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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO


UNIDADE ACADÊMICA DE HUMANIDADES, CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - MESTRADO

A HISTÓRIA COMO CIÊNCIA E SUAS DECORRÊNCIAS


PEDAGÓGICAS: UMA ANÁLISE DO PROJETO POLÍTICO-
PEDAGÓGICO DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNESC A PARTIR DE
MARC BLOCH

CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2009.


ANDRÉ AUGUSTO BOUSFIELD

A HISTÓRIA COMO CIÊNCIA E SUAS DECORRÊNCIAS


PEDAGÓGICAS: UMA ANÁLISE DO PROJETO POLÍTICO-
PEDAGÓGICO DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNESC A PARTIR DE
MARC BLOCH

Dissertação apresentada à Diretoria da Una de


Humanidades, Ciência e Educação da Universidade
do Extremo Sul Catarinense – UNESC, como
prérequisito para obtenção do título de Mestre em
Educação.

Orientador: Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva

CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2009.


Dedico este trabalho aos meus pais,
Maria da Silva Cabral Bousfield e Paulo
Augusto Bousfield, sinais vivos do amor
incondicional de Deus em minha vida.
Também dedico ao Arthur Bousfield,
sobrinho querido, que mais uma vez provou ser
um mestre na capacidade de recuperação.
À Edimara Maciel, que ofereceu água
em meu deserto com sua presença e amor.
Aos meus irmãos Fabiana e Paulo
Marcondes, e cunhados Pérside e Romildo,
que me mostraram o que de fato é fraternidade.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva, pela


paciência, dedicação e pelo legado de idéias oferecidas em cada aula, cada debate,
em cada orientação e em cada conversa informal.
Aos meus professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UNESC, pelas aulas ministradas, conversas esclarecedoras e pelos momentos de
descontração.
Agradeço ao Prof. Dr. Dorval do Nascimento e Prof. Dr. Vidalcir Ortigara
pela motivação e direcionamentos significativos.
À Igreja Presbiteriana de Rio do Sul, pela compreensão e apoio, sem o
qual até aqui não seria possível.
À coordenação do curso de História da UNESC, pelas contribuições,
atenção e motivação para dar continuidade a esse projeto.
QUEM SOU?

Quem sou?
Freqüentemente me dizem que saí do
confinamento de minha cela tranqüilo, alegre e
firme como um senhor de sua mansão de campo.
Quem sou?
Freqüentemente me dizem que costumo falar
com os guardiões da prisão confiada, livre e
claramente, como se eu desse as ordens.
Quem sou?
Também me dizem que superei os dias de
infortúnio orgulhosa e amavelmente, sorrindo,
como quem está habituado a triunfar.

Sou, na verdade, tudo o que os demais dizem de


mim?
Ou sou somente o que eu sei de mim mesmo?
Inquieto, ansioso e enfermo, como uma ave
enjaulada, pugnado por respirar, como se me
afogasse, sedento de cores, flores, canto de
pássaros, faminto de palavras bondosas, de
amabilidade,com a expectativa de grandes feitos,
temendo, impotente, pela sorte de amigos
distantes, cansado e vazio de orar, de pensar, de
fazer, exausto e disposto a dizer adeus a tudo.

Quem sou?
Esse ou aquele? Um agora e outro depois? Ou
ambos de uma vez?
Hipócrita perante os demais e, diante de mim
mesmo, um débil acabado?
Ou há, dentro de mim, algo como um exército
derrotado que foge desordenadamente da vitória
já alcançada?
Quem sou?
Escarnecem de mim essas solitárias perguntas
minhas;
Seja o que for tu o sabes, ó Deus: sou Teu!

Dietrich Bonhoeffer
RESUMO

A história como ciência e suas decorrências pedagógicas: uma análise do


projeto político-pedagógico do Curso de História da UNESC a partir de Marc
Bloch

Autor: André Augusto Bousfield

Orientador: Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva

Esta pesquisa, inserida na linha de pesquisa Educação e Produção do


Conhecimento nos Processos Pedagógicos, produz análise de um curso de História
do ensino superior, no Brasil, que forma pesquisadores e professores. A
investigação é realizada a partir de postulados científicos da própria História como
saber. Parte dos alertas oriundos do racionalismo aberto bachelardiano, para buscar
uma orientação teórica no campo da própria História. Isto é, ancora as perguntas no
pensamento de Marc Bloch, historiador do século XX e um dos fundadores da
Escola dos Annales, movimento francês na historiografia que rompeu com os
pressupostos positivistas da conhecida “Escola histórica metódica”. A obra primordial
de Marc Bloch que serviu a esse propósito foi Apologia da história, ou, O ofício de
Historiador, último trabalho feito por ele antes de ser assassinado pelos alemães em
meio a II Guerra Mundial. A pergunta central, sobre a concepção de cientificidade na
formação do professor historiador, portanto de natureza epistemológica e de
imbricações pedagógicas, foi dirigida ao Curso de História da UNESC, representado
pelo seu Projeto-Político Pedagógico. Optou-se por uma pesquisa qualitativa, de
análise de conteúdos, que parte das categorias blochianas sobre o modo de operar
da História como saber científico, para escrutinar as noções de história e de
historiografia manifestadas no PPP do Curso. Duas são as razões principais da
escolha do Curso de História da UNESC. A primeira, porque sua proposta
institucional, pedagógica e política assume a Licenciatura e o Bacharelado como
indissociáveis. A segunda, complementar à primeira, porque com Bloch percebeu-se
que o engendramento articulado entre pesquisa, ensino e formação se dá
inerentemente no âmbito de como a História se efetiva enquanto ciência. Isto é, a
partir do modo de operar de seu método científico, que exige dos profissionais dessa
área prestarem contas do que produzem, nas minúcias de cada passo metódico e,
além disso, mostrar capacidade de análise de conhecimentos e historiografias já
produzidas por outros de sua comunidade científica. Nesse sentido, a análise do
referido Projeto, com base nos postulados blochianos, revelou que, ao não ficar
marcadamente evidenciada a noção sobre que ciência está sendo colocada em
operação nos processos formativos do futuro pesquisador e professor, por falta de
um posicionamento teórico-metodológico explícito e/ou um hibridismo teórico, pode
comprometer a percepção de especificidades dessa ciência.

Palavras-chave: Ciência. História. Produção do conhecimento. Projeto político-


pedagógico. Ensino de História.
ABSTRACT

History as science and its pedagogical consequences: an analysis of the


political-pedagogical project of the History Course at Unesc from the
perspective of Marc Bloch

Author: André Augusto Bousfield

Advisor: Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva

This work belongs to the research line Education and Knowledge Production in the
Pedagogical Processes and aims at analyzing a Brazilian undergraduate History
program that forms researchers and teachers. The analysis is based on scientific
assumptions in History as knowledge. This work is based on the principles
established by the Bachelardian open rationalism. This reference was enriched by
the thoughts of Marc Bloch, a 20th historian and one of the founders of the Annales
School, a historiography French movement that broke with the Positivists
assumptions of the "Traditional History". Mark Bloch's work selected was The
Historian's Craft, his last book before being murdered by the Nazis during II World
War. The research question was the conception of science in History teachers
formation, na epistemological and pedagogical question. The study locus was the
History course at Unesc as it is represented by its Pedagogical Political Project. I
chose a qualitative research in which, based on Blochians' categories, the PPP was
analyzed in order to observe its notions of history and historiography. I chose the
History course because its political and pedagogical proposal assumes teaching
formation and baccalaureate as inseparable. With Bloch I could perceive that the
linkage between research, teaching and education is inherent to History as science.
This science works from the starting point of its scientific method, which forms and
demands professionals who shall respond for what they produce in detail and,
besides, for their capacity of analysis of knowledge and historiographies produced by
others. The analysis revealed that the PPP does not states clearly which notion of
science it is working with, nor assumes a clear theoretical, methodological position,
and tends to present a hybrid theoretic perspective that can affect the scientific
specificities of this science.

Keywords: Science. History. Knowledge production. Pedagogical-political project.


History Teaching.
LISTA DE ABREVIATURAS

ANPUH – Associação Nacional de História


CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNE – Conselho Nacional de Educação
INEP – Associação Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
PPP – Projeto Político-Pedagógico
PUC-MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
MEC – Ministério da Educação
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UFU – Universidade Federal de Uberlândia
UNESC – Universidade do Extremo Sul Catarinense
SUMÁRIO

1 A PROBLEMATIZAÇÃO .......................................................................................10
1.1 Configuração do problema ..................................................................................10
1.2 Relações entre problemas pedagógicos e epistemológicos................................18
1.3 A processualidade científica da História e a formação de professores de História
..................................................................................................................................25
1.4 O Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de História da UNESC...............27
1.5 O caminho metodológico a título de sistematização ...........................................28
2 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA EM MARC BLOCH: A QUESTÃO DO MÉTODO
..................................................................................................................................31
2.1 A História no campo epistemológico (séculos XIX e XX) ....................................31
2.1.1 O surgimento da Escola dos Annales: a primeira geração...............................35
2.2 A produção historiográfica de Marc Bloch ...........................................................38
2.3 Ciência histórica e não um hobby .......................................................................41
2.4 Apologia da História: nada por declaração..........................................................43
2.5 O ensino e aprendizagem de História .................................................................46
2.6 O método científico e suas manifestações na formação do Historiador..............52
2.6.1 A legitimidade do esforço intelectual em História .............................................53
2.6.2 A atitude do historiador diante da história efetiva: a escolha do objeto............54
2.6.3 A estética da linguagem científica em História .................................................56
2.6.4 A noção de temporalidade e a “tomada de consciência”..................................57
2.7 O método crítico para a História: o valor da análise dos testemunhos para a
educação...................................................................................................................61
3 A CIENTIFICIDADE NO PPP DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNESC.................71
3.1 O curso de História da UNESC e o surgimento do PPP .....................................71
3.2 A manifestação da “cientificidade” na elaboração do PPP..................................74
3.3 A concepção de História e a relação com o método ...........................................78
3.4 A concepção de Educação e a relação com o método em História ....................82
REFERÊNCIAS.........................................................................................................97
ANEXO ...................................................................................................................101
ANEXO A – PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO CURSO DE HISTÓRIA ...102
10

1 A PROBLEMATIZAÇÃO

Este capítulo introdutório trata do itinerário percorrido nesta pesquisa,


com o objetivo de se conceber e apresentar uma problemática, com um tema,
referenciais teóricos, caminhos metodológicos, objetivos e hipóteses em relação ao
problema.

1.1 Configuração do problema

A temática sobre a cientificidade da História em processos pedagógicos,


da presente pesquisa, surge de interrogações minhas durante um período no curso
de graduação em História, diante do amplo e complexo debate sobre qual melhor
corrente teórico-metodológica seguir ao se fazer pesquisa para elaboração de um
TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). A pergunta mais recorrente dirigia-se à
problemática da cientificidade nos processos de produção de conhecimento na área.
Por isso mesmo, esta pesquisa parte de um incômodo pessoal. Ou seja, quando um
indivíduo faz um curso de graduação em História, seja licenciatura ou bacharelado,
no Brasil em pleno século XXI, aprende o que é ciência historiográfica? E de que
tipo de ciência está-se tratando? Isto tanto no que concerne aos processos de
produção de ciência historiográfica, como naqueles momentos do seu ensino? De
fato, o ensino é apenas a conseqüência articulada de uma ciência? Que cientista é
formado, ao se terminar o curso de bacharelado e licenciatura em História?
O curso, na sua efetividade, não ofereceu todas as respostas a respeito
das primeiras inquietações, que num primeiro momento parecem ser fáceis de
responder, caso seja apenas no nível da opinião. Claro, algumas explicações podem
ser arroladas: um período breve de curso, a falta de recursos teórico-metodológicos
e bibliográficos, além da constatação de que a pergunta sobre a cientificidade da
História já vem sendo feita há algum tempo, embora não acompanhe a História
desde sempre, e ainda não foi resolvida. Trata-se de um debate atual e pertinente.
Na realidade, o debate em torno da natureza científica da História se arrasta desde o
11

século XIX (GLENISSON, 1983, p. 16). É um debate até certo ponto recente, mas
muito amplo.
Esta pesquisa não vem trazer mais uma resposta sobre a pergunta: É a
História uma ciência? Trata-se de outras questões: Que ciência, que saber, ou
melhor, que História é manifestada num curso de graduação em História e que
historiador (professor) tal curso se objetiva a formar? E, mais especificamente,
interrogar e identificar, pela presença ou ausência, que método ou métodos
científicos são acessados num programa de formação de professores em
História e como, se for o caso, determinado método se manifesta. Afinal, não se
trata de defender a cientificidade da História por uma declaração institucional e tão
pouco de analisar os fatores sociais, econômicos e políticos que também configuram
uma realidade na educação superior. Trata-se de analisar, num campo específico, a
processualidade da História, tanto na sua produção de conhecimento quanto
imbricadamente na formação docente. O campo de análise é um curso de
graduação em História conforme se apresenta no Projeto-político-pedagógico. Esta
pesquisa visa a analisar o PPP do curso de História da UNESC.
Muitas pesquisas no Brasil têm se dedicado ao estudo da formação de
professores na área de História. Convém aqui citar e destacar a professora Dra.
Selva Guimarães Fonseca, que tem se dedicado à área de ensino de História. Em
sua obra Os caminhos da História Ensinada, a autora explora as linhas de política
educacional no Brasil entre as décadas de 1970 e 1990 no que se refere à prática do
ensino de História. Além disso, a autora dá atenção à pesquisa histórica em relação
ao ensino dessa disciplina, que tem sido negligenciada em muitos centros de pós-
graduação e publicações especializadas. Para a autora, segundo o apresentador do
livro, Marcos A. Silva, “[...] pesquisa e ensino de História são faces de um mesmo
saber” (FONSECA, 1993, p. 10). Declarando-se testemunha ocular, Fonseca
apresenta as questões que mais lhe incomodavam nesse processo. Por exemplo,
afirma ela que, no final da década de 1970, era perceptível uma lacuna entre a
História que se discutia e se produzia na academia e aquela destinada ao ensino
nas escolas de 1º e 2º graus. A autora se perguntava por que certos temas eram
privilégio de várias leituras e interpretações no espaço acadêmico e nem sequer
eram mencionados nos currículos e livros didáticos de 1º e 2º graus. Quando
mencionados, apenas uma versão, uma linha interpretativa era tida como
verdadeiramente histórica (FONSECA,1993, p. 11).
12

A autora também discute sobre os processos de produção e difusão do


conhecimento histórico e as relações entre os diferentes espaços do saber e a lógica
subjacente a essas relações. Em suma, Selva Guimarães Fonseca, na obra citada,
segue a linha investigativa que procura saber sobre o significado do ensino de
História e das mudanças nele anunciadas no interior das lutas políticas e culturais
dos diferentes setores sociais em determinados momentos históricos. A autora se
propõe a pensar sobre como essas mudanças se constituíram nas duas últimas
décadas da história brasileira do século XX: a formação de professores, o lugar
ocupado pela disciplina no currículo escolar, a definição do conteúdo de História a
ser ensinado, como essas questões se projetaram ao longo da década de 1960 e se
concretizaram nas de 1970 e de 1980. No capítulo IV, último capítulo de sua obra,
“Longe da escola, na escola: vozes da universidade e da indústria cultural”, a autora
escreve:

As mudanças ocorridas no ensino de História nas décadas de 70 e 80


situam-se no movimento historiográfico vivido no Brasil, nas modificações
ocorridas no debate acadêmico, no mercado editorial, na pós-graduação,
enfim, na produção da História. (FONSECA, 1993, p. 111).

Selva G. Fonseca diz que a expansão do ensino superior nesse período


tem como fundamento uma concepção de ensino, especialmente de ensino superior,
como capital, fator de desenvolvimento econômico, cujo crescimento é significado de
democratização e de progresso (FONSECA, 1993, p. 113). A autora cita uma crítica
de Marilena Chauí com relação a esse processo:

Sobre o silêncio e o medo, entre 1969 e 1984, ergue-se a universidade


modernizada, onde se fará dos conselhos departamentais e
interdepartamentais, das congregações, das comissões dos Conselhos
Universitário, da administração, uma intrincada rede de poder burocrático
fortemente centralizado, em nome da “eficiência, modernização, flexibilidade
administrativa e formação de recursos humanos de alto nível” para o
desenvolvimento do país, graças a um repertório de soluções realistas e de
medidas operacionais que permitem racionalizar a organização das
atividades universitárias, conferindo-lhes maior eficiência e produtividade.
(CHAUÍ, 1988, apud FONSECA, 1993, p. 113).

A crítica analítica da autora pode ser resumida no que ela diz sobre a
organização empresarial em que a universidade brasileira nas décadas de 1970 e
1980 se desenvolveu. A produção historiográfica nesse período surge num contexto
marcado, por um lado, pelo autoritarismo e pela perseguição ideológica da ditadura
13

militar e, por outro, pelo movimento de organização da sociedade na luta pela


democracia e pelos direitos básicos de cidadania.
Em outro compêndio de sua autoria, Didática e Prática do Ensino de
História, Selva Guimarães Fonseca reúne experiências que compuseram seu
desenvolvimento como professora de História no ensino fundamental e médio, de
Didática e Metodologia de Ensino de História e como formadora de professores e
pesquisadores da área. No capítulo V da primeira parte do livro, “Como nos
tornamos professores de História: a formação inicial e continuada”, Fonseca traz
uma coletânea de reflexões, resultados de pesquisas sobre formação de professores
de História no Brasil. A autora é bem explícita nas problematizações:

Quais os paradigmas de formação têm norteado as práticas dos cursos


superiores de História? O que propõe o texto/documento das Diretrizes
curriculares Nacionais dos cursos Superiores de História, aprovadas em
2001, produto das novas políticas educacionais do MEC, para formação
inicial de professores? Como se articulam as questões da formação
inicial/universitária, a construção dos saberes docentes e as práticas
pedagógicas no ensino de história? (FONSECA, 2003, p. 59).

A autora levanta a problemática do distanciamento entre a história


ensinada nas escolas e nas universidades. Segundo suas pesquisas, no recorte
entre as três últimas décadas do século XX, houve nas universidades uma
diversificação de abordagens, problemas e fontes no que concerne à formação do
profissional de História. Mas em relação às escolas, estas eram apenas lugares de
transmissão, e o livro didático a principal, quando não a única fonte historiográfica
utilizada por professores e alunos (FONSECA, 2003, p. 61). Para a autora, essa
realidade foi resultado do modelo inicial de formação de professores de História e
Geografia seguido nos cursos de licenciatura curta em Estudos Sociais instalados no
Brasil durante a ditadura militar. A autora escreve que se tratou “de um projeto de
desqualificação estratégica, articulado a diversos mecanismos de controle e
manipulação ideológica que vigoraram no Brasil no período do regime militar (...)”
(FONSECA, 2003, p. 61). Isso gerou a dicotomia entre as licenciaturas curtas e
plenas e o bacharelado. Uns orientavam suas carreiras para a pesquisa, enquanto
outros ocupavam o mercado educacional, gerando mais distanciamento entre a
formação universitária e educação escolar básica. Isso provocou debates entre os
profissionais da área em defesa de um outro processo de formação, criticando a
“formação livresca, distanciada da realidade educacional brasileira, à dicotomia
14

bacharelado/licenciatura, visando uma formação que visasse o professor de história


produtor de saberes, capaz de assumir o ensino como descoberta, reflexão e
produção” (FONSECA, 2003, p. 62), ou seja, a formação do professor/pesquisador.
Para a professora Selva G. Fonseca, os reflexos desse contexto ainda
ecoam nos dias atuais, sobretudo pela perplexidade dos recém-formados diante da
complexidade da educação escolar, resultado também de “uma concepção de
formação docente, consagrada na literatura da área como modelo da racionalidade
técnica e científica ou aplicacionista” (FONSECA, 2003, p. 62). Chamado pela autora
de “três + um”, esse modelo marca profundamente a organização dos programas de
formação de professores de História, em que os alunos cursam as disciplinas que
transmitem os conhecimentos de História em três anos e depois cursam em um ano
as disciplinas obrigatórias da área da pedagogia, aplicando os conhecimentos na
prática de ensino, também obrigatória.1 Mesmo sendo um modelo bastante
questionado, segundo a pesquisadora, ele ainda é norteador nos cursos de
formação de professores de História no Brasil. Segundo Fonseca, a crítica a esse
modelo foi muito debatida nos anos 1990 e se dava a partir de contribuições de
pesquisadores como Donald Schon, Zeichner, Gauthier, Tardif, Nóvoa, Alarcão,
entre outros. Para a autora, esse modelo disciplinar e aplicacionista é inadequado e
historicamente “cumpre funções ideológicas, epistemológicas e institucionais
precisas na organização e manutenção do status quo” (FONSECA, 2003, p. 63).
Para a autora, não basta ao professor apenas saber alguma coisa se ele não sabe
ensinar e construir condições concretas no seu exercício.
Fica claro, pelo exposto, que essas obras de Selva Guimarães Fonseca
têm muita importância para se ter acesso ao estado da arte do ensino de História no
Brasil e para apreender algumas relações sobre a importância da qualificação
constante do ensino de História, contemplando a formação de professores em
História, configurações de cursos e o ensino-aprendizagem propriamente ditos. No
entanto, não há correlação explícita em forma de análise entre métodos-científicos,
teorias, ensino e formação docente. Sua análise contempla aspectos sociais,
políticos, econômicos e culturais, mas não se direciona, de forma mais detida, às
questões essencialmente epistemológicas, embora as cite em alguns momentos e
explicite a importância dessas questões.

1
A autora enfatiza a palavra obrigatória, para mostrar as opiniões que alegavam desnecessárias as
disciplinas pedagógicas.
15

Na tentativa de circunscrever o espectro desse debate, buscou-se contato


com os trabalhos, dissertações e teses que tratam da formação de professores em
História, sobretudo no banco de dados da CAPES. Nesse cenário, é possível
perceber que a temática sobre a formação de professores em História está quase
sempre voltada para as questões factuais na política, nas configurações de grades
curriculares e nas contextualizações socioculturais, em grande medida pautadas por
recortes temporais. A pesquisa Formação de professores de História: experiências,
olhares e possibilidades (Minas Gerais, anos 80 e 90) do ano de 2000, da autora Ilka
Miglio de Mesquita, sob orientação da professora Selva Guimarães Fonseca, traz,
por exemplo, uma reflexão sobre o papel da universidade na formação inicial e na
construção da prática docente em três Universidades selecionadas: PUC-MG
(Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais), a UFMG (Universidade Federal
de Minas Gerais) e a UFU (Universidade Federal de Uberlândia). Sua conclusão, a
partir do caminho metodológico escolhido, a história oral, aponta que formar o
professor de história está além de propostas curriculares e que: “(...) formar
professor de história significa proporcionar ao profissional as condições reais para
produzir conhecimentos históricos, para dialogar com fontes e saberes construídos e
transgredir práticas pedagógicas, materiais didáticos e guias curriculares que
aprisionam o debate, o conhecimento e a reflexão sobre a própria experiência”
(MESQUITA, 2000, p. 152).
O trabalho O Ensino Superior de História na Paraíba (1952/1974):
aspectos acadêmicos e Institucionais, de Francisco Chaves Bezerra, objetiva
apresentar e analisar os aspectos organizacionais dos cursos de História na
Paraíba, os motivadores políticos, além de analisar as presenças e ausências do
trabalho de pesquisa entre esses profissionais. Também o trabalho de mestrado de
Alix Pinheiro Seixas de Oliveira, As políticas educacionais e a formação do
profissional de História (1996-2002) de 2005, investiga a relação entre as políticas
educacionais pautadas nas Diretrizes Curriculares (CNE/CES) e na Avaliação (INEP)
desenvolvidas entre 1996 e 2002, e a concepção docente da formação do
profissional de História, tendo como ponto de partida a centralidade do modelo de
competências na legislação. Nessas duas pesquisas, a ênfase é dada às práticas
políticas e seus resultados de influência na formação de professores de História, em
realidades específicas.
16

Outros trabalhos, que também não se distanciam da ênfase nas práticas


políticas e governamentais, apresentam elementos contextuais ligados à política
econômica e às realidades socioculturais. O trabalho de mestrado de Carmen
Rangel da Silva, A formação do professor de História em tempos neoliberais e pós-
modernos, de 1996, é um exemplo característico. Convém frisar que a autora
também apresenta a evolução teórica que discute a educação e a História em
função dos seus paradigmas, transferidos aos estudantes na academia.
Outras pesquisas buscaram percorrer caminhos em suas análises que
levam em conta perspectivas de cunho mais teórico-metodológico, tendo como foco
a formação teórica dos professores em graduação, produção do conhecimento
historiográfico, as representações de professores, cursos específicos e etc. Alguns
trabalhos justificam tais ênfases, como a pesquisa de João Gilberto da Silva
Carvalho Construindo o saber histórico em sala de aula: representações de
professores de história (2002), em que o autor analisa a identidade do professor de
História em termos de valores e crenças. A tese de doutorado de Flavia Eloisa
Caimi, Processos de conceituação da ação docente em contextos de sentido a partir
da Licenciatura em História (2006), aborda questões ligadas à cognição do
professor, ressaltando na análise seus percursos de aprendizagens e
desenvolvimentos profissionais. Trata-se de uma pesquisa-intervenção. O trabalho
de mestrado de Daniel Florence Giesbrecht, A formação do professor de História
frente aos paradigmas do conhecimento: o curso de história no centro do debate,
pesquisa de 2005, analisa o processo de formação de professores de História
perante o que ele chama de principais paradigmas que envolvem a produção do
conhecimento histórico e a educação, como positivismo, marxismo e os Annales.
Seu campo de estudo foi o curso de História da PUC de Campinas (SP). O autor fez
entrevistas com docentes e analisou o Projeto Pedagógico do curso, concluindo que
a despolitização da sociedade brasileira e o capitalismo e suas reações na
sociedade influenciam diretamente os cursos superiores.
Numa abordagem mais conceitual, Marco Aurélio do Santos, em Tempo
histórico e o ensino de história, dissertação de mestrado de 2006, traz reflexões
acerca de como as diversas concepções de tempo histórico influenciaram e
influenciam a historiografia e o seu ensino. Por sua vez, João Batista Vale Junior, na
sua dissertação de mestrado de 2000 intitulada: Currículo e prática docente:
formação teórica dos alunos do curso de Licenciatura Plena em História da
17

Universidade Estadual do Piauí, traz uma reflexão analítica sobre os modelos que
nortearam e norteiam o ensino superior de História na Universidade Estadual do
Piauí, procurando avaliar a relação existente entre o currículo formal e a prática
docente e como essa relação influencia a formação teórica dos alunos. Um dos
resultados dessa pesquisa, que chama a atenção, é a adesão que os docentes e
alunos intermediários e do final do curso tiveram ao que o autor chama de modelo
teórico resultante do paradigma da escola dos Annales.
Outro pesquisador, Everaldo Paiva de Andrade, na sua tese de doutorado
de 2006, Um trem rumo às estrelas: a oficina de formação docente para o ensino de
história (O curso de História da FAFIC), também fazendo análises mais conceituais,
discute significados de formar, principalmente a partir do debate sobre como
configurar a Licenciatura e Bacharelado num curso de História, além de analisar
saberes e práticas que já estão consolidados no campo de análise desse autor.
De um modo geral, esses trabalhos e outros artigos a que se teve
contatos, alguns apresentados na ANPUH, têm como objeto a formação de
professores em História e diretamente o ensino de História. Além de fazerem a
análise da formação profissional, a grande maioria dos trabalhos consultados faz a
análise a partir das práticas docentes nas instituições de educação básica. Tais
pesquisas observadas serviram para que esta pesquisa se contextualizasse ao
debate e tivesse acesso ao estado da arte sobre o ensino superior de História no
Brasil, sem se tornar mera repetição.
Diante desse quadro, convém frisar que esta pesquisa parte de uma
questão de caráter mais epistemológico que social. Isso não ocorre de nenhum
modo a eventual descrédito que o autor desta pesquisa venha ter em relação a
explicações ou reflexões de cunho social. Trata-se, sim, de se entender que a
problemática do conhecimento e de sua produção em processos formativos requer,
além de interrogações e explicações sociais, análises de cunho epistemológico, ou
seja, interrogar sobre o modo de operar, na produção, na evolução, na formação e
na eventual superação de um determinado saber, como é o caso da História.
A busca de perceber que tipo de ciência prepondera e como ela opera
através do seu método, e principalmente perceber analiticamente a sua presença ou
ausência num determinado curso formativo, nasce do acesso ao pensamento de
Gaston Bachelard (1884-1962) no que concerne à relação da pedagogia com a
18

epistemologia. É do pensamento de Bachelard que se justifica o porquê e o caráter


desse questionamento.

1.2 Relações entre problemas pedagógicos e epistemológicos

Emergem as questões colocadas devido ao contato não proposital, mas


de suma importância, com alguns conceitos do pensamento de Gaston Bachelard
(1884-1962) ligados à racionalidade científica, aproximação que se deu graças à
minha inserção no Programa de Pós-graduação em Educação da UNESC
(Universidade do Extremo Sul Catarinense) na linha de pesquisa Educação e
Produção do Conhecimento nos Processos Pedagógicos. A intencionalidade da
pesquisa não se limita a buscar apenas respostas, mas principalmente lançar
perguntas sobre a cientificidade e, no caso específico, a cientificidade da História,
isto é, ampliar a capacidade de análise e reflexão sobre essa questão e fazer a
análise em um ambiente acadêmico específico, com a consciência da
impossibilidade de avaliar vários e, muito menos, todos os cursos de graduação em
História no Brasil no espaço de tempo de realização do mestrado. Além disso, um
curso se apresenta de vários modos e em espaços diferentes. Por isso, em caráter
bem específico, contempla-se exclusivamente o PPP do curso de Licenciatura e
Bacharelado em História da UNESC, como expressão oficial do que o curso
representa ser.
É desse cenário que surge o interesse e a perspectiva de estabelecer
relações de questões sobre cientificidade, racionalidade científica e educação. Como
aponta o professor Ilton Benoni, abordando o pensamento de Bachelard:

(...), não se pode pensar o ensino de ciências senão de forma colada ao


movimento de constituição da própria ciência: a construção da ciência é já
uma construção pedagógica. Portanto, não se trata de uma postura
pedagógica que antecede a ciência, tampouco que venha em decorrência
dela. Trata-se, sim, de conceber a ciência como uma forma de
racionalidade, uma postura relacional - do homem com o mundo e com os
outros homens – essencialmente pedagógica, construtiva, realizante.
(BENONI, 1999. p. 21).
19

Assim, é perceptível e explícita a relevância educacional nessa temática


proposta quando se pergunta sobre o estatuto epistemológico de determinado saber.
Pensar sobre a cientificidade de algum saber é pensar educação. Por isso, as
questões centrais desta pesquisa buscam apoio inicial nos alertas e nas reflexões
sugeridas pelo pensamento de Bachelard.
Gaston Bachelard articula suas reflexões sobre a processualidade da
ciência e da educação. Cabe esclarecer que a intenção aqui não é discorrer
literalmente sobre o pensamento epistemológico de Bachelard, mas a partir dele e
de algumas de suas reflexões sobre: “o que é ciência?”, direcionar-se a um
referencial teórico no campo da própria História e que produza o debate sobre a
cientificidade da História no sentido de construir e localizar categorias e conceitos,
ou seja, ferramentas que permitam observar e analisar uma determinada realidade
acadêmica focalizando o seu Projeto Político-Pedagógico (PPP).
Com Bachelard foi possível perceber que o acontecer histórico da ciência
deve ser estudado numa perspectiva mais epistemológica do que historiográfica ou
social. Ou seja, pesquisar e estudar História das ciências, para esse pensador, não
é fazer historiografia nenhuma, mas é fazer perguntas e reflexões epistemológicas,
justamente porque fazer ciência, dentre tantas perspectivas, é produzir
conhecimento. Bachelard escreve algo que ajuda a entender isso de modo mais
elucidativo:

Percebe-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o de


historiador da ciência. O historiador deve tomar as idéias como se fossem
fatos. O epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem idéias,
inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por
uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é
um obstáculo, um contra-pensamento. (BACHELARD, 1996, p. 22).

A epistemologia bachelardiana contempla a processualidade do


conhecimento em produção, e não quem o produz nem somente o próprio
conhecimento em si, isto é, como produto acabado. Bachelard ao afirmar (1996, p.
293): “(...) indicamos rapidamente de que modo, a nosso ver, o espírito científico
vence os diversos obstáculos epistemológicos e se constitui como conjunto de erros
retificados”, revela que suas indagações se dão em torno da ciência e de como ela
se processa agindo diretamente na formação do espírito científico. É a partir dessa
dinâmica epistemológica que Bachelard apresenta algumas dificuldades, alguns
20

apontamentos críticos e também instrutivos na formação de um indivíduo que possa


compreender a dinâmica da ciência e seus aspectos de formação.
Ao analisar a ciência e algumas tentativas de se fazer ciência, Bachelard
o faz historicamente, mas não como historiador, antes como epistemólogo, sem se
preocupar em tratar de narrativas factuais. Para ele esse é o direcionamento de
desenvolvimento de cientificidade que um espírito em formação científica deve
seguir. E é assim que a verdadeira ciência se processa na história humana, sem
marcos engessados, sem um apogeu final e sempre abordando e revolucionando as
conquistas científicas do passado a partir de crítica e superação, e não na idolatria,
do já alcançado. Percebe-se, aqui, uma visão histórica baseada na racionalidade,
que nunca se fecha, e sempre deve mudar, retificando e superando o já instituído
como saber verdadeiro.
Bachelard (1996, p. 11) afirma que o desenvolvimento individual de um
espírito científico passa por três estágios muito mais precisos do que os propostos
por Comte: “a) o estado concreto, em que o espírito se entretém com as primeiras
imagens do fenômeno [...]; b) o estado concreto-abstrato, em que o espírito
acrescenta à experiência física esquemas geométricos e se apóia numa filosofia da
simplicidade; c) o estado abstrato, em que o espírito adota informações
voluntariamente subtraídas à intuição do espaço real, [...] desligadas da experiência
imediata e até em polêmica declarada com a realidade primeira, sempre impura,
sempre informe”. Esses três estágios são marcos que possibilitam a história, a
transformação, o desenvolvimento histórico da ciência e do cientista, ou seja, uma
história que revela uma dinâmica inerente à própria ciência. Em outras palavras,
toda cientificidade implica uma historicidade.
Para Gaston Bachelard, a história da ciência e a formação do espírito
científico não são um emaranhado acumulado de “grandes descobertas” sobre o
real. Aliás, sua ênfase na história da ciência não está baseada nas grandes
descobertas, mas nos grandes questionamentos, nas grandes problematizações,
nas perguntas mais bem elaboradas, nas grandes revoluções científicas que
alcançaram resultados muito mais amplos, criando novas concepções de mundo.
Para as concepções epistemológicas de Bachelard, as perguntas mais bem
elaboradas são as personagens principais nas narrativas histórico-científicas,
quando essas tiram toda a base de verdade do conhecimento já acumulado. A
conquista científica, para Bachelard, é sempre temporária, sempre passível de
21

crítica, sempre destinada a se tornar obsoleta. Por isso, a importância da paciência


sobre uma pesquisa desinteressada, que deve ser um dos pré-requisitos básicos de
um pesquisador. É assim que um educador deve ensinar aos seus alunos, ou seja,
gerar interesse de pesquisa com vistas a transcender o interesse comum, banal, o
interesse das primeiras observações.
No entanto, na formação de um indivíduo para ciência, a visão
predominante de sua época, Bachelard identifica e propõe superar a aprendizagem
pelo exato, em que se acentuam exatamente as “consideradas grandes
descobertas”, aliadas à própria experiência pessoal e empírica desse espírito. O fato
se torna grande por causa de quem conta. E é nessa dinâmica de formação que o
indivíduo esbarra em obstáculos que impedem a sua evolução para o aprendizado e
produção de conhecimento. São os obstáculos epistemológicos e pedagógicos,
definidos por Bachelard (1996, p. 17):

(...) não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e


a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e
do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem,
por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que
mostraremos causas de estagnação e até regressão, detectaremos causas
de inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos.

E continua:

O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca


é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é “o
que se poderia achar”, mas é sempre o que se deveria ter pensado. (...). Ao
retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico
arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um
conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos,
superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização.

Um iniciante na ciência nunca é jovem, mas antes, velho em seus vícios,


que não são seus, mas da realidade cientificamente estagnada em que está
inserido, coloca Bachelard. Para Bachelard, deixar de ser estagnado é deixar de ser
repetitivo e ao mesmo tempo rejuvenescer, é conhecer, e o ato de conhecer é
colocar-se contra um conhecimento anterior. Um obstáculo epistemológico se
incrusta no conhecimento não questionado. Por isso a ciência sempre se coloca
contra a opinião e hábitos intelectuais outrora úteis que tendem a ser inúteis. O
educando é bem educado quando aprende que sempre deve mudar, pois esse deve
22

ser seu mais importante conteúdo, ter necessidade de necessidades, para não
correr o risco de ter uma cabeça bem feita, fechada. Ou seja, um espírito científico,
consciente, sabe que se deve conhecer para melhor perguntar, questionar.
Os obstáculos epistemológicos são identificados com mais propriedade
quando se estuda o curso histórico do pensamento científico e a prática educacional.
Contudo, o epistemólogo deve analisar as fontes que outrora um historiador pudesse
escolher, e analisá-las a partir da razão mais desenvolvida, mais atual, pois é na
construção de racionalidades que esse epistemólogo deve se direcionar e não em
meros resultados.
Na atitude objetiva de se vencer esses obstáculos, como a experiência
primeira, o conhecimento geral, o uso e abuso de imagens usuais, o conhecimento
unitário e pragmático, obstáculos do conhecimento quantitativo e tantos outros que o
autor identifica, o espírito científico se constitui como um conjunto de erros
retificados, que nada mais é do que o processo de superação desses obstáculos.
Educadores devem levar em conta que, em relação direta com esses obstáculos,
está uma cultura que já existe entre os educandos, enraizada na vida cotidiana. Não
basta passar o conteúdo de uma vez para aquisição, mas antes superar o que já foi
passado pela vida comum.
Diante de tudo isso, Bachelard afirma que o espírito científico se funda na
negação do que está dado como pronto, preocupando-se não com o fenômeno em
si, mas com o porquê do fenômeno. Por isso, na atitude objetiva, existe a
necessidade de um abstrair-se de muitas coisas, como do conhecimento pronto e do
conhecimento sensível. Nessa dinâmica, as questões e perguntas científicas
ganham mais valor do que as respostas. Ou seja, a ciência progride historicamente
não pelo que acumula factualmente, mas pelo que é capaz de questionar, com
estudos que não jogam no lixo o conhecimento adquirido, mas também não trata
esses conhecimentos como dogmas divinos. Por isso também a idéia de fracasso se
faz notória para Bachelard, pois sem a noção de fracasso “o erro é maior ainda”
(BACHELARD, 1996, p. 295). E é a partir dessa consciência dos erros que existe a
possibilidade de deixar os estímulos primeiros em relação ao objeto e submeter-se
ao crivo de uma comunidade científica. Sempre será pelo olhar do outro que o aval
será dado ao espírito científico no labor científico.
As crises ganham uma supervalorização para Bachelard, pois é a partir
delas que é possível atingir grandes revoluções científicas, como a teoria da
23

relatividade de Einstein, por exemplo. Assim, transcende-se o que já está dado e


supera-se seja um método, um dado ou mesmo o que é dito como verdade. Tal
revolução será tão impactante que atingirá todas as realidades científicas, colocando
em ‘xeque’ verdades anteriormente colocadas e utilizadas. As mudanças são de
base, e não apenas em vãs descobertas. Aliás, para esse pensador, não é a
descoberta que deve ser valorizada na ciência, mas o rompimento com o que a
gerou.
A socialização, ou seja, a educação da ciência se dá, para Bachelard,
quando esta se torna fácil para o ensino. Assim, não é o conteúdo fácil, mas uma
ciência de fato, fácil de ser ensinada pela sua dinâmica racional revolucionária. E
isso é inerente à própria ação dinâmica da ciência, que não se fecha em conteúdos
somente, mas se abre para novas perspectivas dinâmicas. Por isso, aquele que
realmente aprende ciência deve saber ensiná-la. Para Bachelard, a Escola deve ser
fundada a partir da produção do conhecimento científico, deve ser fundada pela
ciência, e não o contrário. Ele escreve:

Na obra da ciência só se pode amar o que se destrói, pode-se continuar o


passado negando-o, pode-se venerar o mestre contradizendo-o. Aí, sim, a
Escola prossegue ao longo da vida. Uma cultura presa ao momento escolar
é a negação da cultura científica. Só há ciência se a Escola for permanente.
É essa escola que a ciência deve fundar. Então os interesses sociais
estarão definidamente invertidos: a Sociedade será feita para a Escola e
não a Escola para a Sociedade. (BACHELARD, 1996, p. 310).

Assim, em outras palavras, só há História da ciência quando esta


progride, mas sua progressão é por conquistas, conquistas que não são resultados
de afirmação, antes resultados de negação. Por isso mesmo, imbricado a esse
pensamento, nos processos científicos haverá sempre um compromisso com uma
pedagogia crítica, em que a razão sempre critica, a começar por ela mesma e sua
tradição e não apenas contra a religião, contra uma ordem tradicionalista
estabelecida, escreve Georges Canguilhem no prefácio da obra El Compromisso
racionalista (BACHELARD, 1973, p. 9).
Numa conferência proferida em 20 de outubro de 1951 no Palais de La
Découverte e depois publicada no livro L’Enagement Rationaliste (1972), Bachelard
intitulou sua palestra de: A atualidade da história das ciências, onde tratou de expor
para que serve estudar história das ciências, ou melhor, “sob que forma a história
das ciências pode ter uma acção positiva sobre o pensamento científico”, em sua
24

contemporaneidade (CARRILHO, 1991, p. 71-72). Ele afirma que a história das


ciências não é inteiramente uma história como as outras. Os historiadores das
ciências devem ater-se aos processos científicos, e não procurar explicações
contextuais e institucionais na política, economia e etc. “A temporalidade da ciência
é um crescimento do número das verdades, um aprofundamento da coerência das
verdades. A história das ciências é a narrativa deste crescimento, deste
aprofundamento” (CARRILHO, 1991, p. 72). Nisso deduz-se que a história das
ciências, para esse autor, deve ser sempre descrita como a história de um progresso
do conhecimento, evolução dos conceitos, isto é, a história das suas retificações.
Nessa história, nas análises do conhecimento, o epistemólogo, em
completa oposição às prescrições que são recomendadas tradicionalmente ao
historiador para que não julgue, julga, apresenta juízos de valor justamente por que:

(...) a história das ciências é essencialmente uma história julgada, julgada


no pormenor da sua trama, com um sentido que deve ser permanentemente
afinado por valores de verdade. A história das ciências não pode ser
somente uma história de registros. As actas das academias contêm
naturalmente numerosos documentos para a história das ciências. Mas
estas actas não constituem verdadeiramente uma história das ciências. É
preciso que o historiador das ciências trace, a partir delas, linhas de
progresso. (CARRILHO, 1991, p. 75).

E mais:

(...) se o historiador de uma ciência deve ser juiz dos valores de verdade
referentes a essa ciência, onde ele deverá aprender a sua profissão? A
resposta não oferece dúvidas: o historiador das ciências deve, para julgar
bem o passado, conhecer o presente; deve aprender melhor que puder a
ciência cuja história se propõe a fazer. E é nisto que o historiador das
ciências tem, quer se queira quer não, uma forte ligação com a actualidade
da ciência. (...). O historiador das ciências, na própria medida em que for
instruído na modernidade da ciência, aprenderá nuances cada vez mais
numerosas e cada vez mais finas, na historicidade da ciência. A consciência
de modernidade e a consciência de historicidade são aqui rigorosamente
proporcionais. (CARRILHO, 1991, p. 76).

O pensamento de Bachelard auxilia na reflexão sobre a ciência, sobre a


formação científica a partir da própria operacionalidade da ciência. Se uma ciência
tem uma pedagogia, essa pedagogia intrínseca produz efeitos e exigências ao seu
ensino numa instituição escolar. Faz-se, aqui, desse alerta o centro da questão
principal desta pesquisa: que repercussões para o ensino de História, na formação
de professores de História, uma concepção dominante de determinada linha
25

científica sugere? Ou em outras palavras, o que é inegociável cientificamente


falando e se faz necessário na formação de professores de História? Aqui com
essas questões a temática da reflexão levantada é colocada deste modo: A História
como ciência e suas decorrências pedagógicas. Mas isso será visto com mais
objetividade ao longo da pesquisa. Dessa reflexão bachelardiana, porém, decide-se
pensar num curso que institucionalmente apresente uma proposta de ensino
articulando formação de professores com pesquisa e produção de conhecimento.
Em outras palavras, um curso que condense Licenciatura e Bacharelado. Por isso a
escolha do curso de História da UNESC.
O que convém agora também diante dessas reflexões sobre o
racionalismo aberto de Bachelard é partir para o outro momento, ou seja, a busca de
um referencial do campo da História que pense a História em seus processos
científicos de produção e formação. Tal pensador abordado é Marc Bloch.
É com ele que essas questões serão pensadas e será feita a análise num
curso específico de Licenciatura e Bacharelado, curso de História obviamente, pois
esse foi o campo escolhido. Desse curso, a análise dirigir-se-á à manifestação
institucional e documental principal do curso, no caso específico o seu Projeto-
político-pedagógico.
Por isso, é preciso definir uma metodologia e, conseqüentemente, os
instrumentos de análise, e justificar o porquê escolher Marc Bloch como referência
teórica fundamental.

1.3 A processualidade científica da História e a formação de professores de


História

Diante da exposição de alguns conceitos do pensamento de Bachelard


em relação à ciência, racionalidade, educação e história, esta pesquisa foi
direcionada a buscar apoio teórico no pensamento de outro autor francês: Marc
Bloch (1886-1944).
Marc Bloch foi um pensador, historiador que lidou com o universo
epistemológico do campo da História e, imbricadamente, com a educação histórica.
Ele foi um dos inauguradores da Escola dos Annales em 1929, na França, ao co-
26

fundar a revista Annales d’Historie Économique et Sociale. Esse historiador


inaugurou uma escola, no sentido profundo do termo. Marc Bloch também foi vítima
da Klaus Barbie, ao ser fuzilado em 16 de junho de 1944, em plena 2ª Guerra
Mundial (BLOCH, 2001, p. 11).
A Escola dos Annales (século XX) influenciou e influencia historiadores no
mundo inteiro, como também no Brasil. Essa escola nascida na França a partir de
1929 se estabelece como pensamento crítico em claro confronto ao pensamento
historiográfico tradicional. Começa a ser delineada pelos pensamentos de Marc
Bloch e Lucien Febvre. A denominação Escola dos Annales é oriunda da publicação
do periódico citado acima, revista que trazia reorientações aos estudos
historiográficos. Sobre as Escola do Annales haverá uma apresentação geral no
segundo capítulo, abordando a fase da qual Marc Bloch foi membro-fundador. É
desse arcabouço teórico sistematizado nesta pesquisa que serão lançadas as
perguntas sobre a cientificidade da História e suas manifestações pedagógicas num
curso de graduação em História e como o próprio curso lida com isso.
Dito de outro modo, é especificamente com base nos textos de Marc
Bloch, sobretudo em sua obra Apologia da História ou O Ofício do Historiador, em
que ele escreve, em tom apologético, sobre o universo do historiador como cientista
e da historiografia como ciência, que as análises serão elaboradas e executadas. Tal
tarefa é desafiante, tamanha a complexidade do pensamento de Bloch. Outras obras
do autor a que se teve acesso também foram consultadas. Uma das obras é a
coletânea de textos de Marc Bloch organizada por sua filha Étienne Bloch intitulada
História e Historiadores (1995). Esses textos ponderam e tratam sobre o que é e o
que deve ser a História e o trabalho do historiador, além de tratar explicitamente
sobre o ensino de História.
Diante dos receios, o que mais incomoda, quando se usa uma referência
teórica, é o cuidado para não cair num mero hibridismo ou num ecletismo sem nexo
e o cuidado para não cometer anacronismos, isso sem falar no perigo de dizer o que
o referencial não diz. Por isso, uma leitura no intuito de perceber e localizar as bases
de um pensamento é muito mais importante do que uma simples exposição, e nesta
pesquisa isso se faz necessário.
Outros textos serão utilizados, como um dos mais recentes em português
A história nova (2001), coletânea de Jacques Le Goff, que é uma nova versão da
obra de 1978 intitulada La Nouvelle Histoire, em que esse autor organiza,
27

juntamente com textos de sua autoria, uma abordagem sobre o que é a Escola dos
Annales como campo científico, também em tom apologético e crítico. Entretanto, o
fundamento referencial para esta pesquisa, partindo do pressuposto da questão
bachelardiana sobre o que é ciência e suas imbricações para os processos
escolares, é a obra Apologia da História ou O Ofício do Historiador edição em
português de 2001, além das outras obras de Marc Bloch a que se teve acesso.
Bachelard define e defende em suas perspectivas o que é ciência. Bloch defende a
História como uma ciência. Coincidentemente, ambos, contemporâneos, mesmo um
sendo epistemólogo e o outro historiador, lançavam argumentos contra os
pressupostos positivistas. Com isso, em hipótese nenhuma está-se afirmando que o
pensamento de ambos coincide, mas num primeiro momento pode-se
hipoteticamente colocar que existam intersecções.
É com Bachelard que chegamos a Bloch, mas é com Bloch que as
perguntas serão feitas, perguntas de base e não perguntas por resultados,
perguntas de natureza científica e ao mesmo tempo de natureza educacional. Por
isso mesmo não bastam perguntas, é preciso direcioná-las ao campo específico. É,
portanto, para o Projeto Político-Pedagógico do curso de História da UNESC que as
perguntas serão lançadas e a análise será focada.

1.4 O Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de História da UNESC

A problemática que esta pesquisa levanta focaliza-se em identificar que


História pode ser manifestada num Projeto Político-Pedagógico (PPP) de
determinado curso de graduação de História que visa ao mesmo tempo formar
professores de História e pesquisadores (cientistas). Embora cada curso de
graduação em História no Brasil tenha suas peculiaridades próprias, todos fazem
parte de um mesmo contexto, ou seja, seguem as mesmas orientações do Ministério
da Educação e do Conselho Nacional de Educação.2
O PPP investigado é do ano de 2002, elaborado pelo curso de
Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade do Extremo Sul Catarinense

2
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Diretrizes Curriculares dos Cursos de
História. Brasília, 2001.
28

(UNESC), localizada em Criciúma (SC). Essa escolha se justifica por duas razões: a
primeira, pela proximidade que o autor desta pesquisa teve e tem com o curso; a
segunda, porque esse curso, a exemplo de alguns outros, condensa a formação em
Licenciatura e Bacharelado. Como bem é explicitado no referido PPP e em seus
objetivos:

Os novos objetivos do Curso, bem como as habilidades e competências dos


formandos/as evidenciam claramente uma visão de história preocupada
com questões sociais e ambientais. A inclusão do bacharelado fortaleceu a
nossa preocupação em instituir uma cultura de pesquisa. Ao optarmos pela
formação do professor/a-historiador/a, nos propomos a desenvolver
habilidades e competências para que o futuro profissional domine a arte de
ensinar e pesquisar na perspectiva do conhecimento histórico. (Projeto
político e pedagógico do curso de História da UNESC, 2002, p. 3).

Diante da proposta do próprio curso, esta pesquisa traz perguntas, com o


auxílio do pensamento de Marc Bloch, a respeito desse PPP no que se refere ao
conceito de História e à concepção de historiador que nele se manifesta. Ou seja, a
questão não é saber onde e como o curso forma cientistas, mas que cientistas e,
principalmente, com que ciência historiográfica ou conhecimento historiográfico esse
curso objetiva formar. Assim, a análise contempla o que é manifestado no PPP, seja
por presença ou ausência, considerando esse documento como uma das principais
expressões da dinâmica do curso. Não é visado, pelo menos nesta pesquisa e num
primeiro momento, analisar a formação dos acadêmicos em suas praticidades ou
nas dinâmicas de ensino e aprendizagem em suas relações com os professores.
Todavia, admite-se que esse campo também é um bom lugar para se direcionar
essas perguntas, pois entre o que é manifesto e o que é efetivo existe um
considerável distanciamento ou pelo menos peculiaridades próprias de cada campo.

1.5 O caminho metodológico a título de sistematização

Esta análise, por se tratar de um trabalho de cunho científico, deve ater-


se a um método e antes a um pressuposto teórico. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa, um estudo de caso histórico-organizacional, um trabalho de cunho
interpretativo e analítico, sem intenção alguma de intervenção (TRIVIÑOS, 1987, p.
29

134). Escreve Triviños (1987, p. 134), em relação aos estudos de casos histórico-
organizacionais:

O interesse do pesquisador recai sobre a vida de uma instituição. A unidade


pode ser uma escola, uma universidade, um clube, etc. O pesquisador deve
partir do conhecimento que existe sobre a organização que deseja
examinar. Que material pode ser manejado, que está disponível, ainda que
represente dificuldades para seu estudo.

E continua, ao escrever sobre o método de análise de conteúdo:

Podemos dizer, também de forma geral, que recomendamos o emprego


deste método porque, como diz Bardin, ele se presta para o “estudo das
motivações, atitudes, valores, crenças, tendências” e, acrescentamos nós,
para o desvendar das ideologias que podem existir nos dispositivos legais,
princípios, diretrizes etc., que, à simples vista, não se apresentam com a
devida clareza. Por outro lado, o método de análise de conteúdo, em alguns
casos, pode servir de auxiliar de instrumento de pesquisa de maior
profundidade e complexidade, como o é, por exemplo, o método dialético.
(TRIVIÑOS, 1987, p. 159-160).

O caminho da fundamentação teórica, no que tange às intrincadas e


necessárias relações entre epistemologia e pedagogia, já foi exposto em sua
primeira parte, quando foram abordados aspectos do pensamento de Bachelard.
Com Bachelard também houve o alerta em relação ao campo para análise. A
continuação, que será o segundo capítulo, abrangerá os conceitos, categorias e
reflexões que Marc Bloch oferece em seus escritos e ponderações, sobretudo em
relação à cientificidade da História. É a partir dele que será definido de que ciência
Histórica está-se falando; qual o papel do historiador; o que é “História problema”; a
quem, por que e quando a História deve se contrapor; como a cientificidade da
História altera e se manifesta no ensino da História e na formação de professores.
Evidentemente, será necessário dar voz a outros historiadores, mesmo alguns que
se colocam contra o pensamento de Bloch, para que se tenha noção do que cada
conceito e categoria em Bloch significam. Os objetivos e buscas traçados neste
capítulo são de fundamental importância para a análise.
Já no terceiro capítulo, a partir dos conceitos e categorias de Marc Bloch,
as perguntas analíticas foram dirigidas ao PPP do curso de História da UNESC, ou
seja, é a análise propriamente dita. O objetivo deste capítulo III é caracterizar a
proposta do PPP em análise e identificar que ciência historiográfica é nele
manifestada. A partir disso, perceber como essa ciência se relaciona com a proposta
30

pedagógica. A análise também se direcionará à justificativa do curso para a oferta de


habilitações em licenciatura e em bacharelado.
Nessa etapa da pesquisa, o objetivo é, portanto, localizar os pressupostos
de formação e ver se estes têm relações com pressupostos históricos e científicos. A
questão central é sobre que historiador o PPP manifesta formar no curso e que
dinâmica relacional é identificada na expressão “professor/pesquisador”.
Justificam-se tais objetivos não para propor uma melhora no curso
analisado ou uma nova elaboração do PPP do curso em análise, tampouco defender
a necessidade da presença do discurso blochiano no PPP do curso de História da
UNESC. Longe disso está a proposta da pesquisa.
Tanto no capítulo introdutório como nos capítulos II e III, as questões
pedagógicas estão presentes juntamente com as questões epistemológicas relativas
à História e seu ensino. Isto é, a pedagogia não é uma desculpa e a produção do
conhecimento não é uma locomotiva a levar engatadas as questões pedagógicas.
Na realidade, elas se imbricam em si mesmas, não para causar confusão, mas para
qualificar a proposta e ampliar a própria visão educacional do autor e se for o caso,
de quem ater-se a ler este trabalho.
31

2 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA EM MARC BLOCH: A QUESTÃO DO MÉTODO

Se o que se quer analisar é a cientificidade da História e suas


decorrências pedagógicas num campo específico de formação de professores e
historiadores, cabe neste momento trabalhar alguns conceitos essenciais em Marc
Bloch (1886-1944) para que seja possível, a partir disso, compreender os critérios e
conceitos de cientificidade nesse autor e saber por que a História precisa ser
definida como ciência, ciência que deve ser ensinada e aprendida, ou seja, que se
expressa na efetividade, e não apenas com declarações. Muito mais do que isso, é
preciso perceber que o que está em jogo nos critérios e categorias de cientificidade
é justamente o método científico e seu ensino.

2.1 A História no campo epistemológico (séculos XIX e XX)

Não basta conceber uma determinada ciência nas suas origens com
vistas a validar o seu presente, mais importante é buscar entender suas condições
de possibilidade nos campos do saber.
No campo epistemológico moderno, é possível compreender que não há
mais uma historicidade comum e universal, uma narrativa comum do mundo.
Qualquer saber, qualquer ciência, qualquer objeto, seja científico ou não, possui
uma historicidade singular, com leis internas de funcionamento e segundo uma
cronologia decorrente de cada coerência singular.
O século XIX parece ser o ponto de referência da revolução e
transformação das ciências até então. Não por coincidência, justamente no século
XIX a História torna-se uma profissão, uma atividade de especialistas, e o debate da
cientificidade da História é inaugurado, segundo Marc Bloch (2001, p. 20). Mas esse
não é o único motivo. Dermeval Saviani (2006, p. 7) escreve:
32

Em visão retrospectiva, é possível constatar que a História só se pôs como


um problema para o homem, isto é, só emergiu como algo que necessitava
ser compreendido e explicado, a partir da época moderna. A razão é
relativamente simples. Enquanto os homens garantiam a própria existência
no âmbito de condições dominantemente naturais, relacionando-se com a
natureza através da categoria da “providência”, o que implicava o
entendimento de que o meio natural lhes fornecia os elementos básicos de
subsistência os quais eram apropriados em estado bruto exigindo, quando
muito, processos rudimentares de transformação que, por isso mesmo,
resultavam em formas de vida social estáveis sintonizadas com uma visão
cíclica do tempo, não se punha a necessidade de se compreender a razão,
o sentido e a finalidade das transformações que se processam no tempo,
isto é, não se colocava o problema da história.

O mundo das ciências no século XIX e início do século XX já não era


mais o mesmo, e tanto Bachelard como Marc Bloch e muitos outros autores tinham
consciência disso. “A teoria cinética dos gases, a mecânica einsteiniana, a teoria dos
quanta, alteraram profundamente a noção que ainda ontem qualquer um formava
sobre ciência”, escreve Bloch (2001, p. 49) em seu tempo. Nesse sentido, é possível
entender que, para Bloch, a progressão de determinada ciência, quando de fato
ocorre, altera outras ciências, e mais do que isso, altera toda uma realidade e todos
os campos epistemológicos. Ele escreve que a noção de ciência não foi diminuída,
mas flexibilizada, “substituindo por muitos pontos, o infinitamente provável, o
rigorosamente mensurável pela noção de eterna relatividade da medida” (2001, p.
49).
Um autor que estudou e analisou esse período foi Michel Foucault em Les
mots et les choses (As palavras e as coisas), de 1966. Nessa obra, o autor analisa a
constituição histórica dos saberes sobre o homem. Roberto Machado (1981, p. 123)
afirma e analisa o que é possível chamar de ciências humanas na perspectiva
foucaultiana. Para ele, Foucault, em sua obra acima citada, descreveu outras
épocas, anteriores à modernidade, para mostrar porque antes da modernidade não
foi possível um saber sobre o homem. São as épocas: o período do Renascimento,
e o período Clássico. Depois Foucault apresenta a sua periodização e a análise do
período moderno, mas ele não faz isso para apresentar uma progressão histórica
para a formação dos saberes do homem na modernidade. Antes o contrário, quando
apresenta ao longo da obra os três períodos até o seu presente, Foucault o faz
categorizando esses períodos em três epistémês: 1) Semelhança (Renascimento,
final do séc. XVI); 2) Representação (Idade Clássica, século XVII ao final do século
XVIII): 3) História (Modernidade, século XIX até o seu próprio tempo, o século XX).
33

Essas periodizações, que ele chama de epistémê, nada mais são do que ordens
estabelecidas por rupturas no campo epistemológico. Ao tratar do objetivo de sua
obra, Foucault (1985, p. 12) escreve no prefácio:

Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em


direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se
reconhecer; o que se quer trazer a luz é o campo epistemológico, a
epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério
referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua
positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição
crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o
que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram
lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que uma história
no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma “arqueologia”.

Foucault, no último capítulo (cap. X) dessa obra, intitulado As ciências


humanas, ao expor sobre as condições de possibilidades das ciências humanas,
defende que o aparecimento delas não pode ser tratado como fenômeno de opinião,
mas sim como “um acontecimento na ordem do saber”, pois pela primeira vez
aparece o homem que se constitui na cultura ocidental, que é o que é necessário
pensar e o que se deve saber. Ou seja, o aparecimento das ciências humanas na
história não nasce de um racionalismo premente, de algum problema científico não-
resolvido, de algum interesse prático “que resolveu passar o homem para o campo
dos objetos científicos” (FOUCAULT, 1985, p. 362).
Em As palavras e as coisas, o autor percebe que, em termos gerais,
todas as visões da história antes da modernidade (da episteme moderna) têm algo
em comum: a unidade de uma grande história plana, em todos os níveis, em todos
os objetos ou seres humanos, uniforme, mesmo que seja por uma queda ou
ascensão, ou cíclica. Ou seja, trata-se do fato de que todas as visões de história
(cíclica, linear, predestinada, etc.) antes da modernidade eram totalizantes e com
uma unidade universal. E essa é a grande diferença causada por uma ruptura na
visão de historicidade moderna. A ruptura é a que Foucault chama de fraturamento
da história. Escreve o autor:
34

Ora, é esta unidade que se achou fraturada, no começo do século XIX, na


grande reviravolta da epistémê ocidental: descobriu-se uma historicidade
própria à natureza; definiu-se mesmo, para cada grande tipo do ser vivo,
formas de ajustamento ao meio que iam permitir em seguida, definir seu
perfil de evolução; mais ainda, pôde-se mostrar atividades tão
singularmente humanas, como o trabalho ou a linguagem, detinham em si
mesmas, uma historicidade que não podia encontrar seu lugar na grande
narrativa comum às coisas e aos homens (...) (FOUCAULT, 1985, p. 385).

Ponderando a partir dessa análise foucaultiana, é possível afirmar que a


História para Bloch se manifesta enquanto ciência de modo independente, pois
agora ela não precisa mais se inspirar nas ciências da natureza física, visto que até
nessas ciências esses gabaritos exatos deixaram de ser aplicados. Para Bloch, a
História possui uma regionalidade científica dela mesma, original a ela. Falando das
ciências do homem e incluindo a História, ele diz que:

Não sabemos ainda muito bem o que um dia serão as ciências do homem.
Sabemos que para existirem – mesmo continuando, evidentemente, a
obedecer às regras da razão –, não precisarão renunciar a sua
originalidade, nem ter vergonha dela. (BLOCH, 2001, p. 49).

Ou seja, a História, como toda e qualquer ciência, sofre os abalos quando


alguma ciência progride, mas isso não significa dizer que a História, para se fundar
como ciência, precisa se igualar a outras regionalidades de ciência, pois, como
afirma Bloch, o que é necessário para ela se fundar como ciência com sua
originalidade é obedecer às regras fundamentais da razão, que para ele parece ser
constantemente progressiva.
No entanto, Bloch (2001, p. 50) afirma que tomar uma ciência
isoladamente é partir para um fragmento do universal movimento rumo ao
conhecimento. Por isso ele alerta que, para melhor entender e apreciar seus
procedimentos de investigação, é indispensável associá-los com outras ordens de
disciplina. Sua postura nesse momento, numa fusão de crítica e excesso de
humildade ao que parece, é dizer que os técnicos que se propõem a fazer as
relações entre as ciências se auto-intitulam filósofos. Bloch não se considerava um
filósofo ou epistemólogo, principalmente porque a filosofia em sua formação foi uma
lacuna (BLOCH, 2001, p. 50). Além disso, o momento em que ele se encontrava ao
escrever Apologia da História, preso e sem nenhum referencial bibliográfico, lhe
dificultava fazer reflexões no campo da Filosofia da História.
35

Como saber científico, a História é e pode ser aprendida e ensinada.


Assim, convém, a partir de Bloch, perceber o que é inegociável na educação da
ciência histórica, e especificamente na formação de professores. Isso será abordado
com mais propriedade a partir daqui. Convém visualizar panoramicamente a
trajetória da produção científica de Bloch, para perceber basicamente suas
influências científicas tanto recebidas como oferecidas, para localizar e evidenciar as
categorias centrais do seu discurso explicitador da sua noção de História e
historiografia e, por decorrência, as questões relativas aos processos formativos do
pesquisador/professor de História. Todavia, faz-se necessário discorrer antes sobre
o que foi a Escola dos Annales em sua fase embrionária.

2.1.1 O surgimento da Escola dos Annales: a primeira geração

Por mais que os seus membros neguem a sua existência no sentido de


uma escola, como diz Peter Burke (1997, p. 11), a Escola dos Annales, ou História
Nova, nascida em 1929 na França, surgiu a partir dos debates nos campos
epistemológicos do século XIX e sobretudo da produção intelectual no campo da
historiografia no século XX, com a organização do periódico que teve quatro títulos:
Annales d’Historie Économique et Sociale (1929-39); Annales d’Historie sociale
(1939-1942, 45); Mélanges d’ historie sociale (1942-4); Annales: économies,
sociétes, civilisations(1946-). Dos membros do movimento, e alguns ligados, Burke
(1997, p. 11) elenca:

O núcleo central do grupo é formado por Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand
Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie.
Próximos desse centro estão Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon
e Michel Vovelle, quatro importantes historiadores cujo compromisso com
uma visão marxista da história – particularmente forte no caso de Vilar –
coloca-os fora desse núcleo. Aquém ou além dessa fronteira estão Roland
Mousnier e Michel Foucault. Este aparece esporadicamente neste estudo em
razão da interpenetração de seus interesses históricos com os vinculados aos
Annales.

As diretrizes da revista e dos estudos que apresentava tratavam de


substituir a tradicional narrativa de acontecimentos por uma busca analítica de uma
história-problema. Além disso, buscava-se a análise histórica de todas as
36

atividades humanas, e não apenas a história política. E em terceiro lugar, como


coloca Peter Burke (1997, p. 12), a colaboração com outras disciplinas: a
geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social,
etc.
Diante disso, Peter Burke escreve que sua preocupação na obra A
Escola dos Annales (1929-1989) é qualificar o movimento dos Annales não como
uma escola, no sentido de um grupo monolítico com práticas uniformes, quantitativa
no que concerne ao método, determinista em concepções e hostil à política e aos
eventos. Burke (1997, p. 12) escreve que “esse estereótipo dos Annales ignora tanto
as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no
tempo. Talvez seja preferível falar num movimento dos Annales, não numa ‘escola’”.
O movimento é dividido tradicionalmente em três fases. Na primeira,
entre 1920 a 1945, Peter Burke caracteriza o grupo como pequeno, radical e
subversivo, batalhando contra a história tradicional, a história política e a história dos
eventos através de suas pesquisas. Marc Bloch faz parte dessa fase, como já
enfatizado.
A segunda fase, que mais se aproxima de uma escola, segundo Burke
(1997, p. 12), funda-se lidando com novos conceitos como estrutura e conjuntura, e
novos métodos – “especialmente a “história serial” das mudanças na longa duração”.
O exponencial dessa fase foi o historiador Fernand Braudel.
A partir de 1968 surge no movimento dos Annales a terceira fase.
Segundo Peter Burke, essa terceira fase foi marcada pela fragmentação. Muitas
características anteriores das outras duas fases se perderam. Para Burke (1997, p.
13), a unidade com os pressupostos dos Annales se dá apenas no nível da
admiração e na crítica doméstica daqueles que reprovam a pouca importância
atribuída à política e à história dos eventos. Membros dessa fase transferiram-se das
pesquisas da história socioeconômica para a sociocultural. Já outros aventuram-se
numa espécie de redescoberta da história política e mesmo no estilo narrativo. Para
Burke (1997, p. 13), o que une essas três gerações, o que lhes dá certa unidade é a
“interação fecunda entre a história e as ciências sociais”.
Diante desse apanhado sobre o surgimento dos Annales, usando como
base a clássica obra de Peter Burke, cabe aqui ressaltar algumas coisas sobre a
primeira geração dos Annales, segundo o que pontua Peter Burke (1997, p. 23):
37

O movimento dos Annales, em sua primeira geração, contou com dois


líderes: Lucien Febvre, um especialista no século XVI, e o medievalista Marc
Bloch. Embora fossem parecidos na maneira de abordar os problemas da
história, diferiam bastante em seu comportamento. Febvre, oito anos mais
velho, era expansivo, veemente e combativo, com uma tendência a zangar-se
quando contrariado por seus colegas; Bloch, ao contrário, era sereno, irônico
e lacônico, demonstrando um amor quase inglês por qualificações e juízos
reticentes. Apesar ou por causa dessas diferenças, trabalharam juntos
durante vinte anos entre duas guerras.

Os encontros de Bloch e Febvre em Estrasburgo duraram entre 1920 a


1933. Tais encontros foram de vital importância para o movimento dos Annales,
principalmente porque ambos estavam cercados por um grupo interdisciplinar
extremamente atuante, segundo Burke (1997, p. 27). Nesse ínterim, logo no final da
Primeira Guerra Mundial, Febvre tenta elaborar uma revista internacional com a
intenção de dedicá-la aos estudos de história econômica, mas devido a grandes
dificuldades foi abandonado.
Em 1929 é Marc Bloch que tem a iniciativa de organizar uma revista,
nesse caso, francesa. Ambos, Febvre e Bloch, tentaram solicitar a direção da revista
ao historiador de renome na época Henri Pirenne, mas este nega o pedido. Assim,
Bloch e Febvre assumem os cargos de editores da revista.
O primeiro exemplar surge em 15 de janeiro de 1929. A comissão editorial
reunia, além de “historiadores, antigos e modernos, um geógrafo (Albert
Demangeon), um sociólogo (Maurice Halbwachs), um economista (Charles Rist), um
cientista político (André Siegried, um antigo discípulo de Vidal de la Blache)”
(BURKE, 1997, p. 33).
Diante dessa breve exposição sobre o início dos Annales, e
principalmente por se tratar de um assunto complexo, cheio de informações e
detalhes, é conveniente convergir especificamente sobre Marc Bloch. Para melhor
entender a Escola do Annales, é possível ter acesso a obras de altíssimo nível,
como essa de Peter Burke A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa
da historiografia.
38

2.2 A produção historiográfica de Marc Bloch

A obra de Marc Bloch é vastíssima, não pela quantidade publicada, mas


pela influência que exerceu no campo da historiografia mundial no século XX. Além
disso, o resultado de seus pensamentos e ponderações acerca da História deram
fundamento para a criação de uma escola historiográfica de renome, onde
juntamente com Lucien Febvre gerou em 1929 a prestigiosa escola do Annales, que
teve um papel fundamental na constituição de um novo modelo de historiografia.
Não é por acaso que Marc Bloch é considerado por muitos o maior medievalista e
historiador do século XX.
Diante disso, justifica-se porque apresentar e refletir sobre os conceitos
de Bloch pontuados e trabalhados na sua última obra de 1949, Apologie pour
l'
histoire ou métier d'
historien (Apologia da história ou o ofício de historiador), obra
que, devido ao assassinato do autor pelo exercito alemão em plena 2ª Guerra
Mundial, ficou inacabada. Primeiro, porque trata-se de uma obra que se objetiva a
perguntar e responder questões de base, questões atualíssimas, que oferecem
reflexões sobre os porquês da existência da História como ciência e dos seus
processos epistemológicos (BLOCH, 2001, p. 15). Em segundo lugar, com a ajuda
de Le Goff, também é possível lançar questões como: esse último trabalho de Bloch
trata da metodologia da História, que traduz de fato a metodologia aplicada em suas
obras, ou marca uma nova etapa de sua reflexão e projetos? Ambas as questões
levantadas por Le Goff, e que ele trabalha no prefácio do livro de Bloch, são
questões de referência e dignas de muita atenção, pois ambas tratam o livro como
um marco nas reflexões metodológicas sobre a História. A intenção de Le Goff é
tentar dizer o que significou esse texto no contexto geral da historiografia, em
particular na historiografia francesa de 1944, e o que ainda significa hoje.
Há também, obviamente, muitos outros textos de Marc Bloch de suma
importância, textos que reúnem e representam vinte e cinco anos de reflexões sobre
a História e sobre o trabalho do historiador, sobre casos como o da compilação e da
organização de diversos trabalhos, alguns inéditos, outros publicados em revistas, e
obviamente na própria revista do Annales. Como já falado no capítulo I, a
responsável por essa obra foi a filha de Marc Bloch, Étienne Bloch, que organizou os
textos em seis temas: “a história e seu método; organização e instrumentos de
39

trabalho; a história comparada e a Europa; as representações coletivas; figuras de


historiadores; o ensino da história” (BLOCH, 1998, p. 10). A utilização dessa obra
nesta pesquisa foi importante, pois como escreve Étienne Bloch (1998, p. 6) ela
reúne em detalhes o que foi sintetizado em Apologia da História:

No livro que vamos ler surgem-nos claramente os eixos desse


<<pensamento de historiador>> de Marc Bloch e as suas idéias sobre o
exercício do ofício de historiador, a que haveria de dar uma forma sintética,
infelizmente inacabada, na sua obra póstuma Apologie pour L’histoire ou
Métier d’historien.

As outras obras escritas de Marc Bloch sempre foram elaboradas a partir


de muita pesquisa e sempre inseridas no debate contra os positivistas. Em 1924
publica Os reis taumaturgos, obra que procurava entender o poder de toque (curas)
praticado pelos monarcas ingleses e franceses durante a Idade Média. Ao fim, Bloch
reconhecia ter feito uma história do milagre. Seu direcionamento era sempre para
uma história da longa duração, de períodos históricos em estrutura e maiores do que
os tradicionais e que se modificam de maneira mais vagarosa. Segundo Lilia Moritz
Schwarcs, na apresentação à edição brasileira Apologia da História (BLOCH, 2001,
p. 9), com essa obra Bloch se estabelecia como uma espécie de fundador da
“antropologia histórica” ao selecionar eventos marcados pelo seu contexto, mas
acionados por estruturas e permanências sincrônicas anteriores ao momento mais
imediato. Em questão, por exemplo, estava o poder monárquico. Para Peter Burke
(1997, p. 129), Os reis taumaturgos foi uma obra notável em três aspectos:
primeiramente, porque não se limitava a um período convencional, no caso a Idade
Média; em segundo lugar, a obra se destaca por ser uma contribuição ao que Bloch
chamava de “psicologia religiosa”. Escreve Burke (1997, p. 129) sobre este aspecto
que: “O núcleo central do estudo era a história dos milagres e concluía com uma
discussão explícita do problema de como explicar que o povo pudesse acreditar em
tais ‘ilusões coletivas’ (...)”. O terceiro aspecto é a presença daquilo que o próprio
Bloch chamava de “História comparativa”, quando fazia comparações com
sociedades distantes da Europa sobre as temáticas tratadas na obra (BURKE, 1997,
p. 30).
Em 1928 Bloch toma a iniciativa de ressuscitar velhos projetos, entre eles
fundar uma revista histórica. Marc Bloch e Lucien Febvre (1878-1956) tornam-se
editores da revista dos Annales:
40

(...) publicação essa que daria origem a todo um movimento de renovação


na historiografia francesa e que está na base do que hoje chamamos de
“Nova História”. Nos primeiros números – e apesar do predomínio de artigos
de historiadores econômicos – ficavam expressas as prerrogativas do
grupo: o combate a uma história narrativa e do acontecimento, a exaltação
de “uma historiografia problema”, a importância de uma produção voltada
para todas as atividades humanas e não só a dimensão política e, por fim, a
necessária colaboração interdisciplinar. (Bloch, 2001, p. 10).

Em 1931 Bloch publica uma obra sobre a história rural francesa, em que
utiliza fontes literárias. Nessa obra Marc Bloch aplica seu método “regressivo”,
buscando ler a história ao inverso e utilizando-se de temas do presente. Em 1939 é
a vez de A sociedade feudal, uma espécie de painel sobre a história européia de 900
a 1300. Em suma, os textos de Bloch “convertiam-se em motes de ataques a
modelos mais empíricos” (Bloch, 2001, p. 10).
Com 53 anos, Bloch resolve alistar-se mais uma vez no exercito francês.
Sendo a França derrotada, volta à vida acadêmica por um breve período, pois em
1943 entra para a resistência do grupo de Lyon. Preso em 1944, e em condições
deploráveis, Marc Bloch dedica-se a escrever mais dois livros: o primeiro – A
estranha derrota –, em que associa a experiência particular das duas guerras e se
debruça sobre a derrota francesa de 1939. Le Goff, no prefácio de Apologia a
História (BLOCH, 2001, p. 17), caracteriza essa obra como um estudo perspicaz,
pois se trata de um trabalho de história, refletido no calor do acontecimento e sem
nenhum caráter jornalístico. A segunda obra que é a referência central deste
trabalho: Apologia da história ou O ofício do historiador, editada após a sua morte
em 1949, traz reflexões sobre método, objetos e documentação histórica. A ação
política faz parte da obra. Por isso mesmo, Marc Bloch (2001, p. 10) escreve: “a
história serve a ação”. Nesses tempos difíceis, dizia Bloch (2001, p.11): “a história se
encontra desfavorável as certezas”. Marc Bloch foi torturado pela Gestapo e depois
fuzilado em 16 de julho de 1944 em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, por
fazer parte da resistência francesa.
Tal trajetória, além de surpreendente, inseriu Marc Bloch no rol dos
maiores historiadores da humanidade. Mas muito mais do que isso, releva que ser
historiador não é “passa tempo”, e o próprio Marc Bloch discorre sobre isso quando
trata de legitimar a História como ciência, como será visto no próximo tópico.
41

2.3 Ciência histórica e não um hobby

Eis uma pergunta de base: Para que serve a História? Uma questão
respondida inúmeras vezes, mas que quase sempre precisa de uma nova
formulação, exatamente porque o desafio é sempre conhecer melhor a realidade
primeira. Obviamente, a pergunta que Bloch nos auxilia a fazer, não tem um caráter
utilitarista, mas um caráter de legitimidade. Qual a legitimidade da História?
Bloch, em meados do século XX, contextualizado ao seu momento,
escreve que a sociedade ocidental espera muito de sua memória e, por isso mesmo,
o historiador deve ser chamado e incumbido a prestar contas, pois a civilização
ocidental inteira está interessada na resposta. Essa espera ocidental foi sempre
presente, tanto pela herança cristã, que Bloch caracteriza como religião de
historiadores, como pela herança antiga. Bloch caracteriza os gregos e latinos como
historiográficos. Obviamente, aqui Bloch (2001, p. 42) assume que as sociedades
mudam, as psicologias coletivas variam, no entanto o ocidente ainda assim espera
muito da sua memória. Le Goff (BLOCH, 2001, p. 17), no prefácio de Apologia da
História, escreve a respeito: “a própria expressão ‘legitimidade da história’,
empregada por Marc Bloch desde as primeiras linhas, mostra que para ele o
problema epistemológico da história não é apenas um problema intelectual e
científico, mas também um problema cívico e moral”.
O historiador deve “prestar contas” (BLOCH, 2001, p. 41). Marc Bloch
(2001, p. 42) coloca os historiadores entre os artesãos que precisam dar provas da
consciência profissional. Bloch (2001, p. 17) coloca que “o debate ultrapassa, em
muito, os pequenos escrúpulos de uma moral corporativa. A civilização inteira tem
interesse. Eis simultaneamente afirmadas à civilização como objeto privilegiado do
historiador e a disciplina histórica como testemunha e parte integrante da
civilização”.
Se alguém afirmar que epistemologicamente a História não serve para
nada, não pode negar, no entanto, que ela entretém muita gente, como as outras
ciências e, talvez, mais ainda que as outras. Bloch escreve que a História atrai, mas
não é isso que a faz científica. Isso que é comum nas outras ciências, esse interesse
primeiro, escreve ele, é o que vem “antes da obra de ciência, [...], o instinto que leva
a ela [...]”. Antes do desejo de conhecimento, o simples gosto. O autor (BLOCH,
42

2001, p. 43) inclusive fala da Física, e diz que os primeiros passos nela devem muito
“aos gabinetes de curiosidade”.
E até nesse obstáculo a História se diferencia de outros saberes, pois os
“gozos estéticos” da História são próprios dela mesma, porque são as atividades
humanas que fazem parte de seu objeto específico que seduzem mais do que
qualquer outra coisa. Seduz a imaginação dos homens. Bloch diz que não é
interessante extrair a beleza poética da História, porém questiona se História é
apenas um passa tempo e se vale tanto a pena escrevê-la. Para Marc Bloch (2001,
p. 44) vale a pena, se o esforço for honesto, indo em direção “às suas molas mais
ocultas, e, por conseguinte, com dificuldade”, em direção ao que é mais difícil e
racional. Escreve ainda o autor:

Com toda certeza num mundo que acaba de abordar a química do átomo e
mal começa a sondar os segredos dos espaços estelares, em nosso pobre
mundo que, justamente orgulhoso de sua ciência, não consegue criar para
si um pouco de felicidade, as longas minúcias da erudição histórica, muito
capazes de devorar uma vida inteira, mereceriam ser condenadas como um
desperdício de forças absurdo a ponto de ser criminoso, se devesse apenas
para dissimular um pouco de verdade uma de nossas distrações. (BLOCH,
2001, p. 44).

Diante disso, expõe duas possibilidades de reflexão: ou é preciso


desaconselhar a prática da História a todos os espíritos capazes de serem mais bem
utilizados em outro lugar; ou é como conhecimento que a História terá de provar sua
“consciência limpa” (2001, p. 44), ou seja, uma ciência que se forma e que ajuda a
formar. Uma das preocupações de Bloch refere-se à necessária vigilância dos
historiadores, pois, se eles não ficarem vigilantes, a ciência histórica, a História,
pode cair no descrédito. A ciência histórica é um fenômeno histórico, submetido às
condições históricas, que pode ser a legitimidade da História, mas também sua
fragilidade.
A História não pode ser tratada como um hobby intelectual, se quiser em
suas regionalidades e dinamicidades ser ciência. Obviamente, a História só se
personifica pela ação dos historiadores, ou seja, é responsabilidade deles tal função.
Ninguém é médico por passatempo, tampouco físico, afinal mesmo com
autodidatismo é necessário um aprimoramento educacional e epistemológico, não
obstante, científico. No caso da História, a existência de uma faculdade de História
43

não resolve o problema, porém ajuda nas reflexões acerca do profissional da


História e do ofício do historiador.
Desse ponto, Bloch então resolve fazer e propor um exercício apologético
da ciência histórica a partir da análise dos pressupostos metodológicos do seu
método. A próxima abordagem trata disso.

2.4 Apologia da História: nada por declaração

Para Marc Bloch (2001, p. 46), sua obra faz a apologia da História, mas
não por declaração. Ele não quis exorcizar fantasmas ou tão pouco separar, para
um debate, o que a História tem de bom ou ruim. Não se trata de mais um
testemunho no tribunal. Seu esforço é uma avaliação pelo grau de certeza dos
métodos que uma pesquisa historiográfica utiliza ou deve utilizar, “até na humilde e
delicada minúcia de suas técnicas” (BLOCH, 2001, p. 46). Ou seja, sua postura é: a
História é uma ciência, logo vamos estudar o método científico nos mínimos
detalhes. É no modo de operar o método que a ciência da História deve ser avaliada
como tal, principalmente diante dos problemas impostos ao historiador que lida com
o método científico (BLOCH, 2001, p. 46). Como, por que e para que um historiador
pratica seu ofício? Como escreve Bloch (2001, p. 46): “Ao leitor cabe decidir, em
seguida, se tal ofício merece ser exercido”. E mais:

(...) a história não é a relojoaria ou a marcenaria. É um esforço para


conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento. Limitar-se
descrever uma ciência tal qual é feita é sempre traí-la um pouco. É mais
importante dizer como ela espera ser capaz de progressivamente ser feita.
(2001, p. 44).

Bloch pontua as dificuldades em se estudar métodos, que são variáveis


ligadas até onde cada ciência chegou em seu desenvolvimento nunca terminado.
Ele justifica e argumenta dizendo que a Física Newtoniana era mais fácil de expor do
que a atual, ou melhor, a da sua atualidade. Percebe-se aqui um dos critérios de
progressão científica para Bloch, que parece estar ligado a graus de dificuldade.
Voltando para a História, o autor delineia que a História enquanto ciência,
enquanto empreendimento racional de análise, é muito jovem. É uma ciência em
44

marcha, mas que está na infância. Bloch a coloca na balança, abordando que, sob a
velha forma da narrativa, apinhada de ficções coladas aos acontecimentos
apreensíveis, a História é velha, mas como ciência, a História está em um estágio
inicial, em constituição. Como ciência possui dificuldades, como:

(...) penetrar, enfim, no subterrâneo dos fatos de superfície, para rejeitar,


depois das seduções da lenda ou da retórica, os venenos, atualmente mais
perigosos, da rotina erudita e do empirismo, disfarçados em senso comum.
Ela (a História) ainda não passou, quanto alguns dos problemas essenciais
de seu método, os primeiros passos. (2001, p. 47).

Aparece aqui claramente uma aversão a pensadores que trabalham a


História defendendo a sua similaridade com a Arte, com a ficção e não com a
ciência. No entanto, o debate travado por Bloch se direciona mais solidamente
contra outros pensamentos e conceitos, sobretudo os de cunho positivista.
Marc Bloch, no calor do debate, se coloca à frente de seus imediatos
(entre os dos séculos XIX e XX), por considerá-los alucinados por uma imagem
bastante rígida, uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências do mundo
físico, em que tudo deveria desembocar em demonstrações irrefutáveis, em
definições baseadas em leis imperiosamente universais. É possível identificar tal
postura em pensadores e correntes de pensamento de tradição iluminista, que
tinham uma visão de História como o progresso da humanidade. Outros, como os
positivistas e os historiadores da escola metódica, viam a História como uma
exposição objetiva, do fato. Entre esses se destaca uma das maiores expressões da
escola metódica e que foi um dos professores de Marc Bloch: Charles Seignobos
(1863-1929). Esse cenário, segundo Bloch, gerou duas tendências conflitantes no
que tange aos estudos históricos.
Uma tendência formula uma posição no sentido de instituir uma ciência da
evolução humana, conformando-se com o ideal pancientífico. Esses pensadores
levaram tão a sério os seus trabalhos, diz Bloch (2001, p. 47), que deixaram de lado
realidades bem humanas, que lhes pareciam não ter importância alguma. A esse
tipo de conhecimento, um resíduo segundo Bloch, eles chamavam de
acontecimento; era também uma parte da vida mais individual. Ele exemplifica
falando criticamente de uma escola, mas que muito lhe influenciou:
45

Essa foi em suma, a posição da escola sociológica fundada por Durkheim.


Ao menos se não ignorarmos concessões que, à primeira inflexibilidade dos
princípios, vimos pouco a pouco introduzidas por homens inteligentes
demais para não sofrerem a revelia, a pressão das coisas. Nossos estudos
devem muito a esse grande esforço. Ele nos ensinou a analisar mais
profundamente, a cerrar mais de perto os problemas, a pensar, ousaria
dizer, menos barato. Não falaremos dele senão com reconhecimento e
respeito infinitos. Se hoje parece ultrapassado, é, para todos os movimentos
intelectuais, cedo ou tarde, o resgate de sua fecundidade. (2001, p. 48).

Confirmando a influência de Durkheim em Bloch, Peter Burke (1997, p.


26) pontua:

A carreira de Bloch não foi muito diferente da de Febvre. (...); contudo, como
comprova a análise de suas últimas obras, sua maior influência foi a do
sociólogo Émile Durkheim, que iniciou sua carreira de professor na École
mais ou menos na época de seu ingresso. Ele mesmo um egresso da École,
aprendeu a levar a história com seriedade através de seus estudos com
Fustel de Coulanges ( LUKES, 1973, p. 58ss, apud, BURKE, 1997, p.26).

E ainda:

Em sua maturidade, Bloch reconheceu sua profunda dívida com a revista de


Durkheim, Année Sociologique, lida entusiasticamente por um grande número
de historiadores de sua geração, tais como Lois Gernet, dedicado ao estudo
das letras clássicas, e o sinologista Marcel Granet (BLOCH, 1935, p. 393,
apud, BURKE, 1997, p. 26.).

Já, outros pensadores, que se alinham a uma tendência que se distância


daquela primeira, não conseguindo colocar a História nos quadros do legalismo
físico, inclinaram-se em ver nela, em lugar de um conhecimento científico, uma
espécie de jogo estético, ou melhor, de exercício benéfico à saúde do espírito.
Foram denominados à vezes, diz Bloch, de “historiadores historizantes” (2001, p.
48), ou historiadores românticos, que Marc Bloch reluta em chamá-los de
historiadores.
Como ciência definida, não apenas por vãs declarações, a História se
autodestina a ser ensinada e aprendida. Para Bloch, ensino e aprendizagem são
características de cientificidade numa determinada ciência, como a História. Esse é
o aspecto do pensamento blochiano que se analisa a seguir.
46

2.5 O ensino e aprendizagem de História

Apreciaria que, entre os historiadores de profissão, os jovens em particular


se habituassem a refletir sobre essas hesitações, esses perpétuos
“arrependimentos” de nosso ofício. Será para eles a maneira mais segura
de se preparar, por uma escolha deliberada, para orientar racionalmente
seus esforços. Desejaria sobretudo vê-los participar, em número cada vez
maior, dessa história ao mesmo tempo ampliada e aprofundada, da qual
somos vários – em nosso caso, cada vez mais raros – a conceber a
proposta. Se meu livro puder ajudá-los, terei a sensação de que não foi
[absolutamente] inútil. Há nele, confesso, um lado de programa. (BLOCH,
2001, p. 49).

Fica explícito, nessa citação, que Bloch entende que defender a ciência
histórica como ele a concebe é defender o desenvolvimento dos jovens
pretendentes a serem historiadores e professores. Ou seja, trata-se de fazer
apologia à ciência histórica e, por conseguinte em uníssono, para não dizer que se
tratam das mesmas coisas, a apologia à formação científica de um historiador. Bloch
revela que sua intenção foi também apresentar um programa que amplie as
possibilidades de jovens historiadores refletirem sobre essas questões
epistemológicas e de formação na obra Apologia da História.
Assim, torna-se notória a relevância de analisar e expor os conceitos
trabalhados por Marc Bloch, que mesmo sendo o resultado de seu pensamento ou
uma nova visão e momento sobre a História, defende a cientificidade da História,
que pode e deve ser ensinada e aprendida. Além disso, outros artigos de Bloch
podem ser arrolados e considerados na análise de sua posição sobre a relação
direta entre cientificidade e educação.
Em um dos seus artigos na revista Annales intitulado “Sobre os
programas de história no ensino secundário” (1921), que trata sobre a arte de
lecionar História no ensino secundário, Bloch lança seu parecer acerca da educação
de História na Europa, condenando a divisão tradicional em ciclos. Além disso,
coloca que certas conscientizações são imprescindíveis aos alunos. Tais
conscientizações cabem ao historiador, que é professor, e aos programas cabe
chamarem a atenção no processo de formação dos professores.
A primeira delas é quanto à História contemporânea, que merece e tem o
direito de fazer parte do ensino secundário. Contudo, isso já ocorria no tempo de
Bloch pós 1902, mas com alguns “pecados” contra o espírito histórico, como ele
47

mesmo escreve. “A História é acima de tudo a explicação do presente pelo passado”


(BLOCH, 1998, p. 296), por isso o aqui e agora jamais deve ser desligado do
passado, pelo contrário deve ser sempre lembrado nos momentos do ensino e
aprendizagem. É preciso sempre conscientizar os alunos, e obviamente antes os
professores, ou seja, os historiadores de que a noção de evolução histórica na
História é a noção de “continuidade humana” (1998, p. 296). Os ciclos e divisões
tradicionais da história inibem o entendimento de continuidade, sobretudo do
presente. Parece que o presente é sempre tratado como a antítese do passado, o
que para Bloch é uma tremenda inverdade. O que há, por mais diferente que pareça,
é continuidade humana. “Os alunos precisam ter acesso a isso”, escreve o autor
(BLOCH, 1998, p. 296).
Outro ponto em questão e sobre o qual muito se debate nas academias
brasileiras é o eurocentrismo. O que é importante destacar é justamente o fato de
um europeu, fundador de uma escola histórica européia, ter consciência e ver a
importância de se dialogar sobre esse conceito com os alunos de ensino secundário.
Para ele, apenas conhecer o mundo europeu e suas manifestações em nível de
civilização e influência é beirar a ignorância, pois “estas sociedades não são tudo”
(1998, p. 296). Apenas estudar história nesse foco é correr o risco de compreender
muito pouco sobre a marcha do mundo. Os professores de história e os programas
devem preocupar-se em desenvolver essa consciência aos alunos, principalmente
para que se tenha a “noção do diferente”. As palavras de Bloch (1998, p. 296)
revelam com clareza tal problemática que ele já identificava:

Ao nosso lado, na Ásia, na África, na própria Europa vivem outros grandes


grupos humanos de tipo muito diferente. Nada preparou o nosso aluno para
compreender essas outras sociedades, nem sequer (o que é ainda mais
grave) para sentir que são diferentes da nossa. Com efeito, o ensino
histórico que recebeu e que incide sobre tudo em épocas próximas dele
nada faz para lhe dar o sentido do diferente, e se assim posso dizer, do
exotismo histórico. E neste sentido só a história poderá dar-lho, desde que
se desenrole perante o seu olhar um espetáculo suficientemente vasto e
variado. A história é essencialmente o conhecimento de uma mudança;
é uma das razões do seu valor pedagógico.

E continua:
48

A compreensão das diferenças no tempo – mais imediatamente sensíveis


para nós porque dizem respeito a povos que nos tocam de perto – deve
levar espíritos aperceber as diferenças no espaço. Descrever as civilizações
antigas ou medievais é abrir os olhos da criança para a variedade do
mundo. (1998, p. 296-297).

Bloch não defende o estudo dessas civilizações pelo resquício de um


olhar do outrora colonizador. Escreve o historiador:

A meu ver, seria conveniente atribuir algumas aulas às civilizações do


Extremo-oriente e a civilização mulçumana, agora consideradas já não do
ângulo da história colonial ou diplomática, mas em si e por si mesmas. O
mundo tornou-se grande. Ter idéias sumárias, mas claras e correctas sobre
a sociedade chinesa, sobre a Índia e sobre o Islão importa hoje muito mais
a um futuro cidadão francês do que conhecer com muito rigor a história
diplomática do século XVIII ou a história parlamentar da Restauração.
(BLOCH, 1998, p. 297).

Ter a noção do mundo, do diferente e variado, mas também da


continuidade humana, é a base no ensino de História, que transcende as datas, os
fatos e alguns povos contemplados. Segundo Bloch, um programa de ensino de
História no secundário deveria constar de tais direcionamentos. Generalizações à
parte, o que importa perguntar é se no Brasil em pleno século XXI, na formação
superior, essa conscientização levantada por Bloch encontra ecos, em nível de
programa político pedagógico de modo explícito.
Em 1937, Bloch e Febvre publicam um outro artigo nos Annales intitulado
“Para renovação do ensino histórico” (1937). Nesse artigo, Bloch coloca que, nos
Annales, eles nunca se desinteressaram pelas questões do ensino-aprendizagem e
da formação de professores em História. Na realidade, esse artigo, como os próprios
autores colocam, busca expor as intenções dos Annales em relação à formação de
professores, problematizando o assunto, ou seja, o problema dos futuros
historiadores. E logo na apresentação Bloch (1998, p. 299) já coloca que, tratar
do problema da formação dos futuros historiadores, é tratar do ofício de
historiador, e que ninguém pode ficar indiferente a isso. Percebe-se, nesse
momento, uma nota de suma importância, pois aqui explicitamente Bloch coloca que
refletir sobre o trabalho de um historiador implica, entre todas as coisas, pensar
principalmente como se portar como um professor.
O olhar do artigo citado acima é para a formação de professores na
França. No entanto, a problematização que Bloch levanta gera reflexões que servem
49

para relacionar a cientificidade da história e seus métodos de investigação, a


formação de professores e a produção do conhecimento. Ou seja, muito mais do
que o caso da França, o que interessa aqui são as reflexões pertinentes, e
intimamente imbricadas, sobre historiografia e os processos formativos dos
docentes/historiadores.
No artigo citado acima, são também levantadas quatro questões de base
sobre o Ensino de História e que merecem muito mais atenção nas suas
ponderações posteriores. Escrevem Bloch e Febvre (BLOCH, 1998, p. 300): 1) Qual
é e qual deve ser o papel deste ensino nas escolas de segundo e terceiro grau
(liceus ou colléges; faculdades)?3 2) Quando o historiador aprendiz sai das escolas
do segundo grau, como conceber os seus estudos de iniciação geral – os que hoje
são sancionados, ou supostamente sancionados, pelo exame de habilitação? 3) O
grande, o escaldante problema da agregação, ou seja – devia ser – do exame-
concurso de aptidão para as funções de professor de história das escolas do
segundo grau. Problema que, aliás, como veremos, consideramos estreitamente
ligado, pelo menos por um dos seus aspectos, aos problemas da habilitação; 4)
Como organizar a iniciação a investigação com as necessárias validações?
A primeira ponderação em relação ao ensino da História no que
concernem às questões acima refere-se às seleções de professores, conhecidas
como concurso de agregação na França4 no tempo de Bloch. O princípio desses, e
que Bloch concorda, é selecionar professores que se ocupem com o ensino
secundário, com as disciplinas de História, principalmente pela importância do cargo.
O esperado em relação aos concursados é que se esforcem para desenvolver a
ciência em seus trabalhos pessoais. É entre esses que devem ser os melhores
recrutados para as faculdades. A busca desse profissional na França é valorizar os
que sabem expor os resultados adquiridos e os que buscam, por si mesmos, chegar
a coisas novas. O concurso, em sua proposta, valoriza o ensino a partir das
investigações, desde o ensino básico ao superior. Todavia segundo Bloch, o
concurso é apenas uma engrenagem de toda a estrutura, embora seja com esse
concurso que se possa selecionar com mais propriedade os jovens. No entanto,

3
Nesse artigo, Marc Bloch partiu dessa questão, mas só trata do ensino superior.
4
Trata-se de um concurso nacional na França, no tempo de Marc Bloch, que selecionava professores
de História para ministrarem suas aulas no ensino secundário. Esse concurso exigia uma série de
aptidões por parte dos professores, mas que para Bloch, não era suficiente para revelar um ‘saber
lidar com a História como ciência’, em sala de aula.
50

Bloch também afirma que é preciso simplificar, aligeirar esse processo, além de
especificar e flexibilizar algumas exigências que não estavam sendo consideradas.
Para ele, essas ponderações servem para evitar conseqüências fatais aos futuros
historiadores, como: conformismo intelectual, o desinteresse mórbido pela História e
seu ensino, e o corte injusto dos escrupulosos (1998, p. 301).
Um diploma de professor de História não deve consumar a idéia de que o
indivíduo diplomado e já concursado não tem mais nada a aprender, defende Bloch.
Criticando o concurso de agregação, o autor levanta alguns pontos fundamentais
que o professor deve ter e ênfases que o referido concurso deveria dar. Um deles é
com relação à explicação de textos, testemunhas. No concurso de agregação de
professores na França, a explicação de textos, das testemunhas documentais, não
era exigida. Como Bloch diz, parece que o pedagogo não tem a obrigação de saber
e tão pouco ensinar a interpretação de fontes. Interpretar fontes é tarefa de
historiadores. Bloch defende que professores/historiadores não podem privar-se
dessa técnica fundamental, principalmente por ocasião de concursos para lecionar.
Mas isso gera outra problemática. Não se exigindo capacidade de
interpretação, o sentido de observação histórica perde força. Isso acaba se refletindo
na aptidão dos professores para ensinar aos alunos. No caso do ensino secundário,
alguém poderia argumentar a idéia de que isso os alunos não tem obrigação de
saber. Mas Bloch (1998, p. 306) interroga:

Não seria desejável, de uma maneira geral, que pelo menos nas aulas dos
últimos anos o ensino de história tivesse um prolongamento em algumas
noções concretas fornecidas sobre a crítica do testemunho cujo manuseio
por certo não é necessário apenas aos eruditos? Há professores a fazê-la e
felicitam-se pelo resultado.

Isso nada mais é do que oferecer aos jovens a possibilidade de terem


contato, mesmo que rudimentar, com o método crítico. E mais, a formação de um
professor de História tem uma dimensão um pouco maior do que a formalidade de
um curso superior.
Outra crítica em relação ao concurso que não exigia essa capacitação
dos futuros professores refere-se à adaptação, seja por instinto ou capacitação, ao
público discente. Obviamente, as qualidades para a exposição de um conteúdo,
segundo Bloch, não devem mudar: “a ordem, a clareza, o destaque dado ao
essencial, a arte de forçar a atenção” (1998, p. 307). No entanto, tal aquisição não
51

dever ser realizada por repetição de receitas técnicas de professores com mais
experiência somente, ou mesmo por algumas horas de estágio dos mais novos. Na
verdade, Bloch aconselha que os futuros professores tenham mais acesso aos bons
resultados que a Psicologia da infância já alcançou. Para o autor, muito mais do que
encarar a exposição de certos professores gabaritados numa seqüência
considerável de horas, importa na verdade ter acesso ao que psicólogos e alguns
médicos têm a dizer e ensinar. E por fim, esses conhecimentos não devem ser
analisados por provas. Na seleção intelectual, que a explicação dos textos, das
testemunhas, seja cobrada, pois trata-se de uma instrumentalização primordial tanto
para o pedagogo como para o historiador na concepção de Bloch (1998, p. 308).
Ainda expondo sua crítica, agora voltado exclusivamente ao ensino
superior, Bloch exclama que na França de seu tempo o concurso de agregação
limita as faculdades a trabalharem apenas os conteúdos exigidos no concurso. Isso
ecoa obviamente no fato de que os programas escolhidos nas faculdades sempre
são modulados, em certas proporções, pelo programa imposto pelo governo.
Mas diante desse vício, e é assim que ele chama a organização superior
dos cursos que preparam professores de História naquela França, o mais gritante e
sensível mal estar é desviar o professor dos seus próprios e pessoais objetos de
estudo: “Entre todos os vícios de um tal regime, o mais imediatamente sensível é
sem dúvida desviar perpetuamente o professor, que é e deve ser ao mesmo tempo
um investigador, desviá-lo do objecto dos seus próprios estudos” (1998, p. 309). Fica
explícito aqui que, para Bloch, o professor de História é um investigador, e isso
presume dizer que o professor de História o é, por ter ofício de historiador; em
contrapartida, o historiador o é também por ser apto a lecionar, isso desde que
nenhum governo ou tradição ideológica ou qualquer outra força de cunho político-
administrativo venha a atravancar esse pressuposto.
Não obstante, ainda há o legado dos professores, que acaba virando
tradição. E essa tradição, segundo Bloch, é uma força maior do que a lei escrita,
porque, se não bastasse o conteúdo imposto, a maneira de tratá-lo, de lecioná-lo
também é imposta pela força dessa tradição, que necessita de renovação. Isso se
torna um obstáculo, principalmente para a renovação do ensino através da
investigação. Escreve o autor: “(...) o nosso ensino superior não está apenas
impedido de renovar eficazmente a história pela investigação como também de lhe
encontrar novas concepções. E como, por sua vez, pesa no secundário, cujos
52

professores forma, a rotina passa de um para o outro e alastra como mancha de


óleo” (BLOCH, 1998, p. 310).
As críticas e sugestões que Bloch levanta não podem ser direcionadas
diretamente a programas de formação de professores em faculdades, que deveriam
de modo geral ter em suas propostas tais conscientizações levantadas pelo autor.
Não são infalíveis, como levanta Bloch, são elementos que levam a reflexão em
qualquer programa. Ou seja, Bloch não apresenta um programa substituto e ideal,
ele apresenta propostas para reflexão, que não se limitam a fórmulas de ensino,
mas propõem uma renovação constante a partir da investigação histórica. Assim, o
método científico em História em suas dinamicidades deve ser o eixo central no
ensino, sobretudo na formação de professores em História. Não se trata de
nomenclaturas e imposições, mas da processualidade do método científico,
configurando, aprimorando, retrocedendo a partir do erro e pontuando para
adequação o ensino de História.
Desse modo, cabe aqui, para dar continuidade a este capítulo, visualizar
o método científico em História, contemplando obviamente certos aspectos dos
processos a partir do pensamento de Bloch. Isso se faz necessário para levantar a
importância da exposição de um método, defendida por Bloch, e até onde é possível
saber, por toda corrente de pensamento científico, que sempre contempla o método
e seu processo para a produção do conhecimento e para qualificar a formação de
educadores. Para Bloch, um professor de História deve saber o que é produzir
historiografia através de um método científico em História.

2.6 O método científico e suas manifestações na formação do Historiador

Para Bloch, método em História só é aprendido de um modo, quando


colocado em operação. Por isso, cabe aqui perceber, pelas considerações
blochianas, as manifestações desse método, que é a categoria central na formação
de professores/historiadores, visto que todo historiador tem a obrigação intelectual e
moral de prestar contas do seu método.
53

2.6.1 A legitimidade do esforço intelectual em História

O que torna legítimo um esforço intelectual em História? Escreve Marc


Bloch que a História, mesmo que fosse eternamente indiferente ao homo faber ou
politicus, bastaria ser reconhecida como necessária ao pleno desabrochar do homo
sapiens. A resposta dos positivistas de estrita observância, segundo Bloch, àquela
pergunta é a aptidão a ação. Contudo, Bloch afirma que a busca pelo conhecimento,
às vezes sem uma necessidade aparente, uma busca desinteressada, pode gerar
mudanças revolucionárias. Segundo Bloch (2001, p. 45), isso ocorre porque:

A experiência nos ensinou que é impossível decidir previamente se as


especulações aparentemente as mais desinteressadas não se revelarão,
um dia, espantosamente úteis e práticas. Seria infligir à humanidade uma
estranha mutilação recusar-lhe o direito de buscar, fora de qualquer
preocupação de bem estar, o apaziguamento de suas fomes intelectuais.

Para Bloch, independente até de qualquer aplicação prática, a História


tem, portanto, “o direito de reivindicar seu lugar entre os conhecimentos
verdadeiramente dignos de esforço, apenas na medida em que, em lugar de uma
simples enumeração, sem vínculos e quase sem limites, nos permitir uma
classificação racional e uma progressiva inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p. 45). Ou
seja, o triunfo científico da História, para Bloch, está na utilização de uma
racionalidade que não se fecha em nada, nem mesmo em relação à necessidade de
ação específica, progride sem apogeu ou final sublime, sempre se superando, mas
sempre pela utilização racional de um método em História.
Contudo, surge uma questão. Parece comum que a ciência sempre terá
algo de incompleto se não servir para alguma coisa, ou pelo menos para possibilitar
que as pessoas vivam melhor. Marc Bloch alerta que a utilidade da História nada
tem a ver, não deve ser confundida com, a sua legitimidade intelectual. Aliás, a
legitimidade intelectual vem antes, pois parece mais lógico e necessário
compreender bem antes de agir. Mas alerta o autor que essa resposta não deve ser
respondida apenas pelas exigências do senso comum, o que já revela a
necessidade de independência científica na História.
54

Muitos já disseram, segundo Bloch, que a História não tem utilidade nem
solidez. Todavia, essas condenações têm um elemento temível e atrativo: “justificam
antecipadamente a ignorância” (BLOCH, 2001, p. 46).
Diante da realidade efetiva que muitas vezes exige a ação, qual a atitude
do historiador? O historiador deve ter uma postura de caráter profissional, científico
e educacional. Falar assim num primeiro momento parece generalização, mas o
próximo tópico objetiva-se a refletir sobre essa postura defendida por Bloch, que
nada mais serve do que revelar a visão de história que todo o historiador deve ter,
ou pelo menos sempre refletir em busca de uma.

2.6.2 A atitude do historiador diante da história efetiva: a escolha do objeto

Convém, neste momento, refletir sobre a visão de história que Marc Bloch
aborda. Agora, porém, trata-se do que acontece de fato no tempo, como o tempo e
os homens se relacionam e como, a partir disso, é possível produzir conhecimento
científico em História.
A palavra história é antiqüíssima, a tal ponto que muitos, segundo Bloch,
tentaram riscá-la do vocabulário. Independentemente de pesquisa com método, a
história ocorre efetivamente. Ela direciona o olhar para o indivíduo ou a sociedade,
para descrição de crises momentâneas ou duradouras (BLOCH, 2001, p. 51). A
etimologia primordial diz respeito basicamente à pesquisa. O conteúdo da História
muda, mas não existe obrigatoriedade em se mudar de denominação. As mudanças
ocorrem quando os termos são vivos. Escreve Bloch (2001, p. 52):

Mesmo permanecendo fiel ao seu glorioso nome helênico, nossa história


não será absolutamente, por isso, aquela que escrevia Hecateu de Mileto;
assim como a física de lord Kelvin ou de Langevin não é a de Aristóteles.

No entanto, em vez de defini-la como quem consulta um dicionário, Bloch


pontua que, diante da história efetiva, o que o historiador deve fazer como primeiro
momento é escolher, buscar, em face dessa imensa realidade confusa. Isto é, o
historiador começa a se projetar como tal quando é levado, na história efetiva, a
recortar o ponto particular de suas ferramentas. Para Bloch, este sim é um autêntico
55

problema de ação, que de longe passa pela preocupação de se definir o que é a


história. A história efetiva existe, e isso já está resolvido para o nosso autor. O
problema é o que o historiador faz diante da história efetiva, que justamente para ele
é a escolha, a escolha do historiador, que nada tem a ver como a escolha do
biólogo, por exemplo.
Essa escolha se dá no imediato, por isso História para Bloch não é
ciência do passado. Seria um absurdo dizer que o passado é objeto: “Como sem
uma decantação prévia, poderíamos fazer, de fenômenos que não têm outra
característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um
conhecimento racional? Será possível imaginar, em contrapartida, uma ciência total
do Universo, em seu estado presente?” (BLOCH, 2001, p. 52).
Nas origens da historiografia isso até era comum, mas essas primeiras
memórias, desordenadas, confusas, necessitaram de uma classificação. Como
escreve Bloch, a linguagem tradicional conservou o termo história a todo estudo de
uma mudança na duração temporal. Exemplo: a história do sistema solar é alçada
da astronomia, a história das erupções vulcânicas é alçada da física, mas ambas as
escolhas não pertencem à escolha dos historiadores. Então, qual é a escolha dos
historiadores diante da história efetiva?
A escolha do historiador estará ligada à atitude humana, de uma
sociedade, de um grupo, diante da história efetiva. Basicamente, o critério do
historiador é a presença humana. Ele, o homem, ou melhor, os homens, é que são
parte fundamental do objeto do historiador. Diante de toda produção cultural, são os
seres humanos e suas atitudes em relação a tudo, o que o historiador quer capturar.
O que deve ser critério de escolha dos historiadores é o que está atrás dos artefatos,
documentos, instituições, edificações, etc. As pirâmides são menos importantes para
os historiadores do que as sociedades que as construíram. Como escreve Bloch, o
historiador é como o ogro da lenda, que fareja carne, sabe que ali está a sua caça, a
sua escolha de historiador (BLOCH, 2001, p. 54). É interessante como essa idéia
entra em conformidade em certos aspectos com as análises marxistas, como a
expõe E. P. Thompson (THOMPSON, 1981, p. 55): “A pátria marxista continua onde
sempre esteve, no objeto humano real, em todas as suas manifestações (passadas
e presentes)”.
A partir das escolhas pela presença humana, da busca das fontes e
testemunhas possíveis além de suas análises e averiguações, também existe a
56

necessidade de saber expressar-se. Como, a partir de um método de pesquisa, a


arte de expressar-se deve fazer parte do rol de aptidões de um historiador? É o que
a partir do próximo parágrafo será tratado.

2.6.3 A estética da linguagem científica em História

Como a História pode se expressar? Como ciência, ou como arte? É


possível expressar a História dos historiadores, com linguagem matemática? Antes
de responder, é preciso ponderar: “não há menos beleza numa equação exata do
que numa frase correta”, escreve Bloch (2001, p. 54). Mas não há como negar que
toda a linguagem de uma ciência possui uma estética. As atitudes humanas são por
essência muito sutis e delicadas, e muitos fogem de uma medida puramente
matemática. Por isso se faz necessário, para traduzir, expressar as atitudes
humanas em uma linguagem fina, “uma cor correta no tom verbal” (2001, p. 55). O
contraste entre a expressão das realidades do mundo físico e as realidades do
espírito humano é como o contraste entre o fresador e o luthier (fabricante e
regulador de instrumentos de corda). Coloca Bloch (2001, p. 55):

(...) ambos trabalham no milímetro; mas o fresador usa instrumentos


mecânicos de precisão; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade
do ouvido e dos dedos. Não seria bom que nem o fresador se contesse com
o empirismo do luthier, nem que este pretendesse imitar o fresador. Será
possível negar que haja, como o tato das mãos, um das palavras?

Para Bloch, é possível num texto escrito, bem escrito, expressar


cientificidade. Ou seja, a linguagem matemática ainda é linguagem. Aliás, a
linguagem matemática tende a progredir, não quando chega à exatidão da medida,
mas quando essa exatidão tende ao abstrato, juntamente com a linguagem, ao ver
os erros de cada passo alcançado. Não seria diferente na História. O conhecimento
científico em História progride quando as expressões não são exatas, mas tendem
ao abstrato, ao mais complexo. Muitas vezes até linguagem matemática precisa ser
narrada, por mais que os símbolos sejam outros, sobretudo em explicações de
projetos científicos. A História precisa ser narrada, explicada, apresentada, descrita,
e etc., mas isso não deve confundi-la com um estilo literário ou artístico. Não se
57

compreende o que não se sabe dizer. Para se explicar, é preciso um estilo. Só é


possível ensinar com integralidade científica e integridade moral, o indivíduo que de
fato aprendeu.
O modo de expressão deve sempre revelar todos os passos da aplicação
do método crítico, sobre tudo pela consciência do acontecido na pesquisa, ou seja,
com expressões que indiquem uma espécie de escalonamento de certeza, pois na
História, a certeza é sempre pueril, pois os testemunhos são falíveis de crítica. Além
disso, nos modos de expressão dos trabalhos de pesquisa, devem também revelar a
concepção de tempo, pois esse elemento é fundamental para aplicabilidade de um
método histórico. Não existe expressão científica em História que não tenha alguma
noção expressiva de tempo como referencia. É o que a próxima abordagem trata.

2.6.4 A noção de temporalidade e a “tomada de consciência”

Bloch (2001, p. 55) coloca: “História, ciência dos homens”, mas


acrescenta: “dos homens no tempo”. Na realidade, esse autor considera que
nenhuma ciência pode se abstrair do tempo, ou seja, nenhuma ciência é atemporal.
Entretanto, para muitas dessas ciências o tempo representa apenas uma medida.
Mas na História, “o tempo é realidade concreta e viva, é o próprio plasma em que se
engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p.
55). Bloch exemplifica dizendo que o tempo, para a atomística, é dado fundamental,
para geologia o tempo é dado histórico, para a História é um continuum e perpétua
mudança. É da antítese desses dois atributos temporais da História que provêm os
problemas da pesquisa histórica (BLOCH, 2001, p. 55).
Segundo Le Goff, no prefácio da obra de Bloch (2001, p. 135), o tempo da
História oscila entre o que Fernand Braudel vai chamar a ‘longa duração’, e essa
cristalização, que Bloch chama de momento, em vez de acontecimento, e a
mediadora é a “tomada de consciência”:

O historiador nunca sai do seu tempo, mas por uma oscilação necessária,
que o debate sobre as origens já nos deu a vista, ele considera ora as
grandes ondas de fenômenos adaptados que atravessam,
longitudinalmente, a duração, ora no momento humano em que essas
correntes se apertam no poderoso nó das consciências.
58

Não é possível progredir para uma unificação da medida do tempo, por


mais que se tente, pois o tempo da História escapa a uniformidade:

O tempo humano (...) permanecerá sempre rebelde tanto à implacável


uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio. Faltam-
lhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, com limites,
aceitem freqüentemente, porque a realidade assim o quer, apenas zonas
marginais. É apenas ao preço dessa plasticidade que a história pode
esperar adaptar, segundo as palavras de Bergson, suas classificações às
“próprias linhas do real”: o que é, propriamente, a finalidade última de toda a
ciência. (BLOCH, 2001, p. 153).

Uma das problemáticas entre os historiadores, e isso se generalizou para


o senso comum, é o que Bloch chama de idolatria das origens. Ou seja, criou-se
uma crença de que o começo explica. Por causa dessa crença, as ciências humanas
muito se atrasaram em relação às ciências da natureza, e uma das causas, segundo
Bloch, foi o evolucionismo biológico do século XIX, que parece supor um
afastamento das origens. Por isso, ele alerta que filiação, origem não pode ser
sinônimo de explicação, isso é uma ilusão dos antigos etimologistas. Com suas
palavras, Marc Bloch diz:

Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do


estudo do seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução.
Tanto daquela em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse
antes de nós: “Os homens parecem mais com sua época do que com
seus pais”. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do
passado às vezes caiu em descrédito. (2001, p. 60).

Já alguns devotos do imediato concebem o tempo presente como algo


quase que totalmente do passado. Segundo Bloch, o presente, no infinito da
duração, é algo que foge sem parar, algo que mal nasce e já morre (2001, p. 60).
Qualquer ciência que pretenda ser ciência do presente se transforma abruptamente
em ciência do passado. Agora, quando é empregada de maneira mais frouxa, pode-
se dizer que “presente” é igual a passado recente. Mas isso ainda traz sérias
dificuldades, pois a noção de proximidade exige precisão. Diante disso, vêm os
desdobramentos em debates, em que se tenta definir o que é contemporaneidade.
Comumente, a partir do século XIX, só o que era longínquo em medida de tempo era
estudo da História, para os positivistas sobretudo.
Outros cientistas pensam ser perfeitamente normal estudar o presente
humano, pois é este que está vivo. Somente sociólogos, economistas, publicistas e
59

jornalistas podem explorar o vivo. Os historiadores, para muitos que partilham dessa
idéia, estudam o que já é morto, o que já está mofado. Mas nesse ínterim, coloca
Bloch, as revoluções técnicas, para não dizer industriais e tecnológicas, geraram
uma ampliação desmedida no intervalo de tempo psicológico entre as gerações
(2001, p. 62). O exemplo que Bloch coloca é que o homem da era da eletricidade e
do avião se sente muito, mas muito distante de seus ancestrais. Assim, esses
mesmos homens concluíram que a ancestralidade, o passado distante, nada
determinou em suas contemporaneidades. Na prática, essa idéia funciona da
seguinte maneira: para “compreender os grandes problemas humanos do momento
e tentar resolvê-los, de nada serve ter analisado seus antecedentes” (2001, p. 63).
Mas segundo Bloch, essa idéia de auto-inteligibilidade assim reconhecida
no presente apóia-se em declarações, postulados. Uma é a crença de que nenhuma
instituição um pouco antiga, nenhuma maneira de se conduzir tradicionalmente teria
escapado às revoluções da modernidade. Mas isso é um erro, como pontua Bloch
(2001, p. 63):

Ao se prolongar aqui o erro sobre a causa, como acontece quase


necessariamente na ausência de terapêutica, a ignorância do passado não
se limita a prejudicar a compreensão do presente; compromete, no
presente, a própria ação.

E o que falar das tradições orais tão presentes e que ligam gerações? E
as tradições escritas, que ligam pensamentos em transferência entre gerações que
muito se afastam em séculos? Trata-se de um erro. No campo epistemológico, o
próprio Bachelard coloca que o olhar para os conhecimentos do passado deve ser
um olhar atento a erros, para que no presente a ciência progrida como conjunto de
erros retificados. Em certa medida de intersecção, Bloch (2001, p. 65) coloca:

Entre as coisas passadas, enfim, aquelas mesmas – crenças desaparecidas


sem deixar o menor traço, formas sociais abortadas, técnicas mortas – que,
parece, deixaram de comandar o presente, vamos considerá-las, por esse
motivo, inúteis a sua compreensão? Seria esquecer que não existe
conhecimento verdadeiro sem uma certa escala de comparação. Sob a
condição, é verdade, de que a aproximação diga a respeito a realidades ao
mesmo tempo diversas e não obstante aparentadas.

Do mesmo modo, enfatiza Bloch que também de nada vale estudar o


passado se nada se sabe do presente. Ou seja, o historiador também deve se
interessar pelo vivo, aliás, diz Bloch (2001, p. 66) a apreensão do vivo é justamente
60

“a qualidade mestra do historiador”. Um erudito que menospreza a sua realidade e


não se direciona aos acontecimentos ao seu redor, às pessoas, às coisas, esse
nada tem de historiador. Em outras palavras, o historiador tem de ser um perito do
seu presente, justamente porque o conhecimento do presente é muito importante
para compreensão do passado, e não apenas o inverso. Nisso, a postura do
historiador nem sempre será a mesma do que a ordem dos fatos conforme a linha
do tempo tradicional. Começar de traz para frente, buscando as origens ou as
causas dos fenômenos, é sempre correr o risco de buscar explicações pueris. Muitas
vezes, faz-se necessário adotar o que Bloch chama de método regressivo, começar
do mais conhecido, para o menos conhecido, independente de datas. Um método
prudentemente regressivo é um dos legados de Bloch, embora tal herança esteja
sendo mal explorada segundo Le Goff coloca no prefácio da obra (BLOCH, 2001, p.
25).
É desse modo que o historiador poderá pegar sua presa, “a mudança,
entregar-se com eficiência ao comparativismo histórico e empreender a única
história verdadeira... a história universal” (2001, p. 25). Le Goff diz que prefere,
pegando uma expressão de Foucault, chamar de história geral. Daí, as três
exortações de Bloch, segundo pontua Le Goff, algumas já mencionadas acima.
A primeira exortação é quanto à ignorância do passado que limita
conhecimento do presente e compromete a própria ação do presente. A segunda é
que o ser humano também muda, não só em seu espírito, mas até os mecanismos
de seu corpo, é daí que vem a legitimidade de se estudar as mentalidades, como
objeto da história, como também o estudo da história do corpo. No entanto, Bloch
(2001, p. 65) deixa bem claro que: “Decerto é preciso, todavia, que exista na
natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente, sem o qual os
próprios nomes ‘homem’ e ‘sociedade’ nada significariam”.
E a terceira exortação é que essa história ampla, profunda, longa, aberta
e comparativa não pode ser realizada por um historiador isolado: “A vida é muito
breve” (2001, p. 26). Ninguém dá conta, mesmo sendo especialista, de compreender
tudo, mesmo em seu próprio campo de estudos. O ofício de historiador se exerce
numa combinação do trabalho individual e do trabalho por equipes. Ou seja, o
historiador precisará se contextualizar à sua comunidade científica, estar à
disposição dela, e tê-la como referencia, seja para criticá-la ou receber a crítica,
como afirma Bloch (2001, p. 68):
61

A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para


permitir, até para o mais belo gênio, uma experiência total da humanidade.
O mundo atual terá sempre seus especialistas, como a idade da pedra ou a
egiptologia. A ambos pede-se simplesmente para se lembrarem de que as
investigações históricas não sofrem de autarquia. Isolado, nenhum deles
jamais compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio
campo de estudos; e a única história verdadeira, que só pode ser feita
através de ajuda mútua, é a história universal.

Uma ciência não se define somente por seu objeto em relação à


temporalidade, mas também pelos seus métodos aplicados, pela natureza de seus
métodos. Agora faz-se necessário discorrer sobre o método propriamente dito em
História, no que tange suas especificidades.

2.7 O método crítico para a História: o valor da análise dos testemunhos para a
educação

Para nós, há uma ordem de fenômenos a que nos permitiremos chamar de


fenômenos psico-sociais. Para se estudar com utilidade esta ordem importa
dividi-la em famílias; importa substituir um método cronológico e parte de
uma síntese provisória e empírica por um método analítico que, pela
análise, tende a chegar a uma síntese científica. A história é uma recolha de
experiências, não se trata apenas de publicar esta colheita, isso é trabalho
de editor e não de cientista, trata-se sobretudo de a interpretar. (BLOCH,
5
1998, p. 15).

Bloch, nessa citação, quer mostrar que há um elemento básico na


investigação histórica: a interpretação analítica. Ou seja, as fontes, os testemunhos
não falam por eles mesmos, não basta publicá-los, pois isso não é História, isso não
é ciência. Não basta haver fontes. Assim, não basta uma soma de testemunhos e aí
está a História. É preciso a crítica, fato que de certo modo deve ser elementar em
qualquer método em História. Bloch chama de crítica do testemunho, a arte de
discernir nos relatos o falso, o verdadeiro e o plausível. Não basta somente ter
acesso as fontes, é preciso fazer um trabalho analítico sobre elas.
A primeira obrigação do historiador é citar suas fontes. Mas isso ainda
não é História e todo um método aplicado. Nisso, aliás, diz Bloch que nada tem de
ciência, mas sim de preguiça. Faz-se necessário, no método histórico, o esforço
para compreender, pois nem toda fonte é confiável. A disciplina é constante, por isso
5
Trata-se de uma citação de um caderno de anotações de Marc Bloch, datado de 1906.
62

Bloch (1998, p. 23) lança a sua admiração e respeito ao esforço, o cansaço, e a


incerteza quanto aos resultados. E alerta (2001, p. 89): “Que a palavra da
testemunha não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais ingênuos dos
policiais sabem bem”.
A erudição valoriza as fontes, mas de modo geral não as problematiza. O
historiador sempre terá de problematizar, terá de fazer a crítica das fontes. Não é
apenas costurar e harmonizar as fontes, que muitas vezes são antagônicas sobre
um mesmo acontecimento. A História não repousa no acontecimento, no fato, mas
na problematização das fontes sobre o acontecimento. E mais, quando a harmonia
entre as fontes está muito óbvia, aí deve repousar certa suspeita. Enfatiza Marc
Bloch (1998, p. 24-25):

Só há uma maneira de dizer: << é meio dia >>. Mas há muitas outras
maneiras diferentes de contar a batalha de Waterloo. Se duas descrições da
batalha de Waterloo se repetirem palavra por palavra ou até se
assemelharem muito, concluímos que uma delas foi a fonte da outra. Como
distinguir a cópia do original? Os plagiários são traídos pela sua inépcia.
Quando não compreendem os seus modelos, os seus contra-sensos
denunciam-nos. Quando procuram disfarçar o que é de outrem, perde-os a
inaptidão dos seus estratagemas.

Bloch (1998, p. 25) também alerta que no método em História, na análise


das fontes, “a crítica histórica não tem que se dar a raciocínios aritméticos”. Ele cita
um exemplo e um axioma latino para demonstrar:

Dez pessoas garantem-me que no Pólo Norte o mar se estende livre de


gelos e o almirante Peary que os gelos desse mar são eternos. Acredito em
Peary que os gelos desse mar são eternos. Acredito em Peary e continuaria
a acreditar se os seus opositores fossem cem o mil, pois foi ele o único
homem a ter visto o Pólo. Um velho axioma latino diz: << Non numerantur,
sed ponderantur >>. Os testemunhos pesam-se, não se contam. (BLOCH,
1998, p. 25).

Em suma, o historiador, a partir de seu método de análise das fontes,


nunca se entrega totalmente às fontes, mesmo às que parecem mais confiáveis.
Não é apenas uma escala de valores, pois mesmo um testemunho incompleto ou
falso pode ter muito a dizer em relação a determinado fenômeno, por vezes até mais
do que o testemunho mais completo e verdadeiro. O historiador não diz só qual
testemunha está certa ou errada, mas decompõe todas. Primeiro, porque existe o
risco de falsificação de testemunho, como vários exemplos comprovam,
63

testemunhos não apenas escritos, mas materiais. Bloch (2001, p. 89) exemplifica tal
realidade com o estudo da Idade Média, período de grande falsificação de
documentos. Segundo, porque é uma raridade encontrar testemunhos exatos, isso
se eles existem. E terceiro, porque diante da formação de um testemunho, antes há
uma memória e uma atenção com falhas. Bloch diz que nossa memória é um
instrumento frágil e imperfeito, e isso ecoa e se revela em todas as fontes (2001, p.
26).
Um pressuposto muito importante na análise problematizadora de um
testemunho é procurar determinar quais os fatos que geraram a atenção da
testemunha, e o contrário também é importante, que é buscar quais os fatos lhe
escaparam. Bloch (2001, p. 103) chega inclusive a visualizar uma disciplina
necessária nesse trabalho: a psicologia do testemunho. Embora, como afirma o
autor, seja uma arte de sensibilidade nesse caso específico, há também uma “arte
racional, que repousa na prática metódica de algumas grandes operações do
espírito” (BLOCH, 2001, p. 109).
Outro pressuposto básico é a comparação das testemunhas. Na
comparação de testemunhas, é possível discernir certos elementos de veracidade
histórica. Escreve o autor (BLOCH, 2001, p. 109):

Foi aproximando os diplomas merovíngios seja entre si, seja de outros


textos, de época ou de natureza diferente, que Mabillon fundou a
diplomática; foi da confrontação dos relatos evangélicos que nasceu a
exegese. Na base de quase toda crítica inscreve-se um trabalho de
comparação.

Bloch alerta, no entanto, que o resultado dessas comparações nada tem


de automático. Por isso, o princípio da contradição exige o mais universal dos
postulados lógicos, que nada mais é do que a proibição de que um acontecimento
possa ser e ao mesmo tempo não ser. O critério da comparação sempre deve
rejeitar a atitude de se encontrar um meio termo, tão comum entre alguns eruditos. É
pela discrepância de testemunhas antagônicas, que nem sempre tem a ver com o
escrito, mas com o próprio material da fonte, que é possível julgar a fonte mais
confiável e o porquê das existências de fontes fraudulentas. Em suma, não se trata
apenas da natureza escrita de um documento, mas da sua própria materialidade.
Segundo Bloch, já se falou muito mal da crítica histórica. Um dos
argumentos é a acusação de que crítica histórica destrói a poesia do passado. Além
64

disso, alega-se inclusive desrespeito à memória dos homens do passado. Contudo,


se tais argumentos são levantados, deve ser pelo fato, argumenta Bloch, da difícil e
exigente tarefa científica de se analisar as fontes. Mas, ironizando, Bloch diz que até
a ficção, até uma poesia de época pode ser uma fonte. Com muita consciência, ele
coloca que, para o historiador:

A beleza das lendas e a sua verdade própria está em traduzirem fielmente


os sentimentos e as crenças do passado. Conhecendo-as como lendas
saboreamo-las melhor. E depois – vou dizer tudo o que penso – se é certo
que a crítica soube por vezes dissipar certas miragens que eram sedutoras,
afinal, que importa? O espírito crítico é o asseio da inteligência. O principal
dever é a higiene. (2001, p. 29).

Conclui-se, a partir dessa visão blochiana, que o método crítico é um dos


pilares básicos e de caráter central no trabalho do historiador. Desse modo, o
historiador não é aquele que conhece fatos do passado e os reproduz
mecanicamente. Justamente, é aquele que problematiza o passado a partir do que
as fontes contam desse passado e o reproduz criticamente, amparado pelo método
científico e seus referenciais, que pode ser por conhecimento adquirido de métodos
historiográficos ou mesmo, e de fato essa seria de suma importância, pela postura
científica de alguém que sabe fazer uso e citar na menor das hipóteses um método
científico quando simplesmente está expondo um conteúdo historiográfico.
Ao apresentar um esboço de uma história do método crítico no capítulo III
em Apologia da história, Marc Bloch defende que o método crítico de fato é filho do
humanismo do século XVII. E mais, não se trata de um produto do pensamento
cartesiano, embora traga similaridades:

[Assim como a “ciência” cartesiana,] ela procede a essa implacável inversão


de todos as bases antigas apenas a fim de conseguir com isso novas
certezas (ou grandes probabilidades), agora devidamente comprovadas,
[Em outros termos,] a idéia que a inspira supõe uma reviravolta quase total
das concepções antigas da dúvida. (...). É uma idéia cujo surgimento se
situa em um momento muito preciso da história do pensamento. (2001, p.
92).

Foi desse momento, que se fixaram as regras essenciais do método


crítico. Em outras palavras, Bloch está afirmando que o método crítico não nasceu
de uma idéia cientificamente premeditada. Entretanto, aqui Bloch tranquilamente
afirma que esse método crítico não é filho da ciência positivista, e tão pouco produto
65

de caráter científico, ou seja, não nasceu de uma inauguração científica. Embora


sua prática tenha sido por muito tempo realizada por um punhado de eruditos,
exegetas bíblicos e curiosos, a grande problemática desse trabalho, que os ditos
historiadores por vários momentos relutavam em usar, é o desperdício de um
esforço intelectual que se processa por si mesmo. De um modo geral, os
historiadores não queriam misturar a preparação (o lidar com as fontes) com a
realização, ou seja, editar, apresentar a História. Um cisma demasiadamente
complicado na visão de Bloch.
Apenas no século XIX apareceu um esforço contra esse cisma intelectual
entre os historiadores. “Sobre tudo a escola alemã, Renan, Fustel de Coulanges
restituíram à erudição sua condição intelectual. O historiador foi levado à mesa de
trabalho” (2001, p. 93). Ou seja, foi um processo no contínuo do pensamento e da
produção de conhecimento. Ou seja, uma espécie de interdisciplinaridade histórica,
processual e não produzida conscientemente.
No entanto, isso ainda não caracteriza o esforço intelectual de um
historiador. Como diz Bloch (2001, p. 94), “fora dos jogos de fantasia, uma afirmação
não tem o direito de ser produzida senão sob a condição de poder ser verificada”.
Ou seja, além de o historiador ter que saber fazer a análise das fontes, ele as faz
falar, não pela apresentação pura e simples (datando, e mostrando as origens), mas
pela compreensão. Isso, no que concerne o método crítico é o que diferencia um
historiador de um erudito. Escreve Marc Bloch:

O historiador não é, é cada vez menos, esse juiz rabugento cuja imagem
desabonadora, se não tomarmos cuidado, é facilmente imposta por certos
manuais introdutórios. Não se tornou, certamente crédulo. Sabe que suas
testemunhas podem se enganar ou mentir. Mas antes de tudo, preocupa-
se em fazê-las falar, para compreendê-las. É uma das marcas mais
belas do método crítico ter sido capaz, sem nada modificar seus
primeiros princípios, de continuar a guiar a pesquisa nessa ampliação.
(2001, p. 96).

A crítica dentre tudo, das falsas e verdadeiras testemunhas, sejam elas


oficiais ou não, não apenas busca o que é verdadeiro ou falso, mas sobretudo a
atitude humana, ou melhor, o próprio homem: “Eis portanto a crítica a buscar; por
trás da impostura, o impostor; ou seja, conforme a própria divisa da história, o
homem” (BLOCH, 2001, p. 98). Nesse ínterim, Bloch (2001, p. 100) faz uma
acusação muito interessante ao falar dos românticos e da Idade Média, dizendo que
66

os períodos mais ligados à tradição foram aqueles ligados por uma necessidade de
revanche em prol da criação, juntamente com a força de venerar o passado, foram
em muitos momentos levados a inventá-lo.
Paul Veyne, nesse caso específico, em sua obra Como se escreve
História e Foucault revoluciona a História, coloca que História não é uma ciência,
não tem método e não explica. Assim, para Veyne, a História é narrativa com
personagens reais, e mesmo analisada pelas fontes não pode alcançar o “realmente
acontecido”. Paul Veyne entende que a História é subjetiva, pois se tudo é história, a
“História termina sendo o que foi escolhido pelo historiador” (VEYNE, 1998, p. 198).
Mas se de fato a História é mera escolha e recorte, o método crítico perde valor. No
entanto, como muito bem escreve Ciro Flamarion, que não abre mão de afirmar a
cientificidade da História, “desde o materialismo histórico e Annales, a História
deixou de estar voltada para fatos singulares e passou a abranger estruturas globais
sujeitas a regularidades, como a vida econômica e as estruturas sociais e culturais”
(FLAMARION apud SILVA; SILVA, 2006, p. 182). Ciro Flamarion afirma que:

(...) a oposição entre disciplinas de observação direta e a História, cuja


observação seria unicamente indireta, é das mais duvidosas. A Física, por
exemplo, inclui em suas teorias muitos elementos cuja observação direta
não é possível, e o mesmo ocorre com muitas outras ciências. E nem
sempre a observação direta é vedada ao historiador – por mais que, de fato,
tenha limites às vezes estritos. Ao trabalhar com vestígios materiais de
diversos tipos – monumentos, moedas, restos descobertos em escavações,
etc – temos, justamente, casos de observação direta. (FLAMARION, 1981,
p. 50).

Já o argumento do também historiador de tradição marxista, e sempre


digno de nota, elucida bem mais o que Flamarion argumenta em contraposição aos
que defendem a não cientificidade da História. Para Edward Palmer Thompson,
segundo coloca Regina Célia Linhares:

(...), a história real existe independente de qualquer esforço cognitivo do


sujeito, e que quaisquer categorias ou conceitos empregados pelo
materialismo histórico só podem ser compreendidos como categorias
históricas, isto é, conceitos próprios para investigação de um
processo, de uma realidade que não é passível de representação
conceitual estática, mas que deve ser interrogada na sua irregularidade e
contradição. (THOMPSON apud HOSTINS, 2004. p. 39).

Convém, em relação isso, colocar algo que muito importa no pensamento


de Bloch em uníssono com o pensamento de Thompson. Marc Bloch deposita muita
67

importância e cuidado em relação à crítica das testemunhas, mas entende que a


crítica das testemunhas não é uma ferramenta metódica infalível. Escreve o autor
que:

(...) não basta reconhecer evasivamente a possibilidade de encontros


fortuitos. Reduzida a essa simples constatação, a crítica oscilaria
eternamente entre o pró e o contra. Para que a dúvida se torne instrumento
de conhecimento, é preciso que, em cada caso particular, o grau de
verossimilhança da combinação possa ser sopesado com alguma exatidão.
Aqui, a pesquisa histórica, como tantas outras disciplinas do espírito, cruza
seu caminho com a via régia da teoria das probabilidades. (BLOCH, 2001,
p. 116-117).

Faz-se necessário grifar essa nota, tamanha importância desse


pensamento. De fato, existe uma história efetiva, independente de uma ciência
histórica, mas é uma determinada ciência histórica que observa e analisa para
compreender e depois ensinar. Ou seja, a história efetiva não se apresenta para o
ensino e conhecimento nua e cruamente, a não ser que seja observada,
questionada, analisada, ponderada, decomposta etc. Isso não se faz por mero
subjetivismo, pois se assim for de fato a História não é ciência. Como diz Thompson,
é preciso categorias de análise histórica, conceitos de investigação de um
processo, sobretudo processos onde se identificam contradições, ou seja, método
científico. Disso Marc Bloch, mais do que ninguém, não abre mão.
Mas aqui também surge uma problemática que merece uma atenção
especial: o próprio Bloch (2001, p. 117) elucida que ponderar sobre a probabilidade
é “estimar as chances que tem de se produzir”. Só que num sentido totalizante,
olhando para o passado, isso é muito complicado e estranho. O futuro é sim
aleatório, “o passado é um dado que não deixa mais lugar para o possível” (BLOCH,
2001, p. 117). Um exemplo muito esclarecedor, por sinal:

Antes do lance de dados, a probabilidade para qualquer das faces era de


um sobre seis; lançados os dados, o problema desaparece. Pode ser que
hesitemos mais tarde, se nesse dia desse o três ou então o cinco. A
incerteza está, portanto em nós, em nossa memória ou na de nossas
testemunhas. Não nas coisas. (BLOCH, 2001, p. 117).

A problemática em relação às probabilidades, e aqui isso fica um pouco


mais esclarecido, não está no que aconteceu no passado, mas na lembrança, na
memória das testemunhas. Ou seja, existe probabilidade porque as testemunhas e o
68

método de análise são humanos, é do espírito, e por melhor que seja sempre será
falível de erro ou erros. Mas é justamente por isso que é uma ciência a progredir,
pois reconhece os erros do espírito científico como erros do espírito humano, ambos
produtores de memória. Contudo, erros que podem ser retificados.
Claro que, num recorte temporal, um historiador poderia recorrer a um
tempo anterior a determinado fato do passado e lançar perguntas de probabilidade,
mas ainda assim trata-se de imagem recuada de algo já acontecido. Para Bloch, tais
ponderações não são científicas. Trata-se apenas de jogos metafísicos, momentos
de diversão, simples artifícios de linguagem destinados a trazer à luz, na marcha da
humanidade, a parte de contingência e de imprevisibilidade. Tal prática nada tem a
ver com crítica do testemunho. Não se trata de atitude científica.
Outro risco, e que muitas vezes vem acompanhado com um ar de
erudição, é a rejeição ao acaso. Em algumas ramificações da lingüística, parece que
um único objetivo é ver as semelhanças e parentescos entre os escritos.
Obviamente, ela possui essa prerrogativa devido às próprias particularidades dos
fenômenos da linguagem, ou seja, existem casos lingüísticos em que as
semelhanças são mero acaso. Alguns lingüistas, muitas vezes fanáticos pela crítica
dos estilos, como diz Bloch, esquecem-se que certos estilos fazem parte de um todo
e um momento comum, que traz semelhanças entre escritos de um mesmo período,
mas que necessariamente não tem nenhum parentesco de originalidade. A busca
pela genealogia de manuscritos também levanta erros muitas vezes caríssimos. E
mais, o estilo de um determinado autor pode mudar, pois nunca existiu nenhuma
regra universal dizendo que um determinado autor só utilizava ou mesmo utiliza um
determinado modelo.
Por isso, a maioria dos problemas da crítica histórica consiste de fato em
problemas de probabilidade. A técnica mais sutil muitas vezes deverá declarar-se
incapaz de resolvê-los, não porque as testemunhas sejam apenas em alguns casos
dotadas de uma enorme complexidade, mas porque muitas vezes essas
testemunhas permanecem “rebeldes a qualquer tradução matemática”. E isso, ou
seja, aceitar a inocência de uma coincidência seria um absurdo para os eruditos,
segundo Bloch. Entretanto, se as fontes forem consideradas em uníssono por uma
semelhança apenas de fachada, pode ser o início de um passo em falso na atitude
de um historiador (2001, p. 120-121). Um exemplo clássico:
69

É célebre o exemplo da palavra bad, que, em inglês como em persa, quer


dizer “mau”, sem que o termo em inglês e o termo persa tenham
absolutamente uma origem comum. Quem, sobre essa correspondência
única, pretendesse fundamentar uma filiação pecaria contra a lei tutelar de
toda crítica das coincidências: apenas os números têm vez. (2001, p. 120).

Mas fica a questão: e a certeza científica? Citando Mabillon, Bloch (2001,


p. 122) afirma que a crítica dos documentos não é capaz de atingir a certeza
metafísica. Assim, Bloch (2001, p. 122) coloca que, limitando “sua parcela de
garantia a dosar o provável e o improvável, a crítica histórica não se distingue da
maioria das ciências do real senão por um escalonamento sem dúvida mais
nuançado nos degraus”. Por isso a certeza pode ocorrer, mas ainda sempre correrá
o risco de ser superada. Em suma, as fontes são base, desde que analisadas
criticamente, e não apenas ordenadas por leis imutáveis e puramente matemáticas.
Na conclusão do capítulo três, Bloch (2001, p. 124) lança concepções de
extrema importância, até para legitimar a importância do assunto em relação a
propostas de cursos que visam à formação de historiadores capazes de ensinar:

Em nossa época, mais do que nunca exposta às toxinas da mentira o do


falso rumor, que escândalo o método crítico não figurar nem no menor
cantinho dos programas de ensino! Pois ele deixou de ser apenas o humilde
auxiliar de alguns trabalhos de oficina. Doravante vê abrirem-se diante de si
horizontes bem mais vastos: e a história tem o direito de contar entre suas
glórias mais seguras ter assim, ao elaborar sua técnica, aberto aos homens
um novo caminho rumo à verdade e, por conseguinte, àquilo que é justo.

De fato, aqui Bloch levanta e percebe uma grande problemática: a


invisibilidade da crítica das fontes nos programas de ensino. Aqui, sem fazer
generalizações, o que fica é pelo menos a necessidade de uma noção da existência
da operabilidade dessa técnica científica, metódica, falível, mas que busca a
verdade do conhecimento e a construção de uma historiografia dos homens no
tempo.
Cabe aqui uma síntese recorrente sobre o que Bloch coloca como
essencial em relação à cientificidade da História e o perfil do historiador. Conclui-se
que a espinha dorsal dessa cientificidade é a presença do método científico. É nele
e em suas manifestações que a cientificidade da História pode ser assumida, e as
suas recorrências pedagógicas podem ser identificadas. Essas manifestações,
compreendidas aqui como categorias configuradas do método científico, tratam-se:
do esforço disciplinar e racional, no caso postura científica diante da História; da
70

conscientização de que a História se realiza como ciência não apenas em


declarações institucionais; questões epistemológicas e de formação docente no caso
da formação em História estão imbricadas.
Mais do que isso, em se tratando das manifestações desse método
científico no perfil do historiador, é possível categorizar: o caráter do historiador se
funde nos aspectos profissional, científico e pedagógico; sua postura diante da
história efetiva é a busca e escolha do seu objeto científico, que é “atitude humana”
no tempo e expressividade de toda essa busca; a linguagem expressiva dos
resultados deve ser científica e não artística, mesmo que seja narrativa, explicativa,
apresentada ou descrita; os estilos de expressão historiográfica, que não é a própria
História, mas apenas sua expressão, devem conter, a fim de que seja linguagem
científica, todos os passos da aplicação do método científico, inclusive as
dificuldades; os atributos do tempo, para o historiador, não se baseiam em medida
matemática, mas antes na antítese entre um continuum e uma perpétua mudança; é
dessa antítese que provêm os problemas da pesquisa histórica quando o historiador
toma consciência disso; o historiador sabe que o valor da interpretação das fontes é
imprescindível antes de apenas citá-las; os historiadores não trabalham isolados,
pois reconhecem a necessidade de outros historiadores socializarem seus trabalhos
científicos, visto que a História efetiva é universal e sua vida científica é breve diante
dessa universalidade histórica.
Diante dessa exposição, mas muito mais do que isso, da captação desses
conceitos e categorias em Bloch sobre a cientificidade da História e sua relação com
a formação de professores, cabe agora partir para a análise do PPP do curso de
História da UNESC e perceber na proposta as relações diretas, indiretas, presentes
e ausentes do método científico proposto pelo curso e a capacitação dos
historiadores, ou seja, o perfil do historiador que o curso se propõe a formar.
71

3 A CIENTIFICIDADE NO PPP DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNESC

Os alunos que chegam a UNESC trazem expectativas em relação a uma


Universidade que faz ensino, pesquisa e extensão. Isso nos faz pensar em
como elevar a qualidade do ensino diante de uma realidade tão dinâmica e
exigente. (UNESC, 2002, p. 4).

Nesta parte da pesquisa, como já mencionado no capítulo introdutório,


não haverá propostas de um melhoramento do PPP analisado e tão pouco
posicionamento valorativo a partir de opinião pessoal. Aqui, o que será apresentado
a partir das ferramentas oferecidas por Bloch é uma análise que procura identificar a
presença, e as formas dessa presença da cientificidade da História em sua
manifestação na proposta do Curso de História da UNESC e sua relação com a
formação do historiador, que também é formado para ser professor, segundo o PPP.
Afinal, trata-se de um curso de Licenciatura e Bacharelado.

3.1 O curso de História da UNESC e o surgimento do PPP

O curso de História da UNESC nasce em 1995, num processo de


transformação do antigo curso de Estudos Sociais para o curso de História. Esse
curso de Estudos Sociais tem a sua primeira turma a partir do primeiro vestibular em
1974. Segundo os elaboradores do PPP que fazem uma periodização, aquele curso
de Estudos Sociais possuiu dois momentos distintos. De 1974 a 1980 o curso
funcionou normalmente, com o detalhe de que em 1978 o vestibular para ingresso
ao curso foi suspenso por falta de interessados (UNESC, 2002, p. 13). O curso de
Estudos Sociais habilitava profissionais para ensino no 1º grau e OSPB e Moral e
Cívica para o 2º grau (UNESC, 2002, p. 13).6
O segundo período foi com o reinicio do curso no ano de 1987, indo até
1991. Esse período foi marcado por uma nova grade curricular e pela
obrigatoriedade do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Além disso, segundo o
PPP, essa segunda fase também foi marcada pela participação dos alunos em
6
Nesse parágrafo do PPP citado, o mesmo afirma que essa formação para atuação profissional
estava em conformidade com a legislação criada no contexto dos Governos Militares.
72

movimentos estudantis e de professores na instituição, pela ênfase numa visão


crítica de História e Geografia e pelas semanas acadêmicas e viagens de estudo.
Em 1992 novamente o curso de Estudos Sociais é suspenso. O motivo era
a possibilidade de transformar o curso de Estudos Sócias da então FUCRI
(Fundação Educacional de Criciúma), em processo de instalação da futura UNESC,
em dois cursos: História e Geografia. Em 1995 o curso de História é implantado.
Conservando os traços originários do projeto do curso de Estudos Sociais,
esse novo curso de História, além de conservar as disciplinas baseadas nas
matérias de História, Geografia e Pedagogia, deixou de exigir as monografias
(TCCs) no final do curso. Em outras palavras, esse novo curso era apenas de
Licenciatura. Para os organizadores do PPP, essa caracterização da ausência da
elaboração de um TCC por parte dos acadêmicos reforçou a “dissociação entre
ensino e pesquisa e, conseqüentemente, desestimulando a prática da pesquisa no
curso” (UNESC, 2002, p. 13). Apenas em 1997 é que será aberta uma nova
discussão para redefinir o projeto do curso e elaborar um Projeto Político-
Pedagógico. O curso de Licenciatura e Bacharelado em História da UNESC foi
implantado no primeiro semestre de 2001.
O Projeto-Político-Pedagógico do curso de História da UNESC apresenta
que há uma distância efetiva entre os projetos dos cursos de graduação e o
conhecimento sobre as propostas desses mesmos projetos entre os alunos e
também professores. Afirmando isso na introdução, o PPP de História (UNESC,
2002, p. 4) expressa:

Levando em consideração que os cursos de graduação são a base desta


universidade, parece-nos que não será possível cumprir os objetivos
traçados sem algumas mudanças. Na prática, a maioria dos professores/as
e alunos/as não conhecem o projeto político pedagógico dos seus cursos e,
conseqüentemente, não sabem se os objetivos estão sendo alcançados. O
curso é visto, pensado e operacionalizado exclusivamente pela grade
curricular, ou seja, de uma forma fragmentada. Não há mecanismos de
avaliação permanente com o propósito de verificar se o curso está
alcançando os seus objetivos.

Num primeiro momento, a leitura do texto introdutório do PPP revela que


há uma espécie de contradição quanto à expectativa do recém-chegado acadêmico
à universidade e dos acadêmicos que já estão cursando. Ou seja, antes de o futuro
acadêmico ser matriculado no curso, ele tem uma expectativa de universidade que
faz ensino, pesquisa e extensão. Entretanto, ao fazer o curso, desconhece o PPP do
73

próprio curso. Parece uma contradição que na realidade tem relação com o
conhecimento que cada acadêmico ou mesmo um professor tem sobre a
importância de um PPP e sobre o que é uma universidade. O que acontece, como o
documento pontua, é que acadêmicos e alguns professores conhecem algumas
graduações pela apresentação e operacionalização das grades curriculares e pelas
propagandas midiáticas sobre mercado de trabalho, financiadas pela própria
instituição.
O PPP (UNESC, 2002, p. 4) expõe que a função básica de um projeto
político pedagógico é projetar ações visando à superação de dificuldades e
obstáculos do presente, no intuito de se atingir metas a médio e longo prazos, a
partir de aspectos que justificam uma relevância social. Tais processos tanto na
elaboração, avaliação, e reconstrução devem ser permanentes, ressalta o
documento. Nesse momento, parece que a idéia de progresso constante em
processos de pensamento se faz presente e encontra intersecções com o
pensamento blochiano no que concerne a racionalidade na História.
No entanto, quando o PPP menciona que há ausência de mecanismos de
avaliação permanente com o propósito de verificar se o curso está alcançando os
seus objetivos, a crítica não se dirige apenas à instituição UNESC, mas ao próprio
curso, sobretudo no seu lidar com a própria concepção de cientificidade histórica,
afinal, como diz Bloch, os historiadores precisam dar provas da sua consciência
profissional, obviamente nesse caso ligados aos objetivos do curso tanto no ensino,
na pesquisa e na produção do conhecimento, como também na formação do
profissional de História. É perceptível, nesse caso, que há uma preocupação de
cunho ético por parte do PPP em esclarecer para a sociedade qual a função do
curso. Na concepção de Bloch, muito mais do que ética, a função de
“esclarecimento à sociedade” é um desdobramento prático do método científico em
História.
O PPP (UNESC, 2002, p. 4) afirma que o fundamental num projeto-
político-pedagógico “é o seu processo de construção, avaliação e reconstrução
permanente”. Na continuação, expõe que um PPP não pode ser confundido apenas
como um conjunto de atividades relacionadas ao ensino, não pode ser apenas um
pré-requisito de legalidade de um curso e não pode ser discutido inicialmente pela
grade curricular antes dos objetivos tratados, colocados como base para o PPP. Os
objetivos, segundo o PPP, seriam as definições do “perfil, com as competências e
74

habilidades do profissional que se quer formar”. A pergunta a ser feita nesse caso,
pensando na cientificidade da História, é: qual a base referencial, ideológica e de
método para a formação dos objetivos?
A crítica que o PPP faz é direcionada a uma estrutura de graduação
ligada a uma concepção de ensino dissociada da pesquisa e da extensão e que
favorece em demasia a transmissão do conhecimento, a prática da cópia, a cultura
da nota, etc. Por sinal, essa crítica é muito relevante. Nessa perspectiva, os
elaboradores deste PPP visualizaram a necessidade de repensar o PPP do curso de
História da UNESC. O que convém a partir de agora é perceber, nesse exercício de
novas propostas por parte desses organizadores, não as concepções pedagógicas
explícitas, mas referenciais de cientificidade em História nas suas manifestações
pedagógicas sejam eles quais forem e, no caso específico, sendo o objetivo central
desta pesquisa perceber suas principais manifestações de cientificidade, que
segundo o referencial blochiano é o que mais deve se exigir num programa de
graduação de História: que método científico é proposto e manifesto?

3.2 A manifestação da “cientificidade” na elaboração do PPP

No primeiro parágrafo da página cinco do PPP, coloca-se que todo o


pensar de um planejamento de um curso deve ser embasado numa compreensão
mínima das principais teorias da aprendizagem. E o corpo docente, segundo o texto
do PPP (UNESC, 2002, p. 5), deve

(...) saber em qual teoria está baseada sua prática pedagógica, pois o
problema principal não está na corrente que ele optou e sim no fato de não
saber em qual delas se fundamenta a sua prática. Ter uma compreensão
básica de como ocorre o processo de aprendizagem significa fazer uma
opção consciente pela teoria que considera mais adequada para nossa
realidade.

A preocupação em relação ao processo de ensino e aprendizagem é


apresentada como algo ligado com conhecimento de teorias pedagógicas, por parte
dos professores. Mas por que não ponderar também sobre o que a História como
ciência tem a dizer sobres os processos pedagógicos? Talvez porque para isso o
75

próprio PPP teria de assumir politicamente como vai lidar com as mais variadas
teorias da História. E nesse momento, especificamente, cabe observar, seguindo a
própria organização textual do PPP, a sua metodologia em sua organização. E mais,
quando diz que não importa a corrente pedagógica optada desde que se tenha uma
e com algum nível de consciência, que não é esquadrinhado pelo documento, isso
possibilita dizer duas coisas: 1) que optar por uma corrente pedagógica é mero
detalhe, pois o que vale é ter uma desde que se tenha consciência dela; ou: 2) a
corrente pedagógica escolhida por um professor não irá qualificar ou desqualificar o
ensino-aprendizagem, pois, em outras palavras, o processo apenas exige a escolha
de uma corrente conscientemente, os desdobramentos já estão traçados.
Na exposição da metodologia de elaboração do PPP, coloca-se a
problemática de se organizar um curso de graduação pela grade curricular.
Basicamente, segundo o documento, quando organizado a partir dessa ótica, um
curso se torna a própria grade, que acaba sendo fragmentada, desarticulada,
hierarquizada, etc.
Alguns elementos apresentados pelo PPP (UNESC, 2002, p. 6) são
imprescindíveis para a formação ou reformulação de um novo curso: estudos,
certamente de cunho pedagógico; debates entre os sujeitos que fazem parte do
curso, discentes e docentes; ter conhecimento sobre noções de currículo;
intercâmbios de informação com outras instituições de ensino; a observância dos
objetivos da instituição de ensino, no caso a universidade; a observância das
Diretrizes Curriculares da Legislação Nacional. Mas e o debate sobre que História
ensinar para formar? Nessa lista de elementos necessários para a elaboração de um
curso de História, a questão de qual História ensinar se manifesta pela ausência, ou
seja, essa ausência se apresenta como se a organização do curso não dependesse
de que História está-se ponderando.
O debate sobre esse PPP começou em 1997, mas somente em março de
1999, com a presença de alunos e professores, é que foi constituída uma Comissão
Coordenadora do Processo de Redefinição do PPP. Essa comissão era composta
por dois professores, o coordenador do curso, dois acadêmicos e o presidente do
centro acadêmico. O primeiro momento de discussão e início de elaboração do PPP
se deu em abril de 1999, e basicamente tratava com os professores e alunos acerca
da seguinte questão: “o curso que queremos. Nesse ínterim, havia um texto
76

preliminar constando os objetivos originais do curso e um texto básico sobre a


trajetória do ensino de História no Brasil e na UNESC” (UNESC, 2002, p. 6).
Aqui cabe uma ponderação. De fato a vontade democrática se faz
necessária em momentos em que decisões políticas se tornam urgentes. Todavia,
também é necessária ponderações de cunho pedagógico e epistemológico, muito
mais do que a vontade individual e coletiva, sobretudo conhecer ou ponderar, no
mínimo, sobre a dinâmica pedagógica do saber ou ciência que se quer ensinar para
formar. Perguntar aos alunos o que eles querem aprender e no que querem se
formar de fato é demonstrar respeito e ideal democrático, participativo, mas também
é correr o risco de apenas lidar com o senso comum. Em se tratando de ciência, ou
seja, da História como ciência, esta em seus processos de ensino e aprendizagem
deve gerar um salto de qualidade em relação ao senso comum, pois é justamente
pela sua cientificidade que ela opera e oferece formação.
Essa visão é colocada por Bloch (2001, p. 43) quando ele pontua que a
História, enquanto ciência, não pode ser discutida, ensinada e aprendida por puro
passa tempo. Em outras palavras, não pode ser discutida apenas nos primeiros
impulsos de curiosidade, sentimento que quase sempre acompanha os acadêmicos
que se engendram num curso de História. Ou seja, antes de colocar a História no
nível da opinião comum, consciente de toda limitação que isso implica, é perguntar a
própria dinâmica do método científico em História que tipo de ciência ela espera
fazer progressivamente (BLOCH, 2001, p. 44). E isso inclui obviamente o próprio
ensino, aprendizagem e formação.
Nessa dinâmica de elaboração do PPP, foram constituídos grupos de
trabalho entre professores e alunos sob a coordenação do professor em sala de
aula. Nesse ínterim, foi aplicado um questionário aos grupos com as perguntas
(UNESC, 2002, p. 7):
Quais as habilidades e competências que o aluno deve possuir quando
se formar?
O que é formar um aluno crítico, competente e compromissado?
Qual o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem?
O que e como fazer para que os trabalhos acadêmicos, as provas e as
próprias aulas sejam permanentemente um desafio ao crescimento, um
desafio ao crescimento do saber e como tal devendo acontecer de
77

forma prazerosa e não desgastante ou irresponsável usurpando


enquanto aluno a produção do colega?
Qual o papel do professor no processo de ensino-aprendizagem?
Que parâmetro usar para avaliar empenho e desempenho do corpo
docente?
Como tem sido nossa relação com a Universidade?
Que tipos de relações podemos desenvolver com a sociedade?
Onde o profissional deverá atuar depois de formado?
O curso de História deve ser de Licenciatura ou de Bacharelado?
Tais questões colocadas são de extrema importância para reflexão. No
entanto, nota-se mais uma vez a ausência da questão: que História ensinar? É como
se essa questão já estivesse resolvida ou então como se não fosse necessário
ponderar sobre ela com os alunos, sobretudo num momento de reelaboração de um
PPP de um curso de História.
O tempo para elaboração e etapas desse PPP se deu da seguinte
maneira, resumidamente falando: os relatórios dos questionários foram incorporados
na fundamentação de uma proposta para reformulação de um novo PPP; foi
elaborado um diagnóstico geral sobre o ensino de História no Brasil e um
diagnóstico sobre o ensino de graduação. Essa versão da proposta ficou pronta em
dezembro de 1999. Segundo o texto (UNESC, 2002, p. 7):

Em março de 2000, solicitou-se o parecer do Professor Norberto Dallabrida


da UDESC que, gentilmente, aceitou o convite para dar um parecer sobre a
proposta. Depois de discutido o parecer e incorporado algumas das
sugestões, estabeleceu-se um calendário de apresentação e discussão da
proposta com os alunos (matriculados e egressos), professores, Diretoria de
graduação e entidades educacionais da cidade. (...). A proposta foi
apresentada, discutida e aprovada em reunião de colegiado. Assim o novo
projeto já está sendo concretizado e não há dúvidas de que o mesmo
representa um significativo avanço em relação ao projeto anterior.
Entretanto é preciso instituir a prática de se avaliar constantemente os
objetivos e as diretrizes do Projeto-Político-Pedagógico do Curso, pois caso
contrário, continuaremos navegando em mar aberto, sem sabermos o rumo
e a direção da viagem.

Diante dessa exposição a partir dos momentos ocorridos em prol da


elaboração da proposta de um novo PPP no curso de História da UNESC, busca-se
agora, seguindo a organização metodológica apresentada pelo próprio documento,
analisar os pressupostos teóricos que foram objetivados e apresentados na
78

proposta. Nesse momento, a análise se objetiva em perceber os enlaces


epistemológicos da História e os objetivos do PPP sob a perspectiva das três
categorias sistematizadas a partir de Bloch sobre o método e suas manifestações
sobre: que História se manifesta no PPP; como essa História deve ser ensinada; que
historiador é formado.

3.3 A concepção de História e a relação com método

Há uma parte no texto do PPP que coloca explicitamente um conceito de


História. Tal conceito exposto observa certos pressupostos baseado numa
cosmovisão e princípios éticos:

Assim, não há apenas uma história, mas uma pluralidade de histórias, pois
a cultura humana sempre foi múltipla e sempre será. Isso significa, no
entanto, que devemos abarcar todos os conceitos e tendências como se
fossem neutros ou que todos têm algo a contribuir. Há tendência e
concepções que reproduzem preconceitos, perpetuam a opressão e
reforçam a desigualdade social. Por isso o curso de História da UNESC
explicita sua posição contrária a qualquer tendência e concepção que
propicie a dominação, a violência, a intolerância e o preconceito. E ao
mesmo tempo, abre espaços para vertentes que buscam a liberdade,
igualdade social, solidariedade e respeito pelas diferenças culturais, assim
como o respeito por crianças, mulheres, idosos, natureza, minorias étnicas,
etc. (UNESC, 2002, p. 18).

Conceber princípios de cunho ético numa concepção de saber ou ciência


de fato tem relevância. O PPP pontua esse detalhe, afinal a História mal utilizada
pode privilegiar a uns ou a outros, como sempre em alguns momentos acontece.
Não é à-toa que Bloch, em Apologia da História, escreve que, além das reflexões
sobre método, objetos e documentação histórica, a ação política merece auxílio da
História. Em outras palavras, como o próprio historiador coloca: “a história serve a
ação”. A idéia básica blochiana é que a História se consuma na ética e, como
observa Le Goff no prefácio de Apologia da História:
79

Marc Bloch, que detesta os historiadores que “julgam” em lugar de


compreender, não deixa por isso de enraizar mais profundamente a história
na verdade e na moral. A ciência histórica se consuma na ética. A história
deve ser verdade; o historiador se realiza como moralista, como justo.
Nossa época, desesperadamente em busca de uma nova ética, deve
admitir o historiador entre aqueles que procuram a verdade e a justiça não
fora do tempo, mas no tempo. (...). Compreender, portanto, e não julgar.
(2001, p. 29-30).

E Bloch (2001, p. 45), na Introdução de sua obra, alerta que:

Não se pode negar, no entanto, que uma ciência nos parecerá sempre ter
algo de incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor. Em
particular, como não experimentar com mais força esse sentimento em
relação à história, ainda mais claramente predestinada, acredita-se, a
trabalhar em benefício do homem na medida em que tem o próprio homem
e seus atos como material?

Por isso, deve-se reforçar também, no sentido blochiano, a compreensão


científica em se tratando de História, como ação de cunho ético. Logo a ética
começa na ação do ofício de historiador. Isso é colocado aqui pelo simples fato de
que muitas são as maneiras de compreender, mas nem todas essas maneiras são
ciências e nem todas essas ciências falam a mesma coisa e estão no mesmo
patamar de compreensão. Como conhecer e como produzir conhecimento deve
estar no mesmo nível de importância, do que o que fazer com esse conhecimento.
Em suma, a ética na História, é aplicada inicialmente pela utilização
racional de um método. Assim, a legitimidade intelectual, vem antes do agir. E
mais, para Bloch, a História não deve ficar presa apenas as exigências de
curiosidade do senso comum. Ela deve possuir uma independência científica. Idéia
essa, convém frisar, não abordada no PPP.
Obviamente, depois do alerta colocado sobre sua postura ética, o PPP
(2002, p. 18) traz o seu conceito de História, explicitando-o com os seguintes
termos:

Em termos de conceito, podemos assumir a História enquanto ciência que


estuda o homem no tempo e espaço. Investiga-se o que se passou,
produziu e inventou-se no passado. O historiador indaga como as
sociedades se organizavam, como se relacionavam, como produziam, como
estabeleciam suas hierarquias de poder, como enfrentavam seus problemas
individuais e sociais. A História investiga as transformações nas sociedades,
as continuidades, as rupturas. Ela estuda o passado para melhorar o
presente ou vislumbrar um futuro melhor para todos. A relação passado-
presente-futuro, no entanto, é indissociável, pois o homem olha para o
passado ou idealiza o futuro com os valores do presente.
80

Diante dessas colocações, algumas observações e reflexões ainda são


necessárias. Em primeiro lugar nessa definição sobre o que é a História, o PPP
assume que a História é uma ciência. Inclusive nessa definição cita, embora não
indique a fonte, a clássica oração de Marc Bloch (2001, p. 55): “ciência dos homens,
(...): dos homens no tempo”. Uma ciência, porém, não deve ser assumida apenas
por uma declaração. Ou melhor, pode ser assumida, porém isso ainda é pouco para
dizer como essa ciência é. Em outras palavras, define-se uma ciência pelo seu
método de operação. Dizer o que ela é não é suficiente.
Em segundo lugar, naquela definição, o PPP sugere que o passado,
mesmo sendo colocado como indissociável do presente e do futuro, ganha um
pouco mais de importância, de caráter de observação científica maior. Isso é
explícito nas quatro primeiras orações da citação. O alerta de Bloch faz-se
necessário também aqui. Pela lógica da definição apresentada e inspirada na
definição de Marc Bloch, o passado não pode ser encarado como objeto científico e
tampouco outra qualidade de tempo. E nesse ponto o PPP concorda com o
postulado blochiano. Aliás, Bloch (2001, p. 54) coloca ainda que nenhuma ciência é
capaz de abstrair-se do tempo. Mais do que se produziu, inventou, organizou no
tempo, o que a História tem como objeto é o homem, ou os homens, ou melhor: os
seres sociais. Como já citado no capítulo anterior, o autor escreveu (BLOCH, 1998,
p. 296): “A História é acima de tudo a explicação do presente pelo passado”.
Ainda nessa direção, na definição do PPP há também menção sobre a
investigação das continuidades, que a partir do pensamento de Bloch, trata-se da
noção de evolução histórica. Ressalta-se aqui que, no pensamento blochiano essa
noção de continuidade humana é inibida no aprendizado, quando se estuda
História tendo apenas como referência temporal e espacial, os ciclos e divisões
tradicionais. Afinal, o passado não pode ser tratado de modo preconceituoso como a
antítese do presente. Por mais diferente que pareça ser o presente do passado, o
que há se tratando de História, é continuidade humana.
Nesse sentido há outra observação sobre definição de História feita pelo
PPP. A ciência História, como o PPP a expõe, faz ponderações de grande
importância sobre o presente. O presente é, para essa definição, o lugar temporal
que pode ser melhorado pelo estudo do passado. No entanto, a partir dos
postulados blochianos, História, como ciência, captura os homens no tempo,
obviamente em se tratando de passado e presente. Ou seja, tanto passado como
81

presente são integrantes de algo que precisa ser aprendido tanto por professores
como por alunos, pois tudo está dentro da continuidade humana, e isso o PPP
explicita. O presente, por mais que possa ser melhorado, jamais deve ser a antítese
do passado (BLOCH, 1998, p. 296). Em outras palavras: os seres humanos no
tempo presente também são objeto científico da História.
Na concepção de História do PPP, é também percebido uma colocação
sobre as mudanças, transformações e rupturas nas sociedades. Tal colocação é de
muita propriedade para ‘o fazer’ ciência histórica e para a formação do cientista.
Aliás, seria de muita importância, fazer essa reflexão pedagogicamente. Bloch
(1998, p. 296), num artigo já citado nesta pesquisa, diz que na mudança, ou melhor,
no estudo da mudança é que está uma das razões do valor pedagógico que a
História possui no seu modo de operar. Porém, não há na definição de História no
PPP abordagem histórica sobre a noção do diferente. A História enquanto ciência
analisa as transformações e rupturas e assim, percebe que o mundo, mesmo na
continuidade humana, é diferente e variado. Por isso, como exemplifica Bloch,
quanto mais se estuda a História de civilizações distantes, no tempo e no espaço,
mais se apura no aluno de história a noção do diferente.
Diante dessas duas categorias blochianas, continuidade humana e
noção do diferente, é possível perceber no PPP que, na sua proposta de História a
ser realizada, deve haver a desmistificação da ideologia da evolução linear
progressiva das sociedades humanas (UNESC, 2002, p. 18). Visto que, toda e
qualquer periodização possui limites, como também possui limites as ideologias que
fomentaram tais periodizações (UNESC, 2002, p. 18-19):

Não há, portanto, nenhuma periodização neutra. As periodizações


configuram uma visão de mundo e uma concepção de história. Neste
sentido, a tradicional divisão quadripartite (história antiga, medieval,
moderna e contemporânea) adotada pelas universidades brasileiras é uma
construção européia, sobretudo da escola francesa. Trata-se de uma
periodização que foi construída a partir da história da Europa, configurada
por uma visão eurocêntrica do mundo.

A afirmação sobre a neutralidade temporal faz sentido, e faria mais ainda,


se houvesse uma afirmação mais categórica por parte do PPP em relação à noção
temporal da ciência Histórica que propõe ensinar. O PPP assume sua postura
crítica, a título de declaração, mas não expõe tampouco os limites da periodização
82

tradicional, como também uma ponderação sobre o que é usar ‘de forma crítica’, a
periodização tradicional.
Outra categoria bochiana que merece destaque em relação ao PPP e seu
posicionamento em relação ao que é História, é justamente o método crítico. O
lidar com as fontes. Não se faz ciência História sem fontes. Porém Bloch salienta
que haja fontes, e que estas sejam problematizadas, pois o historiador se coloca
como cientista justamente porque com o seu método consegue problematizar a
história efetiva, ao fazer a interpretação analítica. A interpretação analítica é um
elemento básico na História enquanto ciência. Ou seja, o investigar, nada mais é do
que saber lidar com fontes, não como um erudito, mas como cientista que tem a
capacidade, auxiliado pelo método crítico, de problematizar a história. A palavra
‘investigação’ utilizada na definição de História no PPP poderia ser mais bem
definida em relação a esse sentido.
Além disso, o diferenciar a história efetiva e a História enquanto ciência
não pode ser ocultado. Afinal, como Bloch afirma, a única história verdadeira é a
História universal. Nesse sentido, o PPP deveria diferenciar esses dois conceitos
empregados quase sempre a mesma palavra: história. Essa diferenciação deve ser
feita na forma de declaração, e também, principalmente, no lidar com o método. A
História se apresenta no método científico em operação, e a história efetiva é o
próprio acontecer da realidade.
Nesse momento, convém tratar da concepção de Educação do PPP, e a
sua relação com a História enquanto ciência, que o PPP objetiva-se a ensinar para
formar. As categorias blochianas novamente serão utilizadas.

3.4 A concepção de Educação e a relação com método em História

Nos três primeiros parágrafos do PPP de História da UNESC, no tópico


“Concepção de Ensino e Pesquisa”, são colocados argumentos sobre porque
condensar no curso de História a Licenciatura e o Bacharelado. No terceiro
parágrafo consta:
83

Para não incorrer nos mesmos equívocos, o curso de História da UNESC


7
concebe o ensino indissociado da pesquisa [e] vice-versa. Propõe a
formação do Professor-historiador independente da opção pela licenciatura
ou bacharelado. Propõe-se a criar estratégias para descondicionar a prática
da “cópia”, isto é, a prática de se copiar recortes de livros para montar
mecanicamente um trabalho acadêmico. Partirá do aluno “real”, o que
significa trabalhar com o perfil predominante dos alunos, levando-os a
adquirir hábitos de leitura, estudo, interpretação e produção de textos.
Estimulará o planejamento do ensino de forma interdisciplinar com o
propósito de combater a fragmentação e o isolamento das disciplinas
(UNESC, 2002, p. 19).

O PPP é explícito no que concerne à sua posição diante dos problemas


que são gerados quando um curso de História é dicotomizado entre Licenciatura e
Bacharelado. De fato, na História, à luz da perspectiva blochiana, o ensino e a
pesquisa não podem ser concebidos separadamente. Mas aqui cabe uma pergunta
básica: Por quê?
A resposta que o PPP dá tem a ver com os resultados constatados em
outros cursos ao longo da constituição de graduação das instituições no Brasil,
conforme sua análise. Os resultados são: empobrecimento da qualidade dos cursos,
com algumas exceções; apenas o desenvolvimento de habilidades de transmissão e
cópia de conteúdo já pronto; produção de conhecimento, experiência, e tecnologia
dissociada e inacessível à comunidade; surgimento de grupos de pesquisadores
alojados em universidades e comerciantes de conhecimento produzido.
Mas por que não perguntar a própria História e seu método, por que não
se pode dissociar o ensino da pesquisa? Propor a formação professor-historiador é
ainda conservar uma dicotomia, apenas agora engendrada por uma proposta
político-pedagógica. De fato, a História, como tal, necessita da interdisciplinaridade
não só nas propostas educacionais, mas nas de pesquisa também. Esse é um dos
maiores postulados de Marc Bloch.
Não existe outra forma de ser historiador se ele não der aula, não
socializar o que pesquisou e o que sabe sobre pesquisa histórica, não formar, não
prestar contas do produzido, não prestar contas de suas concepções de método e
intrinsecamente de ensino. A História para Bloch, em seu modo de operar, deve
sempre apresentar seu método de formação.
E é com o seu método de pesquisa que o professor vai poder ensinar a
explicação de textos, testemunhas, métodos de interpretação, noções de tempo e

7
Esta conjunção não está no texto original, possivelmente devido a um erro de edição.
84

quem é o historiador. Esse “pedagogo”, como diz Bloch, tem a obrigação de ensinar
a interpretar fontes. Em outras palavras: quem quer ensinar História, formar
alunos em cientistas da História, tem que ser historiador. Bloch chega a colocar
que, quando não se exige capacidade de interpretação histórica por parte de um
professor de História, o sentido de observação histórica perde força, ou seja, o
olhar histórico apenas se dá no nível do “ouvir falar”, ou, “o professor me disse”. Mas
não basta o professor dizer, como se suas palavras fossem cheias de autoridade por
ele ser professor. Ele tem de apresentar os mecanismos da construção dos
conhecimentos sobre determinada problemática histórica, mostrar porque
determinado conhecimento é conhecimento histórico-científico ou não.
Além disso, a educação em História deve aproveitar conceitos de si
mesma enquanto ciência em seus processos pedagógicos. O PPP parece aproveitar
isso, no que tange o conceito blochiano de noção do diferente e continuidade,
quando o PPP propõe que em sua grade, com as disciplinas tradicionais da História,
não haverá pré-requisitos. Criticamente, o PPP (2002, p. 26) se posiciona afirmando
que:

O curso de História entende que a noção de pré-requisitos, como foi posta


tradicionalmente nas grades curriculares, reflete uma concepção de ensino
mecanicista e linear. O aluno praticamente era obrigado seguir um caminho
curricular rígido-progressivo, enquadrando-o dentro da concepção de ensino
que o percebe como uma folha em branco, que precisa ser preenchida.
Ignorava-se sua experiência e restringia sua autonomia. Neste sentido o
Curso de História optou por estimular a autonomia dos alunos, deixando sob
sua responsabilidade a escolha por uma parte do caminho a ser seguido

No entanto, se tratando das disciplinas que tratam explicitamente de


Ensino e Pesquisa, são pré-requisitos sucessivamente: Teoria da História I, Teoria
da História II, Metodologia Científica da Pesquisa, Metodologia e Prática da
Pesquisa Histórica I, Metodologia e Pratica da Pesquisa Histórica II, Didática Geral I,
Didática Geral II, Filosofia da Educação, Metodologia e Pratica do Ensino I,
Metodologia e Pratica do Ensino II e Metodologia e Pratica do Ensino III. Se tratando
da formação tanto na pesquisa como ensino, os pré-requisitos são exigidos, sendo
que os ligados a cientificidade da História vem antes das disciplinas tidas como
pedagógicas.
Nesse sentido parece haver certa incoerência, ou melhor, certa confusão,
pela simples questão: por que os discentes são aptos e dotados de autonomia para
85

trilhar seu próprio caminho no que tange as disciplinas tradicionais da História, e no


que tange as disciplinas teóricas e pedagógicas acima mencionadas, esse mesmo
aluno não está apto? O PPP não oferece uma discussão sobre essa questão. Aliás,
o PPP apenas assume que se trata de divisão didática: “Embora haja uma divisão
didática entre as disciplinas de História, de ensino e das áreas complementares,
compreende-se que todas as disciplinas são indissociáveis do ensino e da pesquisa”
(UNESC, 2002, p. 26).
No entanto, pode ser conjecturado um motivo: não existe a consciência
de que as disciplinas teóricas, metodológicas e pedagógicas não são entendidas
como necessárias no processo de formação nas disciplinas tradicionais da História,
para o PPP.
Ainda tratando desse assunto, a categoria blochiana baseada no método
regressivo pode ser evocada. Para Bloch o conceito do método regressivo em
História, tem haver com a idéia de partir do mais conhecido para o menos
conhecido. Transpondo essa categoria a realidade do curso de História da UNESC,
as disciplinas tanto teóricas como pedagógicas podem ser vistas, revistas,
consideradas nas disciplinas tradicionais, e vice-versa, desde que se parta do que
mais conhece para o que menos se conhece. O fato de haver ou não haver pré-
requisito é postura política que vem antes da pedagógica, pois de fato e verdade
todas essas disciplinas estão interligadas por um único eixo central: A História
enquanto ciência.
Continuando, em relação ao processo pedagógico, o PPP assume uma
postura crítica e contrária àquele tipo de aprendizado caracterizado como ensino
tradicional baseado numa relação passiva entre professor e ensino. Em
contrapartida, o PPP entende a aprendizagem como resultado de uma relação
dialética entre alunos e professores e mediada pelas condições de estrutura da
instituição (PPP, 2002, p. 20). Mais uma vez, coloca-se a responsabilidade do
ensino na relação professor e aluno e nas condições de estrutura da instituição, mas
se tratando da História, essa parece não ter nada a dizer sobre o ensino. Porém
Bloch traz o alerta que, é o método crítico que deve ser responsabilizado,
operacionalizado na formação de um historiador. Por isso, o historiador é pedagogo,
pois lida com o método crítico, que possui um programa de passos e trabalhos, e
que deve ser socializado, pois nesse programa proposto por Bloch, o ‘prestar
contas’, é um dos passos inegociáveis do método crítico.
86

Logo após, no penúltimo parágrafo, o curso se posiciona sobre o que é


pesquisa e menciona a importância do método científico (2002, p. 20):

Por pesquisa, o Curso concebe todo o ato criativo de estudo, investigação,


descoberta e produção acadêmica. A pesquisa em nível de graduação não
pode ter o mesmo grau de exigência de um curso de pós-graduação,
embora toda a pesquisa dita científica precisa seguir alguns princípios
básicos. Na graduação, a pesquisa não precisa ser necessariamente
inédita. Neste sentido, uma pesquisa bibliográfica na graduação pode não
resultar ou acrescentar nada de novo ao mundo científico, mas pode
representar uma grande descoberta e uma grande aprendizagem para um
aluno/a de graduação.

E continua:

A pesquisa, quando orientada e desenvolvida pelo método científico,


propicia descoberta, criação e construção de conhecimento. No entanto, a
pesquisa não pode ser confundida com a tradicional prática da “cópia”, na
memorização e da reprodução mecânica e fragmentada de conteúdos. A
pesquisa é valida quando propicia descoberta ou redescoberta, criação ou
recriação, elaboração ou reelaboração. (2002, p. 20).

Visualizando tais citações sobre o método científico, convém agora,


seguindo ainda algumas das categorias sistematizadas do pensamento de Marc
Bloch, perceber pelas manifestações do PPP qual o perfil do historiador que o curso
objetiva formar, lembrando que a presença do método científico se manifesta pela
própria explicitação desse método, pelo conceito de História, pelo processo ensino-
aprendizagem e pela figura do historiador que forma e que se quer formar.

3.5 Historiador: professor, pesquisador ou cientista?

Se tratando do aprendizado do método científico, o PPP coloca que:


87

O Curso de História da UNESC também almeja a formação de alunos/as


críticos e, por isso, propõe-se a desenvolver uma linha pedagógica crítica.
Entretanto explicita-se a “crítica” que não se confunde com a “queixa”, tão
comum nos meios escolares e universitários ainda hoje. Por crítica, entende-
se um conjunto de posturas e procedimentos metodológicos que
desmistificam o senso comum, que revelam discursos ideológicos e que
elucidam as contradições de uma dada realidade. O exercício da crítica nos
estimula a desenvolver habilidades para pensar, analisar e fazer. A habilidade
de fazer crítica, de produzir um texto crítico ou elaborar uma metodologia de
ensino coerente requer o poder de argumentação, contextualização e
fundamentação teórica. (UNESC, 2002, p. 20).

Na citação acima, o Curso afirma que o acadêmico de História aprende a


ser crítico pelo domínio dos elementos que expressa, em outras palavras, aspectos
da cientificidade da História. São os elementos dessa criticidade: procedimento
metodológico que desmistifica o senso comum e elucida detalhes da realidade;
habilidades para pensar, analisar e fazer; capacidade de escrita baseada em
argumentação, contextualização e fundamentação teórica. Ou seja, aqui fica
elucidado que, na concepção do Curso de História da UNESC, crítica tem a ver com
cientificidade.
Esse senso de criticidade, porém, deve constar de condições para que os
acadêmicos atrelem-se a uma fundamentação teórica. Ou seja, o que está em jogo é
justamente a Teoria da História ou as disciplinas ligadas a ela, como Metodologia da
Pesquisa Histórica, e como elas abordam as mais variadas correntes da
historiografia e seus métodos. Por isso, apenas citar, mencionar determinadas
correntes não é suficiente para garantir a aproximação do acadêmico com
determinada corrente historiográfica. Além de citar, essas disciplinas devem
trabalhar o modo de operar do método científico em História, como é enfatizado
no pensamento blochiano. E caso não haja tempo hábil, que se adote uma como
referência e a aproxime com outras correntes no sentido de perceber as nuances e
diferenças. Convém frisar aqui que essa não é uma proposta, mas apenas um alerta
no sentido de que haja a exposição de determinado método científico em
operação, e não apenas rotulações no sentido de dizer e expressar partidarismos
científicos. O Curso, pelo menos em seu PPP, não apresenta em nenhuma de suas
disciplinas a possibilidade de um acadêmico vislumbrar um método científico em
operação.
Por exemplo, nas ementas dessas duas disciplinas, embora a primeira, a
Teoria da História, seja pré-requisito para se cursar Metodologia e Prática da
Pesquisa Histórica, parece que não há definição dos planos a seguir para que as
88

disciplinas operem em conjunto contemplando exponencialmente o aprendizado de


determinado método científico. Desse modo, o curso apresenta (UNESC, 2002, p.
28-29): Teoria da História I: Mito-memória e história do pensamento da Antiguidade
clássica. Cristianismo e concepção de tempo. Idade Moderna e história como
disciplina. Correntes historiográficas do século XIX: positivismo – liberalismo –
marxismo – empirismo – historicismo; Teoria da História II: Historiografia do século
XX. Annales, historicismo e neomarxismo inglês, Frankfurt. Novos objetos e
abordagens. Foucault, Nietzche. Pós-modernismo. A nova história cultural. Produção
historiográfica brasileira e catarinense, algumas contribuições; Metodologia e
Prática da Pesquisa Histórica – TCC I: Levantamento de questões para pesquisa.
Problematização do tema e elaboração do projeto. Escolha de orientadores;
Metodologia e Prática da Pesquisa Histórica – TCC II: Pesquisa orientada.
Seminários de orientação. Redação e defesa pública da monografia diante de banca
de professores.
Marc Bloch defende a idéia da exposição do método, justamente porque,
quando alunos aprendem a fazer História, ou seja, aprendem que historiografia se
faz com método crítico, científico, a História irá cumprir seu papel pedagógico. Cabe
aqui ressaltar que o PPP elenca aptidões que os acadêmicos devem desenvolver.
Por isso, caminhando para o final desta análise, interessa perceber se essas
aptidões estão ligadas ao aprendizado do método científico em História.
A intenção aqui é compreender, pela análise do PPP, as características
que um historiador deve possuir, tendo uma visão de história efetiva, da História
como saber científico e qual a sua função como historiador no que tange: seu papel
como conhecedor das mais variadas historiografias; sua aptidão para produzir
historiografia a partir de um método científico; e seu papel como professor que
ensina historiografias e seus processos de construção.
Em primeiro lugar, neste momento há que se relembrar o que Bloch
realça sobre a importância do uso da racionalidade para a construção do
conhecimento histórico e o conhecimento sobre construções historiográficas. Em
uníssono, o curso de História da UNESC também propõe tal aplicação, como já foi
visto, quando apresenta e afirma que a História é uma ciência. Além disso, o próprio
PPP (2002, p. 23) explicita no tópico três, tratando das “Competências e
Habilidades do Profissional desejado: Diferenciar criticamente as tendências
historiográficas, de modo a distinguir as diferentes narrativas, metodologias e
89

teorias”. Essa aptidão tem a ver com o historiador professor e pesquisador, como o
PPP aborda.
Em segundo lugar, para Bloch o historiador deve ser apto a ter atitude
diante da história efetiva. Essa atitude é sobre a escolha do objeto e a capacidade
de observação. Não é incomum alguns jovens interessados na História confundi-la
com a história efetiva, e declararem: “Tudo é história” ou “tudo faz parte da história”.
No entanto, o historiador sabe que nem tudo, para a História como ciência, é objeto
dela. O historiador deve ter consciência de que o seu objeto não é o passado. A sua
escolha, a sua observação está ligada à atitude humana de uma sociedade, de um
grupo, ou seja, do ser humano. Obviamente, essa observação se dá a partir de uma
caracterização temporal. O PPP não menciona explicitamente tal postura nos
objetivos do curso. No entanto, é possível captar no documento que é nessa direção
que o curso pensa em formar o profissional de História. Por exemplo (UNESC, 2002,
p. 18):

A definição de um conceito de História está relacionada com nossa visão de


mundo, nossa concepção de homem/mulher. O conceito construído ou
assumido dependerá de como vemos e compreendemos o funcionamento
das sociedades. No interior de cada sociedade há uma ampla diversidade
cultural e ideológica. Assim, não há apenas uma história, mas uma
pluralidade de histórias, pois a cultura humana sempre foi múltipla e sempre
será.

O PPP entende, embora não apresente sistematicamente, que a ênfase a


ser dada pela ciência História sobre a história efetiva é o ser humano e suas
construções sociais e ideológicas. Essa ênfase no ser humano é o princípio da
observação histórica para a captação de um objeto científico, ou seja, de um
problema histórico. E isso também é imprescindível para que um professor de
qualquer das disciplinas tradicionais da História, como Pré-história, História Antiga,
História Medieval, História Moderna, História da África, História da Arte, História
Contemporânea, tenha em seu cabedal de conhecimento. Ou seja, não é apenas
aptidão de pesquisadores, visto que todas essas disciplinas são conhecimentos
produzidos e repassados por historiadores, ou mesmo por aqueles que pensam ser
historiadores. Por isso um professor de História, não pode deixar de ser um
investigador, dentro de sala de aula. Como Bloch elucida, o professor de História
leciona justamente por possuir o ofício de historiador. E pela lógica bochiana, por ser
historiador é apto para ensinar.
90

Em terceiro lugar, um historiador deve saber se expressar. Dito de outro


modo, o historiador deve saber expressar sua ciência, os resultados de suas
pesquisas e os resultados das pesquisas de outros. A História precisa ser descrita,
apresentada, narrada, explicada, e isso são ferramentas de exposição, e não a
própria História. Assim, o historiador deve ter aptidões que o leve a socializar e
diferenciar os resultados de pesquisas em História com seus alunos. Por essa ótica,
o PPP (2002, p. 23) também concorda com o postulado blochiano, quando diz que o
historiador deve:

Conhecer o referencial teórico-metodológico básico da história,


familiarizando-se com os conceitos e categorias da historiografia nacional e
internacional; e: Dominar procedimentos básicos do fazer pesquisa histórica,
desde a formulação do projeto de pesquisa, manejo de fontes e produção de
trabalhos monográficos.

Outra especificidade que o historiador, que tem a obrigação moral de


ensinar, deve ter em suas habilidades é noção de tempo. O tempo não é mera
marcação cronológica e nem se resume ao calendário cristão. E mais, não é algo a
ser decomposto e estudado, pois ele não pode ser resolvido em qualquer tentativa
de uniformização. Assim, o tempo para Bloch, como exposto no capítulo anterior, é
uma oscilação entre o que acontece “longitudinalmente”8 e o “momento”, expressão
preferida de Bloch, em vez de “acontecimento”. Quem mediará isso, é a tomada de
consciência, ou seja, a figura do historiador. Mas nisso há um alerta problemático: a
crença de que as origens, ou o passado, explicam melhor do que outros tempos.
Bloch explicita o papel do historiador colocando que ter ignorância do
passado limita o conhecimento do presente; o ser humano muda, não só em seu
espírito, mas também em seu corpo, ou seja, na longa duração as mudanças
ocorrem inclusive no ser humano e nos seus modos de existência; o historiador deve
ter consciência de que ele sozinho não dá conta de implementar seus
conhecimentos históricos, tamanha a generalidade e complexidade da história
efetiva. Esse historiador sabe que a sua comunidade, a comunidade científica, é
tão importante quanto a sua noção de tempo. Os objetivos específicos do PPP
(2002, p. 23) colocam que o curso visa a: “Ampliar e estimular a inserção
institucional dos docentes e discentes com a comunidade científica regional e

8
Fernand Braudel, representante da segunda geração dos Annales, chama os acontecimentos
longitudinais de “longa duração”.
91

nacional”. Parece que nesse objetivo do PPP, há uma preocupação em


conscientizar os futuros historiadores de sua dependência a uma comunidade
científica, como Marc Bloch também aborda.
Falando ainda sobre a noção de tempo, no que concerne a essa
capacitação, o PPP afirma a sua importância, mas não explicita esse atributo no que
tange as Competências e Habilidades do Profissional desejado. Mesmo sendo
mencionado como matéria de ensino na Teoria da História I (UNESC, 2002, p. 29), a
descrição do processo de aprendizagem sobre essa noção de tempo histórico não é
abordada em nenhum momento pelo documento.
Nesse mesmo sentido, o PPP também menciona a importância para o
historiador de ter noção sobre como “lidar com as fontes”, das mais variadas e
diferenciadas em nível de complexidade. Não expõe, porém, as nuances de como
lidar com essas fontes, esses testemunhos no processo ensino-aprendizagem. Para
Marc Bloch, a análise dos testemunhos, além de ser requisito essencial para
História, é requisito para os processos de formação dessa ciência. O PPP trata
apenas de dizer que o historiador, e assim o curso objetiva a ensinar, deve ser apto
no manejo com as fontes. Mas até onde vai essa aptidão? O curso não responde no
PPP. O manejo com as fontes é de cunho cronológico, positivista ou analítico
(problematizador, no sentido blochiano)? O curso também não responde. Bloch,
quando critica o positivismo, fala que as fontes não falam por elas mesmas, não é
suficiente publicá-las às centenas e achar que isso é pesquisa histórica. O PPP
concorda com Bloch. No entanto, não oferece uma descrição ou projeção de como
lidar com as fontes históricas no sentido de: identificá-las, analisá-las, criticá-las,
problematizá-las e saber o distanciamento que se deve ter delas. Bloch tem isso
para um historiador como um dos pilares básicos de sua formação, tanto para
ensinar, como para produzir conhecimento. Ou seja, não existe método em História
sem a crítica dos testemunhos, e tão pouco ensino, se este não visa a descrever o
processo de análise das fontes numa historiografia que está sendo socializada em
sala de aula.
Em suma, o historiador, no que tange à sua capacitação profissional, tem
de saber analisar as fontes de seu recorte temporal em amplas localizações, sejam
documentais, materiais e historiográficas, caso essas existam para que, como
cientista, possa produzir conhecimento ao analisá-las e automaticamente legar esse
conhecimento processado pela análise à socialização, ao ensino.
92

A profissionalidade de um historiador não deve ser engendrada, a uma


comunidade científica e aos educadores de História, apenas por disciplinas tidas ora
como científicas, ora como educativas. Esse engendramento se dá no modo como
esse historiador opera a sua ciência, ou seja, no modo como opera os mecanismos
de seu método científico.
Nesse contexto, também há no PPP menção sobre a importância das
disciplinas referendadas do campo da educação e que caracterizam o curso como
Licenciatura. São elas: História da Educação, Filosofia da Educação, Didática Geral,
Psicologia da Educação, Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e
Médio, Prática de Ensino sob a Forma de Estágio Supervisionado. O PPP (2002, p.
125) pontua sobre a Estrutura, Habilitação e Carga Horária:

O curso de História da UNESC está estruturado para formar o


Profissional em História. O currículo está organizado em oito
semestres (quatro anos), com uma entrada anual, integralizando uma
carga horária total de 2.880 horas/aula. As áreas que formam a grade
curricular formam três conjuntos: a) Conhecimentos
históricos/historiográficos; b) Conhecimentos pedagógicos; c)
Conhecimentos gerais de sociologia, Filosofia, Arqueologia, Ecologia
e Antropologia.

E também:

O Estágio e o TCC são atividades indissociáveis, sendo uma


preocupação de todas as disciplinas. São obrigatórios e começam a
ser desenvolvidas formalmente a partir da 4ª fase. Para o estágio está
previsto um total de 306 horas/aula e para o TCC mais 216. As
temáticas do Estágio e do TCC podem ser as mesmas, sendo que
este último deverá ser defendido publicamente perante uma banca
composta por três professores, conforme o regulamento da
instituição.

Nessas duas citações, é evidente a preocupação dos organizadores do


documento em não dissociar o Bacharelado da Licenciatura no curso. Fica também
evidente que essa não-dissociação se dá por uma soma, um adequamento
aritmético no que concerne às disciplinas de Licenciatura somadas as do
Bacharelado e disciplinas do campo das ciências sociais e econômicas. Disso,
convém pontuar as seguintes reflexões.
Primeiramente, é possível fazer uma crítica no que se refere a esse
engendramento. Seria mais pedagógico, pela leitura de Bloch, não apenas somar
disciplinas oficialmente da educação, afinal a ciência História em seu modo de
93

operar, segundo Bloch, já o é pedagógica. Mas sobre isso, até onde a pesquisa se
propôs a ir, já houve ponderações.
Em segundo lugar, convém levantar os pontos positivos acerca desse
engendramento, para finalizar a análise. Bloch coloca explicitamente, e o movimento
dos Annales atesta esse postulado nas duas gerações seguintes, que a busca de
auxílio em outros campos do saber é aceita, e até certo ponto necessária. O auxílio
da Psicologia, da Filosofia, da História da Educação, da Didática Geral, do Estágio
Prático de Ensino entre outras disciplinas é bem-vindo. Obviamente, tais disciplinas
lidam com objetos que não são os da História, e tão pouco algumas delas são
saberes científicos, mas, possibilitam interações que visam a qualificar o ensino de
História, ou melhor, o acesso por parte dos alunos ao campo científico da História.
Tais auxílios são necessários desde que não coloquem, por puro discurso
institucional, o método científico em História como ineficaz para a formação do
historiador. São disciplinas de auxílio, desde que não ocultem ou desestruturem a
espinha dorsal da História, que é o seu método em suas manifestações.
Do mesmo modo, são necessárias as disciplinas de Economia,
Sociologia, Ecologia, História da África, História da Arte e, no caso dessa realidade
específica, a Língua Portuguesa, tão essencial para as expressões historiográficas,
que muitas vezes podem ser comprometidas não por uma pesquisa ruim, mas pelo
uso desse vernáculo de forma desqualificada. Tais disciplinas são auxiliadoras,
sobretudo as sociais. Tais disciplinas são um legado de Marc Bloch, principalmente
porque essas interações revolucionaram o campo científico da História no início do
século XX, segundo os Annales.
Assim sendo, parte-se neste momento para algumas considerações e
ponderações necessárias para finalizar o que foi proposto na pesquisa.
94

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Curso de História da UNESC, depois de algumas mutações ao longo de


sua história, hoje se revela como um curso de muita importância não apenas para os
que nele estudaram e estudam, mas também em relação à Universidade do Extremo
Sul Catarinense e a tudo que ela abarca.
Um curso que se objetiva a formar professores e pesquisadores assume
grande responsabilidade para si. E de fato conclui-se que o curso de História da
UNESC busca esse objetivo com seriedade e reflexão teórica. É desse modo que o
seu Projeto Político-Pedagógico releva suas intenções.
Por isso mesmo, esse PPP serviu para uma análise que transcende
apenas discussões de cunho institucional. Na realidade, a análise até aqui realizada
percebeu que um curso não pode se garantir sozinho apenas pelos investimentos
econômicos oferecidos e imposições políticas, e tão pouco por declarações
institucionais. Não é apenas isso que garante sua existência e seu propósito para
formar profissionais dedicados à pesquisa e ao ensino.
Existem outras forças de influência sobre um curso, a começar pelas
escolhas no campo do conhecimento que auxiliarão nessa função do ensino. No
entanto, o que mais se espera de um curso que visa formar historiadores é como ele
se deixa influenciar pela própria ciência que se destina a ensinar.
Pela análise a partir dos postulados blochianos abordados no PPP,
conclui-se que o Curso de História da UNESC de fato objetiva-se a formar
historiadores conscientes e se deixa influenciar pelo que ensina. Todavia, diante de
toda a trajetória e dificuldades na história do ensino superior de História no Brasil, da
qual o curso de História da UNESC faz parte, algumas conclusões são lógicas e
devem ser pontuadas a partir da análise realizada.
Primeiro, o fato de o curso de História da UNESC ter como diretrizes
aquelas oferecidas pelo Ministério da Educação a todos os cursos de História no
Brasil. Nesse sentido, há um eixo que todos os cursos devem seguir. Assim,
qualquer destoar desse eixo, corre-se o risco de se ter, aos olhos alheios, uma
desqualificação do curso.
Em segundo lugar, um hibridismo teórico acaba sendo percebido nos
enlaces propostos pelo curso de História da UNESC. Em sua proposta, alguns
95

pressupostos são de cunho positivista, e é certo que isso é devido às obrigações


diante da pauta do ensino superior imposta pelas diretrizes curriculares dos cursos
de História no Brasil. O clássico exemplo é a divisão clássica da História em Pré-
História, História Antiga, História Medieval, História Moderna. Quanto a isso, o PPP
(UNESC, 2002, p. 19) traz a sua justificativa:

Em relação à periodização geral, o Curso de História da UNESC


compreende os efeitos pedagógicos e ideológicos desta divisão.
Entretanto, entende que seria um risco estratégico tentar romper
isoladamente com esta periodização, uma vez que praticamente
todas as instituições de ensino formal e informal do Brasil ainda
seguem esta forma de divisão histórica. Por isso, optou-se por
mantê-la, mas usá-la de forma crítica, extrapolando as fronteiras
rígidas que determinam o início e o fim de um período histórico,
incluir temáticas relacionadas à História do Brasil e outros assuntos,
que não se restrinjam aos “grandes” temas políticos e econômicos.

Por outro lado, alguns pressupostos dos Annales são percebidos, a


começar pela própria definição da História como ciência, a partir de uma citação não
referendada de Marc Bloch, e pelas posturas críticas que questionam a crença de
cunho positivista, isto é, a evolução linear das sociedades. Isso revela, sem dúvida,
um hibridismo, mesmo que não proposital, de correntes teóricas.
E em terceiro lugar, conclui-se a falta de um posicionamento explícito
quanto a que História ensinar, e principalmente como lidar com o método científico,
pois é este em operação que ditará a qualidade da ciência e sua capacidade de
formar cientistas, profissionais e educadores. Há ponderações sobre a importância
do método científico, sobretudo para pesquisa. Entretanto, além de não haver um
posicionamento crítico quanto ao melhor método, o ou que mais da conta de buscar
a verdade através das problematizações históricas, tão pouco há uma reflexão sobre
qualquer método em especial imbricadamente com a arte de ensinar História.
No entanto, cabe também ressaltar que o curso em questão é novo e está
apto, como ele mesmo expõe, a melhorar, a se aprimorar, a rever posturas, políticas,
educacionais, institucionais e até mesmo o modo de lidar com o conhecimento.
Desse modo, aqui foi percebida uma intersecção com o pensamento blochiano de
que tudo, em se tratando de História como saber científico e suas reverberações,
deve progredir racionalmente, sem nunca chegar a um apogeu final. Em outras
palavras, História, como saber científico, não se faz institucionalmente. História se
faz com método científico e crítico, com produção do conhecimento, com a
96

socialização de historiografias e seus processos de construção, com o auxílio de


outros campos de conhecimento (sociologia, pedagogia, antropologia, psicologia,
medicina etc.) e com a formação de profissionais aptos a produzir conhecimento e
formar espíritos que trabalhem nessa direção.
Dentre tudo que foi ponderado nesta pesquisa, uma consideração é
preciso ser dada neste momento: este trabalho não é infalível. Desse modo, o que
se espera dentro em breve é a sua superação.
97

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(Mestrado em História) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007.

CAIMI, Flávia Eloisa. Processos de conceituação da ação docente em contextos


de sentido a partir da Licenciatura em História. 2006. 272 f. Tese (Doutorado em
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CARVALHO, João Gilberto da Silva. Construindo o saber histórico em sala de


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Educação) - Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis, 2002.

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Campinas, Campinas, 2005.

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do curso de Licenciatura plena em História da Universidade Estadual do Piauí.
2000. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Fundação Universidade Federal
do Piauí, Piauí, 2000.

MESQUITA, Ilka Miglio de. Formação de professores de História: experiências,


olhares e possibilidades (Minas Gerais, anos 80 e 90). 160 f. Dissertação (Mestrado
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100

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.

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Criciúma, 2002.
101

ANEXO
102

ANEXO A – PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO CURSO DE HISTÓRIA

CADERNO 01
PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
DO CURSO DE HISTÓRIA

Bacharelado e Licenciatura
Coordenador: Prof. João Henrique Zanelatto
Coordenador Adjunto: Prof. Carlos Renato Carola
Secretária: Cleusa Espinhola Ramos
Revisão Ortográfica: Profª. Leila Lourenço

Comissão do PPP
Prof. Carlos Renato Carola
Prof. Dorval do Nascimento
Prof. Nivaldo Aníbal Goularte
Acadêmico Fernando Mazuchtt

2002

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