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§ 1º — Introdução (1)

I. — A especial missão do Direito Penal


Caso nº 1 No final duma festa em casa de amigos, A pôs-se ao volante do seu automóvel e, apesar de saber
que tinha bebido demais e que por isso não estava em condições de conduzir, seguiu na direcção
de sua casa. Às tantas, deixou de atinar com o caminho e passou a circular pela faixa esquerda
onde embateu num carro que seguia em sentido contrário com observância de todas as regras de
circulação automóvel. Do embate resultaram ferimentos graves no outro condutor. A análise ao
álcool no sangue de A revelou uma TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,5 g/l.

1. Primeira alusão à função de tutela de bens jurídicos


O caso anterior situa-se na área dos crimes contra a segurança das comunicações (artigos
291º e 292º) mas também na dos crimes contra a integridade física (artigo 148º). Além das
penas cabidas às correspondentes infracções (prisão ou multa, enquanto penas principais),
ao A pode ainda ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com
motor prevista nos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 291º e 292º.
O Código, no artigo 40º, nº 1, dispõe que a aplicação de penas e de medidas de segurança
visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Bens jurídicos
protegidos pelo Direito Penal são por exemplo a vida, a integridade física, a honra, o
património, a reserva da vida privada, todos bens jurídicos individuais; outros são bens
jurídicos da colectividade, de titularidade supra-individual: os que, por ex., se identificam
com a tutela da realização da justiça ou o exercício de funções públicas.
A função de tutela de bens jurídicos tornou-se essencial para a compreensão dos fins do
Direito Penal (2) —e isso sob diversas perspectivas. Uma delas é a denominada garantia,
por meio da qual se intenta limitar a actuação penal do Estado. Ao legislador penal cabe a
tarefa de tipificar as condutas graves que lesam ou colocam em perigo autênticos ("vitais")

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As presentes notas destinam-se, fundamentalmente, ao estudo da Parte Geral (PG) do Código Penal, em
associação com casos práticos e questões concretas tratadas pelos tribunais. A generalidade dos exercícios
procurará responder à questão da punibilidade dos intervenientes. Não se justifica por isso analisar
detidamente matérias como a queixa e acusação particular (artigos 113º e s.); a extinção da responsabilidade
penal (artigos 118º e s.), ou seja, a prescrição do procedimento criminal, a prescrição das penas e das medidas
de segurança ou outras causas de extinção; nem a indemnização de perdas e danos por crime (artigos 129º e
130º). Também não nos ocuparemos das consequências jurídicas do crime (artigos 40º e s.) —com algumas
breves excepções, sobretudo do concurso de crimes e do crime continuado— nem de aspectos do direito
penal internacional, estando fora das nossas actuais cogitações, por ex., a aplicação da lei penal no tempo e
no espaço (artigos 2º e 4º).
2
O envolvimento do conceito de bem jurídico com a missão do direito penal remonta ao Iluminismo. O
Direito Penal liberal do Continente europeu está historicamente marcado por nomes como Francesco
Carmignani, autor duns “Elementos de direito criminal”, onde fundamentalmente propõe um sistema
derivado da razão; e de Francesco Carrara, conhecido como o sommo maestro de Pisa, autor do célebre
“Programma del Corso di Diritto Criminale” (1859). De Carrara e do seu Programa ocupou-se o Prof.
Figueiredo Dias em conferência que veio a ser publicada na Revista de Direito e Economia 14 (1988), p. 3.
Apontando para o relevo que "alguns autores portugueses tiveram na consolidação das grandes traves-
mestras da dogmática penal que arrancaram precisamente dessa época histórica" (Mello Freire: 1738-1798;
Pereira e Sousa: 1756 - 1818), cf. Faria Costa, O Perigo, p. 183, nota (6).

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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bens jurídicos. Esta função tem especial relevância no âmbito do Estado democrático, com
vista a garantir uma dimensão material para a norma penal. Enquanto conceito analítico,
crime é um comportamento típico, ilícito e culposo. Materialmente, crime é a ofensa a um
bem jurídico —levada a efeito sob certas condições—, que a norma penal visa impedir,
sujeitando o seu autor a uma sanção. Somente as condutas que afrontam (no sentido de
lesar ou pôr em perigo) bens jurídicos podem ser criminalizadas, o que se exprime com o
adágio nullum crimen sine injuria, que geralmente associamos ao princípio da
ofensividade, no indicado sentido de que a ofensa a um bem jurídico é a manifestação que
pode legitimar a intervenção do Estado, detentor do jus puniendi.

2. Os limites do jus puniendi


A intervenção do direito penal concretiza-se por referência a um catálogo de bens jurídicos
específicos correspondentes aos diversos tipos de crime, como o do artigo 131º
(homicídio) ou o do artigo 212º, nº 1 (dano). Devendo a ingerência do Estado limitar-se ao
mínimo necessário à defesa de certos direitos ou interesses, essa função interventiva no
âmbito político-criminal limita o legislador no momento de produzir normas penais,
ficando-lhe vedado incriminar, por exemplo, o adultério ou as relações homossexuais
consentidas entre adultos. (3) (4) (5)
Compreende-se que sendo a pena criminal representativa de uma tão gravosa reacção, a ela
se deva recorrer em último lugar, como última ratio ou último recurso (princípio da
intervenção mínima). A missão de protecção de bens jurídicos não significa em todo o caso

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Segundo o artigo 18º, nº 2, da Constituição da República “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
4
A noção liberal do bem jurídico anda geralmente associada à questão dos chamados crimes sem vítima,
entendendo-se modernamente que não há lugar à incriminação pelo simples facto de certas condutas serem
consideradas moralmente repreensíveis. Nos países ocidentais deu-se nesta área uma larga
descriminalização, quando, nalguns casos, uma lei nova deixou de incriminar certos factos previstos numa
lei anterior, de modo que o que antes era crime deixou de o ser (figura que se distingue da despenalização,
quando uma lei nova continua a considerar uma conduta como crime, mas submete-a a uma punição mais
leve do que aquela que resultava da lei anterior). No correr dos tempos, muitas figuras delitivas têm mudado
de forma significativa, outras simplesmente desapareceram, como as que puniam a bruxaria. A usura era
sancionada severamente na Idade Média cristã por razões religiosas ("Ladrão de tempo, com ganhos em cada
dia dos muitos empréstimos a juros, o usurário rouba ao mesmo tempo Deus e os cristãos, pois se o tempo é
uma dádiva de Deus, a usura está interdita numa comunidade de irmãos". "Não escaparás à tua sorte no
Inferno!" —Jacques le Goff, La bourse et la vie. Economie et religion au Moyen Age, Hachette, 1986).
Actuamente, a usura é no Código crime patrimonial (artigo 226º, nº 1) que não ocorre sem que o usurário
explore situação de necessidade, de anomalia psíquica ou semelhante, fazendo com que a vítima se obrigue a
conceder vantagem pecuniária manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Como se trata de
crime de intenção (ou de tendência), com um complicado desenho típico que o nosso resumo não esgota, é
duvidoso que alguma vez a norma venha a aplicar-se. A moral sexual é de preferência evitada nos códigos,
que passaram a desenhar os correspondentes ilícitos como infracções contra a liberdade e autodeterminação
sexual. Hoje reclama-se que o legislador prescinda de incriminar condutas por meras razões de oportunidade.
Fala-se na função simbólica do Direito Penal por referência a normas penais que somente aparentam proteger
um bem jurídico. Ainda assim, razões existem para ampliar o catálogo dos crimes, com a inclusão de novas
figuras de delito ligadas à tutela de determinados bens jurídicos como a privacidade, o meio ambiente e, em
certa medida, os direitos dos consumidores.
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Ao Direito Penal é assinalada uma dupla natureza: é um direito protector da sociedade e do indivíduo face
ao crime, mas é-o igualmente face ao Estado e ao seu poder punitivo.

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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que qualquer interesse deva ser tutelado penalmente nem que toda e qualquer ofensa aos
bens jurídicos seja necessariamente determinante da imposição de uma pena. Ao direito
penal exige-se que intervenha só em casos significativamente graves (carácter
fragmentário) e quando não haja outro remédio, por terem fracassado mecanismos de
protecção menos gravosos para a pessoa (natureza subsidiária). O direito civil chama a si
uma função protectora, há também sanções civis (nulidades, indemnização de perdas e
danos) (6), daí que o que é eficaz jurídico-civilmente nunca deva constituir fundamento
para uma reacção penal. (7) Também não pertence ao direito penal "a infracção contra
meros regulamentos de ordenação, quer se trate de proibição de estacionamento ou do
horário de encerramento do comércio; para estes casos bastam as sanções administrativas,
que podem incluir multas. Assim, simples perturbações de ordem pública não se deveriam
punir como desordens graves; remediá-las, é tarefa da policia". (8)
A natureza fragmentária do Direito Penal limita essa intervenção aos ataques mais
intoleráveis e aos casos inequivocamente imprescindíveis à manutenção da ordem social.
Alguns desses aspectos têm estado associados, por ex., a condutas lesivas do meio
ambiente, como é o caso de certas actividades industriais relacionadas com despejos e
resíduos poluentes. É uma área onde facilmente se cruzam interesses de algum vulto, por
gerar despedimentos e desemprego de trabalhadores e, paralelamente, incrementar custos
de produção, aspectos que sem dúvida condicionam a politica legislativa. ( 9) Numa
diferente tonalidade, é comum a existência de hipóteses que, “correspondendo
exteriormente à factualidade típica das incriminações pertinentes, não relevam, todavia, da
respectiva dignidade penal”. (10) Tome-se o caso da subtracção e apropriação de coisa
alheia sem valor de troca ou mesmo só afectivo, que não chega a atingir o proprietário; ou
a troca arbitrária e não autorizada de dinheiro (o hóspede que deixa uma nota de 20 euros e
leva as duas de 10 euros que a dona da casa tinha na carteira), que na generalidade se tem
por conduta carente de dignidade penal e que por isso deverá ficar impune.
A questão de saber se uma determinada conduta deve ou não ser objecto de protecção
penal pode ser respondida em cada ordenamento jurídico de maneira diferenciada.
Vejamos o seguinte exemplo, relacionado com a aplicação do artigo 208º (furto de uso de
veículo):

6
Para a distinção entre sanções criminais e sanções civis, Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 16,
7
Peters, apud Faria Costa, O Perigo, p. 415.
8
C. Roxin, Problema fundamentais de direito penal, p. 29.
9
Em certos sectores, quando, por ex., se torna necessária a prévia definição dos valores e natureza da
poluição que justificam a intervenção penal (artigo 279º do CP), defende-se a acessoriedade do direito
penal em relação ao direito administrativo. "Este será o preço a pagar para que o direito penal possa
acompanhar a evolução técnica dos nossos dias" (Anabela Miranda Rodrigues, Conimbricense II, p. 965,
com outros pormenores). Sobre a "relativa dependência do direito penal" noutros casos, Muñoz Conde /
Garcia Arán, Derecho Penal PG, 1993, p. 71.
10
Sobre os conceitos de “dignidade penal” e de “carência de tutela penal” como referências de uma doutrina
teleológico-racional do crime: Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p, 186;
RPCC 2 (1992), p. 173; e a “Anotação” ao acórdão do TC nº 54/04, O abuso de confiança fiscal e a
insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional, RLJ ano 134, p. 300; e Jorge de Figueiredo
Dias, O critério da “necessidade” (ou da “carência”) de tutela penal, Temas Básicos da Doutrina Penal,
2001.

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Caso nº 2 Em plena região montanhosa, A e B competem um com o outro na descida em patins duma rampa
que se desenrola por vários quilómetros. A meio da descida, A nota que uma das rodas está
avariada, e que isso o impede de prosseguir. Mais à frente, B deixa por momentos a estrada e
larga os patins na berma que o A, malevolamente, troca pelos seus, o que lhe permite continuar e
ganhar a aposta. O B dirige-se pelo seu pé a um posto da GNR e faz queixa por furto do uso dos
patins.
O artigo 208º, nº 1, castiga quem utilizar sem autorização de quem de direito automóvel ou
outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta. Alguns poderiam argumentar que
se a pena cominada vale para o furto de uso de uma bicicleta também deverá valer para o
uso não autorizado duns patins, uma vez que o merecimento é idêntico. No entanto, o
artigo 1º, nº 1, consignando o princípio da legalidade, dispõe que só pode ser punido
criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da
sua prática, não sendo permitido, por outro lado (nº 3), o recurso à analogia para qualificar
uma facto como crime. A exigência de taxatividade e de certeza (nullum crimen nulla
poena sine lege stricta) é correlata da recusa da aplicação por analogia. (11) Se
equiparássemos uns patins a uma bicicleta para efeitos de aplicar o artigo 208º, nº 1, ao A
do nosso caso, desprezaríamos, em clara violação da lei, a proibição de analogia contida
no artigo 1º, nº 3, por a mesma não ser fonte criadora de delitos. Dito por outras palavras:
há um limite à actividade judicial, o juiz não pode criar crimes, mesmo que isso pareça
lógico, justo ou oportuno, só o legislador o pode fazer. (12)
Caso nº 3 A, que nos tempos livres faz uso quase constante e sistemático do seu computador, ausenta-se por
cerca de meia hora. B, um colega do mesmo curso de A e que divide o quarto com ele, aproveita,
contra instruções expressas do companheiro, para dar uma olhada nas últimas do Google.
Neste caso não há norma que sancione o aproveitamento temporário do computador alheio.
A conduta do A também não será criminalmente punível.

3. Como é que se legitima a aplicação duma pena?


As normas incriminadoras, sendo normas de previsão, estatuem a correspondente sanção: o
artigo 143º, nº 1, ameaça com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa “quem ofender o
corpo o a saúde de outra pessoa”. Levanta-se assim o problema da legitimidade da
imposição de uma pena pelo Estado. Para as teorias absolutas, a pena será legítima se for a
retribuição duma lesão praticada de modo censurável. Escrevia Maurach, apud Beleza dos

11
Sobre o conceito de analogia e a sua aplicação num caso em que se discutia a extinção do procedimento
criminal após a declaração de falência, veja-se, por ex., o acórdão do STJ de 12 de Outubro de 2006, CJ
2006, tomo III, p. 207 (procedimento criminal e extinção da personalidade jurídica das sociedades). Vd.
também o "caso resolvido" por Marta Felino Rodrigues, in Casos e Materiais de Direito Penal, p. 359: "a
qualificação, ou não, como analogia proibida da aplicação do artigo 203º do CP que prevê e pune o crime
de furto à hipótese de subtracção de um órgão de uma instituição hospitalar é precedida, logicamente, pela
verificação, ou não, de um caso omisso". Fez aplicação dos princípios da legalidade e da proibição de
analogia o acórdão do STJ de 28 de Setembro de 2005 CJ 2005, tomo III, p. 170, a propósito da detenção,
para consumo, de quantidade média individual de droga superior a 10 dias (cf. a Lei nº 30/2000, de 29 de
Novembro, que descriminalizou "todo o consumo de estupefacientes, mas não o liberalizou"). Quanto ao
furto da electricidade, a falta de uma norma incriminadora autónoma parece nunca ter sido problema para a
jurisprudência portuguesa que, baseada no entendimento que se trata de uma "coisa" (de acordo com a
correspondente noção civilística), não hesita em enquadrar a subtracção ilegítima da electricidade
directamente na norma do artigo 203º, nº 1.
12
Não se exclui, no entanto, que o furto do uso de uma coisa seja jurídico-civilmente relevante, mesmo
quando atípico para o direito penal.

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Santos (13), que “a pena, pela sua própria natureza, apenas pode ser retribuição
(Vergeltung) e nada mais. Não importa se esta retribuição é eficaz como prevenção. Pelo
contrário, o fim de prevenção implica uma utilização ilegítima do delinquente no interesse
dos outros.” Mas só se legitima a pena se esta for justa. A pena necessária será a que
produza um mal ao autor do crime, compensando o mal que livremente causou. Não se
recorre, portanto, à ideia de utilidade da pena: só será legítima a pena justa, mesmo que
não seja útil. Para as teorias relativas, o critério de legitimação assenta na utilidade da
pena. As teorias relativas procuram legitimar a pena pela obtenção de um determinado fim.
É hoje geralmente reconhecido que “a pena só pode ter por fundamento não a retribuição
do mal do crime ou a sua expiação pelo agente, mas considerações de pura prevenção. (14)
A ideia da prevenção geral positiva ou de integração passou a ser entendida como
finalidade básica da aplicação da pena. A pena é sempre reacção à infracção de uma
norma. Com a reacção, torna-se óbvio que a norma é para ser observada —e a reacção
demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma. A
finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenamento (prevenção
geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança, da fidelidade ao direito e da
aceitação das consequências jurídicas do delito.
O artigo 40º, nº 1, faz referência, como vimos, às penas e às medidas de segurança. Uma
separação estrita entre penas e medidas só é possível quando se entenda a pena do ponto de
vista das teorias absolutas, mas os fundamentos tornam-se discutíveis quando nos
afastamos dessas teorias e nos propomos enveredar pelo entendimento que actualmente
predomina. Quando pena e medida tinham o mesmo fim: incidir sobre o autor para evitar a
reincidência, não era possível distingui-las conceitualmente. Actualmente predomina a
ideia (por ex., Figueiredo Dias) de que em matéria de finalidades das reacções criminais
não existem diferenças fundamentais entre penas e medidas de segurança. “Diferente é
apenas a forma de relacionamento entre as finalidades de prevenção geral e especial: nas
penas, a finalidade de prevenção geral de integração assume o primeiro e indisputável
lugar, enquanto finalidades de prevenção especial de qualquer espécie actuam só no
interior da moldura construída dentro do limite da culpa, mas na base exclusiva daquelas
finalidades de prevenção de integração; nas medidas de segurança, diferentemente, as
finalidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) assumem lugar
absolutamente predominante, não ficando todavia excluídas considerações de prevenção
geral de integração”.

4. A culpa é pressuposto da pena


Não há pena sem culpa e a medida da culpa é limite da medida da pena (artigo 40º, nº 2).
Com esta ou com formulações muito próximas chegamos ao princípio da culpa (15): a
pena funda-se na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de
reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora
tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo (Sousa e Brito). Entende-se

13
Beleza dos Santos, “O fim da prevenção especial das sanções criminais— valor e limites”, BMJ 73, p. 7.
14
Jorge de Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 26.
15
Sobre o princípio da culpa (e sobre outros princípios político-criminais que presidem ao Código Penal),
Jorge de Figueiredo Dias, "O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma", RPCC 1993, p. 166,

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assim a culpa como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo
diverso, estando tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do
seu “poder de agir doutra maneira”, como escrevia o Prof. Eduardo Correia. (16) Implica tal
princípio que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, e
que a medida da pena em caso algum deve ultrapassar a medida da culpa. O princípio da
culpa não tem expresso assento constitucional, mas derivando da essencial dignidade da
pessoa humana acha-se consagrado nos artigos 1º e 25º, nº 1, da Constituição, e articula-se
com o direito à integridade moral e física. No âmbito do direito penal, exprime-se a
diversos níveis: veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética,
impede a responsabilização objectiva, obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a
medida da culpa (acórdão do TC DR II série, nº 249, de 27 de Outubro de 1994). “São
consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa
concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e
a inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que
excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa (17) e a proibição das
penas absoluta ou tendencialmente fixas” (acórdão do TC nº 432/2002, DR II série de 31
de Dezembro de 2002).

II. — A teoria geral do crime: primeiros desenvolvimentos


A Parte Especial (PE) do Código Penal contém um número grande de tipos, organizados e
sistematizados de acordo com os critérios escolhidos pelo legislador penal. São os
chamados tipos-incriminadores, os quais, como “conjunto de circunstâncias fácticas que
directamente se ligam à fundamentação do ilícito”, surgem como portadores da valoração
de um comportamento como ilícito. (18) Outras situações normativas enquadram-se nos
tipos-justificadores ou causas de justificação. É assim que quem dolosamente matar outra
pessoa preenche, em princípio, o tipo de ilícito do artigo 131º (homicídio), pois se o faz em
legítima defesa (artigos 31º, nºs 1 e 2, alínea a), e 32º), a ilicitude é excluída.
A norma incriminadora, no que respeita ao modo como se estrutura, é norma de
previsão, enquanto enquadra a actividade proibida ou imposta, descrevendo os respectivos
elementos típicos (no artigo 131º: “matar outra pessoa” dolosamente, isto é: com
conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos); e norma de estatuição,
enquanto comina uma pena ou uma medida de segurança. As finalidades da punição estão
apontadas no artigo 40º, nº 1, do Código Penal: protecção de bens jurídicos e reintegração
do agente na sociedade. A protecção de bens jurídicos implica tanto prevenção geral como
prevenção especial, esta para dissuadir o próprio delinquente potencial.

16
Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 361.
17
Fernanda Palma, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, p. 25, fala de uma função meramente
restritiva da culpa na determinação da pena (artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario) do Código Penal. Significa
isso que “a culpa como censura da pessoa do agente (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não
justifica a pena nem a sua medida judicial, apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não
proporcionada (superior) à da culpa do agente”.
18
Jorge de Figueiredo Dias, “Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC 1 (1991), p. 45, observando
que os tipos-incriminadores são portadores do bem jurídico protegido, “por isso mesmo delimitando o ilícito
por forma concreta e positiva”.

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O direito penal "clássico“ protegia fundamentalmente a lesão de bens jurídicos como a


vida ou o património, construindo tipos de crime como o homicídio (artigo 131º) ou o dano
(artigo 212º, nº 1). Nos casos mais graves, a tentativa era sempre punida; noutras ocasiões,
a lei castigava expressamente e tentativa, como ainda acontece.
Entretanto, o legislador penal introduziu no Código diversos crimes de perigo, que
protegem o bem jurídico numa fase anterior à lesão, procurando impedir (aspecto do papel
preventivo atribuído ao direito penal) a lesão, com a punição da simples colocação em
perigo. Os tipos de ilícito de perigo concreto incluem a criação dum perigo para
determinado bem jurídico entre os seus elementos típicos. Tome-se, a título de exemplo, o
crime de violação da obrigação de alimentos do artigo 250º, nº 1. Este crime "contra a
família" começa com o “pôr em perigo” a satisfação das necessidades fundamentais de
quem tem direito à prestação e termina com o “cumprimento da obrigação”. Enquanto a
satisfação das necessidades do alimentando não for realmente (“concretamente”) posta
“em perigo” o crime não estará perfeito. Os factos integradores dessa colocação em perigo
terão de ser provados em tribunal para se poder sustentar que o perigo se concretizou e
que, consequentemente, o ilícito se consumou. Nos crimes de perigo abstracto, o tipo não
descreve o perigo entre os seus elementos típicos, mas “torna manifesto” que a actividade
proibida é sancionada por ser tipicamente (em abstracto) perigosa. O melhor exemplo é o
da condução em estado de embriaguez (artigo 292º): o condutor nessas condições é punido
independentemente de se ter ou não produzido um perigo concreto para bens jurídicos
alheios. Em julgamento, à defesa estará vedado argumentar, por isso mesmo, que o
condutor embriagado só andou cinco quilómetros, de noite, e que no trajecto não se cruzou
com qualquer outro veículo, chegando incólume ao lugar onde foi autuado.
A maior parte dos tipos incriminadores estrutura-se no Código como crime doloso
consumado de comissão por acção (o homicídio do artigo 131º; as ofensas à integridade
física do artigo 143º, nº 1; o furto do artigo 203º, nº 1; a burla do artigo 117º, nº 1). Ao tipo
pertencem todos os elementos que fundamentam um ilícito específico, mas há
circunstâncias que qualificam o crime. Por ex., o crime de homicídio encontra no artigo
131º os seus elementos típicos, objectivos e subjectivos (“matar outra pessoa”
dolosamente). Já o artigo 132º dispõe que se a morte (de outra pessoa) for produzida em
circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o seu autor é punido
com uma pena sensivelmente agravada, enumerando a seguir alguns índices (os principais,
certamente, aqueles que ocorreram ao legislador) dessa especial censurabilidade ou
perversidade. Se pelo contrário a culpa do agente se encontrar sensivelmente diminuída,
porque, por ex., o filho matou o próprio pai, compadecido com a doença deste, em fase
terminal e extremamente dolorosa, o homicídio pode ser visto como privilegiado e a pena
correspondentemente aliviada (artigo 133º) por reflectir uma menor gravidade. Se
folhearmos o Código, encontraremos outras situações de qualificação / agravação ou de
privilegiamento / atenuação, sendo isso logo evidente nalguns crimes contra a propriedade,
o furto (artigos 203ª, nº 1, 204º, nºs 1 e 2, e 207º), o abuso de confiança (artigo 205º e
207º) e o dano (artigos 212º, nº 1, 207º, e 213º).
O Código distingue as formas de comportamento activo das omissivas. Aquelas são em
número muito mais expressivo, mas também se prevê uma série de tipos a castigar quem
omite uma determinada acção, por ex., os artigos 200º (omissão de auxílio), 245º (omissão
de denúncia), 249º, nº 1, alínea c) (recusa de entrega de menor), 284º (recusa de médico),
369º (denegação de justiça), e 381º (recusa de cooperação). Estas são, todas elas, omissões

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puras: o correspondente dever resulta directamente da norma, punindo-se a simples


inactividade (passividade), como que por desobediência à lei. Nas chamadas omissões
impuras, o dever de agir para evitar um resultado deriva de uma posição de garantia
(artigo 10º). Pune-se aquele que, tendo essa posição, numa situação de perigo,
efectivamente nada faz para afastar a ameaça de lesão (da vida, da integridade física, etc.)
de outrem. Aplicam-se então as normas sobre a comissão de crimes, por ex., o artigo 131º.
Tanto dá que a mãe que quer matar o filho o deixe morrer de fome como o deite a afogar
na banheira da casa. A expressão significa que o sujeito não é penalmente responsável
apenas pela omissão, mas que também o é pelas consequências danosas que derivarem
dessa omissão. E como, para além do artigo 10º, não existem preceitos especiais a castigar
estas omissões impuras — empregamos os que punem as respectivas acções.
A maior parte das incriminações tem natureza dolosa, sendo alguns capítulos do Código,
por ex., o dos crimes contra a propriedade ou o dos crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual inteiramente moldados no dolo. Outras punem tanto a conduta
dolosa como a simplesmente negligente; veja-se, a ilustrar, o artigo 292º sobre a condução
automóvel em estado de embriaguez. Mas só é punível o facto praticado com negligência
nos casos especiais previstos na lei: artigo 13º (princípio da excepcionalidade da punição
das condutas negligentes: numerus clausus). A imputação ao agente há-de fazer-se sempre
pelo menos a título de negligência, o que modernamente está de acordo com a rejeição da
responsabilidade objectiva no domínio do penal (veja-se sobretudo o artigo 18º). Como
quer que seja, os caminhos para a boa compreensão do dolo ou da negligência trilham-se
na PG, onde constituem importante matéria de estudo. Todos nós sentimos que um
homicídio doloso é mais grave do que o causado involuntariamente, o problema está em
determinar porquê, o que é que torna a conduta dolosa mais grave.
As referidas incriminações desenham-se como consumadas, descrevendo condutas que
preenchem, por inteiro, as circunstâncias típicas objectivas e subjectivas, fazendo com que
o furto, por ex., se encontre perfeito só naquelas situações em que alguém, com
conhecimento e vontade, subtrai coisa móvel alheia, com intenção de apropriação. Se essa
subtracção, que é simultaneamente acção e resultado, não chega a ocorrer, o crime não se
consuma, ficando eventualmente pela simples tentativa. Esta pode deixar de ser punível,
como decorre do artigo 24º, ao conferir relevância isentadora a certos comportamentos
posteriores do autor da tentativa, como a desistência voluntária.
Até à consumação a ideia delitiva vai percorrer um caminho, o chamado iter criminis, em
que se distinguem diversas etapas: a fase preparatória; a da execução; e a da consumação,
quando todas as características típicas se encontram reunidas. Antes da fase da tentativa,
aparecem os actos preparatórios, que nalguns casos também se punem (artigo 21º), mas de
forma excepcional. Para o início da tentativa exige o Código a prática de actos de
execução, mas a noção destes não é inteiramente precisa, ainda que o Código, nas diversas
alíneas do nº 2 do artigo 22º, nos forneça directivas de alguma valia.
Por outro lado, quando alguém age sozinho, realizando pessoalmente e por inteiro a
conduta típica, a eventual atribuição da responsabilidade penal só a essa pessoa diz
respeito. Ainda que na grande maioria das incriminações da parte especial se descrevam
condutas construídas de acordo com o modelo do autor individual e que seja evidente que
na elaboração da teoria geral do crime se tenha partido da realização singular do ilícito,
mesmo assim — e isso é um dado da experiência — o agente não actua sempre sozinho
mas fá-lo, frequentemente, em conjunto com outro ou outros, quer dizer: em

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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comparticipação. As formas e o grau de participação dos sujeitos que se agregam à pessoa


do autor podem ser de facto muito diversos: há contributos de importância mínima
(conselhos genéricos, encorajamentos a quem já está resolvido a cometer o crime,
fornecimento de instrumentos que qualquer um pode obter facilmente); noutros casos, a
contribuição alarga-se e vai dirigida à realização com sucesso da conduta, tornando-se
assim indispensável, como quando alguém fornece o segredo de um cofre que de outro
modo ficaria inacessível. A um indivíduo pode ser imputada a autoria material, imediata e
singular, se executar o facto "por si mesmo" (artigo 26º, 1ª alternativa), sem a intervenção
de outro ou outros. Se o faz por intermédio de outrem (artigo 26º, 2ª alternativa), é de
autoria mediata que se trata. Por fim, tomando parte directa na execução do crime, por
acordo ou juntamente com outro ou outros, compromete-se como co-autor. Na sistemática
do Código (artigo 26º, última alternativa), o instigador é punível como autor, não obstante
a exigência de que haja execução ou começo de execução por outra pessoa. É punível
como cúmplice quem, dolosamente, prestar auxílio à prática por outrem de um facto
doloso. Como logo de vê, nem o instigador nem o cúmplice executam o facto, a sua
intervenção nele depende da existência de um outro personagem na execução do crime.

III. — Na elaboração de casos práticos atenderemos a modelos de


valoração gradual
1. A doutrina penal define correntemente o crime como um comportamento (acção ou
omissão) típico, ilícito e culposo, acrescentando, nalguns casos, requisitos de punibilidade.
Por ex., quanto a este último requisito, só é punível a tentativa dos crimes mais graves (artigo 23º, nº 1),
embora com as ressalvas previstas na lei. A tentativa impossível não será punível se for "manifesta" (artigo
23º, nº 3). A desistência conduz à não punibilidade da tentativa (artigo 24º). O furto do artigo 203º entre as
pessoas referidas no artigo 207º, alínea a), só é punível mediante acusação particular, não bastando que o
ofendido se queixe. Para a escola de Coimbra (Figueiredo Dias, DP/PG I, p. 617), a ideia chave é a da
dignidade penal, a qual permite que hipóteses tão diversas como a impunidade da desistência da tentativa, de
factos bagatelares, do auxílio ao suicídio ou dos crimes falimentares, quando o suicídio ou a falência não vêm
a ter lugar, sejam remetidos para o denominador da falta de dignidade penal. Do que se trata em tais casos é
que, apesar da realização integral do tipo de ilícito e do tipo de culpa, a imagem global do facto é uma tal
que, em função de exigências preventivas, o facto concreto fica aquém do limiar mínimo da dignidade penal.
Um caso concreto será o do o nº 2 do artigo 35º que não refere uma causa de diminuição ou de exclusão da
culpa, e portanto um problema de culpa; refere uma causa de diminuição ou de exclusão da pena, e portanto
um problema de punibilidade.
Aqueles três elementos básicos (tipicidade, ilicitude e culpabilidade) são diferentes entre si
e ordenam-se de tal forma que cada um pressupõe a existência do anterior; faltando um
deles já não é preciso examinar se concorrem os que se lhe seguem. É um método de
escalonamento gradual. O julgador ou o aplicador do direito tem de valorar, em diversas
fases ou em diferentes níveis, o comportamento de um possível criminoso antes de chegar
ao juízo definitivo que o declara ou não merecedor de uma sanção penal. Ao
determinarmos os pressupostos mínimos do agir criminoso cumprimos o primeiro degrau
de valoração, integrando a matéria fáctica numa norma penal, levando a cabo uma
operação constitutiva de um juízo de ilicitude como desvalor de acção (ou, como é mais
comum, como desvalor de acção e de resultado, como a seu tempo será explicado).

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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Faltando nessa conduta os elementos objectivos ou subjectivos pertinentes ao juízo de


imputação penal, poderemos já então excluí-la do leque das condutas típicas. (19) Recorde-
se o caso do “furto” do uso dos patins, que não entra na previsão do artigo 208º.
Estando presentes todos os elementos típicos e ausente qualquer causa de justificação (o
facto preenche então um ilícito-típico), haverá lugar a uma revaloração em sede de culpa,
perscrutando-se a posição assumida pelo agente perante a ordem jurídica (o agente
conduziu-se de forma contrária ou indiferente ao direito; ou foi simplesmente descuidado
ou leviano?) e não se excluindo, ainda aqui, que a ausência de culpa possa conduzir à
irresponsabilização do agente pelo seu facto.
Num caso concreto, e para que o nosso trabalho se desenvolva de forma metodicamente
correcta (20), começaremos pelo exame da situação fáctica, tentando interpretá-la em toda a
sua extensão.
Segue-se a abordagem jurídica, procurando saber quais os tipos penais a levar em conta e
as formas de realização do facto, se por ex., se trata de um comportamento activo ou
omissivo, se o crime se revela consumado ou não passa da tentativa, se o sujeito agiu com
dolo ou simplesmente com falta de cuidado, se o seu papel é essencial (autoria) ou apenas
acessório (cumplicidade) no conjunto dos contributos com que o crime se tece. A nossa
atenção há-de incidir especialmente na pergunta: “qual a responsabilidade jurídico-penal
dos intervenientes A, B e C?”. Num tal contexto, esta deverá ser entendida como a única
questão a responder, mesmo que seja evidente a participação de outros sujeitos no facto
(por ex., uma parte significativa dos habitantes dum bairro, ou a maioria dos estudantes
duma turma). Na exposição, evitaremos considerações inúteis, por nos interessarem apenas
os pontos de direito ligados às questões básicas da hipótese fáctica. Será porventura
conveniente a divisão da matéria nas suas partes mais significativas, avaliando-as e
escrutinando-as umas a seguir às outras, começando, vamos supor, com o que aconteceu
no interior da instituição bancária, passando depois para as peripécias da fuga, quando um
dos assaltantes disparou uma rajada contra os curiosos que já se acotovelavam na rua,
ferindo um deles com gravidade, para finalmente repararmos na forma como foi dividido o
produto do assalto. O papel de cada um dos intervenientes tem de ser pormenorizadamente
verificado, podendo acontecer, por ex., que todos estejam na pele de (co-)autores. Há que
estabelecer nexos, umas vezes de causa a efeito, outras de simples afinidade. No momento
seguinte procuraremos encontrar para cada um dos complexos fácticos em que dividimos a
matéria os tipos incriminadores que encaixam na hipótese concreta. Pode ser que os
acontecimentos no interior do banco devam subsumir-se à norma do artigos 210º, nº 1 (por
não terem sido usadas armas), ou à dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), por referência ao
artigo 204º, nº 2, alínea f), e 26º, segunda alternativa (por ter sido exibida uma pistola

19
Dado ser o sistema do facto punível sequencial, não pode proceder-se ao tratamento sistemático de um
determinado problema de forma arbitrária, por existir uma hierarquia normativa dos graus de imputação (cf.
W. Hassemer, Einführung, p. 203). Se o arguido tem de ser absolvido, então que o seja o mais cedo possível,
na tipicidade, se for o caso, sem que seja necessário analisar a ilicitude ou a culpa.
20
As publicações especializadas de língua alemã frequentemente contêm regras técnicas de trabalho de
casos, podendo destacar-se Klaus Tiedemann, Die Anfängerübung in Strafrecht, Wessels / Beulke,
Strafrecht. Allgemeiner Teil, Gunther Arzt, Die Strafrechtsklausur e Roxin, Schünemann e Haffke,
Strafrechtliche Klausurenlehre mit Fallrepetitorium. Para os "Textos de Apoio de Direito Penal", AAFDL
(1983/84), o Dr. Jorge de Castilho Pimentel coligiu uma série de "notas para um método de trabalho de
casos", tendo por referência a última das obras agora indicadas.

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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metralhadora, como o grupo de assaltantes tinha previsto que se fizesse, o que por sua vez
convocará o artigo 86º, nº 1, da Lei das Armas). A nossa exposição não poderá contrariar
as regras da lógica. Deste modo, se nos propomos responsabilizar alguém por tentativa,
será desacertado omitir a verificação de que a mesma é punível (artigo 23º, nº 1).
Incorreríamos em erro crasso se atribuíssemos a alguém uma tentativa de ofensa à
integridade física simples (artigos 23º, nº 1, e 143º, nº 1), querendo vê-la punida. A
instigação supõe sempre a presença do “outro” que deu início à prática do facto e a menção
disso mesmo no nosso trabalho. Jamais afiançaremos, de forma definitiva, que A e B são
co-autores sem primeiro destacarmos os factos que os comprometem nessa qualidade. Será
incompreensível a menção do tipo qualificado do artigo 132º, sem que antes se examine se,
no caso, concorrem os elementos típicos objectivos e subjectivos do homicídio, que não
figuram nessa norma mas no artigo 131º, imediatamente anterior. E por falar nestes
elementos, em regra, faremos referência aos de carácter objectivo, só depois
pesquisaremos os alicerces do dolo — a menos que se trate da tentativa, porque aqui o
elemento subjectivo tem de estar por completo realizado e se assim é virá à cabeça. A
própria enumeração das circunstâncias objectivas tem regras próprias. Se intentarmos
enquadrar uma conduta no crime de dano (artigos 212º, nº 1, e 213º), temos de examinar se
foi destruída uma coisa e se essa coisa era alheia (ou se pertencia ao património cultural e
se sim, se estava legalmente classificada, etc.). É nos elementos de facto que o aplicador do
direito faz incidir os seus conhecimentos jurídicos, caminhando, através de sucessivas
correlações, até encontrar a completa identidade entre os elementos de facto e os de direito
que lhe correspondem no Código Penal. Se todos os elementos constitutivos do crime de
furto do artigo 203º, nº 1, se encontram preenchidos, a actuação de A é idêntica à que nessa
mesma norma se prevê e castiga. O que é relevante para o juízo jurídico obtém-se das
normas jurídicas que seja possível aplicar ao caso. É num ir e voltar (Engisch), entre a
situação de facto e a proposição jurídica, entre a acção efectivamente realizada e a acção
contemplada no texto jurídico de referência, que consiste o mecanismo intelectual que
configura a subsunção: a aplicação concreta processa-se mediante uma contínua acção
recíproca, um ir e vir da perspectiva entre a premissa maior e a situação concreta da vida.
Aplaina os caminhos da nossa compreensão o silogismo judiciário, em que a regra de
direito (premissa maior) é assim enunciada: quem com intenção de apropriação, subtrair
dolosamente coisa móvel alheia, é punido. Ora, os factos (premissa menor) revelam que A,
no dia 12 de Janeiro, pelas 22 horas, na estação de S. Bento, no Porto, subtraiu voluntária e
conscientemente, a mala de viagem de B, com intenção de dela se apropriar. Por
conseguinte (conclusão), A praticou um crime previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1, do
CP. Nos casos menos complicados, e para não esquecermos pormenores de relevo,
adoptaremos de preferência uma estrutura que leve a peito a sucessão cronológica dos
factos. Podemos acompanhar essa sequência e ir atentando nas condutas de A, B, C, etc.
Nos casos mais complexos aconselha-se a divisão da matéria como já atrás se disse,
tratando as partes desmembradas, uma a uma, com respeito pela sua coerência própria.
Suponha-se que no início do caso A revela a B e C, no exclusivo interesse destes, onde
podem facilmente deitar a mão a uns sacos de café que D sem dúvida nenhuma lhes
comprará por bom dinheiro, segundo o seu próprio palpite. A chega, inclusivamente, a pôr
à disposição de B e C uma sua viatura, que dará à vontade para ambos transportarem todo
o produto. A não participa no assalto, mas o B e o C desentendem-se às tantas, quando no
local são descobertos. Contra a vontade do B, por várias vezes firmemente manifestada, o
C saca duma pistola que, pelo sim pelo não, levara consigo, e atinge a tiro um dos donos
do armazém de café. Aqui, seria completamente despropositado iniciar o trabalho com a

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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apreciação da responsabilidade do A, por a mesma estar dependente ou ser acessória do


que cada um dos outros dois, em conjunto ou separadamente, acabou por fazer. Uma vez
que o A não é figura central da acção, dele só se poderá garantir que determinou, instigou
os outros dois a deitar a mão ao café e que os ajudou com o empréstimo da furgoneta, mas
a sua responsabilidade só se aclara depois de aferirmos a actividade dos actores principais.
Espera-se, claro!, que os problemas sejam correctamente localizados e depois discutidos,
tornando manifesta a linha de pensamento e seguindo as regras da lógica, para que o leitor
imediatamente se situe no emaranhado das questões. A discussão dos pontos jurídicos
básicos passa pelo recurso à fecundidade explicativa dos prós e dos contras mais
conhecidos da doutrina e da jurisprudência, num texto que todavia não precisa de ser
construído como um mosaico de citações. Para uma boa prestação são, obviamente,
indispensáveis os adequados conhecimentos, obtidos com estudo sério, honesto e
plenamente interessado, sendo de bom tom distanciarmo-nos da tenacidade obtusa dos que
incansavelmente reiteram uma qualquer opinião.

2. É altura de apresentar os elementos estruturais do crime doloso consumado (por


acção):
I. Tipicidade
1. Tipo objectivo
2. Tipo subjectivo
II. Ilicitude: ausência de causas de causas de justificação
III. Culpa
IV. Pressupostos de punibilidade independentes do dolo ou da culpa
V. Eventualmente: queixa; ou: não verificação da prescrição.

Os elementos do facto simplesmente tentado podem assim configurar-se quanto à 1ª parte


(da tipicidade):
I. Tipicidade
1. Exame prévio: a) O crime não chega a consumar-se (o tipo objectivo não se encontra
preenchido); b) Punibilidade da tentativa (artigos 22º e 23º, nº 1).
2. Tipo subjectivo
a) Dolo (decisão de cometer um crime) dirigido à realização de todos os elementos objectivos
do ilícito (artigo 22º, nº 1)
b) Eventualmente, outras características subjectivas específicas.
3. Tipo objectivo: prática de actos de execução (artigo 22º, nº 2).

Muito esquematicamente, e para possibilitar comparações desde já, a estrutura dos


crimes negligentes poderá ser assim ordenada:
I. Tipo-de-ilícito
1. Acção ou omissão da acção devida.
2. Violação do dever objectivo de cuidado.
3. Produção do resultado típico nos crimes negligentes de resultado.
4. Previsibilidade objectiva do resultado, incluindo o processo causal.

M. Miguez Garcia, O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, Elementos da Parte Geral (§ 1º Introdução), 2007
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5. Imputação objectiva desse resultado à acção do sujeito.


II. Tipo-de-culpa
1. Censurabilidade da acção objectivamente violadora do dever de cuidado.
2. Previsibilidade individual.
3. Exigibilidade do comportamento lícito.

Por fim, a do crime doloso de omissão imprópria:


I. Tipo objectivo do ilícito:
1. A produção do resultado típico.
2. A não execução da acção adequada a evitar o resultado, mau-grado a real possibilidade física de
o evitar — artigo 10º, nº 1.
3. A causalidade da omissão e a imputação objectiva do resultado.
4. A posição de garante de quem omite — artigo 10º, nº 2.
II. Tipo subjectivo do ilícito.
III. Inexistência de causas de justificação.
IV. Inexistência de causas de desculpação.

3. Vamos agora passar à exemplificação destas sugestões e conselhos, ocupando-nos dos


seguintes casos práticos.
Caso nº 4 O caso do professor. Numa universidade pública o professor de direito penal é mal visto nas
aulas por causa das suas constantes intervenções machistas e a arrogância com que se dirige aos
estudantes. Estes decidem, numa espécie de plenário, impedir a próxima prestação de P com
berreiros e alaridos. Para tanto tratam de reunir tambores, pífaros e outros instrumentos vibrantes
e sonoros, não perdendo a oportunidade de afinar e treinar os respectivos assobios. A, um dos
estudantes, também praticante de andebol, decide que no momento azado, logo que a barulheira
comece, há-de atirar um ovo ao professor. B, uma sua colega e admiradora, propõe-se ajudá-lo
nesse desígnio e oferece-se para ser ela a escolher o ovo. Sabem que o professor invariavelmente
veste uns fatos extravagantes e caros e ambos pretendem atingi-lo nesse seu calcanhar de
Aquiles, forçando-o a deixar a roupa na lavandaria e a pagar a limpeza a seco. No dia aprazado,
mal o professor abre a boca, todos em alta grita iniciam feroz algazarra. Após tentativas
frustradas de prosseguir a lição, o professor esboça a saída da sala, mas nesse preciso momento
o A, que se postara numa das primeiras filas, arremessa o ovo que já tinha consigo, com toda a
força, na direcção do professor. Este todavia não foi atingido, mas sim uma das estudantes que
estava ao lado dele e apanhou com o ovo na cara, ficando a queixar-se com dores, e lastimosa
por causa da roupa, suja e emporcalhada. Na confusão, o professor aproveitou para se raspar.
Sugerido por H. Karitzky Jura 7/2000, p. 368.
Punibilidade de A e B, sabendo-se que foram apresentadas as queixas necessárias.
I. A primeira parte dos factos: a interrupção da aula
1. A e B serão responsáveis por crime de coacção grave, em co-autoria (artigos 26º e 154º,
nº 1, e 155º, nº 1, alínea c), e 132º, nº 2, alínea l))?
A e B obrigaram o professor (P) a interromper a aula com barulhos e algazarra. Fizeram-no
em conjunto com outros estudantes, no cumprimento do plano comum aprovado em
reunião plenária. O crime de coacção (artigo 154º) protege a liberdade de decidir e de
actuar. Os meios típicos são a violência ou a ameaça com mal importante. Violência é,
desde logo, a vis corporalis, é o emprego da força física para vencer a resistência da
vítima. Tanto pode ser exercida directamente sobre esta, tendo o corpo como objecto, v. g.,

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amarrá-la, amordaçá-la, como pode recair sobre outra pessoa ou em coisas que vinculam o
sujeito passivo, atingindo-o indirectamente, citando em regra os autores como exemplos o
privar um cego do seu guia ou arrancar as portas e janelas de uma casa para obrigar os
moradores a abandoná-la. Ao lado desta, também se admite outra forma de violência, a
violência imprópria, que predominantemente se exerce no espírito, com a cominação de
um mal actual, que de acordo com a intensidade, a direcção e o modo de tornar efectivo
esse mal é apropriada para cercear a liberdade de decidir e agir.
O outro meio típico do constrangimento é a ameaça com mal importante. Ameaça é a vis
compulsiva (21), a forma típica da violência moral, que é também violência simbólica. É a
promessa de um mal a alguém, algo que uma pessoa pode sentir como desvantagem. O
mal deve então ser importante, podendo ser importante quando estiver ligado à perda de
um valor relevante.
Accionada uma das formas de conduta alternativa, a violência ou a ameaça com mal
importante, a vítima é com isso constrangida a um comportamento —acção ou omissão, ou
a suportar uma actividade. É o resultado da coacção. Entre este resultado e os meios
empregados deverá interceder uma determinada conexão. Se o resultado se não produzir,
haverá apenas tentativa, a apreciar nos termos gerais, e nos especiais do nº 2 do artigo
154º, por ser a tentativa punível.
No caso, não se regista qualquer forma de ameaça, que sempre teria de se repercutir na
cominação de um mal futuro (22), o que se não verificou.
Como meio coactivo só poderá validamente falar-se de violência. E aí será determinante o
peso da variante psíquica, não havendo dúvidas de que a intensidade do barulho era de
molde a impedir o professor de dar a aula como era sua expressa vontade. O modo como
os alunos tornaram efectivo um mal presente, o de continuarem a produzir barulhos de
grande intensidade, impeditivos da prelecção, é apropriado para cercear a liberdade de
decidir e agir.
Fazendo uso de um meio coactivo, A e B influenciaram, com pleno êxito, a liberdade de
decisão do professor. O comportamento coactivo de A e B provocou o resultado pretendido
pelos estudantes, não se pondo dúvidas razoáveis quanto à relação de causalidade. Como A
e B actuaram dolosamente, querendo fazê-lo em conjunto com outros e no cumprimento do
plano comum, o ilícito encontra-se consumado.
Não se mostra presente qualquer causa de justificação.
A utilização do meio escolhido (a actuação violenta com o emprego da algazarra) para
atingir o fim visado (a interrupção da aula, impedindo o professor de continuar a
prelecção) não pode deixar de ser censurável (artigo 154º, nº 3, alínea a)).

21
Entenda-se: vis compulsiva com a cominação dum mal futuro, já que a violência pode também aparecer
na forma de vis compulsiva, desde que o mal seja actual. A linha divisória faz-se por aí, mas podem existir
situações difusas, com sobreposições variadas, que conferem à ameaça um significado subsidiário. (Cf.
Wessels, p. 84).
22
Como é pressuposto da ameaça. Já na linguagem comum tanto esta como a expectativa veiculam intuições
de futuridade. Se o mal é imediato e a disposição é de ofender pode desenhar-se uma tentativa de ofensa à
integridade física simples (não punível) ou uma tentativa de ofensa à integridade física grave desde que o
dolo abranja também o resultado que dita a agravação (artigos 22º, 23º, e 144º).

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O facto é punível, por também se não descortinarem causas de desculpação. A e B


cometeram em co-autoria o referido crime de coação grave dos artigos 26º e 154º, nº 1, e
155º, nº 1, alínea c), e 132º, nº 2, alínea j), e não simplesmente o da norma base do artigo
154º, nº 1, por estar o professor no exercício das suas funções e por causa delas.
II. A segunda parte dos factos: o arremesso do ovo
1. A e B serão responsáveis por crime contra a integridade física de P (artigos 143º, nº 1, e
146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea l))?
A e B, em conjunto, conceberam o plano de maltratarem fisicamente P, sabendo que ele ia
dar a aula como professor e no exercício das suas funções, mas o resultado não veio a
verificar-se na pessoa deste, uma vez que o ovo atingiu outra pessoa, circunstância que não
tinha sido projectada por eles.
A e B praticaram actos de execução do referido crime mas o resultado não ocorreu (artigo
22º, nº 1). A tentativa do crime qualificado é punível: artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nº 1, 26º,
143º, nº 1, 146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea l). A e B cometeram a infracção aludida na
forma tentada em co-autoria material.
2. O arremesso do ovo que atingiu S (artigos 26º e 143º, nº 1):
No arremesso do ovo ocorreu um desvio: a coisa era dirigida ao professor mas acabou por
atingir corporalmente a S que se encontrava ao lado dele. É o que se chama desvio de
golpe. A situação de desvio de golpe corresponde àqueles casos em que na execução do
crime ocorre um desvio causal do resultado sobre um outro objecto da acção, diferente
daquele que o agente queria atingir: A quer matar B, mas em vez de B o tiro atinge
mortalmente C, que ia a passar. Distingue-se do típico “error in persona” na medida em
que o agente não está enganado sobre a qualidade (ou identidade) da pessoa ou da coisa. A
discussão sobre o tratamento a dar a este grupo de casos movimenta-se entre os pólos da
teoria da individualização e da teoria da equivalência. Há quem prefira a teoria da
individualização. O dolo individualizado num objecto determinado conduz unicamente à
punibilidade por uma tentativa de ofensa à integridade física. A lesão querida não se
verificou; a lesão efectivamente produzida fica de fora do dolo individualizado e quando
muito pode integrar um crime negligente. Mas se o agente quis ofender corporalmente uma
pessoa (P) e também ofendeu corporalmente uma pessoa (S), então estamos perante um
crime de ofensa à integridade física dolosa. Isto é assim porque todos os homens têm o
mesmo valor perante a lei. É o que sustentam os partidários da teoria da equivalência, para
quem o dolo tem que abranger unicamente os elementos genéricos do resultado típico: o
desvio causal não tem aqui nenhuma influência sobre o dolo. Nesta perspectiva, A e B são
co-autores do crime em referência: artigos 26º e 143º, nº 1, sendo S o sujeito passivo.
Se entendermos que o dolo individualizado num objecto determinado conduz unicamente à
punibilidade por uma tentativa de ofensa à integridade física, a lesão querida não se
verificou; a lesão efectivamente produzida fica de fora do dolo individualizado e quando
muito pode integrar um crime negligente.
Mas se assim é jamais podíamos falar de co-autoria, por esta supor a execução dolosa do
crime (artigo 26º), de acordo com a doutrina tradicional. Restaria responsabilizar o A por
tentativa, em concurso eventual (eventual porque a tentativa nem sempre é punível) com
um crime negligente consumado na pessoa da S (artigos 15º e 148º, nº 1). A teria actuado
com falta de cuidado relativamente a S e o resultado (previsível) veio a acontecer.

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III. Conclusão: A e B são co-autores materiais de um crime de coação grave dos artigos
26º e 154º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea c), e 132º, nº 2, alínea j), em concurso efectivo (artigo
30º, nº 1) com um crime tentado de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de P
dos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nº 1, 73º, 26º, 143º, nº 1, 146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea
l) e com um crime de ofensa à integridade física na pessoa de S (artigo 143º, nº 1), a menos
que, nesta última parte, se considere a segunda hipótese como válida, donde resultaria que
só A seria responsável por um crime (do artigo 148º) contra S, sempre a concorrer
efectivamente.
Caso nº 5 A e B, que noutras ocasiões já se desentenderam, encontram-se no bar onde habitualmente tomam
uns copos. B, que estava disposto a fazer as pazes, dirige-se ao A enquanto fazia o gesto de tirar
um maço de cigarros do bolso. O A, julgando (erroneamente) que o outro vinha para o agredir
com algum objecto que trazia consigo, aplica-lhe dois murros na cara, fazendo-o cair. B sofreu
lesões necessariamente determinantes de doença por oito dias.
A. Ofensa à integridade física (artigo 143º, nº 1)
I. Tipicidade: (1) A ofendeu B corporalmente, com dois murros, provocando-lhe lesões
necessariamente determinantes de doença. (2) A actuou dolosamente, sabendo que agredia
outra pessoa e querendo isso mesmo (artigo 14º, nº 1).
II. Ilicitude: Objectivamente, A poderia prevalecer-se de uma causa de justificação por
legítima defesa (artigos 31º, nº s 1 e 2, alínea a), e 32º) se B realmente viesse para o
agredir. Acontece que não foi isso que aconteceu, pois B só queria tirar um cigarro do
bolso. A não logra objectivamente justificação para a sua conduta. A, todavia, agiu na
suposição errónea de que B ia para o agredir —e se tal fosse o caso existiria uma ofensa à
integridade física de outra pessoa. Para defesa do correspondente valor seria então
necessário o emprego da força física e portanto o uso que dele o A estaria justificado, de
acordo com o disposto no artigo 32º. Ora, uma vez que, assim, o A actuou em erro sobre
um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, à situação aplica-se o
disposto no artigo 16º, nºs 1 e 2, ficando excluído o dolo. O A só poderá ser punido por
negligência (artigos 16º, nº 3, e 148º, nº 1). Se não se puder afirmar que o A violou um
dever de cuidado, então fica excluída a punição, mesmo só por negligência (artigos 15º e
148º).
III. Conclusão: o A não cometeu o crime do artigo 143º, nº 1.
B. Ofensa à integridade física por negligência (artigo 148º, nº 1)
I. Tipicidade: A ofendeu B corporalmente, provocando-lhe lesões por não ter observado o
necessário dever de cuidado. Ao A impunha-se que em lugar de agir precipitadamente
tivesse aguardado até que a situações estivesse suficientemente esclarecida. Não o tendo
feito, actuou negligentemente,
II. Ilicitude: Não se descortina qualquer causa de justificação.
III. Culpa: O A, de acordo com as suas capacidades pessoais, estava em condições de
corresponder ao cuidado objectivamente devido.
IV. Conclusão: A praticou um crime previsto e punido no artigo 148º, nº 1.

IV. — Bibliografia seleccionada


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G. Jakobs, Estudios de derecho penal, 1997.
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Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch, Kommentar, 25ª ed., 1997.


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