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Νεκροµαντεῖον

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Leszek Kolakowski e a mentalidade revolucionária

"A ideia de que o mundo existente é tão completamente corrompido que é impossível
pensar em melhorias e que, precisamente por isso, o mundo que vai sucedê-lo possuirá
a plenitude da perfeição e a libertação última, tal ideia é uma das aberrações mais
monstruosas do espírito humano."

LESZEK KOLAKOWSKI, L'Esprit Revolutionnaire, p. 27

"Parece haver poucos casos, se houver algum, nos quais uma mente apática ou
reacionária leia Marx e se torne marxista. Quase sempre tratou-se do caso de uma
mentalidade suscetível acolhendo um sistema de certezas completo e aparentemente
sofisticado."

ROBERT CONQUEST, Stalin: Breaker of Nations, p. 22

Em um texto de 1970 intitulado "O Espírito Revolucionário", o filósofo e historiador das


ideias polonês Leszek Kolakowsi apresenta as características essenciais do que ele
denomina de mentalidade revolucionária. Semelhante a outros pensadores, tais como o
filósofo alemão Eric Voegelin e o historiador das religiões romeno Mircea Eliade (ambos
exilados fugindo de totalitarismos em suas respectivas nações), Kolakowsi enxerga a
ideia revolucionária como uma versão profana de crenças religiosas, particularmente de
esperanças apocalípticas.
:
Tal origem se manifesta no credo revolucionário especialmente na disjunção radical "ou
tudo ou nada". O que significa, como Kolakowski complementa, que para o revolucionário
não existe purgatório. A radicalidade da oposição entre o mundo tal como ele se
apresenta e o um suposto mundo perfeito vindouro repete a estrutura apocalíptica do
cristianismo primitivo no qual a iminente volta de Cristo tinha como exigência a
necessidade da conversão urgente.

A mentalidade revolucionária é definida por Kolakovski como "aquela atitude espiritual


que se caracteriza pela crença particularmente intensa na possibilidade de uma salvação
total do homem em oposição absoluta com sua situação atual de escravidão, de sorte
que entre as duas não haveria nem continuidade e nem mediação. Mais ainda, que a
salvação total seria o único objetivo verdadeiro da humanidade ao qual todos os outros
valores deveriam ser submetidos como meios."

Os revolucionários creem no Céu, no Inferno e no caminho da cruz, no reino da salvação


total e no reino do mal total. A ideia de uma salvação total que coloca sob questão todos
os valores mundanos é parte do cristianismo. Dado que o Cristo se aproxima, e com Ele
o Juízo Final, quaisquer outros compromissos e vias intermediárias são obliterados. A
única escolha possível é entre o Reino dos Céus e o Anticristo. Somente uma coisa
possui realmente valor: a salvação total cuja rejeição resoluta na danação total.

A urgência do Juízo faz com que tudo esteja submetido a esse fim, o único fim real para o
homem. Mas a própria Igreja logo percebe que era necessário algum compromisso com
este mundo decaído e incapaz de salvação por seus próprios meios. O Juízo foi pouco a
pouco relegado a um horizonte indeterminado, pois nem o Cristo mesmo sabia quando
aconteceria a Sua volta. Não obstante, a esperança escatológica do Apocalipse renasceu
continuamente na história do cristianismo nos inúmeros movimentos heréticos que
acusavam a Igreja de haver traído a urgência do Evangelho.

A reforma luterana, diz Kolakowski, resgatou nos seus inícios essa crítica à acomodação
da instituição organizada ao mundo das fraquezas e misérias humanas. A pregação
original do tudo ou nada foi substituída por uma tendência mais acomodativa na qual a
atitude era a da busca por melhorias e por reformas. O lema sola fide de Lutero trouxe de
volta o tema da centralidade da fé como um regeneração espiritual integral do homem.
Só há a fé e a ausência de fé. E onde falta a fé, nenhuma obra é suficiente para a
justificação do homem decaído.

Não existe via intermediária entre a fé e o pecado. Para o fiel, qualquer obra é meritosa.
Para o incréu, toda obra agrava a danação eterna. Na verdade, não há sequer o mérito,
pois a salvação é dada de graça aos que têm fé. Não é possível, portanto, alcançar a
salvação por graus aproximativos atribuídos às obras.

A Igreja, porém, já havia entendido que pôr os fiéis diante da opção absoluta entre a
perfeição e a danação seria retirar qualquer esperança de salvação. Por isso, os méritos
foram graduados, uns sendo maiores e outros menores. Todos os atos possuem seu
valor. Se é melhor obedecer a Deus por amor, obedecer por temor também tem mérito.
:
Obedecer por um motivo baixo ainda é melhor do que ser desobediente.

Contra Lutero, para quem Deus quer somente a fé e nada mais, a Igreja romana
considerava a fé como uma virtude entre outras (importante, não exclusiva). Segundo o
luteranismo, o pecado original significou a corrupção total da natureza, impedindo
qualquer possibilidade d regeneração. Embora também pregasse a doutrina do pecado
original, a Igreja considerava que a corrupção não era integral, e que havia ainda bem no
homem e nas coisas.

Não há compatibilidade entre o mundo da fé e as faculdades naturais do homem,


considera Lutero. A graça, para a Igreja, não pode ser uma violência à natureza, mas
deve colaborar com ela melhorando-a. Isso a permitiu incorporar a sabedoria grega
antiga, o que para Lutero não passava de conluio com o paganismo. Todavia, o
radicalismo inicial de Lutero logo é substituído pelos mesmos compromissos com o
mundo imperfeito que foram criticados no catolicismo romano.

Kolakowski aponta que "a teoria da salvação mundana, isto é, a doutrina revolucionária
de Marx, é modelada sob o mesmo esquema dicotômico que caracteriza a doutrina cristã
da salvação. Fazendo paralelo exatamente ao cristianismo, esse esquema está
organizado em torno da crença prometeica de autorredenção da humanidade." No
marxismo não há um pecado original a expiar, e nem uma salvação vinda do exterior,
mas todo mal da história só adquire sentido pela libertação final.

As forças da alienação tornaram o homem escravo de leis econômicas férreas. Elas


geram sofrimento e miséria, em que pese o fato de que elas possuem um sentido
redentor na medida em que são etapas necessárias no caminho da cruz e da redenção.
Quando o aumento dos constrangimentos impostos pela alienação chegarem a seu
máximo, estarão dadas as condições para a libertação final. Nesse momento, na
consciência do proletariado, a necessidade histórica estará unida à liberdade.

O mesmo processo histórico determinista que conduziu necessariamente o homem por


inúmeros sofrimentos realizará o fim da sujeição às forças alienantes e a libertação final.
Daí se segue que as leis econômicas do capitalismo, uma das etapas para o paraíso, não
podem ser abolidas, somente atenuadas. As reformas não podem iludir o proletariado,
pois a polarização e a exploração somente crescerão à medida em que se aproxima a
luta final.

O coração da doutrina de Marx, ensina Kolakowski, s encontra justamente nesse ponto:


toda reforma e toda luta econômica devem estar submetidas à realização desse fim
último. A salvação é total ou nenhuma. Não há meios de substituir a revolução, a tomada
violenta do poder, por medidas parciais de reforma. A salvação não é gradual e nem
divisível. Somente pode haver a revolução global, que, por sua vez, deve se espraiar a
todos os domínios da vida humana.

Kolakowski quer dizer que há etapas necessárias e incontornáveis no processo histórico


que conduz deterministicamente até à revolução, mas não há etapas ou gradações na
:
própria revolução tomada como transformação absoluta de todas as relações humanas.
Como diz a passagem evangélica, "é necessário que o escândalo venha". Porém,
quando vier o Reino dos Céus, haverá "um novo céu e uma nova terra". As duas
afirmações são inseparáveis, ainda que opostas. Uma vez instalado o reinado de Cristo,
não haverá qualquer semelhança entre a Jerusalém celeste e o mundo decaído que a
precedeu.

No prefácio do Capital, Marx afirma explicitamente que "quando uma sociedade


descobriu a lei natural que determina seu próprio movimento, mesmo assim ela não pode
pular as fases naturais de sua evolução, nem mudá-las para fora do mundo pelo golpe de
uma caneta. Porém, isto ela pode fazer: encurtar e diminuir as dores do parto." Karl
Popper, em seu The Poverty of Historicism, considera essa passagem como uma
excelente formulação do tipo de fatalismo característico do que ele denomina
como historicismo.

Kolakowski aponta em seguida que é sobre o lugar das reformas que se dá a discussão
entre os reformistas e os marxistas na Segunda Internacional. A revolução não é
produzida por uma adição de reformas. O capitalismo não é capaz de ser reformado,
somente pode ser abolido. A diferença radical entre o mundo anterior à revolução e o
mundo da libertação total, o "tudo ou nada" marxista, coloca a questão da continuidade
da cultura humana. Será possível alguma continuidade ou haverá absoluta e
irreconciliável ruptura?

No caso de ruptura radical e absoluta, como exigiria a lógica interna das teses marxistas,
tudo o que precedeu a transformação radical deve ser rejeitado e esquecido, inclusive
todas as conquistas culturais da humanidade até então. Kolakowski considera que sobre
esse ponto específico é incoerente e ambíguo. Se a filosofia, o direito e a religião são
determinadas pelas relações de produção, e se as ideias nada têm de eternas, mas são
somente relativas às sociedades que as sustentam, então o sentido de toda a produção
cultural e intelectual era determinado por interesses de classe.

Assim, quando a abolição das classes acontecer, a totalidade dessa produção perderá
seu sentido. Marx, ele mesmo, não aceitava essa conclusão, e pretendia que o
socialismo poderia se apoiar sobre as conquistas civilizacionais do capitalismo, fossem
tecnológicas ou pertencessem a outros domínios. De forma alguma a revolução traria
uma regressão utópica a uma época de tecnologia primitiva e sem ciência. A questão se
a cultura possui somente um sentido de classe ou possui valor universal, a obscuridade e
a equivocidade de Marx permitiu duas interpretações divergentes do socialismo.

Segundo Kolakowski, a história da Segunda Internacional mostrou que o espírito


reformista predominou lá onde o movimento socialista resultava das aspirações reais dos
operários. A escatologia revolucionária predominava seja quando os intelectuais, que se
consideravam como a encarnação da consciência operária, estavam à frente, seja
quando estavam à frente o lumpenproletariado. Os operários eram pouco sensíveis à
escatologia da salvação total e estavam mais preocupados com as vantagens que
poderiam obter no capitalismo.
:
Os intelectuais e as camadas marginais são mais susceptíveis ao encanto do
messianismo revolucionário. Este, por sua lógica interna, propugnava a rejeição absoluta
de tudo o que fosse anterior à revolução, dado que toda a cultura não era mais do que
instrumentos a serviço das classes privilegiadas. Como a revolução deveria mudar
radicalmente todas as dimensões da vida, a cultura só poderia adquirir sentido se fosse
submetida à direção do Estado proletário.

Ninguém pôde jamais dizer exatamente no que consistiria essa mudança global e
absoluta, mas a sua ideia justificou toda forma de destruição cultural. O vandalismo, o
incêndio d bibliotecas e o terrorismo estariam de antemão justificados se a cultura
humana inteira não fosse mais do que expressão dos interesses de classes dominantes.
Kolakowski adverte que Marx não pode ser culpado por essas interpretações
posteriores.

Entretanto, a lógica do messianismo profético e a obscuridade dos seus escritos a esse


respeito, tornam as teses de Marx equívocos que o nihilista destruidor pode utilizar a seu
favor. O problema se torna, então, saber se o socialismo é uma ruptura com a
continuidade cultural humana. Em outros termos, o problema seria identificar qual dos
slogans é o verdadeiro: "socialismo ou barbárie" ou "socialismo é barbárie"?

Kolakowski argumenta que uma mudança total como propugnada pelo messianismo
revolucionário é tão impossível quanto a sociedade perfeita. Não obstante, regressões
culturais determinantes são possíveis, pois não existe uma lei que garanta o progresso
ininterrupto. O filósofo polonês considera como uma das aberrações mais monstruosas
do espírito humano a ideia de que o mundo é incapaz de qualquer melhoria, e que,
precisamente por isso, o mundo vindouro será perfeito. No pensamento religioso que lhe
deu origem, essa ideia ideia depende da graça, e é bem menos abominável que sua
versão mundano-revolucionária.

Não há salvação baseada em um suposto salto direto do Inferno para o Céu. Tal
revolução jamais acontecerá, encerra Kolakowski.

...

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Νεκροµαντεῖον: mentalidade revolucionária (oleniski.blogspot.com)

Νεκροµαντεῖον: Eric Voegelin, política e a atitude gnóstica (oleniski.blogspot.com)

Νεκροµαντεῖον: Mircea Eliade, mito, milenarismo e totalitarismos (oleniski.blogspot.com)

Immanuel Rosenkreuz às 18:05

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Um comentário:

Maurício Santos 21 de dezembro de 2023 às 12:31


Texto interessante para refletir...Marx como materialista tinha uma visão limitada sobre a
existência...mas ainda sim...o capitalismo como sistema tem muitas críticas a serem
feitas... Parabéns pelo trabalho e boas festas
Responder

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