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MANZANO, Cinthia Soares and PINTO, Fernanda de Sousa e Castro Noya. A entrada na creche: a
chegada dos bebês e suas vicissitudes.. In: PSICANALISE, EDUCACAO E TRANSMISSAO, 6., 2006,
São Paulo. Proceedings online... Available from:
<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100025&lng
=en&nrm=abn>. Acess on: 13 May. 2020.
RESUMO
Introdução
(...) embora o texto ora apresentado não seja fruto de um trabalho de pesquisa,
mas de reflexões elaboradas a partir da prática, tivemos como norte a preocupação
em considerar as determinações específicas da realidade da situação educacional a
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Aninha foi a última criança de seu grupo a entrar na creche e freqüentava apenas o
período da tarde. Quando chegou tinha 1 ano e 6 meses. Era filha única e morava
com o pai e a mãe. Ambos possuíam vínculo com a universidade, sendo o pai
professor e a mãe aluna de pós-graduação. Antes de entrar na creche Aninha
costumava ficar com a mãe em casa, que contava, por sua vez, com a ajuda de
uma auxiliar de serviços domésticos.
No primeiro dia Aninha chegou no colo da mãe, chorando muito, de modo que
demorou algum tempo para que a mãe conseguisse acalmá-la e entretê-la com
alguns brinquedos. No segundo dia, chegou acompanhada dos pais ainda chorando,
e nenhum dos dois conseguia acalmá-la. Nesse dia, Aninha não parou de chorar por
nenhum momento, o que tornou a situação incômoda, tanto para os pais como para
mim. Sentia-me imobilizada e surpresa, pois nunca tinha vivido uma situação em
que a criança não parava de chorar no colo dos pais, já que o que costuma
acontecer é a criança chorar com a educadora, chamando pelos pais.
Nos dias que se seguiram, Aninha continuou a chegar chorando no colo da mãe,
algumas vezes acompanhada também do pai. Aos poucos, eles foram conseguindo
acalmá-la. Busquei, então, passar alguns momentos por perto, numa tentativa de
aproximação. Quando percebi que Aninha começou a ficar sem chorar com a mãe,
sugeri que ela fizesse as primeiras saídas, sendo que isso deve ter acontecido em
meados da terceira semana, o que não é muito comum, pois na maior parte dos
casos as primeiras saídas costumam acontecer no segundo ou terceiro dia da
criança na creche. E foi assim que aquele choro profundo e constante, que eu
observei de longe nos primeiros dias, encontrou lugar em meus braços.
Assim, por muito tempo fui tomada pela exigência que ela me fez para que pudesse
participar da proposta que lhe foi feita, isto é, passar um tempo longe de seus pais,
no convívio de outros adultos e crianças que estão ali reunidos para viver alguns
momentos juntos, numa troca mútua de experiências diversas de formação. Senti
como uma condição para que aceitasse essa proposta a reivindicação de que eu
não me ausentasse por nem um minuto e, com isso, passei a administrar essa
exigência em minha rotina. Desse modo, por um longo período Aninha
acompanhava todos os meus passos e estávamos sempre juntas, sendo que eu não
podia sair de seu campo de visão por nenhum momento, ou ela começava a chorar.
É importante mencionar que percebi que essa relação gerou reações diversas de
outras crianças, e uma espécie de incompreensão até mesmo de outros adultos,
situação com a qual tive que lidar de maneira bastante cuidadosa.
Com o vínculo que estava sendo construído, parecia que algo ia "dando certo". Aos
poucos, comecei a fazer minhas próprias saídas para lanche, o que tinha evitado
por muito tempo. No início Aninha ficava inconsolável, e sabia que ela chorava por
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todo o período em que eu me ausentava. Com o tempo, logo que chegava à creche
e começávamos a brincar ela já me perguntava:
E eu dizia que mais tarde eu iria. Até que chegou o dia em que ela se despediu
sorrindo quando eu disse que iria sair mas já voltava. Ao mesmo tempo, ela
também começou a conseguir se despedir da mãe com menos choro e, quando os
pais chegavam para buscá-la, em vez de chorar, passou a sorrir e convidá-los para
brincar com ela na creche, de modo que, por vezes, dizia não querer mais ir
embora. Os pais pareciam também mais tranquilos e algumas vezes utilizaram uma
frase comumente repetida na creche:
– Na hora da chegada ela (Aninha) chora porque não quer ficar e na hora da saída
chora porque não quer sair.
Talvez eu mesma ficasse mais tranquila depois que ouvia essa frase com a qual já
estava acostumada a lidar e que, por fim, dava confiança e segurança a mim
mesma sobre o trabalho que estava realizando.
Uma noção que pode contribuir para pensar em possíveis respostas para esse
problema é a de que a escola pode ser compreendida como um espaço
intermediário entre a esfera privada e a pública. Para Arendt (2001), por precisar
ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, a vida privada,
enquanto a escola, por sua vez, tem o papel de introduzir a criança no mundo
público, embora ainda não seja o próprio mundo. Lajonquière (2003), ao discutir a
relação entre a escola republicana e a infância, também apresenta ideias nesse
sentido, pois considera a existência de um "teatro escolar", que gira em torno de
uma paradoxal demanda endereçada às crianças que implica numa dialética entre o
lado criança e "sua psicologia infantil", recalcados à intimidade privada do lar, e o
lado aluno que frequenta a escola e, portanto, que passa a ficar sob o olhar
do público7. Para o autor, o mundo que a escola mostra às crianças está
escolarizado e, portanto, não é de fato o mundo adulto. Nesse caso, o professor
seria uma espécie de embaixador do mundo adulto, "encarregado de nele introduzir
as crianças segundo uma dosagem e um tempo escolar" (idem ibid.: 151).
Em muitos momentos de seu relato é possível perceber que você tomou decisões
permeadas talvez por uma vivência própria, pela maneira que você entende a
infância, o que é algo acolhedor etc. Como seria possível pensar na formação de
educadores levando em conta que, muitas vezes o que está em jogo nas decisões
com crianças muito pequenas é permeado por princípios e vivências tão singulares
e pessoais?
Como nosso trabalho faz parte de um colóquio que visa um diálogo entre as áreas
da educação e da psicanálise, penso ser interessante citar o trecho de um texto que
transita nessas duas áreas e traz uma reflexão para pensarmos sobre a importância
do trabalho com histórias de vida na formação de professores:
(...) um adulto pode se dispor a dialogar sobre tudo com uma criança, mas sempre
haverá um ponto que lhe escapará. O adulto não pode compartilhar esse ponto,
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pois escapa também a ele aquilo que essa criança representa inconscientemente
(Lajonquière, 2003: 153).
Considero que os trabalhos com histórias de vida assumem esse ponto que escapa,
isto é, essa falta sempre presente nas relações que se criam entre os professores e
seus alunos. Tal abordagem reconhece que, ao lado do saber formal e exterior ao
sujeito visado pelas instituições escolar e universitária, estão os saberes subjetivos
e não formalizados que os indivíduos colocam em prática nas experiências de suas
vidas, em suas relações sociais e em suas atividades profissionais. Assim, trabalha-
se com a perspectiva de que o modo como o professor vai conduzir sua ação
pedagógica implica mais do que os dispositivos que são ativados apenas a partir de
sua formação profissional, mas também, possivelmente, imagens e representações
da própria infância, e mesmo sobre o que é ser professor, que estão enraizadas nas
experiências infantis e na cultura do ensino, forjadas, especialmente, no contato e
na convivência com a própria escola, como sugerem Catani et al. (2000).
No primeiro dia em que a mãe de Mila ficou apenas por uma hora e depois a deixou
para que começássemos a adaptação sem sua presença, ela chorou muito.
Rapidamente Mila elegeu duas pessoas a quem permitiu aproximação, uma
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educadora e uma funcionária da equipe de apoio. Fui eleita por Mila, e eu não sabia
a dimensão disto.
No início parecia simples, Mila se acalmava comigo, então pronto, bastava que eu
me dedicasse a ela quando ela precisasse e tudo estaria bem, mas as coisas não
ocorrem bem assim em uma adaptação. Mila não ficava sem mim nem por um
segundo, não comia a sopa nem tomava leite, não dormia e se desesperava se eu
me distanciasse dela. Aos poucos eu ia procurando significar seus choros e dar
algum sentido para suas ações. Passei a conhecê-la mais de perto e "decifrava seus
códigos", pelo menos eu assim, supunha. Nomeava suas escolhas e dizia delas às
outras educadoras: - Hoje a Mila brincou muito com este patinho, acho que o
patinho é o brinquedo favorito da Mila aqui na creche! Não é Mila?
Foram muitos dias com ela no colo durante todo tempo de sono para que ela
pudesse descansar um pouquinho. Sua adaptação foi cheia de sutilezas, pequenas
delicadezas, muito colo, bastante presença do outro, muitas estratégias pensadas
em equipe para dar conta de suas necessidades.
Em muitos momentos eu era convocada por outras educadoras para dar conta das
exigências de Mila. Enquanto ela seguia a passos lentos em sua adaptação,
algumas educadoras perguntavam e muitas vezes eu mesma me fazia a mesma
pergunta: até quando aquela adaptação seguiria? Quando Mila poderia prescindir
de minha presença de forma tão intensa?
Lembro-me de uma vez que o pai de Mila veio buscá-la e perguntou o que
colocávamos na sopa da creche. Contou que sua esposa passava horas tentando
fazer a sopa, pois há alguns dias era só o que Mila queria comer. O bebê não
parece ser o único a passar por intensas experiências de mudanças ao entrar na
creche, mas assim como ele, passam por diferentes experiências também seus
pais, seu entorno familiar, as educadoras e até mesmo a própria instituição. A
entrada na creche instaura mudanças de referenciais, a relação exclusiva dual
passa a ser intercalada por relações em um contexto de uma nova instituição,
diferente da familiar.
Existem dois pontos muito interessantes em sua pergunta. O primeiro, no que diz
respeito ao cuidar e educar quando se trata de um bebê; o segundo, sobre o saber.
Em que lugar está o saber? Vou iniciar pelo segundo ponto.
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Um aspecto que demarcava claramente uma transmissão familiar era o nome que
se escolhia à criança que vinha ao mundo, a transmissão de pai para filho, dos
avós, dos padrinhos. Antes do advento do espelho, a identidade corporal era lida
nos olhos dos outros, de acordo com Corbin (1999). E isto se dava de forma
diferente do que ocorre hoje e, revelava-se por meio da escuta e da percepção
interior. Conforme Veronique Nahoum (2004), vivia-se em um corpo que não se
via. O outro sustentava certo lugar de saber.
(...)A instituição família, assim como seu lugar de saber, vem mudando a olhos
vistos. Hoje não podemos mais falar em família com uma concepção tradicional em
mente. Uma união seja ela longa, ou breve, oficialmente consumada ou não, uma
produção independente, são, cada vez mais, as famílias de agora. É cada vez mais
frequente encontrarmos crianças educadas por pais isolados, de
homoparentalidade, de acordo com Silva (2004).
Nos discursos científico e técnico que encontram espaço cada vez mais evidente,
apresentam-se discussões sobre como deve ser uma educação, as consequências
deste ou daquele ato, desta ou daquela decisão. Disponibiliza-se uma gama de
possibilidades para substituir o antigo saber de âmbito íntimo, da transmissão
familiar do nome para o "tudo pode ser sabido" (...).
O laço social é aquilo que permite ao sujeito fazer um vínculo com a cultura, uma
aliança com o universo simbólico que rege as relações humanas. Sua construção se
dá como uma consequência do atravessamento das encruzilhadas psíquicas pelas
quais passa um sujeito para sua constituição. (Kupfer, Projeto 52 1061/95)
Um dos primeiros movimentos do bebê quando os pais se afastam e ele "se vê"
naquele lugar "estranho" (a creche) é eleger um "adulto referência". Não é por
acaso que esta é uma função oficializada pela creche estudada neste trabalho.
Assim, podemos pensar que, nesta busca por uma referência, na experiência do
desamparo, a criança encontra a singularidade de uma relação com um outro e
pode atualizar na educadora, processos de suas próprias vivências anteriores de
desamparo, suscitando assim uma resposta sempre muito singular e única. É a
relação daquela criança com aquela educadora, naquele momento, e com as
condições internas pertinentes a cada um da dupla, ocorrendo em um contexto
institucional com suas especificidades. Isto pode parecer simples, mas de maneira
alguma o é. Trata-se de uma verdadeira possibilidade de humanização. Pouco, ou
quase nada, poderíamos aqui falar em fórmulas, encontrar o que se poderia chamar
de maneira mais adequada, tanto nos discursos da educação quanto da psicanálise.
O que se dá ali, na possibilidade para a criança da relação com a referência é ainda
um primeiro passo, uma transmissão de um certo lugar de saber sobre o humano.
A criança agora tem, além de seus pais, um outro da cultura que legitima a
importância de suas necessidades e dá a elas um outro sentido, ampliando assim a
gama de possibilidades em seu mundo interno. A família se transforma nessa
experiência, encontra um espaço de questionamento, parceria etc. para suas
concepções de educação. Talvez pudéssemos então supor que essa experiência
convida, tanto ao bebê quanto a seu entorno familiar, a recombinar recortes do
mundo.
A questão que se coloca é: porque será que o adulto não aguenta "ouvir" as
angústias de uma criança? Talvez porque, primeiro: estes adultos têm um
inconsciente e segundo: já foram crianças, portanto, já passaram por esta angústia
e não querem mais ouvir falar nela13.
E como bem diz Machado de Assis (1984), no clássico "Memórias Póstumas de Brás
Cubas": "A infância supõe o nascimento, mas não há juventude sem infância". E
talvez possamos pensar então que não pode ser um adulto que vai bem, sem ter
sido uma criança que pôde contar com o direito de ser criança. Para finalizar,
gostaria de lembrar que a contribuição da psicanálise à educação não é
metodológica e, sim, de um lugar de possíveis questionamentos e propostas de
reflexão sobre métodos vigentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CATANI, D. B.; BUENO, B. A. O.; SOUSA, C. P. "O amor dos começos": por uma
história das relações com a escola. Cadernos de Pesquisa, n. 111, dez./ 2000.
CORBIN, Alain. "Bastidores". In: Perrot, Michelle (org). História da vida privada.
Vol. IV, Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
SILVA, M.C.P. (revisão técnica da tradução) Ser pai, ser mãe: parentalidade: um
desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
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