Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Quem sou?
Freqüentemente me dizem que saí do
confinamento de minha cela tranqüilo, alegre e
firme como um senhor de sua mansão de campo.
Quem sou?
Freqüentemente me dizem que costumo falar
com os guardiões da prisão confiada, livre e
claramente, como se eu desse as ordens.
Quem sou?
Também me dizem que superei os dias de
infortúnio orgulhosa e amavelmente, sorrindo,
como quem está habituado a triunfar.
Quem sou?
Esse ou aquele? Um agora e outro depois? Ou
ambos de uma vez?
Hipócrita perante os demais e, diante de mim
mesmo, um débil acabado?
Ou há, dentro de mim, algo como um exército
derrotado que foge desordenadamente da vitória
já alcançada?
Quem sou?
Escarnecem de mim essas solitárias perguntas
minhas;
Seja o que for tu o sabes, ó Deus: sou Teu!
Dietrich Bonhoeffer
RESUMO
This work belongs to the research line Education and Knowledge Production in the
Pedagogical Processes and aims at analyzing a Brazilian undergraduate History
program that forms researchers and teachers. The analysis is based on scientific
assumptions in History as knowledge. This work is based on the principles
established by the Bachelardian open rationalism. This reference was enriched by
the thoughts of Marc Bloch, a 20th historian and one of the founders of the Annales
School, a historiography French movement that broke with the Positivists
assumptions of the "Traditional History". Mark Bloch's work selected was The
Historian's Craft, his last book before being murdered by the Nazis during II World
War. The research question was the conception of science in History teachers
formation, na epistemological and pedagogical question. The study locus was the
History course at Unesc as it is represented by its Pedagogical Political Project. I
chose a qualitative research in which, based on Blochians' categories, the PPP was
analyzed in order to observe its notions of history and historiography. I chose the
History course because its political and pedagogical proposal assumes teaching
formation and baccalaureate as inseparable. With Bloch I could perceive that the
linkage between research, teaching and education is inherent to History as science.
This science works from the starting point of its scientific method, which forms and
demands professionals who shall respond for what they produce in detail and,
besides, for their capacity of analysis of knowledge and historiographies produced by
others. The analysis revealed that the PPP does not states clearly which notion of
science it is working with, nor assumes a clear theoretical, methodological position,
and tends to present a hybrid theoretic perspective that can affect the scientific
specificities of this science.
1 A PROBLEMATIZAÇÃO .......................................................................................10
1.1 Configuração do problema ..................................................................................10
1.2 Relações entre problemas pedagógicos e epistemológicos................................18
1.3 A processualidade científica da História e a formação de professores de História
..................................................................................................................................25
1.4 O Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de História da UNESC...............27
1.5 O caminho metodológico a título de sistematização ...........................................28
2 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA EM MARC BLOCH: A QUESTÃO DO MÉTODO
..................................................................................................................................31
2.1 A História no campo epistemológico (séculos XIX e XX) ....................................31
2.1.1 O surgimento da Escola dos Annales: a primeira geração...............................35
2.2 A produção historiográfica de Marc Bloch ...........................................................38
2.3 Ciência histórica e não um hobby .......................................................................41
2.4 Apologia da História: nada por declaração..........................................................43
2.5 O ensino e aprendizagem de História .................................................................46
2.6 O método científico e suas manifestações na formação do Historiador..............52
2.6.1 A legitimidade do esforço intelectual em História .............................................53
2.6.2 A atitude do historiador diante da história efetiva: a escolha do objeto............54
2.6.3 A estética da linguagem científica em História .................................................56
2.6.4 A noção de temporalidade e a “tomada de consciência”..................................57
2.7 O método crítico para a História: o valor da análise dos testemunhos para a
educação...................................................................................................................61
3 A CIENTIFICIDADE NO PPP DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNESC.................71
3.1 O curso de História da UNESC e o surgimento do PPP .....................................71
3.2 A manifestação da “cientificidade” na elaboração do PPP..................................74
3.3 A concepção de História e a relação com o método ...........................................78
3.4 A concepção de Educação e a relação com o método em História ....................82
REFERÊNCIAS.........................................................................................................97
ANEXO ...................................................................................................................101
ANEXO A – PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO CURSO DE HISTÓRIA ...102
10
1 A PROBLEMATIZAÇÃO
século XIX (GLENISSON, 1983, p. 16). É um debate até certo ponto recente, mas
muito amplo.
Esta pesquisa não vem trazer mais uma resposta sobre a pergunta: É a
História uma ciência? Trata-se de outras questões: Que ciência, que saber, ou
melhor, que História é manifestada num curso de graduação em História e que
historiador (professor) tal curso se objetiva a formar? E, mais especificamente,
interrogar e identificar, pela presença ou ausência, que método ou métodos
científicos são acessados num programa de formação de professores em
História e como, se for o caso, determinado método se manifesta. Afinal, não se
trata de defender a cientificidade da História por uma declaração institucional e tão
pouco de analisar os fatores sociais, econômicos e políticos que também configuram
uma realidade na educação superior. Trata-se de analisar, num campo específico, a
processualidade da História, tanto na sua produção de conhecimento quanto
imbricadamente na formação docente. O campo de análise é um curso de
graduação em História conforme se apresenta no Projeto-político-pedagógico. Esta
pesquisa visa a analisar o PPP do curso de História da UNESC.
Muitas pesquisas no Brasil têm se dedicado ao estudo da formação de
professores na área de História. Convém aqui citar e destacar a professora Dra.
Selva Guimarães Fonseca, que tem se dedicado à área de ensino de História. Em
sua obra Os caminhos da História Ensinada, a autora explora as linhas de política
educacional no Brasil entre as décadas de 1970 e 1990 no que se refere à prática do
ensino de História. Além disso, a autora dá atenção à pesquisa histórica em relação
ao ensino dessa disciplina, que tem sido negligenciada em muitos centros de pós-
graduação e publicações especializadas. Para a autora, segundo o apresentador do
livro, Marcos A. Silva, “[...] pesquisa e ensino de História são faces de um mesmo
saber” (FONSECA, 1993, p. 10). Declarando-se testemunha ocular, Fonseca
apresenta as questões que mais lhe incomodavam nesse processo. Por exemplo,
afirma ela que, no final da década de 1970, era perceptível uma lacuna entre a
História que se discutia e se produzia na academia e aquela destinada ao ensino
nas escolas de 1º e 2º graus. A autora se perguntava por que certos temas eram
privilégio de várias leituras e interpretações no espaço acadêmico e nem sequer
eram mencionados nos currículos e livros didáticos de 1º e 2º graus. Quando
mencionados, apenas uma versão, uma linha interpretativa era tida como
verdadeiramente histórica (FONSECA,1993, p. 11).
12
A crítica analítica da autora pode ser resumida no que ela diz sobre a
organização empresarial em que a universidade brasileira nas décadas de 1970 e
1980 se desenvolveu. A produção historiográfica nesse período surge num contexto
marcado, por um lado, pelo autoritarismo e pela perseguição ideológica da ditadura
13
1
A autora enfatiza a palavra obrigatória, para mostrar as opiniões que alegavam desnecessárias as
disciplinas pedagógicas.
15
Universidade Estadual do Piauí, traz uma reflexão analítica sobre os modelos que
nortearam e norteiam o ensino superior de História na Universidade Estadual do
Piauí, procurando avaliar a relação existente entre o currículo formal e a prática
docente e como essa relação influencia a formação teórica dos alunos. Um dos
resultados dessa pesquisa, que chama a atenção, é a adesão que os docentes e
alunos intermediários e do final do curso tiveram ao que o autor chama de modelo
teórico resultante do paradigma da escola dos Annales.
Outro pesquisador, Everaldo Paiva de Andrade, na sua tese de doutorado
de 2006, Um trem rumo às estrelas: a oficina de formação docente para o ensino de
história (O curso de História da FAFIC), também fazendo análises mais conceituais,
discute significados de formar, principalmente a partir do debate sobre como
configurar a Licenciatura e Bacharelado num curso de História, além de analisar
saberes e práticas que já estão consolidados no campo de análise desse autor.
De um modo geral, esses trabalhos e outros artigos a que se teve
contatos, alguns apresentados na ANPUH, têm como objeto a formação de
professores em História e diretamente o ensino de História. Além de fazerem a
análise da formação profissional, a grande maioria dos trabalhos consultados faz a
análise a partir das práticas docentes nas instituições de educação básica. Tais
pesquisas observadas serviram para que esta pesquisa se contextualizasse ao
debate e tivesse acesso ao estado da arte sobre o ensino superior de História no
Brasil, sem se tornar mera repetição.
Diante desse quadro, convém frisar que esta pesquisa parte de uma
questão de caráter mais epistemológico que social. Isso não ocorre de nenhum
modo a eventual descrédito que o autor desta pesquisa venha ter em relação a
explicações ou reflexões de cunho social. Trata-se, sim, de se entender que a
problemática do conhecimento e de sua produção em processos formativos requer,
além de interrogações e explicações sociais, análises de cunho epistemológico, ou
seja, interrogar sobre o modo de operar, na produção, na evolução, na formação e
na eventual superação de um determinado saber, como é o caso da História.
A busca de perceber que tipo de ciência prepondera e como ela opera
através do seu método, e principalmente perceber analiticamente a sua presença ou
ausência num determinado curso formativo, nasce do acesso ao pensamento de
Gaston Bachelard (1884-1962) no que concerne à relação da pedagogia com a
18
E continua:
ser seu mais importante conteúdo, ter necessidade de necessidades, para não
correr o risco de ter uma cabeça bem feita, fechada. Ou seja, um espírito científico,
consciente, sabe que se deve conhecer para melhor perguntar, questionar.
Os obstáculos epistemológicos são identificados com mais propriedade
quando se estuda o curso histórico do pensamento científico e a prática educacional.
Contudo, o epistemólogo deve analisar as fontes que outrora um historiador pudesse
escolher, e analisá-las a partir da razão mais desenvolvida, mais atual, pois é na
construção de racionalidades que esse epistemólogo deve se direcionar e não em
meros resultados.
Na atitude objetiva de se vencer esses obstáculos, como a experiência
primeira, o conhecimento geral, o uso e abuso de imagens usuais, o conhecimento
unitário e pragmático, obstáculos do conhecimento quantitativo e tantos outros que o
autor identifica, o espírito científico se constitui como um conjunto de erros
retificados, que nada mais é do que o processo de superação desses obstáculos.
Educadores devem levar em conta que, em relação direta com esses obstáculos,
está uma cultura que já existe entre os educandos, enraizada na vida cotidiana. Não
basta passar o conteúdo de uma vez para aquisição, mas antes superar o que já foi
passado pela vida comum.
Diante de tudo isso, Bachelard afirma que o espírito científico se funda na
negação do que está dado como pronto, preocupando-se não com o fenômeno em
si, mas com o porquê do fenômeno. Por isso, na atitude objetiva, existe a
necessidade de um abstrair-se de muitas coisas, como do conhecimento pronto e do
conhecimento sensível. Nessa dinâmica, as questões e perguntas científicas
ganham mais valor do que as respostas. Ou seja, a ciência progride historicamente
não pelo que acumula factualmente, mas pelo que é capaz de questionar, com
estudos que não jogam no lixo o conhecimento adquirido, mas também não trata
esses conhecimentos como dogmas divinos. Por isso também a idéia de fracasso se
faz notória para Bachelard, pois sem a noção de fracasso “o erro é maior ainda”
(BACHELARD, 1996, p. 295). E é a partir dessa consciência dos erros que existe a
possibilidade de deixar os estímulos primeiros em relação ao objeto e submeter-se
ao crivo de uma comunidade científica. Sempre será pelo olhar do outro que o aval
será dado ao espírito científico no labor científico.
As crises ganham uma supervalorização para Bachelard, pois é a partir
delas que é possível atingir grandes revoluções científicas, como a teoria da
23
E mais:
(...) se o historiador de uma ciência deve ser juiz dos valores de verdade
referentes a essa ciência, onde ele deverá aprender a sua profissão? A
resposta não oferece dúvidas: o historiador das ciências deve, para julgar
bem o passado, conhecer o presente; deve aprender melhor que puder a
ciência cuja história se propõe a fazer. E é nisto que o historiador das
ciências tem, quer se queira quer não, uma forte ligação com a actualidade
da ciência. (...). O historiador das ciências, na própria medida em que for
instruído na modernidade da ciência, aprenderá nuances cada vez mais
numerosas e cada vez mais finas, na historicidade da ciência. A consciência
de modernidade e a consciência de historicidade são aqui rigorosamente
proporcionais. (CARRILHO, 1991, p. 76).
juntamente com textos de sua autoria, uma abordagem sobre o que é a Escola dos
Annales como campo científico, também em tom apologético e crítico. Entretanto, o
fundamento referencial para esta pesquisa, partindo do pressuposto da questão
bachelardiana sobre o que é ciência e suas imbricações para os processos
escolares, é a obra Apologia da História ou O Ofício do Historiador edição em
português de 2001, além das outras obras de Marc Bloch a que se teve acesso.
Bachelard define e defende em suas perspectivas o que é ciência. Bloch defende a
História como uma ciência. Coincidentemente, ambos, contemporâneos, mesmo um
sendo epistemólogo e o outro historiador, lançavam argumentos contra os
pressupostos positivistas. Com isso, em hipótese nenhuma está-se afirmando que o
pensamento de ambos coincide, mas num primeiro momento pode-se
hipoteticamente colocar que existam intersecções.
É com Bachelard que chegamos a Bloch, mas é com Bloch que as
perguntas serão feitas, perguntas de base e não perguntas por resultados,
perguntas de natureza científica e ao mesmo tempo de natureza educacional. Por
isso mesmo não bastam perguntas, é preciso direcioná-las ao campo específico. É,
portanto, para o Projeto Político-Pedagógico do curso de História da UNESC que as
perguntas serão lançadas e a análise será focada.
2
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Diretrizes Curriculares dos Cursos de
História. Brasília, 2001.
28
(UNESC), localizada em Criciúma (SC). Essa escolha se justifica por duas razões: a
primeira, pela proximidade que o autor desta pesquisa teve e tem com o curso; a
segunda, porque esse curso, a exemplo de alguns outros, condensa a formação em
Licenciatura e Bacharelado. Como bem é explicitado no referido PPP e em seus
objetivos:
134). Escreve Triviños (1987, p. 134), em relação aos estudos de casos histórico-
organizacionais:
Não basta conceber uma determinada ciência nas suas origens com
vistas a validar o seu presente, mais importante é buscar entender suas condições
de possibilidade nos campos do saber.
No campo epistemológico moderno, é possível compreender que não há
mais uma historicidade comum e universal, uma narrativa comum do mundo.
Qualquer saber, qualquer ciência, qualquer objeto, seja científico ou não, possui
uma historicidade singular, com leis internas de funcionamento e segundo uma
cronologia decorrente de cada coerência singular.
O século XIX parece ser o ponto de referência da revolução e
transformação das ciências até então. Não por coincidência, justamente no século
XIX a História torna-se uma profissão, uma atividade de especialistas, e o debate da
cientificidade da História é inaugurado, segundo Marc Bloch (2001, p. 20). Mas esse
não é o único motivo. Dermeval Saviani (2006, p. 7) escreve:
32
Essas periodizações, que ele chama de epistémê, nada mais são do que ordens
estabelecidas por rupturas no campo epistemológico. Ao tratar do objetivo de sua
obra, Foucault (1985, p. 12) escreve no prefácio:
Não sabemos ainda muito bem o que um dia serão as ciências do homem.
Sabemos que para existirem – mesmo continuando, evidentemente, a
obedecer às regras da razão –, não precisarão renunciar a sua
originalidade, nem ter vergonha dela. (BLOCH, 2001, p. 49).
O núcleo central do grupo é formado por Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand
Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie.
Próximos desse centro estão Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon
e Michel Vovelle, quatro importantes historiadores cujo compromisso com
uma visão marxista da história – particularmente forte no caso de Vilar –
coloca-os fora desse núcleo. Aquém ou além dessa fronteira estão Roland
Mousnier e Michel Foucault. Este aparece esporadicamente neste estudo em
razão da interpenetração de seus interesses históricos com os vinculados aos
Annales.
Em 1931 Bloch publica uma obra sobre a história rural francesa, em que
utiliza fontes literárias. Nessa obra Marc Bloch aplica seu método “regressivo”,
buscando ler a história ao inverso e utilizando-se de temas do presente. Em 1939 é
a vez de A sociedade feudal, uma espécie de painel sobre a história européia de 900
a 1300. Em suma, os textos de Bloch “convertiam-se em motes de ataques a
modelos mais empíricos” (Bloch, 2001, p. 10).
Com 53 anos, Bloch resolve alistar-se mais uma vez no exercito francês.
Sendo a França derrotada, volta à vida acadêmica por um breve período, pois em
1943 entra para a resistência do grupo de Lyon. Preso em 1944, e em condições
deploráveis, Marc Bloch dedica-se a escrever mais dois livros: o primeiro – A
estranha derrota –, em que associa a experiência particular das duas guerras e se
debruça sobre a derrota francesa de 1939. Le Goff, no prefácio de Apologia a
História (BLOCH, 2001, p. 17), caracteriza essa obra como um estudo perspicaz,
pois se trata de um trabalho de história, refletido no calor do acontecimento e sem
nenhum caráter jornalístico. A segunda obra que é a referência central deste
trabalho: Apologia da história ou O ofício do historiador, editada após a sua morte
em 1949, traz reflexões sobre método, objetos e documentação histórica. A ação
política faz parte da obra. Por isso mesmo, Marc Bloch (2001, p. 10) escreve: “a
história serve a ação”. Nesses tempos difíceis, dizia Bloch (2001, p.11): “a história se
encontra desfavorável as certezas”. Marc Bloch foi torturado pela Gestapo e depois
fuzilado em 16 de julho de 1944 em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, por
fazer parte da resistência francesa.
Tal trajetória, além de surpreendente, inseriu Marc Bloch no rol dos
maiores historiadores da humanidade. Mas muito mais do que isso, releva que ser
historiador não é “passa tempo”, e o próprio Marc Bloch discorre sobre isso quando
trata de legitimar a História como ciência, como será visto no próximo tópico.
41
Eis uma pergunta de base: Para que serve a História? Uma questão
respondida inúmeras vezes, mas que quase sempre precisa de uma nova
formulação, exatamente porque o desafio é sempre conhecer melhor a realidade
primeira. Obviamente, a pergunta que Bloch nos auxilia a fazer, não tem um caráter
utilitarista, mas um caráter de legitimidade. Qual a legitimidade da História?
Bloch, em meados do século XX, contextualizado ao seu momento,
escreve que a sociedade ocidental espera muito de sua memória e, por isso mesmo,
o historiador deve ser chamado e incumbido a prestar contas, pois a civilização
ocidental inteira está interessada na resposta. Essa espera ocidental foi sempre
presente, tanto pela herança cristã, que Bloch caracteriza como religião de
historiadores, como pela herança antiga. Bloch caracteriza os gregos e latinos como
historiográficos. Obviamente, aqui Bloch (2001, p. 42) assume que as sociedades
mudam, as psicologias coletivas variam, no entanto o ocidente ainda assim espera
muito da sua memória. Le Goff (BLOCH, 2001, p. 17), no prefácio de Apologia da
História, escreve a respeito: “a própria expressão ‘legitimidade da história’,
empregada por Marc Bloch desde as primeiras linhas, mostra que para ele o
problema epistemológico da história não é apenas um problema intelectual e
científico, mas também um problema cívico e moral”.
O historiador deve “prestar contas” (BLOCH, 2001, p. 41). Marc Bloch
(2001, p. 42) coloca os historiadores entre os artesãos que precisam dar provas da
consciência profissional. Bloch (2001, p. 17) coloca que “o debate ultrapassa, em
muito, os pequenos escrúpulos de uma moral corporativa. A civilização inteira tem
interesse. Eis simultaneamente afirmadas à civilização como objeto privilegiado do
historiador e a disciplina histórica como testemunha e parte integrante da
civilização”.
Se alguém afirmar que epistemologicamente a História não serve para
nada, não pode negar, no entanto, que ela entretém muita gente, como as outras
ciências e, talvez, mais ainda que as outras. Bloch escreve que a História atrai, mas
não é isso que a faz científica. Isso que é comum nas outras ciências, esse interesse
primeiro, escreve ele, é o que vem “antes da obra de ciência, [...], o instinto que leva
a ela [...]”. Antes do desejo de conhecimento, o simples gosto. O autor (BLOCH,
42
2001, p. 43) inclusive fala da Física, e diz que os primeiros passos nela devem muito
“aos gabinetes de curiosidade”.
E até nesse obstáculo a História se diferencia de outros saberes, pois os
“gozos estéticos” da História são próprios dela mesma, porque são as atividades
humanas que fazem parte de seu objeto específico que seduzem mais do que
qualquer outra coisa. Seduz a imaginação dos homens. Bloch diz que não é
interessante extrair a beleza poética da História, porém questiona se História é
apenas um passa tempo e se vale tanto a pena escrevê-la. Para Marc Bloch (2001,
p. 44) vale a pena, se o esforço for honesto, indo em direção “às suas molas mais
ocultas, e, por conseguinte, com dificuldade”, em direção ao que é mais difícil e
racional. Escreve ainda o autor:
Com toda certeza num mundo que acaba de abordar a química do átomo e
mal começa a sondar os segredos dos espaços estelares, em nosso pobre
mundo que, justamente orgulhoso de sua ciência, não consegue criar para
si um pouco de felicidade, as longas minúcias da erudição histórica, muito
capazes de devorar uma vida inteira, mereceriam ser condenadas como um
desperdício de forças absurdo a ponto de ser criminoso, se devesse apenas
para dissimular um pouco de verdade uma de nossas distrações. (BLOCH,
2001, p. 44).
Para Marc Bloch (2001, p. 46), sua obra faz a apologia da História, mas
não por declaração. Ele não quis exorcizar fantasmas ou tão pouco separar, para
um debate, o que a História tem de bom ou ruim. Não se trata de mais um
testemunho no tribunal. Seu esforço é uma avaliação pelo grau de certeza dos
métodos que uma pesquisa historiográfica utiliza ou deve utilizar, “até na humilde e
delicada minúcia de suas técnicas” (BLOCH, 2001, p. 46). Ou seja, sua postura é: a
História é uma ciência, logo vamos estudar o método científico nos mínimos
detalhes. É no modo de operar o método que a ciência da História deve ser avaliada
como tal, principalmente diante dos problemas impostos ao historiador que lida com
o método científico (BLOCH, 2001, p. 46). Como, por que e para que um historiador
pratica seu ofício? Como escreve Bloch (2001, p. 46): “Ao leitor cabe decidir, em
seguida, se tal ofício merece ser exercido”. E mais:
marcha, mas que está na infância. Bloch a coloca na balança, abordando que, sob a
velha forma da narrativa, apinhada de ficções coladas aos acontecimentos
apreensíveis, a História é velha, mas como ciência, a História está em um estágio
inicial, em constituição. Como ciência possui dificuldades, como:
A carreira de Bloch não foi muito diferente da de Febvre. (...); contudo, como
comprova a análise de suas últimas obras, sua maior influência foi a do
sociólogo Émile Durkheim, que iniciou sua carreira de professor na École
mais ou menos na época de seu ingresso. Ele mesmo um egresso da École,
aprendeu a levar a história com seriedade através de seus estudos com
Fustel de Coulanges ( LUKES, 1973, p. 58ss, apud, BURKE, 1997, p.26).
E ainda:
Fica explícito, nessa citação, que Bloch entende que defender a ciência
histórica como ele a concebe é defender o desenvolvimento dos jovens
pretendentes a serem historiadores e professores. Ou seja, trata-se de fazer
apologia à ciência histórica e, por conseguinte em uníssono, para não dizer que se
tratam das mesmas coisas, a apologia à formação científica de um historiador. Bloch
revela que sua intenção foi também apresentar um programa que amplie as
possibilidades de jovens historiadores refletirem sobre essas questões
epistemológicas e de formação na obra Apologia da História.
Assim, torna-se notória a relevância de analisar e expor os conceitos
trabalhados por Marc Bloch, que mesmo sendo o resultado de seu pensamento ou
uma nova visão e momento sobre a História, defende a cientificidade da História,
que pode e deve ser ensinada e aprendida. Além disso, outros artigos de Bloch
podem ser arrolados e considerados na análise de sua posição sobre a relação
direta entre cientificidade e educação.
Em um dos seus artigos na revista Annales intitulado “Sobre os
programas de história no ensino secundário” (1921), que trata sobre a arte de
lecionar História no ensino secundário, Bloch lança seu parecer acerca da educação
de História na Europa, condenando a divisão tradicional em ciclos. Além disso,
coloca que certas conscientizações são imprescindíveis aos alunos. Tais
conscientizações cabem ao historiador, que é professor, e aos programas cabe
chamarem a atenção no processo de formação dos professores.
A primeira delas é quanto à História contemporânea, que merece e tem o
direito de fazer parte do ensino secundário. Contudo, isso já ocorria no tempo de
Bloch pós 1902, mas com alguns “pecados” contra o espírito histórico, como ele
47
E continua:
48
3
Nesse artigo, Marc Bloch partiu dessa questão, mas só trata do ensino superior.
4
Trata-se de um concurso nacional na França, no tempo de Marc Bloch, que selecionava professores
de História para ministrarem suas aulas no ensino secundário. Esse concurso exigia uma série de
aptidões por parte dos professores, mas que para Bloch, não era suficiente para revelar um ‘saber
lidar com a História como ciência’, em sala de aula.
50
Bloch também afirma que é preciso simplificar, aligeirar esse processo, além de
especificar e flexibilizar algumas exigências que não estavam sendo consideradas.
Para ele, essas ponderações servem para evitar conseqüências fatais aos futuros
historiadores, como: conformismo intelectual, o desinteresse mórbido pela História e
seu ensino, e o corte injusto dos escrupulosos (1998, p. 301).
Um diploma de professor de História não deve consumar a idéia de que o
indivíduo diplomado e já concursado não tem mais nada a aprender, defende Bloch.
Criticando o concurso de agregação, o autor levanta alguns pontos fundamentais
que o professor deve ter e ênfases que o referido concurso deveria dar. Um deles é
com relação à explicação de textos, testemunhas. No concurso de agregação de
professores na França, a explicação de textos, das testemunhas documentais, não
era exigida. Como Bloch diz, parece que o pedagogo não tem a obrigação de saber
e tão pouco ensinar a interpretação de fontes. Interpretar fontes é tarefa de
historiadores. Bloch defende que professores/historiadores não podem privar-se
dessa técnica fundamental, principalmente por ocasião de concursos para lecionar.
Mas isso gera outra problemática. Não se exigindo capacidade de
interpretação, o sentido de observação histórica perde força. Isso acaba se refletindo
na aptidão dos professores para ensinar aos alunos. No caso do ensino secundário,
alguém poderia argumentar a idéia de que isso os alunos não tem obrigação de
saber. Mas Bloch (1998, p. 306) interroga:
Não seria desejável, de uma maneira geral, que pelo menos nas aulas dos
últimos anos o ensino de história tivesse um prolongamento em algumas
noções concretas fornecidas sobre a crítica do testemunho cujo manuseio
por certo não é necessário apenas aos eruditos? Há professores a fazê-la e
felicitam-se pelo resultado.
dever ser realizada por repetição de receitas técnicas de professores com mais
experiência somente, ou mesmo por algumas horas de estágio dos mais novos. Na
verdade, Bloch aconselha que os futuros professores tenham mais acesso aos bons
resultados que a Psicologia da infância já alcançou. Para o autor, muito mais do que
encarar a exposição de certos professores gabaritados numa seqüência
considerável de horas, importa na verdade ter acesso ao que psicólogos e alguns
médicos têm a dizer e ensinar. E por fim, esses conhecimentos não devem ser
analisados por provas. Na seleção intelectual, que a explicação dos textos, das
testemunhas, seja cobrada, pois trata-se de uma instrumentalização primordial tanto
para o pedagogo como para o historiador na concepção de Bloch (1998, p. 308).
Ainda expondo sua crítica, agora voltado exclusivamente ao ensino
superior, Bloch exclama que na França de seu tempo o concurso de agregação
limita as faculdades a trabalharem apenas os conteúdos exigidos no concurso. Isso
ecoa obviamente no fato de que os programas escolhidos nas faculdades sempre
são modulados, em certas proporções, pelo programa imposto pelo governo.
Mas diante desse vício, e é assim que ele chama a organização superior
dos cursos que preparam professores de História naquela França, o mais gritante e
sensível mal estar é desviar o professor dos seus próprios e pessoais objetos de
estudo: “Entre todos os vícios de um tal regime, o mais imediatamente sensível é
sem dúvida desviar perpetuamente o professor, que é e deve ser ao mesmo tempo
um investigador, desviá-lo do objecto dos seus próprios estudos” (1998, p. 309). Fica
explícito aqui que, para Bloch, o professor de História é um investigador, e isso
presume dizer que o professor de História o é, por ter ofício de historiador; em
contrapartida, o historiador o é também por ser apto a lecionar, isso desde que
nenhum governo ou tradição ideológica ou qualquer outra força de cunho político-
administrativo venha a atravancar esse pressuposto.
Não obstante, ainda há o legado dos professores, que acaba virando
tradição. E essa tradição, segundo Bloch, é uma força maior do que a lei escrita,
porque, se não bastasse o conteúdo imposto, a maneira de tratá-lo, de lecioná-lo
também é imposta pela força dessa tradição, que necessita de renovação. Isso se
torna um obstáculo, principalmente para a renovação do ensino através da
investigação. Escreve o autor: “(...) o nosso ensino superior não está apenas
impedido de renovar eficazmente a história pela investigação como também de lhe
encontrar novas concepções. E como, por sua vez, pesa no secundário, cujos
52
Muitos já disseram, segundo Bloch, que a História não tem utilidade nem
solidez. Todavia, essas condenações têm um elemento temível e atrativo: “justificam
antecipadamente a ignorância” (BLOCH, 2001, p. 46).
Diante da realidade efetiva que muitas vezes exige a ação, qual a atitude
do historiador? O historiador deve ter uma postura de caráter profissional, científico
e educacional. Falar assim num primeiro momento parece generalização, mas o
próximo tópico objetiva-se a refletir sobre essa postura defendida por Bloch, que
nada mais serve do que revelar a visão de história que todo o historiador deve ter,
ou pelo menos sempre refletir em busca de uma.
Convém, neste momento, refletir sobre a visão de história que Marc Bloch
aborda. Agora, porém, trata-se do que acontece de fato no tempo, como o tempo e
os homens se relacionam e como, a partir disso, é possível produzir conhecimento
científico em História.
A palavra história é antiqüíssima, a tal ponto que muitos, segundo Bloch,
tentaram riscá-la do vocabulário. Independentemente de pesquisa com método, a
história ocorre efetivamente. Ela direciona o olhar para o indivíduo ou a sociedade,
para descrição de crises momentâneas ou duradouras (BLOCH, 2001, p. 51). A
etimologia primordial diz respeito basicamente à pesquisa. O conteúdo da História
muda, mas não existe obrigatoriedade em se mudar de denominação. As mudanças
ocorrem quando os termos são vivos. Escreve Bloch (2001, p. 52):
O historiador nunca sai do seu tempo, mas por uma oscilação necessária,
que o debate sobre as origens já nos deu a vista, ele considera ora as
grandes ondas de fenômenos adaptados que atravessam,
longitudinalmente, a duração, ora no momento humano em que essas
correntes se apertam no poderoso nó das consciências.
58
jornalistas podem explorar o vivo. Os historiadores, para muitos que partilham dessa
idéia, estudam o que já é morto, o que já está mofado. Mas nesse ínterim, coloca
Bloch, as revoluções técnicas, para não dizer industriais e tecnológicas, geraram
uma ampliação desmedida no intervalo de tempo psicológico entre as gerações
(2001, p. 62). O exemplo que Bloch coloca é que o homem da era da eletricidade e
do avião se sente muito, mas muito distante de seus ancestrais. Assim, esses
mesmos homens concluíram que a ancestralidade, o passado distante, nada
determinou em suas contemporaneidades. Na prática, essa idéia funciona da
seguinte maneira: para “compreender os grandes problemas humanos do momento
e tentar resolvê-los, de nada serve ter analisado seus antecedentes” (2001, p. 63).
Mas segundo Bloch, essa idéia de auto-inteligibilidade assim reconhecida
no presente apóia-se em declarações, postulados. Uma é a crença de que nenhuma
instituição um pouco antiga, nenhuma maneira de se conduzir tradicionalmente teria
escapado às revoluções da modernidade. Mas isso é um erro, como pontua Bloch
(2001, p. 63):
E o que falar das tradições orais tão presentes e que ligam gerações? E
as tradições escritas, que ligam pensamentos em transferência entre gerações que
muito se afastam em séculos? Trata-se de um erro. No campo epistemológico, o
próprio Bachelard coloca que o olhar para os conhecimentos do passado deve ser
um olhar atento a erros, para que no presente a ciência progrida como conjunto de
erros retificados. Em certa medida de intersecção, Bloch (2001, p. 65) coloca:
2.7 O método crítico para a História: o valor da análise dos testemunhos para a
educação
Só há uma maneira de dizer: << é meio dia >>. Mas há muitas outras
maneiras diferentes de contar a batalha de Waterloo. Se duas descrições da
batalha de Waterloo se repetirem palavra por palavra ou até se
assemelharem muito, concluímos que uma delas foi a fonte da outra. Como
distinguir a cópia do original? Os plagiários são traídos pela sua inépcia.
Quando não compreendem os seus modelos, os seus contra-sensos
denunciam-nos. Quando procuram disfarçar o que é de outrem, perde-os a
inaptidão dos seus estratagemas.
testemunhos não apenas escritos, mas materiais. Bloch (2001, p. 89) exemplifica tal
realidade com o estudo da Idade Média, período de grande falsificação de
documentos. Segundo, porque é uma raridade encontrar testemunhos exatos, isso
se eles existem. E terceiro, porque diante da formação de um testemunho, antes há
uma memória e uma atenção com falhas. Bloch diz que nossa memória é um
instrumento frágil e imperfeito, e isso ecoa e se revela em todas as fontes (2001, p.
26).
Um pressuposto muito importante na análise problematizadora de um
testemunho é procurar determinar quais os fatos que geraram a atenção da
testemunha, e o contrário também é importante, que é buscar quais os fatos lhe
escaparam. Bloch (2001, p. 103) chega inclusive a visualizar uma disciplina
necessária nesse trabalho: a psicologia do testemunho. Embora, como afirma o
autor, seja uma arte de sensibilidade nesse caso específico, há também uma “arte
racional, que repousa na prática metódica de algumas grandes operações do
espírito” (BLOCH, 2001, p. 109).
Outro pressuposto básico é a comparação das testemunhas. Na
comparação de testemunhas, é possível discernir certos elementos de veracidade
histórica. Escreve o autor (BLOCH, 2001, p. 109):
O historiador não é, é cada vez menos, esse juiz rabugento cuja imagem
desabonadora, se não tomarmos cuidado, é facilmente imposta por certos
manuais introdutórios. Não se tornou, certamente crédulo. Sabe que suas
testemunhas podem se enganar ou mentir. Mas antes de tudo, preocupa-
se em fazê-las falar, para compreendê-las. É uma das marcas mais
belas do método crítico ter sido capaz, sem nada modificar seus
primeiros princípios, de continuar a guiar a pesquisa nessa ampliação.
(2001, p. 96).
os períodos mais ligados à tradição foram aqueles ligados por uma necessidade de
revanche em prol da criação, juntamente com a força de venerar o passado, foram
em muitos momentos levados a inventá-lo.
Paul Veyne, nesse caso específico, em sua obra Como se escreve
História e Foucault revoluciona a História, coloca que História não é uma ciência,
não tem método e não explica. Assim, para Veyne, a História é narrativa com
personagens reais, e mesmo analisada pelas fontes não pode alcançar o “realmente
acontecido”. Paul Veyne entende que a História é subjetiva, pois se tudo é história, a
“História termina sendo o que foi escolhido pelo historiador” (VEYNE, 1998, p. 198).
Mas se de fato a História é mera escolha e recorte, o método crítico perde valor. No
entanto, como muito bem escreve Ciro Flamarion, que não abre mão de afirmar a
cientificidade da História, “desde o materialismo histórico e Annales, a História
deixou de estar voltada para fatos singulares e passou a abranger estruturas globais
sujeitas a regularidades, como a vida econômica e as estruturas sociais e culturais”
(FLAMARION apud SILVA; SILVA, 2006, p. 182). Ciro Flamarion afirma que:
método de análise são humanos, é do espírito, e por melhor que seja sempre será
falível de erro ou erros. Mas é justamente por isso que é uma ciência a progredir,
pois reconhece os erros do espírito científico como erros do espírito humano, ambos
produtores de memória. Contudo, erros que podem ser retificados.
Claro que, num recorte temporal, um historiador poderia recorrer a um
tempo anterior a determinado fato do passado e lançar perguntas de probabilidade,
mas ainda assim trata-se de imagem recuada de algo já acontecido. Para Bloch, tais
ponderações não são científicas. Trata-se apenas de jogos metafísicos, momentos
de diversão, simples artifícios de linguagem destinados a trazer à luz, na marcha da
humanidade, a parte de contingência e de imprevisibilidade. Tal prática nada tem a
ver com crítica do testemunho. Não se trata de atitude científica.
Outro risco, e que muitas vezes vem acompanhado com um ar de
erudição, é a rejeição ao acaso. Em algumas ramificações da lingüística, parece que
um único objetivo é ver as semelhanças e parentescos entre os escritos.
Obviamente, ela possui essa prerrogativa devido às próprias particularidades dos
fenômenos da linguagem, ou seja, existem casos lingüísticos em que as
semelhanças são mero acaso. Alguns lingüistas, muitas vezes fanáticos pela crítica
dos estilos, como diz Bloch, esquecem-se que certos estilos fazem parte de um todo
e um momento comum, que traz semelhanças entre escritos de um mesmo período,
mas que necessariamente não tem nenhum parentesco de originalidade. A busca
pela genealogia de manuscritos também levanta erros muitas vezes caríssimos. E
mais, o estilo de um determinado autor pode mudar, pois nunca existiu nenhuma
regra universal dizendo que um determinado autor só utilizava ou mesmo utiliza um
determinado modelo.
Por isso, a maioria dos problemas da crítica histórica consiste de fato em
problemas de probabilidade. A técnica mais sutil muitas vezes deverá declarar-se
incapaz de resolvê-los, não porque as testemunhas sejam apenas em alguns casos
dotadas de uma enorme complexidade, mas porque muitas vezes essas
testemunhas permanecem “rebeldes a qualquer tradução matemática”. E isso, ou
seja, aceitar a inocência de uma coincidência seria um absurdo para os eruditos,
segundo Bloch. Entretanto, se as fontes forem consideradas em uníssono por uma
semelhança apenas de fachada, pode ser o início de um passo em falso na atitude
de um historiador (2001, p. 120-121). Um exemplo clássico:
69
próprio curso. Parece uma contradição que na realidade tem relação com o
conhecimento que cada acadêmico ou mesmo um professor tem sobre a
importância de um PPP e sobre o que é uma universidade. O que acontece, como o
documento pontua, é que acadêmicos e alguns professores conhecem algumas
graduações pela apresentação e operacionalização das grades curriculares e pelas
propagandas midiáticas sobre mercado de trabalho, financiadas pela própria
instituição.
O PPP (UNESC, 2002, p. 4) expõe que a função básica de um projeto
político pedagógico é projetar ações visando à superação de dificuldades e
obstáculos do presente, no intuito de se atingir metas a médio e longo prazos, a
partir de aspectos que justificam uma relevância social. Tais processos tanto na
elaboração, avaliação, e reconstrução devem ser permanentes, ressalta o
documento. Nesse momento, parece que a idéia de progresso constante em
processos de pensamento se faz presente e encontra intersecções com o
pensamento blochiano no que concerne a racionalidade na História.
No entanto, quando o PPP menciona que há ausência de mecanismos de
avaliação permanente com o propósito de verificar se o curso está alcançando os
seus objetivos, a crítica não se dirige apenas à instituição UNESC, mas ao próprio
curso, sobretudo no seu lidar com a própria concepção de cientificidade histórica,
afinal, como diz Bloch, os historiadores precisam dar provas da sua consciência
profissional, obviamente nesse caso ligados aos objetivos do curso tanto no ensino,
na pesquisa e na produção do conhecimento, como também na formação do
profissional de História. É perceptível, nesse caso, que há uma preocupação de
cunho ético por parte do PPP em esclarecer para a sociedade qual a função do
curso. Na concepção de Bloch, muito mais do que ética, a função de
“esclarecimento à sociedade” é um desdobramento prático do método científico em
História.
O PPP (UNESC, 2002, p. 4) afirma que o fundamental num projeto-
político-pedagógico “é o seu processo de construção, avaliação e reconstrução
permanente”. Na continuação, expõe que um PPP não pode ser confundido apenas
como um conjunto de atividades relacionadas ao ensino, não pode ser apenas um
pré-requisito de legalidade de um curso e não pode ser discutido inicialmente pela
grade curricular antes dos objetivos tratados, colocados como base para o PPP. Os
objetivos, segundo o PPP, seriam as definições do “perfil, com as competências e
74
habilidades do profissional que se quer formar”. A pergunta a ser feita nesse caso,
pensando na cientificidade da História, é: qual a base referencial, ideológica e de
método para a formação dos objetivos?
A crítica que o PPP faz é direcionada a uma estrutura de graduação
ligada a uma concepção de ensino dissociada da pesquisa e da extensão e que
favorece em demasia a transmissão do conhecimento, a prática da cópia, a cultura
da nota, etc. Por sinal, essa crítica é muito relevante. Nessa perspectiva, os
elaboradores deste PPP visualizaram a necessidade de repensar o PPP do curso de
História da UNESC. O que convém a partir de agora é perceber, nesse exercício de
novas propostas por parte desses organizadores, não as concepções pedagógicas
explícitas, mas referenciais de cientificidade em História nas suas manifestações
pedagógicas sejam eles quais forem e, no caso específico, sendo o objetivo central
desta pesquisa perceber suas principais manifestações de cientificidade, que
segundo o referencial blochiano é o que mais deve se exigir num programa de
graduação de História: que método científico é proposto e manifesto?
(...) saber em qual teoria está baseada sua prática pedagógica, pois o
problema principal não está na corrente que ele optou e sim no fato de não
saber em qual delas se fundamenta a sua prática. Ter uma compreensão
básica de como ocorre o processo de aprendizagem significa fazer uma
opção consciente pela teoria que considera mais adequada para nossa
realidade.
próprio PPP teria de assumir politicamente como vai lidar com as mais variadas
teorias da História. E nesse momento, especificamente, cabe observar, seguindo a
própria organização textual do PPP, a sua metodologia em sua organização. E mais,
quando diz que não importa a corrente pedagógica optada desde que se tenha uma
e com algum nível de consciência, que não é esquadrinhado pelo documento, isso
possibilita dizer duas coisas: 1) que optar por uma corrente pedagógica é mero
detalhe, pois o que vale é ter uma desde que se tenha consciência dela; ou: 2) a
corrente pedagógica escolhida por um professor não irá qualificar ou desqualificar o
ensino-aprendizagem, pois, em outras palavras, o processo apenas exige a escolha
de uma corrente conscientemente, os desdobramentos já estão traçados.
Na exposição da metodologia de elaboração do PPP, coloca-se a
problemática de se organizar um curso de graduação pela grade curricular.
Basicamente, segundo o documento, quando organizado a partir dessa ótica, um
curso se torna a própria grade, que acaba sendo fragmentada, desarticulada,
hierarquizada, etc.
Alguns elementos apresentados pelo PPP (UNESC, 2002, p. 6) são
imprescindíveis para a formação ou reformulação de um novo curso: estudos,
certamente de cunho pedagógico; debates entre os sujeitos que fazem parte do
curso, discentes e docentes; ter conhecimento sobre noções de currículo;
intercâmbios de informação com outras instituições de ensino; a observância dos
objetivos da instituição de ensino, no caso a universidade; a observância das
Diretrizes Curriculares da Legislação Nacional. Mas e o debate sobre que História
ensinar para formar? Nessa lista de elementos necessários para a elaboração de um
curso de História, a questão de qual História ensinar se manifesta pela ausência, ou
seja, essa ausência se apresenta como se a organização do curso não dependesse
de que História está-se ponderando.
O debate sobre esse PPP começou em 1997, mas somente em março de
1999, com a presença de alunos e professores, é que foi constituída uma Comissão
Coordenadora do Processo de Redefinição do PPP. Essa comissão era composta
por dois professores, o coordenador do curso, dois acadêmicos e o presidente do
centro acadêmico. O primeiro momento de discussão e início de elaboração do PPP
se deu em abril de 1999, e basicamente tratava com os professores e alunos acerca
da seguinte questão: “o curso que queremos. Nesse ínterim, havia um texto
76
Assim, não há apenas uma história, mas uma pluralidade de histórias, pois
a cultura humana sempre foi múltipla e sempre será. Isso significa, no
entanto, que devemos abarcar todos os conceitos e tendências como se
fossem neutros ou que todos têm algo a contribuir. Há tendência e
concepções que reproduzem preconceitos, perpetuam a opressão e
reforçam a desigualdade social. Por isso o curso de História da UNESC
explicita sua posição contrária a qualquer tendência e concepção que
propicie a dominação, a violência, a intolerância e o preconceito. E ao
mesmo tempo, abre espaços para vertentes que buscam a liberdade,
igualdade social, solidariedade e respeito pelas diferenças culturais, assim
como o respeito por crianças, mulheres, idosos, natureza, minorias étnicas,
etc. (UNESC, 2002, p. 18).
Não se pode negar, no entanto, que uma ciência nos parecerá sempre ter
algo de incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor. Em
particular, como não experimentar com mais força esse sentimento em
relação à história, ainda mais claramente predestinada, acredita-se, a
trabalhar em benefício do homem na medida em que tem o próprio homem
e seus atos como material?
presente são integrantes de algo que precisa ser aprendido tanto por professores
como por alunos, pois tudo está dentro da continuidade humana, e isso o PPP
explicita. O presente, por mais que possa ser melhorado, jamais deve ser a antítese
do passado (BLOCH, 1998, p. 296). Em outras palavras: os seres humanos no
tempo presente também são objeto científico da História.
Na concepção de História do PPP, é também percebido uma colocação
sobre as mudanças, transformações e rupturas nas sociedades. Tal colocação é de
muita propriedade para ‘o fazer’ ciência histórica e para a formação do cientista.
Aliás, seria de muita importância, fazer essa reflexão pedagogicamente. Bloch
(1998, p. 296), num artigo já citado nesta pesquisa, diz que na mudança, ou melhor,
no estudo da mudança é que está uma das razões do valor pedagógico que a
História possui no seu modo de operar. Porém, não há na definição de História no
PPP abordagem histórica sobre a noção do diferente. A História enquanto ciência
analisa as transformações e rupturas e assim, percebe que o mundo, mesmo na
continuidade humana, é diferente e variado. Por isso, como exemplifica Bloch,
quanto mais se estuda a História de civilizações distantes, no tempo e no espaço,
mais se apura no aluno de história a noção do diferente.
Diante dessas duas categorias blochianas, continuidade humana e
noção do diferente, é possível perceber no PPP que, na sua proposta de História a
ser realizada, deve haver a desmistificação da ideologia da evolução linear
progressiva das sociedades humanas (UNESC, 2002, p. 18). Visto que, toda e
qualquer periodização possui limites, como também possui limites as ideologias que
fomentaram tais periodizações (UNESC, 2002, p. 18-19):
tradicional, como também uma ponderação sobre o que é usar ‘de forma crítica’, a
periodização tradicional.
Outra categoria bochiana que merece destaque em relação ao PPP e seu
posicionamento em relação ao que é História, é justamente o método crítico. O
lidar com as fontes. Não se faz ciência História sem fontes. Porém Bloch salienta
que haja fontes, e que estas sejam problematizadas, pois o historiador se coloca
como cientista justamente porque com o seu método consegue problematizar a
história efetiva, ao fazer a interpretação analítica. A interpretação analítica é um
elemento básico na História enquanto ciência. Ou seja, o investigar, nada mais é do
que saber lidar com fontes, não como um erudito, mas como cientista que tem a
capacidade, auxiliado pelo método crítico, de problematizar a história. A palavra
‘investigação’ utilizada na definição de História no PPP poderia ser mais bem
definida em relação a esse sentido.
Além disso, o diferenciar a história efetiva e a História enquanto ciência
não pode ser ocultado. Afinal, como Bloch afirma, a única história verdadeira é a
História universal. Nesse sentido, o PPP deveria diferenciar esses dois conceitos
empregados quase sempre a mesma palavra: história. Essa diferenciação deve ser
feita na forma de declaração, e também, principalmente, no lidar com o método. A
História se apresenta no método científico em operação, e a história efetiva é o
próprio acontecer da realidade.
Nesse momento, convém tratar da concepção de Educação do PPP, e a
sua relação com a História enquanto ciência, que o PPP objetiva-se a ensinar para
formar. As categorias blochianas novamente serão utilizadas.
7
Esta conjunção não está no texto original, possivelmente devido a um erro de edição.
84
quem é o historiador. Esse “pedagogo”, como diz Bloch, tem a obrigação de ensinar
a interpretar fontes. Em outras palavras: quem quer ensinar História, formar
alunos em cientistas da História, tem que ser historiador. Bloch chega a colocar
que, quando não se exige capacidade de interpretação histórica por parte de um
professor de História, o sentido de observação histórica perde força, ou seja, o
olhar histórico apenas se dá no nível do “ouvir falar”, ou, “o professor me disse”. Mas
não basta o professor dizer, como se suas palavras fossem cheias de autoridade por
ele ser professor. Ele tem de apresentar os mecanismos da construção dos
conhecimentos sobre determinada problemática histórica, mostrar porque
determinado conhecimento é conhecimento histórico-científico ou não.
Além disso, a educação em História deve aproveitar conceitos de si
mesma enquanto ciência em seus processos pedagógicos. O PPP parece aproveitar
isso, no que tange o conceito blochiano de noção do diferente e continuidade,
quando o PPP propõe que em sua grade, com as disciplinas tradicionais da História,
não haverá pré-requisitos. Criticamente, o PPP (2002, p. 26) se posiciona afirmando
que:
E continua:
teorias”. Essa aptidão tem a ver com o historiador professor e pesquisador, como o
PPP aborda.
Em segundo lugar, para Bloch o historiador deve ser apto a ter atitude
diante da história efetiva. Essa atitude é sobre a escolha do objeto e a capacidade
de observação. Não é incomum alguns jovens interessados na História confundi-la
com a história efetiva, e declararem: “Tudo é história” ou “tudo faz parte da história”.
No entanto, o historiador sabe que nem tudo, para a História como ciência, é objeto
dela. O historiador deve ter consciência de que o seu objeto não é o passado. A sua
escolha, a sua observação está ligada à atitude humana de uma sociedade, de um
grupo, ou seja, do ser humano. Obviamente, essa observação se dá a partir de uma
caracterização temporal. O PPP não menciona explicitamente tal postura nos
objetivos do curso. No entanto, é possível captar no documento que é nessa direção
que o curso pensa em formar o profissional de História. Por exemplo (UNESC, 2002,
p. 18):
8
Fernand Braudel, representante da segunda geração dos Annales, chama os acontecimentos
longitudinais de “longa duração”.
91
E também:
operar, segundo Bloch, já o é pedagógica. Mas sobre isso, até onde a pesquisa se
propôs a ir, já houve ponderações.
Em segundo lugar, convém levantar os pontos positivos acerca desse
engendramento, para finalizar a análise. Bloch coloca explicitamente, e o movimento
dos Annales atesta esse postulado nas duas gerações seguintes, que a busca de
auxílio em outros campos do saber é aceita, e até certo ponto necessária. O auxílio
da Psicologia, da Filosofia, da História da Educação, da Didática Geral, do Estágio
Prático de Ensino entre outras disciplinas é bem-vindo. Obviamente, tais disciplinas
lidam com objetos que não são os da História, e tão pouco algumas delas são
saberes científicos, mas, possibilitam interações que visam a qualificar o ensino de
História, ou melhor, o acesso por parte dos alunos ao campo científico da História.
Tais auxílios são necessários desde que não coloquem, por puro discurso
institucional, o método científico em História como ineficaz para a formação do
historiador. São disciplinas de auxílio, desde que não ocultem ou desestruturem a
espinha dorsal da História, que é o seu método em suas manifestações.
Do mesmo modo, são necessárias as disciplinas de Economia,
Sociologia, Ecologia, História da África, História da Arte e, no caso dessa realidade
específica, a Língua Portuguesa, tão essencial para as expressões historiográficas,
que muitas vezes podem ser comprometidas não por uma pesquisa ruim, mas pelo
uso desse vernáculo de forma desqualificada. Tais disciplinas são auxiliadoras,
sobretudo as sociais. Tais disciplinas são um legado de Marc Bloch, principalmente
porque essas interações revolucionaram o campo científico da História no início do
século XX, segundo os Annales.
Assim sendo, parte-se neste momento para algumas considerações e
ponderações necessárias para finalizar o que foi proposto na pesquisa.
94
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Bibliográficas
GLENISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 4. ed. São Paulo: Difel,
1983.
SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique Silva. Dicionário de conceitos
históricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
Teses e dissertações
JUNIOR, João Batista. Currículo e Prática Docente: formação teórica dos alunos
do curso de Licenciatura plena em História da Universidade Estadual do Piauí.
2000. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Fundação Universidade Federal
do Piauí, Piauí, 2000.
SANTOS, Marco Aurélio dos. Tempo histórico e o ensino de história. 2006. 134 f.
Dissertação (Mestrado em Educação, Administração e Comunicação) - Universidade
São Marcos, São Paulo, 2006.
100
Documentos
ANEXO
102
CADERNO 01
PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
DO CURSO DE HISTÓRIA
Bacharelado e Licenciatura
Coordenador: Prof. João Henrique Zanelatto
Coordenador Adjunto: Prof. Carlos Renato Carola
Secretária: Cleusa Espinhola Ramos
Revisão Ortográfica: Profª. Leila Lourenço
Comissão do PPP
Prof. Carlos Renato Carola
Prof. Dorval do Nascimento
Prof. Nivaldo Aníbal Goularte
Acadêmico Fernando Mazuchtt
2002