perspectiva mais funcional. A
discussão da validade das ideias dos clientes pode ajudá-los a mudar seu pensamento
(Beck, 2022).
Como a mudança pode ser significativamente mais efetiva se o cliente tiver uma
experiência que refute a sua validade (Beck, 2022), o questionamento socrático pode ser
insuficiente se aplicado isoladamente. Desse modo, a terapia buscou associar estratégias
que favorecessem a reestruturação cognitiva, combinando o questionamento socrático aos
experimentos comportamentais.
Para a reestruturação cognitiva, várias outras estratégias foram empregadas, como
o exame de evidências, que se trata de uma técnica da TCC padrão que ajuda o cliente a
usar dados de realidade antes de tirar conclusões precipitadas, baseadas em distorções
(Beck, 2022). Assim, também é um recurso que leva à reestruturação de ideias
disfuncionais. Usamos, ainda, a avaliação de prós e contras de manter suas cognições,
a fim de gerar motivação para a mudança.
Recursos da ACT foram empregados quando a cliente relatava eventos que não
podiam ser modificados, apenas aceitos, e as emoções, validadas. A ACT é considerada
um modelo clínico de terceira geração da TCC e vem se destacando no tratamento de
diversos transtornos. Para a idosa, que necessita lidar com maior variância entre perdas e
ganhos, a ACT apresenta-se como alternativa para proporcionar capacidade de
contextualização a partir da aceitação dos eventos encobertos. A aceitação e o
compromisso, quando utilizados no momento presente, possibilitam uma melhor resposta
às contingências. Para a idosa, isso proporciona uma vivência flexível de seu envelhecer
e das perdas normativas e não normativas dele decorrentes (Medeiros & Hartmann Junior,
2019).
Outra técnica empregada e ensinada à cliente foi um exercício de relaxamento
por meio de imagens mentais. O imaginário envolve fazer o cliente criar uma visão na
sua mente de sentir-se relaxado, calmo e seguro em um ambiente particular, como deitado
em uma praia. Muitos clientes, sobretudo aqueles que experimentam tensão corporal,
beneficiam-se da aprendizagem de técnicas de relaxamento. O imaginário tende a reforçar
crenças adaptativas tanto no nível intelectual quanto emocional, sobretudo quando os
clientes experimentam afeto positivo ao visualizarem uma cena agradável (Beck, 2022).
Acolhimento empático e escuta sensível foram o pano de fundo ao longo do
processo terapêutico, elementos fundamentais para bons desfechos clínicos, para a
autoaceitação e para a qualidade da relação terapeuta-cliente. O reforço positivo de
comportamentos que indicavam a mudança da cliente também foi empregado para
fortalecer sua melhora clínica, bem como a própria relação terapêutica.
Beck (2022) sinaliza que é importante que o terapeuta esteja alerta para
oportunidades de reforçar o cliente pelo seu progresso. Enfatizar a ideia, sempre que
possível, de que ele mesmo proporcionou as mudanças no seu humor, ao fazer mudanças
no seu modo de pensar e no seu comportamento, ajudando a construir uma sensação de
autoeficácia.
Como limitação, não foram usadas medidas ou instrumentos psicológicos para a
avaliação inicial e acompanhamento do progresso da cliente. Trabalhou-se com a hipótese
de que Camélia estava com humor deprimido, decorrente do conjunto de contingências
aversivas que vinha experienciando durante a pandemia. Foi privilegiada a entrevista
clínica, para identificação e compreensão do histórico das queixas, e a conceituação de
caso individualizada para o planejamento do tratamento. A avaliação subjetiva da cliente
acerca de seu estado e a observação da terapeuta sobre a evolução do caso foram os
recursos empregados para identificar a melhora clínica e o momento da alta.
Deve-se levar em consideração que ainda são poucos os instrumentos disponíveis
para aplicação virtual na população brasileira, sobretudo para as pessoas idosas. Um teste
psicológico precisa ter evidências de validade quando aplicado em contexto online com
pessoas mais velhas, o que constitui um desafio para os pesquisadores que pretendem
construir instrumentos robustos para aplicação remota. No entanto, a anamnese e a
avaliação qualitativa do processo psicoterapêutico podem ser realizadas com eficácia no
formato on-line com pessoas mais velhas letradas digitalmente (Freitas et al., 2022).

Resultados principais

A partir das observações da terapeuta e da percepção subjetiva e relatos da cliente,


ganhos clínicos significativos foram identificados com o emprego das intervenções
cognitivo-comportamentais com a cliente apresentada neste capítulo. Mudanças
cognitivas, afetivas e comportamentais ocorreram no que tange à redução do padrão
disfuncional de orientação para o outro.
Camélia elaborou emocionalmente e cognitivamente as crenças de desamor e as
suposições de precisar estar sempre agradando e não incomodando para não ficar sozinha,
o que se refletiu em mudanças em seus comportamentos. Aprendeu nova forma de se
relacionar com o filho e a nora, passou a investir mais nas relações de amizade e no
autocuidado, o que favoreceu o atendimento de suas necessidades emocionais de cuidado
e atenção.

Considerações finais

Esse trabalho descreveu o atendimento psicoterápico do início ao fim de uma


pessoa de 66 anos, a partir de uma compreensão cognitivo-comportamental. Foram
utilizadas, de forma integrada, a TCC padrão de Beck e a TE de Young, para a formulação
cognitiva do caso e o planejamento do tratamento. Foram utilizadas diversas estratégias
dessas abordagens para promover reestruturação cognitiva e quebra de padrão
comportamental. Não foram usadas técnicas vivenciais focadas na emoção, embora a
ativação de cognições quentes ao longo da psicoterapia pareça ter contribuído para a
cliente alcançar mudanças significativas nas dimensões cognitiva, emocional e
comportamental.
Camélia foi uma cliente fácil de lidar, sempre foi assídua às sessões, precisou
desmarcar poucas vezes e, quando precisava, avisava com antecedência necessária para
remarcar a sessão. Teve uma evolução relativamente rápida, favorecida por sua boa
capacidade cognitiva e introspectiva. Fez insights sobre o próprio funcionamento com
facilidade. Apesar da boa capacidade cognitiva e flexibilidade para reestruturação
cognitiva, a cliente não se interessou por tarefas de casa que envolvessem escrita. Porém,
teve boa adesão aos experimentos comportamentais e isso pareceu ter sido um fator
relevante para sua melhora clínica.
Em uma revisão sistemática da literatura realizada por Medeiros e Hartmann
Junior (2019), foi apontado que as perdas cognitivas e funcionais mais bruscas tendem a
ocorrer em pessoas idosas institucionalizadas, com um perfil caracterizado por carência
afetiva, ausência ou precariedade do autocuidado, sedentarismo e falta de suporte
financeiro, sendo ainda mais significativas em pessoas acima dos 85 anos. O perfil de
Camélia, uma idosa “jovem”, com autonomia financeira, ativa socialmente e útil aos
outros no geral, certamente facilitou sua capacidade de elaboração cognitiva e
flexibilidade psicológica, o que favoreceu sua melhora clínica em um prazo
razoavelmente breve.
Estudos que avaliam a eficácia e a efetividade de intervenções psicológicas
mediadas por TICs com pessoas na velhice já têm sido realizados em outros países,
sobretudo na última década, e os resultados são animadores. Contudo, ainda são poucas
as investigações sobre a aplicação da telepsicologia no Brasil com amostras nacionais de
pessoas na velhice com funcionamento cognitivo normal ou com declínio cognitivo
(Freitas et al., 2022). É preciso projetar novas pesquisas a fim de criar um arcabouço
metodológico que instrumentalize o terapeuta para um público que será cada vez mais
recorrente nos consultórios e serviços de saúde. O envelhecimento populacional já é uma
realidade, e nenhuma área da psicologia poderá ficar aquém desse fato (Medeiros &
Hartmann Junior, 2019). Desse modo, o presente trabalho trouxe uma contribuição para
a literatura especializada em TCC acerca dos efeitos de uma psicoterapia online em uma
cliente idosa “jovem’’.

Referências

Beck, J. S. (2022). Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3ª. ed. Artmed.


Costa, E. P. S. (2019). Intervenção do psicólogo clínico com ênfase na terapia cognitivo
comportamental com idosos. Anais VI Congresso Internacional de Envelhecimento
Humano. Realize Editora. https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/53748
.
Freitas, E. R., Melo, D. M., & Oliveira, M. C. G. M. (2022). Telepsicologia com idosos
com depressão: intervenções psicoterapêuticas e neuropsicológicas. Em C. B.
Neufeld, & K. P. Del Rio Szupszynski (Orgs.). Intervenções on-line e terapias
cognitivo-comportamentais (pp. 162-181). Artmed.
Gama-Vieira, O. A., Araújo-Pimentel-de-Medeiros, A. G., & Santana, S. M. (2022).
Reflexões sobre a adaptação tecnológica para intervenções on-line com idosos,
Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 18 (1), 78-85.
Medeiros, A. G. A. P., & Hartmann Junior, A. S. (2019). Terapia de aceitação e
compromisso em idosos: revisão sistemática. Revista Brasileira de Terapias
Cognitivas, 15(2), 112-119
Oliveira, R. L. (2017). Desafios no atendimento aos Idosos: o equilíbrio entre
conhecimento técnico, habilidades terapêuticas e relação terapêutica. Psicologia em
Pesquisa, 11(1), 107-108.
Schutz, N. T. (2023). Manual de técnicas em terapia do esquema. Sinopsys.
Young, J. E., Klosko, J. S., & Weishaar, M. E. (2008). Terapia do esquema: guia de
técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Artmed.

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