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"A ideia de que o mundo existente é tão completamente corrompido que é impossível
pensar em melhorias e que, precisamente por isso, o mundo que vai sucedê-lo possuirá
a plenitude da perfeição e a libertação última, tal ideia é uma das aberrações mais
monstruosas do espírito humano."
"Parece haver poucos casos, se houver algum, nos quais uma mente apática ou
reacionária leia Marx e se torne marxista. Quase sempre tratou-se do caso de uma
mentalidade suscetível acolhendo um sistema de certezas completo e aparentemente
sofisticado."
A urgência do Juízo faz com que tudo esteja submetido a esse fim, o único fim real para o
homem. Mas a própria Igreja logo percebe que era necessário algum compromisso com
este mundo decaído e incapaz de salvação por seus próprios meios. O Juízo foi pouco a
pouco relegado a um horizonte indeterminado, pois nem o Cristo mesmo sabia quando
aconteceria a Sua volta. Não obstante, a esperança escatológica do Apocalipse renasceu
continuamente na história do cristianismo nos inúmeros movimentos heréticos que
acusavam a Igreja de haver traído a urgência do Evangelho.
A reforma luterana, diz Kolakowski, resgatou nos seus inícios essa crítica à acomodação
da instituição organizada ao mundo das fraquezas e misérias humanas. A pregação
original do tudo ou nada foi substituída por uma tendência mais acomodativa na qual a
atitude era a da busca por melhorias e por reformas. O lema sola fide de Lutero trouxe de
volta o tema da centralidade da fé como um regeneração espiritual integral do homem.
Só há a fé e a ausência de fé. E onde falta a fé, nenhuma obra é suficiente para a
justificação do homem decaído.
Não existe via intermediária entre a fé e o pecado. Para o fiel, qualquer obra é meritosa.
Para o incréu, toda obra agrava a danação eterna. Na verdade, não há sequer o mérito,
pois a salvação é dada de graça aos que têm fé. Não é possível, portanto, alcançar a
salvação por graus aproximativos atribuídos às obras.
A Igreja, porém, já havia entendido que pôr os fiéis diante da opção absoluta entre a
perfeição e a danação seria retirar qualquer esperança de salvação. Por isso, os méritos
foram graduados, uns sendo maiores e outros menores. Todos os atos possuem seu
valor. Se é melhor obedecer a Deus por amor, obedecer por temor também tem mérito.
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Obedecer por um motivo baixo ainda é melhor do que ser desobediente.
Contra Lutero, para quem Deus quer somente a fé e nada mais, a Igreja romana
considerava a fé como uma virtude entre outras (importante, não exclusiva). Segundo o
luteranismo, o pecado original significou a corrupção total da natureza, impedindo
qualquer possibilidade d regeneração. Embora também pregasse a doutrina do pecado
original, a Igreja considerava que a corrupção não era integral, e que havia ainda bem no
homem e nas coisas.
Kolakowski aponta que "a teoria da salvação mundana, isto é, a doutrina revolucionária
de Marx, é modelada sob o mesmo esquema dicotômico que caracteriza a doutrina cristã
da salvação. Fazendo paralelo exatamente ao cristianismo, esse esquema está
organizado em torno da crença prometeica de autorredenção da humanidade." No
marxismo não há um pecado original a expiar, e nem uma salvação vinda do exterior,
mas todo mal da história só adquire sentido pela libertação final.
Kolakowski aponta em seguida que é sobre o lugar das reformas que se dá a discussão
entre os reformistas e os marxistas na Segunda Internacional. A revolução não é
produzida por uma adição de reformas. O capitalismo não é capaz de ser reformado,
somente pode ser abolido. A diferença radical entre o mundo anterior à revolução e o
mundo da libertação total, o "tudo ou nada" marxista, coloca a questão da continuidade
da cultura humana. Será possível alguma continuidade ou haverá absoluta e
irreconciliável ruptura?
No caso de ruptura radical e absoluta, como exigiria a lógica interna das teses marxistas,
tudo o que precedeu a transformação radical deve ser rejeitado e esquecido, inclusive
todas as conquistas culturais da humanidade até então. Kolakowski considera que sobre
esse ponto específico é incoerente e ambíguo. Se a filosofia, o direito e a religião são
determinadas pelas relações de produção, e se as ideias nada têm de eternas, mas são
somente relativas às sociedades que as sustentam, então o sentido de toda a produção
cultural e intelectual era determinado por interesses de classe.
Assim, quando a abolição das classes acontecer, a totalidade dessa produção perderá
seu sentido. Marx, ele mesmo, não aceitava essa conclusão, e pretendia que o
socialismo poderia se apoiar sobre as conquistas civilizacionais do capitalismo, fossem
tecnológicas ou pertencessem a outros domínios. De forma alguma a revolução traria
uma regressão utópica a uma época de tecnologia primitiva e sem ciência. A questão se
a cultura possui somente um sentido de classe ou possui valor universal, a obscuridade e
a equivocidade de Marx permitiu duas interpretações divergentes do socialismo.
Ninguém pôde jamais dizer exatamente no que consistiria essa mudança global e
absoluta, mas a sua ideia justificou toda forma de destruição cultural. O vandalismo, o
incêndio d bibliotecas e o terrorismo estariam de antemão justificados se a cultura
humana inteira não fosse mais do que expressão dos interesses de classes dominantes.
Kolakowski adverte que Marx não pode ser culpado por essas interpretações
posteriores.
Kolakowski argumenta que uma mudança total como propugnada pelo messianismo
revolucionário é tão impossível quanto a sociedade perfeita. Não obstante, regressões
culturais determinantes são possíveis, pois não existe uma lei que garanta o progresso
ininterrupto. O filósofo polonês considera como uma das aberrações mais monstruosas
do espírito humano a ideia de que o mundo é incapaz de qualquer melhoria, e que,
precisamente por isso, o mundo vindouro será perfeito. No pensamento religioso que lhe
deu origem, essa ideia ideia depende da graça, e é bem menos abominável que sua
versão mundano-revolucionária.
Não há salvação baseada em um suposto salto direto do Inferno para o Céu. Tal
revolução jamais acontecerá, encerra Kolakowski.
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