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Introdução
Introdução
§ 1º — Introdução (1)
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As presentes notas destinam-se, fundamentalmente, ao estudo da Parte Geral (PG) do Código Penal, em
associação com casos práticos e questões concretas tratadas pelos tribunais. A generalidade dos exercícios
procurará responder à questão da punibilidade dos intervenientes. Não se justifica por isso analisar
detidamente matérias como a queixa e acusação particular (artigos 113º e s.); a extinção da responsabilidade
penal (artigos 118º e s.), ou seja, a prescrição do procedimento criminal, a prescrição das penas e das medidas
de segurança ou outras causas de extinção; nem a indemnização de perdas e danos por crime (artigos 129º e
130º). Também não nos ocuparemos das consequências jurídicas do crime (artigos 40º e s.) —com algumas
breves excepções, sobretudo do concurso de crimes e do crime continuado— nem de aspectos do direito
penal internacional, estando fora das nossas actuais cogitações, por ex., a aplicação da lei penal no tempo e
no espaço (artigos 2º e 4º).
2
O envolvimento do conceito de bem jurídico com a missão do direito penal remonta ao Iluminismo. O
Direito Penal liberal do Continente europeu está historicamente marcado por nomes como Francesco
Carmignani, autor duns “Elementos de direito criminal”, onde fundamentalmente propõe um sistema
derivado da razão; e de Francesco Carrara, conhecido como o sommo maestro de Pisa, autor do célebre
“Programma del Corso di Diritto Criminale” (1859). De Carrara e do seu Programa ocupou-se o Prof.
Figueiredo Dias em conferência que veio a ser publicada na Revista de Direito e Economia 14 (1988), p. 3.
Apontando para o relevo que "alguns autores portugueses tiveram na consolidação das grandes traves-
mestras da dogmática penal que arrancaram precisamente dessa época histórica" (Mello Freire: 1738-1798;
Pereira e Sousa: 1756 - 1818), cf. Faria Costa, O Perigo, p. 183, nota (6).
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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bens jurídicos. Esta função tem especial relevância no âmbito do Estado democrático, com
vista a garantir uma dimensão material para a norma penal. Enquanto conceito analítico,
crime é um comportamento típico, ilícito e culposo. Materialmente, crime é a ofensa a um
bem jurídico —levada a efeito sob certas condições—, que a norma penal visa impedir,
sujeitando o seu autor a uma sanção. Somente as condutas que afrontam (no sentido de
lesar ou pôr em perigo) bens jurídicos podem ser criminalizadas, o que se exprime com o
adágio nullum crimen sine injuria, que geralmente associamos ao princípio da
ofensividade, no indicado sentido de que a ofensa a um bem jurídico é a manifestação que
pode legitimar a intervenção do Estado, detentor do jus puniendi.
3
Segundo o artigo 18º, nº 2, da Constituição da República “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
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A noção liberal do bem jurídico anda geralmente associada à questão dos chamados crimes sem vítima,
entendendo-se modernamente que não há lugar à incriminação pelo simples facto de certas condutas serem
consideradas moralmente repreensíveis. Nos países ocidentais deu-se nesta área uma larga
descriminalização, quando, nalguns casos, uma lei nova deixou de incriminar certos factos previstos numa
lei anterior, de modo que o que antes era crime deixou de o ser (figura que se distingue da despenalização,
quando uma lei nova continua a considerar uma conduta como crime, mas submete-a a uma punição mais
leve do que aquela que resultava da lei anterior). No correr dos tempos, muitas figuras delitivas têm mudado
de forma significativa, outras simplesmente desapareceram, como as que puniam a bruxaria. A usura era
sancionada severamente na Idade Média cristã por razões religiosas ("Ladrão de tempo, com ganhos em cada
dia dos muitos empréstimos a juros, o usurário rouba ao mesmo tempo Deus e os cristãos, pois se o tempo é
uma dádiva de Deus, a usura está interdita numa comunidade de irmãos". "Não escaparás à tua sorte no
Inferno!" —Jacques le Goff, La bourse et la vie. Economie et religion au Moyen Age, Hachette, 1986).
Actuamente, a usura é no Código crime patrimonial (artigo 226º, nº 1) que não ocorre sem que o usurário
explore situação de necessidade, de anomalia psíquica ou semelhante, fazendo com que a vítima se obrigue a
conceder vantagem pecuniária manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Como se trata de
crime de intenção (ou de tendência), com um complicado desenho típico que o nosso resumo não esgota, é
duvidoso que alguma vez a norma venha a aplicar-se. A moral sexual é de preferência evitada nos códigos,
que passaram a desenhar os correspondentes ilícitos como infracções contra a liberdade e autodeterminação
sexual. Hoje reclama-se que o legislador prescinda de incriminar condutas por meras razões de oportunidade.
Fala-se na função simbólica do Direito Penal por referência a normas penais que somente aparentam proteger
um bem jurídico. Ainda assim, razões existem para ampliar o catálogo dos crimes, com a inclusão de novas
figuras de delito ligadas à tutela de determinados bens jurídicos como a privacidade, o meio ambiente e, em
certa medida, os direitos dos consumidores.
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Ao Direito Penal é assinalada uma dupla natureza: é um direito protector da sociedade e do indivíduo face
ao crime, mas é-o igualmente face ao Estado e ao seu poder punitivo.
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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que qualquer interesse deva ser tutelado penalmente nem que toda e qualquer ofensa aos
bens jurídicos seja necessariamente determinante da imposição de uma pena. Ao direito
penal exige-se que intervenha só em casos significativamente graves (carácter
fragmentário) e quando não haja outro remédio, por terem fracassado mecanismos de
protecção menos gravosos para a pessoa (natureza subsidiária). O direito civil chama a si
uma função protectora, há também sanções civis (nulidades, indemnização de perdas e
danos) (6), daí que o que é eficaz jurídico-civilmente nunca deva constituir fundamento
para uma reacção penal. (7) Também não pertence ao direito penal "a infracção contra
meros regulamentos de ordenação, quer se trate de proibição de estacionamento ou do
horário de encerramento do comércio; para estes casos bastam as sanções administrativas,
que podem incluir multas. Assim, simples perturbações de ordem pública não se deveriam
punir como desordens graves; remediá-las, é tarefa da policia". (8)
A natureza fragmentária do Direito Penal limita essa intervenção aos ataques mais
intoleráveis e aos casos inequivocamente imprescindíveis à manutenção da ordem social.
Alguns desses aspectos têm estado associados, por ex., a condutas lesivas do meio
ambiente, como é o caso de certas actividades industriais relacionadas com despejos e
resíduos poluentes. É uma área onde facilmente se cruzam interesses de algum vulto, por
gerar despedimentos e desemprego de trabalhadores e, paralelamente, incrementar custos
de produção, aspectos que sem dúvida condicionam a politica legislativa. ( 9) Numa
diferente tonalidade, é comum a existência de hipóteses que, “correspondendo
exteriormente à factualidade típica das incriminações pertinentes, não relevam, todavia, da
respectiva dignidade penal”. (10) Tome-se o caso da subtracção e apropriação de coisa
alheia sem valor de troca ou mesmo só afectivo, que não chega a atingir o proprietário; ou
a troca arbitrária e não autorizada de dinheiro (o hóspede que deixa uma nota de 20 euros e
leva as duas de 10 euros que a dona da casa tinha na carteira), que na generalidade se tem
por conduta carente de dignidade penal e que por isso deverá ficar impune.
A questão de saber se uma determinada conduta deve ou não ser objecto de protecção
penal pode ser respondida em cada ordenamento jurídico de maneira diferenciada.
Vejamos o seguinte exemplo, relacionado com a aplicação do artigo 208º (furto de uso de
veículo):
6
Para a distinção entre sanções criminais e sanções civis, Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 16,
7
Peters, apud Faria Costa, O Perigo, p. 415.
8
C. Roxin, Problema fundamentais de direito penal, p. 29.
9
Em certos sectores, quando, por ex., se torna necessária a prévia definição dos valores e natureza da
poluição que justificam a intervenção penal (artigo 279º do CP), defende-se a acessoriedade do direito
penal em relação ao direito administrativo. "Este será o preço a pagar para que o direito penal possa
acompanhar a evolução técnica dos nossos dias" (Anabela Miranda Rodrigues, Conimbricense II, p. 965,
com outros pormenores). Sobre a "relativa dependência do direito penal" noutros casos, Muñoz Conde /
Garcia Arán, Derecho Penal PG, 1993, p. 71.
10
Sobre os conceitos de “dignidade penal” e de “carência de tutela penal” como referências de uma doutrina
teleológico-racional do crime: Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p, 186;
RPCC 2 (1992), p. 173; e a “Anotação” ao acórdão do TC nº 54/04, O abuso de confiança fiscal e a
insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional, RLJ ano 134, p. 300; e Jorge de Figueiredo
Dias, O critério da “necessidade” (ou da “carência”) de tutela penal, Temas Básicos da Doutrina Penal,
2001.
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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Caso nº 2 Em plena região montanhosa, A e B competem um com o outro na descida em patins duma rampa
que se desenrola por vários quilómetros. A meio da descida, A nota que uma das rodas está
avariada, e que isso o impede de prosseguir. Mais à frente, B deixa por momentos a estrada e
larga os patins na berma que o A, malevolamente, troca pelos seus, o que lhe permite continuar e
ganhar a aposta. O B dirige-se pelo seu pé a um posto da GNR e faz queixa por furto do uso dos
patins.
O artigo 208º, nº 1, castiga quem utilizar sem autorização de quem de direito automóvel ou
outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta. Alguns poderiam argumentar que
se a pena cominada vale para o furto de uso de uma bicicleta também deverá valer para o
uso não autorizado duns patins, uma vez que o merecimento é idêntico. No entanto, o
artigo 1º, nº 1, consignando o princípio da legalidade, dispõe que só pode ser punido
criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da
sua prática, não sendo permitido, por outro lado (nº 3), o recurso à analogia para qualificar
uma facto como crime. A exigência de taxatividade e de certeza (nullum crimen nulla
poena sine lege stricta) é correlata da recusa da aplicação por analogia. (11) Se
equiparássemos uns patins a uma bicicleta para efeitos de aplicar o artigo 208º, nº 1, ao A
do nosso caso, desprezaríamos, em clara violação da lei, a proibição de analogia contida
no artigo 1º, nº 3, por a mesma não ser fonte criadora de delitos. Dito por outras palavras:
há um limite à actividade judicial, o juiz não pode criar crimes, mesmo que isso pareça
lógico, justo ou oportuno, só o legislador o pode fazer. (12)
Caso nº 3 A, que nos tempos livres faz uso quase constante e sistemático do seu computador, ausenta-se por
cerca de meia hora. B, um colega do mesmo curso de A e que divide o quarto com ele, aproveita,
contra instruções expressas do companheiro, para dar uma olhada nas últimas do Google.
Neste caso não há norma que sancione o aproveitamento temporário do computador alheio.
A conduta do A também não será criminalmente punível.
11
Sobre o conceito de analogia e a sua aplicação num caso em que se discutia a extinção do procedimento
criminal após a declaração de falência, veja-se, por ex., o acórdão do STJ de 12 de Outubro de 2006, CJ
2006, tomo III, p. 207 (procedimento criminal e extinção da personalidade jurídica das sociedades). Vd.
também o "caso resolvido" por Marta Felino Rodrigues, in Casos e Materiais de Direito Penal, p. 359: "a
qualificação, ou não, como analogia proibida da aplicação do artigo 203º do CP que prevê e pune o crime
de furto à hipótese de subtracção de um órgão de uma instituição hospitalar é precedida, logicamente, pela
verificação, ou não, de um caso omisso". Fez aplicação dos princípios da legalidade e da proibição de
analogia o acórdão do STJ de 28 de Setembro de 2005 CJ 2005, tomo III, p. 170, a propósito da detenção,
para consumo, de quantidade média individual de droga superior a 10 dias (cf. a Lei nº 30/2000, de 29 de
Novembro, que descriminalizou "todo o consumo de estupefacientes, mas não o liberalizou"). Quanto ao
furto da electricidade, a falta de uma norma incriminadora autónoma parece nunca ter sido problema para a
jurisprudência portuguesa que, baseada no entendimento que se trata de uma "coisa" (de acordo com a
correspondente noção civilística), não hesita em enquadrar a subtracção ilegítima da electricidade
directamente na norma do artigo 203º, nº 1.
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Não se exclui, no entanto, que o furto do uso de uma coisa seja jurídico-civilmente relevante, mesmo
quando atípico para o direito penal.
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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Santos (13), que “a pena, pela sua própria natureza, apenas pode ser retribuição
(Vergeltung) e nada mais. Não importa se esta retribuição é eficaz como prevenção. Pelo
contrário, o fim de prevenção implica uma utilização ilegítima do delinquente no interesse
dos outros.” Mas só se legitima a pena se esta for justa. A pena necessária será a que
produza um mal ao autor do crime, compensando o mal que livremente causou. Não se
recorre, portanto, à ideia de utilidade da pena: só será legítima a pena justa, mesmo que
não seja útil. Para as teorias relativas, o critério de legitimação assenta na utilidade da
pena. As teorias relativas procuram legitimar a pena pela obtenção de um determinado fim.
É hoje geralmente reconhecido que “a pena só pode ter por fundamento não a retribuição
do mal do crime ou a sua expiação pelo agente, mas considerações de pura prevenção. (14)
A ideia da prevenção geral positiva ou de integração passou a ser entendida como
finalidade básica da aplicação da pena. A pena é sempre reacção à infracção de uma
norma. Com a reacção, torna-se óbvio que a norma é para ser observada —e a reacção
demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma. A
finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenamento (prevenção
geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança, da fidelidade ao direito e da
aceitação das consequências jurídicas do delito.
O artigo 40º, nº 1, faz referência, como vimos, às penas e às medidas de segurança. Uma
separação estrita entre penas e medidas só é possível quando se entenda a pena do ponto de
vista das teorias absolutas, mas os fundamentos tornam-se discutíveis quando nos
afastamos dessas teorias e nos propomos enveredar pelo entendimento que actualmente
predomina. Quando pena e medida tinham o mesmo fim: incidir sobre o autor para evitar a
reincidência, não era possível distingui-las conceitualmente. Actualmente predomina a
ideia (por ex., Figueiredo Dias) de que em matéria de finalidades das reacções criminais
não existem diferenças fundamentais entre penas e medidas de segurança. “Diferente é
apenas a forma de relacionamento entre as finalidades de prevenção geral e especial: nas
penas, a finalidade de prevenção geral de integração assume o primeiro e indisputável
lugar, enquanto finalidades de prevenção especial de qualquer espécie actuam só no
interior da moldura construída dentro do limite da culpa, mas na base exclusiva daquelas
finalidades de prevenção de integração; nas medidas de segurança, diferentemente, as
finalidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) assumem lugar
absolutamente predominante, não ficando todavia excluídas considerações de prevenção
geral de integração”.
13
Beleza dos Santos, “O fim da prevenção especial das sanções criminais— valor e limites”, BMJ 73, p. 7.
14
Jorge de Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 26.
15
Sobre o princípio da culpa (e sobre outros princípios político-criminais que presidem ao Código Penal),
Jorge de Figueiredo Dias, "O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma", RPCC 1993, p. 166,
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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assim a culpa como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo
diverso, estando tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do
seu “poder de agir doutra maneira”, como escrevia o Prof. Eduardo Correia. (16) Implica tal
princípio que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, e
que a medida da pena em caso algum deve ultrapassar a medida da culpa. O princípio da
culpa não tem expresso assento constitucional, mas derivando da essencial dignidade da
pessoa humana acha-se consagrado nos artigos 1º e 25º, nº 1, da Constituição, e articula-se
com o direito à integridade moral e física. No âmbito do direito penal, exprime-se a
diversos níveis: veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética,
impede a responsabilização objectiva, obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a
medida da culpa (acórdão do TC DR II série, nº 249, de 27 de Outubro de 1994). “São
consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa
concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e
a inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que
excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa (17) e a proibição das
penas absoluta ou tendencialmente fixas” (acórdão do TC nº 432/2002, DR II série de 31
de Dezembro de 2002).
16
Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 361.
17
Fernanda Palma, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, p. 25, fala de uma função meramente
restritiva da culpa na determinação da pena (artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario) do Código Penal. Significa
isso que “a culpa como censura da pessoa do agente (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não
justifica a pena nem a sua medida judicial, apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não
proporcionada (superior) à da culpa do agente”.
18
Jorge de Figueiredo Dias, “Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC 1 (1991), p. 45, observando
que os tipos-incriminadores são portadores do bem jurídico protegido, “por isso mesmo delimitando o ilícito
por forma concreta e positiva”.
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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Dado ser o sistema do facto punível sequencial, não pode proceder-se ao tratamento sistemático de um
determinado problema de forma arbitrária, por existir uma hierarquia normativa dos graus de imputação (cf.
W. Hassemer, Einführung, p. 203). Se o arguido tem de ser absolvido, então que o seja o mais cedo possível,
na tipicidade, se for o caso, sem que seja necessário analisar a ilicitude ou a culpa.
20
As publicações especializadas de língua alemã frequentemente contêm regras técnicas de trabalho de
casos, podendo destacar-se Klaus Tiedemann, Die Anfängerübung in Strafrecht, Wessels / Beulke,
Strafrecht. Allgemeiner Teil, Gunther Arzt, Die Strafrechtsklausur e Roxin, Schünemann e Haffke,
Strafrechtliche Klausurenlehre mit Fallrepetitorium. Para os "Textos de Apoio de Direito Penal", AAFDL
(1983/84), o Dr. Jorge de Castilho Pimentel coligiu uma série de "notas para um método de trabalho de
casos", tendo por referência a última das obras agora indicadas.
M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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metralhadora, como o grupo de assaltantes tinha previsto que se fizesse, o que por sua vez
convocará o artigo 86º, nº 1, da Lei das Armas). A nossa exposição não poderá contrariar
as regras da lógica. Deste modo, se nos propomos responsabilizar alguém por tentativa,
será desacertado omitir a verificação de que a mesma é punível (artigo 23º, nº 1).
Incorreríamos em erro crasso se atribuíssemos a alguém uma tentativa de ofensa à
integridade física simples (artigos 23º, nº 1, e 143º, nº 1), querendo vê-la punida. A
instigação supõe sempre a presença do “outro” que deu início à prática do facto e a menção
disso mesmo no nosso trabalho. Jamais afiançaremos, de forma definitiva, que A e B são
co-autores sem primeiro destacarmos os factos que os comprometem nessa qualidade. Será
incompreensível a menção do tipo qualificado do artigo 132º, sem que antes se examine se,
no caso, concorrem os elementos típicos objectivos e subjectivos do homicídio, que não
figuram nessa norma mas no artigo 131º, imediatamente anterior. E por falar nestes
elementos, em regra, faremos referência aos de carácter objectivo, só depois
pesquisaremos os alicerces do dolo — a menos que se trate da tentativa, porque aqui o
elemento subjectivo tem de estar por completo realizado e se assim é virá à cabeça. A
própria enumeração das circunstâncias objectivas tem regras próprias. Se intentarmos
enquadrar uma conduta no crime de dano (artigos 212º, nº 1, e 213º), temos de examinar se
foi destruída uma coisa e se essa coisa era alheia (ou se pertencia ao património cultural e
se sim, se estava legalmente classificada, etc.). É nos elementos de facto que o aplicador do
direito faz incidir os seus conhecimentos jurídicos, caminhando, através de sucessivas
correlações, até encontrar a completa identidade entre os elementos de facto e os de direito
que lhe correspondem no Código Penal. Se todos os elementos constitutivos do crime de
furto do artigo 203º, nº 1, se encontram preenchidos, a actuação de A é idêntica à que nessa
mesma norma se prevê e castiga. O que é relevante para o juízo jurídico obtém-se das
normas jurídicas que seja possível aplicar ao caso. É num ir e voltar (Engisch), entre a
situação de facto e a proposição jurídica, entre a acção efectivamente realizada e a acção
contemplada no texto jurídico de referência, que consiste o mecanismo intelectual que
configura a subsunção: a aplicação concreta processa-se mediante uma contínua acção
recíproca, um ir e vir da perspectiva entre a premissa maior e a situação concreta da vida.
Aplaina os caminhos da nossa compreensão o silogismo judiciário, em que a regra de
direito (premissa maior) é assim enunciada: quem com intenção de apropriação, subtrair
dolosamente coisa móvel alheia, é punido. Ora, os factos (premissa menor) revelam que A,
no dia 12 de Janeiro, pelas 22 horas, na estação de S. Bento, no Porto, subtraiu voluntária e
conscientemente, a mala de viagem de B, com intenção de dela se apropriar. Por
conseguinte (conclusão), A praticou um crime previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1, do
CP. Nos casos menos complicados, e para não esquecermos pormenores de relevo,
adoptaremos de preferência uma estrutura que leve a peito a sucessão cronológica dos
factos. Podemos acompanhar essa sequência e ir atentando nas condutas de A, B, C, etc.
Nos casos mais complexos aconselha-se a divisão da matéria como já atrás se disse,
tratando as partes desmembradas, uma a uma, com respeito pela sua coerência própria.
Suponha-se que no início do caso A revela a B e C, no exclusivo interesse destes, onde
podem facilmente deitar a mão a uns sacos de café que D sem dúvida nenhuma lhes
comprará por bom dinheiro, segundo o seu próprio palpite. A chega, inclusivamente, a pôr
à disposição de B e C uma sua viatura, que dará à vontade para ambos transportarem todo
o produto. A não participa no assalto, mas o B e o C desentendem-se às tantas, quando no
local são descobertos. Contra a vontade do B, por várias vezes firmemente manifestada, o
C saca duma pistola que, pelo sim pelo não, levara consigo, e atinge a tiro um dos donos
do armazém de café. Aqui, seria completamente despropositado iniciar o trabalho com a
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amarrá-la, amordaçá-la, como pode recair sobre outra pessoa ou em coisas que vinculam o
sujeito passivo, atingindo-o indirectamente, citando em regra os autores como exemplos o
privar um cego do seu guia ou arrancar as portas e janelas de uma casa para obrigar os
moradores a abandoná-la. Ao lado desta, também se admite outra forma de violência, a
violência imprópria, que predominantemente se exerce no espírito, com a cominação de
um mal actual, que de acordo com a intensidade, a direcção e o modo de tornar efectivo
esse mal é apropriada para cercear a liberdade de decidir e agir.
O outro meio típico do constrangimento é a ameaça com mal importante. Ameaça é a vis
compulsiva (21), a forma típica da violência moral, que é também violência simbólica. É a
promessa de um mal a alguém, algo que uma pessoa pode sentir como desvantagem. O
mal deve então ser importante, podendo ser importante quando estiver ligado à perda de
um valor relevante.
Accionada uma das formas de conduta alternativa, a violência ou a ameaça com mal
importante, a vítima é com isso constrangida a um comportamento —acção ou omissão, ou
a suportar uma actividade. É o resultado da coacção. Entre este resultado e os meios
empregados deverá interceder uma determinada conexão. Se o resultado se não produzir,
haverá apenas tentativa, a apreciar nos termos gerais, e nos especiais do nº 2 do artigo
154º, por ser a tentativa punível.
No caso, não se regista qualquer forma de ameaça, que sempre teria de se repercutir na
cominação de um mal futuro (22), o que se não verificou.
Como meio coactivo só poderá validamente falar-se de violência. E aí será determinante o
peso da variante psíquica, não havendo dúvidas de que a intensidade do barulho era de
molde a impedir o professor de dar a aula como era sua expressa vontade. O modo como
os alunos tornaram efectivo um mal presente, o de continuarem a produzir barulhos de
grande intensidade, impeditivos da prelecção, é apropriado para cercear a liberdade de
decidir e agir.
Fazendo uso de um meio coactivo, A e B influenciaram, com pleno êxito, a liberdade de
decisão do professor. O comportamento coactivo de A e B provocou o resultado pretendido
pelos estudantes, não se pondo dúvidas razoáveis quanto à relação de causalidade. Como A
e B actuaram dolosamente, querendo fazê-lo em conjunto com outros e no cumprimento do
plano comum, o ilícito encontra-se consumado.
Não se mostra presente qualquer causa de justificação.
A utilização do meio escolhido (a actuação violenta com o emprego da algazarra) para
atingir o fim visado (a interrupção da aula, impedindo o professor de continuar a
prelecção) não pode deixar de ser censurável (artigo 154º, nº 3, alínea a)).
21
Entenda-se: vis compulsiva com a cominação dum mal futuro, já que a violência pode também aparecer
na forma de vis compulsiva, desde que o mal seja actual. A linha divisória faz-se por aí, mas podem existir
situações difusas, com sobreposições variadas, que conferem à ameaça um significado subsidiário. (Cf.
Wessels, p. 84).
22
Como é pressuposto da ameaça. Já na linguagem comum tanto esta como a expectativa veiculam intuições
de futuridade. Se o mal é imediato e a disposição é de ofender pode desenhar-se uma tentativa de ofensa à
integridade física simples (não punível) ou uma tentativa de ofensa à integridade física grave desde que o
dolo abranja também o resultado que dita a agravação (artigos 22º, 23º, e 144º).
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III. Conclusão: A e B são co-autores materiais de um crime de coação grave dos artigos
26º e 154º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea c), e 132º, nº 2, alínea j), em concurso efectivo (artigo
30º, nº 1) com um crime tentado de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de P
dos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nº 1, 73º, 26º, 143º, nº 1, 146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea
l) e com um crime de ofensa à integridade física na pessoa de S (artigo 143º, nº 1), a menos
que, nesta última parte, se considere a segunda hipótese como válida, donde resultaria que
só A seria responsável por um crime (do artigo 148º) contra S, sempre a concorrer
efectivamente.
Caso nº 5 A e B, que noutras ocasiões já se desentenderam, encontram-se no bar onde habitualmente tomam
uns copos. B, que estava disposto a fazer as pazes, dirige-se ao A enquanto fazia o gesto de tirar
um maço de cigarros do bolso. O A, julgando (erroneamente) que o outro vinha para o agredir
com algum objecto que trazia consigo, aplica-lhe dois murros na cara, fazendo-o cair. B sofreu
lesões necessariamente determinantes de doença por oito dias.
A. Ofensa à integridade física (artigo 143º, nº 1)
I. Tipicidade: (1) A ofendeu B corporalmente, com dois murros, provocando-lhe lesões
necessariamente determinantes de doença. (2) A actuou dolosamente, sabendo que agredia
outra pessoa e querendo isso mesmo (artigo 14º, nº 1).
II. Ilicitude: Objectivamente, A poderia prevalecer-se de uma causa de justificação por
legítima defesa (artigos 31º, nº s 1 e 2, alínea a), e 32º) se B realmente viesse para o
agredir. Acontece que não foi isso que aconteceu, pois B só queria tirar um cigarro do
bolso. A não logra objectivamente justificação para a sua conduta. A, todavia, agiu na
suposição errónea de que B ia para o agredir —e se tal fosse o caso existiria uma ofensa à
integridade física de outra pessoa. Para defesa do correspondente valor seria então
necessário o emprego da força física e portanto o uso que dele o A estaria justificado, de
acordo com o disposto no artigo 32º. Ora, uma vez que, assim, o A actuou em erro sobre
um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, à situação aplica-se o
disposto no artigo 16º, nºs 1 e 2, ficando excluído o dolo. O A só poderá ser punido por
negligência (artigos 16º, nº 3, e 148º, nº 1). Se não se puder afirmar que o A violou um
dever de cuidado, então fica excluída a punição, mesmo só por negligência (artigos 15º e
148º).
III. Conclusão: o A não cometeu o crime do artigo 143º, nº 1.
B. Ofensa à integridade física por negligência (artigo 148º, nº 1)
I. Tipicidade: A ofendeu B corporalmente, provocando-lhe lesões por não ter observado o
necessário dever de cuidado. Ao A impunha-se que em lugar de agir precipitadamente
tivesse aguardado até que a situações estivesse suficientemente esclarecida. Não o tendo
feito, actuou negligentemente,
II. Ilicitude: Não se descortina qualquer causa de justificação.
III. Culpa: O A, de acordo com as suas capacidades pessoais, estava em condições de
corresponder ao cuidado objectivamente devido.
IV. Conclusão: A praticou um crime previsto e punido no artigo 148º, nº 1.
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