Você está na página 1de 19

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/262048659

Fundamentos éticos da deontologia profissional

Article · December 2008

CITATIONS READS
7 92,751

1 author:

Lucília M Nunes
Instituto Politécnico de Setúbal
85 PUBLICATIONS 251 CITATIONS

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Lucília M Nunes on 05 May 2014.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


«10 Anos de Deontologia Profissional em Enfermagem»

FUNDAMENTOS ÉTICOS DA DEONTOLOGIA PROFISSIONAL1

Lucília Nunes

No contexto do IX Seminário de Ética, foi-me proposto estruturar os fundamentos éticos


da deontologia profissional do enfermeiro. Pode ser interessante, durante um espaço de
tempo reflexivo, fazer convosco o caminho de indagar acerca dos princípios em que se
ancora a praxis do enfermeiro. Por isso, nem falarei muito – assim o espero – dos deveres
ou do normativo deontológico. Vamos centrar-nos no campo que Ricoeur designou por
«ética anterior», pois sem esta Ética, a deontologia seria como uma casa sem alicerces...

I. DA DEONTOLOGIA

A moral é atravessada pela norma – se tem «lei, «regra», é desta esfera; parâmetros que
indicam o que se pode ou não pode fazer. Naturalmente, não há regras para tudo... ou
melhor, apesar das normas existentes (jurídicas, morais...) muitas vezes ficamos na dúvida
sobre como agir recta e correctamente. Isso porque ou não existem normas que se
apliquem concretamente, ou não as conhecemos ou não as sabemos interpretar bem.
Na vida do dia a dia, debatemo-nos frequentemente com problemas que carecem que
formulemos juízo ou, se preferirem, julgamento moral e para os quais pode não existir
uma norma concreta. Felizmente, diria. Até porque a realidade não se amansa nem se
aquieta sob as regras.
O acto que realizamos, consciente e voluntário, supõe a participação livre de quem age – e
quando se adere às normas, é, ainda assim, da liberdade de cada um escolher seguir a
regra. Uma convicção íntima ou pessoal há-de presidir aos nossos actos, diremos assim,
até porque não poderia tratar-se de uma adopção mecânica, impessoal, ou de uma
imposição das normas.

Todos os códigos (de direito civil, de direito penal, de direito canónico, de trânsito,
deontológico), ditam normas que prescrevem deveres, estabelecem regras que devem ser
obedecidas. Estes códigos têm todos, em comum, uma origem – lugar e data, além dos
autores – e fundamento ético. A sua génese, na organização social e política, tem um
sentido próprio. E, fundamentalmente, delimitam, configuram.

Foi Jeremy Bentham que usou, pela primeira vez, a palavra «deontologia», no título de um
tratado de moral publicado postumamente em 1834: Deontology or the scíence of
morality. Etimologicamente, é o discurso ou tratado acerca daquilo que se deve fazer.

1Publicado em Revista da Ordem dos Enfermeiros, nº 31, dezembro 2008, p. 35-47. ISSN 1646-2629.
http://www.ordemenfermeiros.pt/comunicacao/Revistas/ROE_31_Dezembro_2008.pdf

Página 1 de 18
Assim, a deontologia toma como objecto do seu discurso o "a-fazer", aquilo que, por
dever, se nos impõe como tarefa indeclinável, quer enquanto projecto, quer enquanto
realização concreta.
Em formato simples, a deontologia é o estudo ou tratado dos deveres, próprios de uma
determinada situação social, no nosso caso, profissional. Compreensivelmente, pressupõe
uma teoria geral da acção humana, isto é, uma ética geral e uma teoria especial de acordo
com a(s) tarefa(s) humana(s) em questão. Associando as duas ideias, podemos seguir a
concepção de que a Deontologia Profissional seja «o conjunto de normas jurídicas, cuja
maioria tem conteúdo ético e que regulam o exercício de uma profissão»2.
De onde, uma deontologia profissional trata de garantir o bom exercício da profissão,
alicerçando-se, por um lado, nos princípios éticos e por outro na sua própria
regulamentação – ou seja, na auto-regulação que decorre da formulação e defesa de um
padrão de competência. Por isso a auto-regulação profissional tem sido perspectivada
como o sentido último da responsabilidade dos profissionais.

Notemos que o ético não é algo estranho a nós – envolve um juízo e determina, em si,
uma escolha, uma direcção para agir. E a escolha não é fruto da arbitrariedade, antes se
constituindo como expressão máxima de um conjunto de valores.
Se pensarmos que a deontologia visa disciplinar uma actividade profissional, estabelecer
regras direccionadas para a vivência profissional, o pressuposto é que a ética encerra em
si a ideia do valor pelo qual se age, e que é fundamental tanto do ponto de vista interno –
da concepção própria – como externo, na relação social e com o colectivo.
Fechamos mais o círculo, se quiserem, colocando a deontologia como dimensão ética
aplicada do agir profissional.

II. DA PROCURA DOS PRINCÍPIOS ÉTICOS NA ANCORAGEM DA DEONTOLOGIA

Enfermagem é uma profissão e, como mostraram muitos estudos, a definição de um


conjunto de normas e valores próprios constituiu uma dimensão essencial do processo de
profissionalização.
Entendemos, neste contexto, profissão como uma construção social e histórica, através
da qual foram sendo incorporadas, em momentos e com intensidades diferentes, diversas
componentes, de entre as quais podemos destacar um processo de socialização em
determinados valores, sistematizado, por vezes, sob a forma de um código.

No tempo e na estruturação como profissão, os enfermeiros foram identificando os


princípios e os valores, que sempre se encontram presentes, mesmo quando mais difusos
ou mais ideológicos, diria que uma espécie de cristalização dos pensados sobre a
experiência ética de ser enfermeiro. Por isso, a deontologia é vista como algo construído a
partir do interior da profissão, resultante duma reflexão própria sobre a prática, e não
como algo imposto de fora, por exemplo pelo Estado.

2 GUEDES DA COSTA, Orlando - Direito Profissional do Advogado. Coimbra: Almedina. 2003.

Página 2 de 18
Enfermagem é uma profissão que tem uma finalidade moral e ao enfermeiro é exigível
que regule a sua actividade por uma ética profissional. Vejamos que, de acordo com o
enquadramento conceptual, afirmamos que o exercício profissio al da e fer age
centra-se na relação interpessoal de um enfermeiro e uma pessoa ou de um enfermeiro e
um grupo de pessoas (família ou comunidades). 3
Partindo da premissa que quer o enfermeiro, quer as pessoas clientes dos cuidados de
enfermagem, possuem quadros de valores, crenças e desejos, decorre que o enfermeiro
se distingue pela formação e experiência – e, de modo central para o que aqui nos
interessa – por respeitar os outros numa perspectiva multicultural. Assim, evidencia-se o
princípio humanista de respeito integral pelas pessoas.
Mais afi a os ue a relação terapêutica promovida no âmbito do exercício profissional
de enfermagem caracteriza-se pela parceria estabelecida com o cliente, no respeito pelas
suas capacidades e na valorização do seu papel. Po isso afi a os ue os cuidados de
enfermagem tomam por foco de atenção a promoção dos projectos de saúde que cada
pessoa vive e persegue 4.
Posto isto, regressemos à demanda da finalidade. Quais os fins que a Enfermagem
persegue. O que queremos?
Com a pessoa, ao longo de todo o ciclo vital, (1) prevenir a doença e promover os
processos de readaptação ,(2) promover a satisfação das necessidades humanas
fundamentais e a máxima independência na realização das actividades da vida,
considerando a adaptação funcional aos défices e a adaptação a múltiplos fa to es 5

Premissas Caracterização da profissão Finalidades da acção


o enfermeiro e as centra-se na relação interpessoal de um enfermeiro
pessoas possuem e uma pessoa ou um grupo de pessoas
quadros de valores, relação terapêutica caracteriza-se pela parceria a procura do
crenças e desejos estabelecida com o cliente, no respeito pelas suas interesse e do bem
capacidades e na valorização do seu papel. estar do Outro
perspectiva humanista cuidados de enfermagem tomam por foco de
de respeito integral atenção a promoção dos projectos de saúde que
pelas pessoas cada pessoa vive e persegue

Podemos agora re-centrar na preocupação com as implicações éticas do ser enfermeiro.


Pois que existe uma dimensão ética deste agir, própria, que nos leva a firmar a existência
de uma ética de enfermagem. Quais os fundamentos dessa ética? E, antes, qual a noção
de fundamento?

A NOÇÃO FILOSÓFICA DE PRINCÍPIO E DE FUNDAMENTO


Na linguagem clássica falava-se de princípio - Aristóteles atribuiu à «arquê» várias
acepções, sintetizadas por Comparato6:

3 ORDEM DOS ENFERMEIROS, Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros, 2001.
4 Idem, p. 8.
5 Idem, p. 9
6 Cf. COMPARATO, Fábio Konder – Fundamento dos direitos humanos. Institutos de Estudos Avançados da
Universidade de S. Paulo. Disponível em http://www.iea.usp.br/artigos (20. Agosto, 17:50). Sd.

Página 3 de 18
(1) o sentido do começo de uma linha ou de uma estrada, o ponto de partida de um
movimento – físico ou intelectual;
(2) o elemento primeiro e imanente do futuro, ou seja, algo que evolui ou se
desenvolve – podem ser exemplo as fundações de uma casa;
(3) a causa primitiva e não imanente da geração ou de uma acção – portanto, os pais
em relação aos filhos ou um insulto em relação a um combate;
(4) a palavra «princípio» também se usa para designar a pessoa, cuja vontade é causa
de movimento ou de transformação
(5) e ainda, é princípio, numa demonstração lógica, as premissas em relação à
conclusão.

Foi preciso chegar a Kant para o desenvolvimento da noção de principio para


fundamento. Na Fundamentação da metafísica dos costumes7, abordando com
profundidade o problema do imperativo moral, irredutível a qualquer outro fundamento
anterior, Kant quer encontrar o último fundamento da moralidade, a que viria a chamar
«imperativo categórico» isto é, um princípio que é fundamento último para todas as
acções humanas. Na sua obra A religião nos limites da simples razão8, a noção de princípio
ético, no sentido de razão justificativa, foi inteiramente substituída pela noção de
fundamento.
Enquanto na teoria geral do Direito, a noção de fundamento diz respeito à validade das
normas jurídicas e à fonte de irradiação dos efeitos decorrentes, na filosofia moral
procuramos o princípio ético, que justifica (se formos kantianos) a conduta humana.

Uma das tendências marcantes do pensamento hoje, é a convicção generalizada que o


verdadeiro fundamento não deve ser procurado na esfera da revelação religiosa nem
numa abstracção metafísica como essência imutável de todos os seres humanos. Se o
direito, por exemplo, é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que
o criou. O que significa que o fundamento não é outro senão o próprio homem,
considerado na sua dignidade substancial de pessoa.

Como é que passamos para a ideia de dignidade humana?


Para responder, precisamos de tomar posição sobre a essência do ser humano.
Ou seja, de formular uma antropologia filosófica, pois é a concepção que temos do ser
humano que orienta as outras formulações.
Já nos filósofos antigos se destacou a concepção do ser humano, aliás, a pergunta «O que
é o homem?» é fundante da reflexão filosófica.

7 KANT – Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1992.


8 KANT - A Religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992. Kant
compreende que a religião não é um objecto do conhecimento teórico, e sim da disposição prática subjectiva, o que
pressupõe, no seu ponto de partida, que a moral conduz à religião e não o contrário. A religião racional tem como
princípio a formação moral do indivíduo, que torna sensível a percepção da lei moral para o homem, que por sua vez,
procura dentro de si um princípio subjectivo que possa orientá-lo na formulação de máximas morais para a sua vida.
Verdadeiramente, pode dizer-se que a vontade é livre se as leis da acção são dadas pelo próprio sujeito da acção, de
forma autónoma. Ou seja, a famosa máxima do «pensar por si mesmo».

Página 4 de 18
Diria Protágoras que «o homem é a medida de todas as coisas». Afirmava Plotino que o
lugar do homem é entre os deuses e as feras. Sem dúvida que a especificidade da condição
humana se foi modificando, tendo, por isso mesmo, carácter histórico.

Digo hoje que uma das características essenciais do homem – e não estou a escamotear a
racionalidade – é a razão axiológica, ou seja, a nossa capacidade de apreciação de valores
(éticos, estéticos, religiosos, políticos...) e de livre escolha em relação a eles.
E se não é possível fundar a ética com recursos a princípios puramente formais, pois que o
suposto da ética é a Pessoa humana, na sua racionalidade e afectividade - pode fundar-se
nas preferências axiológicas.
O homem é um ser dotado de vontade, ou seja, da capacidade de agir livremente. E
voltamos a chegar a Kant, naturalmente, com o homem como fim em si mesmo. E ao
imperativo categórico que ouvimos já muitas vezes - age de odo a t ata a hu a idade,
ão só a tua pessoa as a de todos o o u fi e ja ais o o u eio .
Ponto assente, então.

Do ponto de vista filosófico, princípio remete-nos para o início, para a ausência de algo
anterior pois que ele mesmo inicia. Causa primeira, fundamento de que derivam outras
proposições, com nexo lógico, de consequência ou de relação subordinada.
Pensando numa teoria da acção, podemos assim retomar a ideia do «agir» em que
«agere» tanto significa comandar como desencadear um processo, imprimir um
movimento. O princípio instala-se como «o começo», inspirador e fundante do que se
sucede.

O princípio, na realidade, não obriga nem impõe – ou não fosse ele do domínio da ética.
Mas o princípio é gerador da norma, que enquanto enunciado de aplicação obrigatória, já
saiu da esfera da ética para a do direito.
Entendendo o princípio como requerido pela Ética, a norma como sendo do campo do
Direito, a sabedoria prática tem a ambição de conciliar ambos, em situação concreta,
singular, de conflito e incerteza.
Claramente, coloco aqui a concepção de Ricoeur, de que o horizonte é de procura de uma
vida boa, com e para com os outros, em instituições justas.
Assim, quem formula os princípios são as pessoas.
Na assunção de que se possa viver bem e uma vida boa.
A ideia directriz é que os princípios fundamentam os procedimentos e que estes viabilizam
a construção de uma sociedade livre e equitativa.

Então, que princípios estarão colocados, cuja finalidade da acção do enfermeiro possa ser
a procura do bem estar e do que cada um entende como «qualidade de vida»?

PRINCÍPIOS DO AGIR PRÓPRIO DO ENFERMEIRO

O primeiro que pode parecer–nos relevante é o facto de to a mos conta da vida .


Poderíamos pensar num princípio de protecção da vida, e não «direito à vida» porque

Página 5 de 18
este, sendo um direito, seria ele mesmo fundamentado num princípio ético. Princípio este
que proclamaria o valor da vida e a exigência ética da protecção da vida.
Sendo assim, percebemos que proteger a vida pode ser feito de várias formas.
Protejo a vida, quando actuo no sentido de prevenir que ela esteja em risco ou venha a
poder ser colocada em causa. Protejo a vida, quando ela está ameaçada e intervenho com
cuidados de reparação. Protejo a vida quando coloco taipais de protecção em redor de
andaimes, para evitar que quem vai a passar se magoe. E sigo o mesmo princípio, quando
lavo as mãos ou quando asseguro o bom funcionamento dos equipamentos.
Este eventual princípio de protecção da vida tem um amplo espectro de aplicações...
Na nossa área de acção, tanto justifica a protecção ou promoção da saúde como justifica a
intervenção curativa e os tratamentos.
De que vida se trata? Do ponto de vista ético, da vida humana.
Que tem, ela mesma, condições de ambiente para existir. Por isso, protecção da vida
humana. Mas também protecção do ambiente, dos meios necessários à vida. É para
proteger a vida que se deve proteger a água, por exemplo.
Portanto, não será difícil consensualizar que este não seria um princípio específico.

A dimensão que o torna mais específico pode ser pensá-lo na área da saúde?
Mas não poderemos trocar por protecção da saúde” – não apenas porque é hoje
considerada um direito civilizacional, o que implica que a sua salvaguarda é
responsabilidade da sociedade e das suas instituições democráticas, como, no nosso caso,
é assumido como direito constitucional.
Aliás, o direito à saúde literalmente entendido seria um estranho e curioso direito, que
ninguém poderia assegurar e, portanto, ninguém poderia ter como dever. Por isso, o
direito reporta a cuidados de saúde com o correlativo dever de desenvolver esforços
tendo em vista a recuperação da saúde, a prevenção da doença ou a reabilitação e
reinserção das pessoas.
Realmente, não se consegue assegurar o (desejável) fim de garantir um determinado nível
de saúde e existem inúmeros factores que aqui intervêm (sejam eles pessoais, sociais,
culturais ou organizacionais).
O direito a cuidados de saúde é uma exigência primária do direito à vida.

Podemos pensar que temos por valores finais a preservação da vida e a diminuição do
sofrimento. Estes fins operacionalizam-se com meios políticos, isto é, a protecção da
saúde como um direito de todo cidadão, considerando que toda a vida é importante em
si, desagua na razão de dever do Estado.
É, hoje, um direito democrático dos cidadãos que se estabeleceu a partir de uma
racionalidade comunicativa, como diria Habermas, na qual a razão se constitui, fundada
no diálogo, na argumentação e, portanto, no reconhecimento do outro como sujeito ético
e político.
Por detrás da implementação prática das políticas públicas ressentem-se conflitos ético-
políticos seja pelas pressões de uma ética mais utilitarista como defendem alguns ou uma
ética da espo sa ilidade o o defi ia We e , que dá mais ênfase aos resultados a
serem obtidos.

Página 6 de 18
Portanto, reconhecemos que a protecção da saúde não basta como princípio pois «tomar
conta da vida humana» acompanha para lá dos limiares onde a protecção da saúde é
possível e acompanha nos processos de morrer, temos de recuar um pouco mais e
equacionar um princípio ético, que se coloque antes das normas e das leis, e que estas
dele derivem.

Os fins é o que se visa, o que se quer alcançar como resultado final.


Os princípios serão o de onde se parte, que fornecem os critérios que orientam as
decisões que conduzem aos fins. Não será, então, o bem estar que se pode colocar como
princípio. Aquilo que se visa, que se tem como fim, não pode ser princípio...
A enfermagem tem como finalidade o bem estar das pessoas, com conforto, sem ou com
o menor sofrimento possível, com capacitação do Outro para o autocuidado.
É porque somos pessoas, que a nossa vida não é meramente biológica.
E o facto de nascermos pessoas confere, a cada um, dignidade.
Ela é o princípio e assumir-se-á como valor, ao constituir-se como critério das decisões.
O princípio da dignidade humana é um princípio ético.
Que tem repercussões na deontologia como tem no direito ou na moral.
E porque a dignidade diz respeito ao ser humano, nela se ancoram a autonomia, o
respeito pelas escolhas de cada um, a tolerância activa face às diferenças, o respeito pelas
opiniões e convicções pessoais.
E o princípio da dignidade humana pertence, se quisermos, à ética anterior.
É, aliás, reconhecido, no Código Deontológico do Enfermeiro, como princípio geral, pois
as intervenções de enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da
dignidade e da liberdade da pessoa humana e do enfermeiro 9.

Princípio Decorrentes Travessia pela norma Fundamento ético


Ética anterior do agir
Autonomia as intervenções de
Respeito pelas escolhas de cada enfermagem são realizadas
Dignidade um, opiniões e convicções com a preocupação da defesa
da dignidade e da liberdade da ???
humana pessoais
pessoa humana e do
Tolerância activa face às
enfermeiro
diferenças

Como é que, atravessando a norma, se transforma em princípio da ética aplicada à acção


do enfermeiro? O modo específico como o enfermeiro operacionaliza este princípio?

Diria que o cuidado humano é o eixo que permite que seres humanos percebam e se
reconheçam uns aos outros, pois existe um compromisso, uma responsabilidade
profissional. O cuidado como uma forma de relacionamento com o Outro ser humano e
com o mundo, enfim, como uma forma de viver plenamente.
Cuidado humano dirigido ao tomar conta da vida.

9 DL 104/98, SECÇÃO II, Do código deontológico do enfermeiro, Artigo 78.º, nº1.

Página 7 de 18
O cuidado emerge quando nos preocupamos com alguém, quando nos responsabilizamos,
nos fazemos profissionalmente presentes.
Funda-se num interesse pelo bem-estar do Outro, pelo despender atenção ao Outro.

Bem vistas as coisas, o cuidado pode bem ser um imperativo moral das profissões de
saúde.
Temos então o cuidado humano, que se assume como respeitador da pluralidade e da
diversidade. Da multiculturalidade.
Portanto, o cuidado não ignora o Outro, nem a sua autonomia ou o seu desenvolvimento.
Não substitui o Outro quando ele precisa de apoio parcial.
Promove o seu desenvolvimento e a optimização das suas capacidades.
Se imitássemos Kant, e construíssemos um imperativo diríamos: «Age sempre de tal
maneira que a tua acção de cuidado seja protectora da vida e da dignidade humanas»

Princípio Decorrentes Travessia pela norma Fundamento ético do


Ética anterior agir do enfermeiro
Autonomia as intervenções de
enfermagem são realizadas
Respeito pelas escolhas de cada com a preocupação da
o cuidado humano
Dignidade um, opiniões e convicções defesa da dignidade e da
dirigido ao tomar
humana pessoais liberdade da pessoa
conta da vida
humana e do enfermeiro
Tolerância activa face às
diferenças
«Age sempre de tal maneira que a tua acção de cuidado seja protectora da vida e da dignidade
humanas»

Existe uma relação anunciada entre a preocupação da defesa da dignidade e da liberdade.


Não tomemos, portanto, uma pela outra.
Seres humanos igualmente dignos e livres, eis Quem são os destinatários dos cuidados do
enfermeiro. Mas colocados numa posição assimétrica, uns em relação aos outros.
Se pensarmos num eixo de «dar e receber», há uma clara assimetria na relação entre o
enfermeiro e a pessoa de quem cuida. Como é que se equilibra esta assimetria? Já lá
iremos....

Vejamos quais são os valores universais10 a observar na relação profissional. Trata-se um


conjunto. Podia aqui evocar a formulação da teoria dos conjuntos e a concepção abstracta
que o que os torna conjunto é terem uma propriedade comum.
Ao caso, terem sido formulados como os valores universais da praxis do enfermeiro.
Quatro pares e um isolado.
Isolada está a igualdade, que aparece sozinha. Depois, 4 pa es: a o pet ia e o
ape feiçoa e to p ofissio al , o alt uís o e a solida iedade , a ve dade e a justiça e a
li e dade espo sável , se do ue este te u des itivo asso iado – o a
apa idade de es olha, te do e ate ção o e o u .

10 DL 104/98, SECÇÃO II, Do código deontológico do enfermeiro, Artigo 78.º, nº2

Página 8 de 18
Tomo a liberdade do os organizar em torno de eixos ligeiramente diversos:
- inerentes ao papel assumido perante a sociedade - a liberdade responsável; a verdade e
a justiça
- centrados no Outro – a igualdade; o altruísmo e a solidariedade
- virados para o exercício da profissão - a competência e o aperfeiçoamento profissional.

Porquê assim? Os valores valem como critérios orientadores da decisão. E a própria


actividade dos enfermeiros tem preconizados três princípios orientadores da acção, a
saber:
a) A responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade;
b) O respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes;
) A ex el ia do exe í io a p ofissão e ge al e a elação o out os p ofissio ais.

E como estes são princípios da ética aplicada, da acção, posso pensar que existem
princípios éticos anteriores, em que estes se ancoram e fundamentam.
Resta identificar quais são...

Valores universais na relação Travessia pela norma e ligação aos


profissional princípios orientadores Fundamentos éticos
igualdade centrados no Outro
??
o altruísmo e a solidariedade (respeito pelos direitos humanos)
liberdade responsável inerentes ao papel assumido perante a
??
a verdade e a justiça sociedade (responsabilidade...)
a competência e o virados para o exercício
??
aperfeiçoamento profissional (excelência do exercício)

Vejamos um a um.

A responsabilidade é inerente ao papel assumido perante a sociedade – portanto, decorre


– é consequente - de um compromisso profissional de cuidado humano, que é, em meu
entender, anterior ao pacto de cuidado, concreto, que estabelecemos no dia a dia.
A assunção de um pacto decorre de um contacto estabelecido – habitualmente, por parte
das pessoas que recorrem aos enfermeiros (directamente ou indirectamente, através dos
serviços de saúde) podendo igualmente acontecer que seja o enfermeiro a estabelecer o
contacto (em situações de saúde comunitária, saúde escolar ou no trabalho, entre outros).
E em cada contexto – de acordo com modalidades diferentes – o pacto de cuidado
reveste-se de formas diversas, podendo ir do serviço público ao privado, ao regime liberal
e até voluntariado.

Julgo o pacto posterior ao compromisso, pois é necessário que o enfermeiro seja


enfermeiro (isto é, tenha um título profissional) e tenha assumido a responsabilidade de
prestar cuidados de enfermagem, de acordo com determinados standards, previamente a
estar em situação efectiva de contrato ou de prestação de serviço. Assim, a precedência é
claramente do compromisso sobre o pacto.

Página 9 de 18
Comprometemo-nos a cuidar profissionalmente das pessoas, em termos abstractos.
É requisito deste compromisso que exista um perfil de competências – a aquisição de
competências na formação inicial é enriquecida e desenvolvida, no tempo e nos contextos
de prestação de cuidados, através da reflexão sobre a acção.

Reorganizando, a Enfermagem tem como essência e especificidade o cuidado ao ser


humano na área da saúde.
Assi se e te de ue o fo o de ate ção dos uidados seja a p o oção dos p oje tos de
saúde ue ada pessoa vive e pe segue eleva do-se que, ao longo de todo o ciclo vital,
se p o u a p eve i a doe ça e p o ove os p o essos de eadaptação após a doe ça,
procura-se a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima
independência na ealização das a tividades da vida diá ia .
Por isso se desenvolvem actividades de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação
da saúde, actuando em equipas multiprofissionais a todos os níveis de organização dos
serviços de saúde.
Se quisermos, o compromisso profissional de cuidado é o princípio que suporta a
responsabilidade e de onde ela deriva.

Valores universais na relação Travessia pela norma e ligação aos


profissional princípios orientadores ?? Fundamentos éticos
igualdade centrados no Outro
o altruísmo e a solidariedade (respeito pelos direitos humanos)
liberdade responsável inerentes ao papel assumido perante a Compromisso profissional
a verdade e a justiça sociedade (responsabilidade...) de cuidado humano
a competência e o virados para o exercício
aperfeiçoamento profissional (excelência do exercício)

Vejamos o segundo, neste processo de «andarmos para trás»-


O respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes é princípio orientador da
actividade.

Vale perguntar o que se e te de po direitos humanos .


Enquanto reivindicação moral, os direitos humanos nascem quando devem e podem
nascer. Como bem realçou Norberto Bobbio, não nascem todos de uma vez e nem de uma
vez por todas.
Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado mas um constucto, uma
invenção humana, em constante processo de construção e de reconstrução.

A concepção contemporânea dos direitos humanos começou no pós-guerra, como


resposta às atrocidades e horrores cometidos pelo regime nazi. Estamos a falar do envio
de 18 milhões de pessoas para campos de extermínio, da morte de 11 milhões, 6 dos
quais judeus. E o conhecimento dos factos provocou o esforço de reconstrução dos
direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea.
O maior marco desse esforço, data de 1948, 10 de Dezembro.

Página 10 de 18
Inaugura a concepção da universalidade e da indivisibilidade dos direitos humanos.
Universalidade, porque a convicção é de que a condição de pessoa é o requisito único
para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente
moral, dotado de unicidade existencial e dignidade.
Indivisibilidade, porque há uma visão integral dos direitos, sejam eles civis e políticos ou
sociais, económicos e culturais.

“e a DUDH afi a ue todos os se es hu a os as e liv es e iguais e dig idade e e


di eitos justa e te po ue os homens não são iguais por natureza – se assim fosse, o
conteúdo dessa declaração seria, no mínimo, supérflua.
A esfera pública caracteriza-se pela igualdade – por natureza, os homens não são iguais;
só o acto político pode gerar igualdade.
A liberdade e a igualdade não são dados de facto, existentes, mas valores a defender.
Nesta perspectiva, a DUDH é um instrumento político da igualdade e, mais ainda, há quem
afirme que forneceu o lastro axiológico e unidade valorativa a um campo do direito.
Disse Nobbio que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais,
desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada constituição incorpora
declarações de direito) para encontrarem a sua plena realização como direitos positivos
universais.
O sistema internacional de protecção dos direitos humanos é integrado por tratados
internacionais de protecção que reflectem, sobretudo, a consciência ética
contemporânea, partilhada entre os Estados, na medida em que invocam o consenso
internacional acerca de parâmetros mínimos de protecção (o «mínimo ético irredutível»).

Para quem assume uma postura crítica diante do mundo da produção intelectual sobre os
direitos humanos, dois aspectos chamam a atenção: (1) a enorme dimensão quantitativa e
(2) o caracter predominantemente pacífico da evolução conceptual...
Nas idos o o esposta políti a, o ti ge te e o eta a u a o te i ento
monstruoso, impensável apriori, tal como o Holocausto, o seu desenvolvimento teórico
esteve marcado por um extraordinário consenso universal baseado no repúdio mundial ao
plano insano de aniquilação em massa de um povo. O enorme consenso político
promoveu amplo consenso teórico e este, objectivamente, o empobrecimento intelectual
do seu dese volvi e to. 11
Paradoxalmente, enquanto cresce o carácter conflituoso da política em ternos críticos de
direitos humanos, ou seja, enquanto se multiplicam as violações dos direitos mais
elementares, expande-se incessantemente a lista de direitos humanos referentes ao
desenvolvimento económico e social.
É ve dade ue o aio a olhi e to dos di eitos hu a os o t i ui pa a a paz so ial. No
entanto, não é menos verdade que a paz social e a estabilidade democrática são o único
ambiente onde os direitos humanos podem desenvolver-se de forma genuína e
suste tável 12.

11 MÉNDEZ, Emilio Garcia – Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: reflexões para uma nova agenda. In SUR Revista
Internacional de Direitos Humanos. Ano 1, N.º 1, 1º semestre 2004. Rede Universitária de direitos humanos, p. 7- 20. (cit. p. 7)
12 MÉNDEZ, idem, p. 16.

Página 11 de 18
Mas se, numa primeira fase, a protecção dos direitos humanos foi marcada pela tónica da
protecção geral, com base na igualdade formal, percebe-se que é insuficiente considerar a
pessoa de forma genérica, geral e abstracta.
Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito na sua particularidade.
Assim, determinados sujeitos de direitos ou determinadas violações de direitos, exigem
uma resposta específica e diferenciada. Ao p o esso de expa são dos di eitos hu a os
soma-se o p o esso de espe ifi ação de sujeitos de di eitos. 13
É neste cenário que as mulheres, as crianças, as pessoas portadoras de deficiência, os
migrantes, são consideradas categorias vulneráveis e devem ser vistas nas especificidades
e particularidades da sua condição social.
Como afirma Boaventura, te os o di eito de se iguais ua do a ossa dife e ça os
inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
des a a te iza 14. Por isso, uma dupla necessidade: de uma igualdade que reconheça as
diferenças e uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades.
Ao lado do direito à igualdade surge o direito à diferença.

Qual o fundamento ético? O respeito à diferença e à diversidade.

O facto da Pessoa ter dignidade própria é uma convicção relativamente recente, no


percurso histórico-filosófico da humanidade - quando Kant, em 1785, escreveu que as
pessoas têm valor absoluto, e devem ser consideradas "sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio"15, estava a definir o que faz com que o ser humano
seja dotado de dignidade especial. É também super-conhecida a sua afirmação de que
"No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma
coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não
permite equivalente, então ela tem dignidade"16
E esta dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial dos direitos humanos
fundamentais.

Todavia, se trouxe de Kant a ideia de Respeito – da dignidade e da Pessoa como Fim-em-


si-mesmo - iria a Hegel buscar a ideia de Reconhecimento17.
Talvez por ser mais básica, mas sobretudo por implicar a relação com o Olhar do Outro.
O significado de «reconhecimento» remonta à filosofia de Hegel que usou o conceito para
descrever a estrutura interna da relação ética entre dois sujeitos.

13 PIOVESAN, Flávia – Direitos sociais, económicos e culturais e direitos civis e politicos. In SUR Revista Internacional de
Direitos Humanos. Ano 1, N.º 1, 1º semestre 2004. Rede Universitária de direitos humanos, p. 21-47 (cit. p. 29)
14 SANTOS, Boaventura de Sousa – Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In “Reconhecer para libertar: os

caminhos do cosmopolitismo cultural”. Rio de janeiro: Civilicação, 2003. p. 458


15 KANT, Immanuel - Fundamentação da Metafísica dos Costumes. (1785) Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. p.69
16 Idem, p. 77.
17 Vidé Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Reflexão ética sobre a dignidade humana. Documento de Trabalho. 26/

CNECV/ 1999. Disponível (20.08.2006, 16h) em http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres/C718779C-F747-43D0-A3D0-


67F394F937EC/0/P026DignidadeHumana.pdf

Página 12 de 18
Para o jovem Hegel (à época), o processo de formação da identidade tem como
pressuposto o reconhecimento recíproco entre sujeitos, de modo que somente quando
um indivíduo vê confirmada sua autonomia pelos demais é que pode chegar a uma
compreensão completa de si mesmo como sujeito social. Em termos semelhantes, sugere
Charles Taylor que a identidade é construída dialogicamente, a partir da relação do sujeito
com os demais membros da sociedade que faz parte.

A dignidade é, realmente, efeito do reconhecimento recíproco que fazemos uns aos


outros. E tendo a noção de que o ser humano é capaz de se elevar acima das
circunstâncias imediatas do seu ambiente para colocar questões sobre o sentido do real e
da Vida. Ademais, nós não conferimos dignidade às pessoas – fazemos o reconhecimento
da dignidade. E é este reconhecimento da dignidade que constitui, assim o afirma o
preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo"

Posta esta divagação, voltemos ao nosso assunto. Ou seja, a identificação do fundamento


ético do princípio orientador da actividade, que é «o respeito pelos direitos humanos».
Agora, parece muito mais fácil responder... O fundamento é o reconhecimento do Outro.

Um cuidado profissional que pode – tem que ter a capacidade de – realizar uma
trajectória com diferentes modalidades: quer seja em substituir, ou seja, fazer por alguém;
em ajudar, num fazer com a pessoa; em orientar, em termos de ensinar para; em
encaminhar para outros recursos, dirigir para, e em avaliar o caminho percorrido com a
pessoa. As modalidades de ajuda têm de ser ajustadas a cada um, de acordo com as suas
necessidades.
Este caminho é o de tornar autónomo tanto quanto seja possível, no sentido de ajudar a
prover a força, a vontade ou o saber, daí que releve a expressão do autocuidado.
O trabalho do enfermeiro desenvolve-se no sentido de se tornar dispensável, de que o
outro deixe de necessitar da ajuda por se bastar a si mesmo. A finalidade é, claramente,
autonomizar, no sentido do autocuidado.
Reconhecendo no Outro a condição de Pessoa, ser em projecto e em desenvolvimento.

Entendo, portanto, que o reconhecimento do Outro é fundamento para o princípio


orientador do respeito pelos direitos humanos do mesmo modo que o compromisso de
cuidado é fundamento para a responsabilidade profissional.

Valores universais na relação Travessia pela norma e ligação aos


profissional princípios orientadores ?? Fundamentos éticos
igualdade centrados no Outro Reconhecimento do
o altruísmo e a solidariedade (respeito pelos direitos humanos) Outro como Pessoa
liberdade responsável inerentes ao papel assumido perante
Compromisso de cuidado
a verdade e a justiça a sociedade (responsabilidade...)
a competência e o virados para o exercício
??
aperfeiçoamento profissional (excelência do exercício)

Página 13 de 18
Vamos ao terceiro princípio orientador da actividade, a excelência do exercício na
profissão em geral e na relação com outros.

A excelência do exercício remete-nos para um dever que é esperado e que o conteúdo


profissional exige, de carácter fiduciário, ou seja, assente na confiança.
Entendemos que a vida em sociedade, em geral, e na saúde, em particular, assenta sobre
redes de confiança, que repousam sobre a crença no cumprimento das promessas ou dos
compromissos. Estamos perante a relação entre a obrigação profissional e a protecção da
pessoa através da excelência do exercício.

De base, entendemos que a excelência é uma exigência ética, antes de ser deontológica.
A qualidade dos cuidados demanda níveis de realização, entrecruzados da capacidade
científica, da execução técnica e da relação interpessoal.
Parece-nos que, além dos aferidores profissionais (padrões de qualidade), da avaliação
das práticas e da gestão do risco, a personalização do cuidado é traço universal da
qualidade.
De base fiduciária, estruturada a partir da confiança, a relação de cuidado prometeu-se ao
nível do melhor possível ou, pelo menos, ao mínimo desejável, abaixo do qual não se
cumpre o prometido e se lesa quem se confia ao cuidado.
Estamos na esfera da competência ou do poder como capacidade para.

No plano ético, cada um de nós é responsável pelo Outro e, neste sentido, cuidador do
Outro.
A obrigação especial dos enfermeiros mediará no sentido da persecução da excelência e
da protecção das pessoas – do que nos parece resultar a relação com aferidores de
excelência (comummente designados legis artis) e a valoração do respeito (próprio e do
Outro).
Mais do que limitar-se a seguir os aferidores de excelência, a qualidade dos cuidados
reporta a uma assistência qualificada à pessoa, detectando e reduzindo os factores que
possam des-personalizar, des-respeitar. Por isso, se ergue a questão das condições
exteriores (por exemplo, os contextos e recursos do exercício profissional nos locais
o etos) assi o o da dife e ça do ue a ualidade ep ese ta pa a ada u .

A procura da qualidade é demanda da excelência em cada acto profissional, parecendo-


nos que se distancia da auto-complacência tanto quanto de uma satisfação extática com o
já alcançado.
O cuidado na acção decorre da obrigação profissional assumida para agir de determinado
modo. Os adquiridos são uma espécie de pedras, de degraus, sobre os quais não é suposto
que se fique mas de onde se prossiga para o nível seguinte. Portanto, do desenvolvimento
da capacidade... ou melhor, da competência.

Página 14 de 18
Valores universais na relação Travessia pela norma e ligação aos
profissional princípios orientadores ?? Fundamentos éticos
igualdade centrados no Outro Reconhecimento do Outro
o altruísmo e a solidariedade (respeito pelos direitos humanos) como Pessoa
liberdade responsável inerentes ao papel assumido perante a
Compromisso de cuidado
a verdade e a justiça sociedade (responsabilidade...)
a competência e o virados para o exercício Competência – poder
aperfeiçoamento profissional (excelência do exercício) enquanto capacidade –

Façamos agora a prova final - «a prova dos nove» - do sentido destes fundamentos.
Procurando articulá-los e verificar se não se contradiz a ideia de princípio fundante.

SÍNTESE DOS FUNDAMENTOS ÉTICOS DA DEONTOLOGIA

A cada ser humano incumbe a ética tarefa de desenvolver a sua potencialidade, de


auxiliar o Outro neste sentido de persecução dos projectos de uma vida boa, relevando
igualmente a obrigação de participação no mundo.
Di ia Ri oeu , ue se t ata de p o u a o se tido de u a vida oa, o e pa a o os
out os, e i stituições justas ....

A cada enfermeiro incumbe a tarefa de agir no sentido de se desenvolver, de prestar um


cuidado equitativo e excelente, que se reflecte na melhoria na qualidade de vida da
pessoa.
(1) Respeitar os direitos do Outro, com base no fundamento do reconhecimento do Outro
como pessoa
(2) assumir a responsabilidade numa perspectiva que se ancora no encargo confiado e no
compromisso profissional,
(3) e procurar a excelência, fundamentada na sua competência para agir, no seu poder-
capacidade.

Esta é a nossa tese, portanto.


Que os fundamentos éticos da deontologia são:
(1) Reconhecimento do Outro como pessoa
(2) Compromisso profissional
(3) Competência para agir, no seu poder-capacidade.

Afirmei que o princípio da dignidade humana ancora o princípio do cuidado humano, no


agir do enfermeiro.
Portanto, faltaria ancorar os fundamentos da ética posterior (ética aplicada, deontologia)
na ética anterior (filosófica). Chegam-nos dois – a dignidade e a liberdade.

Página 15 de 18
PRINCÍPIOS TRAVESSIA ÉTICA DE ENFERMAGEM FUNDAMENTOS
ÉTICA ANTERIOR PELA NORMA ÉTICOS DA DEONTOLOGIA
o cuidado humano -
Compromisso de
Responsabilidade dirigido ao tomar
cuidado
DIGNIDADE HUMANA conta da vida
Respeito pelos direitos Respeito por Si e Reconhecimento do
humanos pelo Outro Outro como Pessoa
Aferidores de Competência – poder
LIBERDADE Excelência do exercício
excelência enquanto capacidade

Sendo certo que temos um compromisso profissional, por um lado, cada um de nós
escolheu tê-lo, ou seja, ser enfermeiro; e é possível enraizá-lo numa «ética da promessa»,
relacionando com o poder da confiança que depositamos uns nos outros, confiança esta
que provem de compromissos mútuos e da vivência em organismos constituídos por
acordo.
Nesta confiança se estabelece a entrega e a aceitação de encargo (por isso, confiado),
pelo que estaremos na esfera da responsabilidade fiduciária, exactamente assente sobre
os vínculos que a confiança entretece. E os nossos utentes entregam-se ao nosso cuidado.

Note-se que do fundo ético da dignidade da pessoa decorrem outros princípios basilares.
Apontamos, pela relação com a prática dos cuidados, a individisibilidade da pessoa e,
portanto, não poder ser abordada como a doença de um órgão ou em função de uma
necessidade específica – neste sentido, a linguagem técnica mais corrente atraiçoa, por
vezes, este princípio. Quando se afirma que alguém é hipertenso, está-se perante a fusão
da entidade nosológica com a pessoa, a confusão entre ser e ter uma condição patológica.
As pessoas não são as doenças que têm...

O cuidado protector carece da reciprocidade da confiança e do respeito pelo outro, como


pessoa única, que se radica no reconhecimento do Outro.
Consequentemente, o processo de cuidado constitui-se como uma relação interpessoal,
em que a competência da enfermeira se fundamenta no seu compromisso de cuidar do
outro e na intenção de o afirmar como pessoa, configurando um cuidado protector.
Portanto, indo ao «mais atrás», ao anterior, o que possibilita o reconhecimento da
dignidade da pessoa é o reconhecimento do Outro como pessoa.

A condição de pessoa é o requisito e a base para todas as derivações, desde a dignidade à


liberdade. E considerar o Outro como diferente de Si em incontornável alteridade, só não
se transforma em distância por via da compaixão e da solicitude.
E aqui, já saímos do fundamento para o processo, o recurso operativo.
É atendendo à fragilidade da pessoa, com destaque para o respeito de Si, do Outro
próximo, de cada um, que se exige visão prospectiva e cuidado na acção.

Página 16 de 18
Os enfermeiros escolheram comprometer-se ao cuidado ao Outro, no trajecto vital da
finitude irrecusável, da fragilidade e da vulnerabilidade; é verdadeiramente autónomo o
enfermeiro capaz de conduzir o seu trajecto na convergência do compromisso, da
capacidade e da atestação.

Deixem-me evocar o 1º dever da deontologia.


a) Exercer a profissão com os adequados conhecimentos científicos e técnicos, com o
respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem-estar da população,
adoptando todas as medidas que visem melhorar a qualidade dos cuidados e
serviços de enfermagem;
reolhemos a frase:

Exercer a profissão ........................... Que é a praxis real e concreta


com os adequados conhecimentos
científicos e técnicos, ......................... O «com» assinala o que tem de lá estar..
com o respeito pela vida, Conhecimentos + respeito pela vida e pela
pela dignidade humana dignidade humana +
e pela saúde e bem-estar da Respeito pela saúde e bem estar
população
que são realmente a nossa «diferença
específica».
adoptando todas as medidas que Como se realiza? É operativo este
visem melhorar a qualidade dos «adoptar TODAS as medidas» que
cuidados e serviços de enfermagem; cumpram o fim de melhorar a qualidade...

Reencontramos os princípios orientadores – responsabilidade, respeito pelos direitos


humanos e excelência do exercício.
Mas atrás, em suporte anterior, encontramos o compromisso - «exercer a profissão» -, o
reconhecimento do outro como pessoa e a atestação de competência, quer ao nível
cognitivo (dos conhecimentos), quer operativo (adoptar medidas).
Não só não encontramos contradição – um princípio importante para quem pensa – como
sai reforçada a convicção de que são estes os fundamentos éticos da deontologia.

Em quem posso confiar para cuidar de mim no momento em que estou vulnerável para
cuidar de mim mesmo? No enfermeiro.
Entendo, portanto,
que o reconhecimento do Outro, com recurso à solicitude, niveladora das assimetrias, é
fundamento para o princípio orientador do respeito pelos direitos humanos
do mesmo modo que
o compromisso de cuidado é fundamento para a responsabilidade profissional
e que a competência, enquanto poder-para, fundamenta a excelência do exercício.

E os princípios primeiros são a dignidade e a liberdade, respectivamente, condição de


nascer pessoa e princípio da moralidade, em Kant.

Página 17 de 18
Reformulo, agora, o imperativo ético prático da deontologia dos enfermeiros:

«Age sempre de tal maneira que a tua acção de cuidado,


inspirada pelo compromisso profissional,
reconheça o Outro como pessoa
e se ancore na atestação de competência.»

De que derivará que os processos sejam de fazer recurso à solicitude e à compaixão, bem
como a demanda concreta da qualidade do que se faz. Mas isto seria outra conversa...

Página 18 de 18

View publication stats

Você também pode gostar