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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa II
Prof. Dr. Émerson de Pietri
Danielle Camara Silva, n.º USP 8027602

Ler o outro, escrever sobre si: uma proposta de trabalho com o gênero diário

▪ Resumo
Atividade didática que tem como objetivo, por intermédio da leitura de alguns trechos
de Minha vida de menina, de Helena Morley, proporcionar aos alunos uma compreensão
global das características do livro e dos elementos que compõem o gênero textual diário,
tendo como objetivo final uma produção escrita de cunho autobiográfico e autoral.

▪ Público-alvo e disciplina
1º ano do Ensino Médio; Curso Pré-Vestibular; Literatura; Escrita.

▪ Objetivos
O trabalho com o livro Minha vida de menina tem como objetivo principal proporcionar
aos alunos uma compreensão das características do livro e dos elementos que compõem o
gênero textual diário. Considerando a dificuldade de trabalhar livros mais extensos em sala de
aula, será realizado um recorte pelo professor, a fim de que sejam selecionados trechos que
garantam aos alunos o acesso às principais características do texto e do gênero. Mesmo que de
forma fragmentada, espera-se que o trabalho realizado em sala de aula estimule o aluno a
ampliar sua capacidade de leitura. Além disso, o trabalho de escrita sugerido como forma de
avaliação busca incentivar os alunos a desenvolverem uma escrita autoral, visto que o gênero
trabalhado tem como temática principal a subjetividade.

▪ Conteúdo
Em um primeiro momento, serão apresentadas as principais características do gênero
diário para os alunos. Em seguida, o livro Minha vida de menina será introduzido em uma
aula expositiva, de forma a criar um conhecimento prévio sobre ele antes do trabalho de
leitura. Posteriormente, duas atividades de leitura em grupos serão propostas com o
objetivo de orientar as percepções sobre o gênero diário. Primeiro, será realizado um
trabalho de leitura da “Nota à 1ª edição”, intermediado por uma atividade onde os alunos

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deverão localizar no texto as frases onde a escritora elabora definições e funções que se
relacionam com o gênero. Em seguida, os alunos realizarão a leitura de trechos do livro,
buscando destacar a presença das principais características do gênero diário e de marcas
linguísticas, histórias e culturais do contexto vivido pela autora. Após as duas atividades
de leitura, o professor deverá colocar em comum as percepções dos alunos, ressaltando
tópicos que considerar importantes. Além da participação nas atividades de leitura
realizadas em sala de aula, como avaliação, a ser realizada individualmente pelos alunos
como dever de casa, eles deverão colocar em prática a escrita do gênero diário, buscando
se aproximar de um texto com características autorais.

▪ Desenvolvimento

1ª aula: apresentação do gênero diário

O professor iniciará a aula anunciando o estudo do gênero discursivo “diário pessoal”.


Para verificar qual é a proximidade dos alunos com o novo tema, o professor deverá, em
um primeiro momento, colocar algumas perguntas visando incentivar a participação dos
alunos, como “vocês costumam escrever sobre os acontecimentos cotidianos das suas
vidas?”, “sobre quais acontecimentos vocês mais escrevem?”, “quem são os leitores dos
diários?”, “vocês conhecem diários pessoais que foram publicados como livros?”.
Em um segundo momento, o professor irá expor as características do gênero diário que
foram levantadas com os alunos anteriormente. Ele poderá colocar tópicos na lousa
enquanto as apresenta, entregar um documento impresso ou exibir um PowerPoint com
as informações para os alunos. É importante que as seguintes características do gênero
sejam abordadas: o diário apresenta uma perspectiva pessoal; registros de impressões
sobre acontecimentos cotidianos e questões íntimas, como sentimentos ou segredos; há
entradas com a data do momento no qual se está escrevendo; geralmente, se faz uso de
linguagem informal; os próprios autores costumam ser os seus únicos leitores, a não ser
quando decide-se publicá-lo; pode haver uma nomeação do diário; presença de marcas de
interlocução (conversas do autor com o diário, como em “querido diário”).
Sugere-se o trabalho de discussão com o seguinte trecho, retirado de O diário de Anne
Frank:

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Sábado, 20 de junho de 1942.

Escrever um diário é uma experiência realmente estranha para alguém como eu. Não
somente porque nunca escrevi nada antes, mas também porque acho que mais tarde
ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de 13 anos.
Bom, não importa. Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de
tirar todo tipo de coisas de dentro de meu peito. (FRANK; PRESSLER, 2004, p. 16)

A intenção é que o professor inicie uma conversa sobre a finalidade da escrita de


diários pessoais, demonstrando aos alunos como ele pode ultrapassar a esfera íntima da
criação de um espaço de escrita e atingir uma importante dimensão histórica, como no
caso dos escritos de Anne Frank. Nesse momento, o professor pode contar brevemente
sobre o diário de Anne Frank, contando que ele foi escrito durante a Segunda Guerra, em
um momento no qual Anne, sua família e conhecidos tiveram que se confinar em um
espaço secreto por serem judeus.
É importante ressaltar o trecho “acho que mais tarde ninguém se interessará, nem
mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de 13 anos”, fazendo os alunos perceberem
que o interesse pelo diário de Anne Frank reside justamente na particularidade da
perspectiva pessoal de uma garota sobre os acontecimentos de sua época, e também
“tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisas de dentro de meu peito”,
como uma vontade de externar por intermédio da escrita suas impressões e sentimentos
sobre sua vivência no esconderijo com sua família e os outros judeus.

2ª aula: apresentação do livro Minha vida de menina

O livro Minha vida de menina será apresentado aos alunos por intermédio de uma
breve exposição oral do professor, que contará alguns fatos e curiosidades. Sugere-se que
sejam abordadas as seguintes informações: se trata de um livro do gênero diário, escrito
entre os anos 1893 e 1895, por Helena Morley, pseudônimo da brasileira Alice Dayrell
Caldeira Brant, quando ela tinha entre 13 e 15 anos; apesar de ter sido escrito no fim do
século XIX, sua primeira edição foi lançada em 1942, quando Alice tinha 62 anos; a
estrutura do livro é definida pela divisão temporal nos três anos em que foi escrito: 1893,
1894 e 1895; o livro contém relatos pessoais sobre os acontecimentos relacionados ao
cotidiano da família de Morley e de seu círculo de conhecidos, que morava na cidade

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mineira de Diamantina, e, além disso, por intermédio de seus relatos, a jovem menina
mostra o funcionamento da sociedade da época.
Para introduzir o momento histórico no qual o livro foi escrito, o professor pode partir
do nome da cidade “Diamantina”, que se relaciona com a presença abundante e a extração
de diamantes, lembrando os alunos dos três ciclos econômicos do Brasil colônia (cana-
de-açúcar, ouro e café). Se detendo no Ciclo do Ouro, o professor pode lembrar que ele
foi descoberto em Minas Gerais no século XVII, em um momento no qual o Brasil ainda
era colônia de Portugal, que se usava trabalho escravo para sua extração e que o ouro
extraído era levado para a metrópole, o que motivou as Revoltas de Independência. Em
seguida, deverá lembrar que os relatos do livro se passam em um momento no qual a
proclamação da República e a abolição da escravatura eram fatos políticos recentes no
país, o que estará presente nos relatos de Morley.
Sugere-se que, caso a escola tenha disponíveis projetores ou sala de informática, que
o professor realize uma atividade com imagens da cidade e da escritora, oferecendo outros
recursos para o imaginário dos alunos sobre o contexto histórico e cotidiano de Morley.

3ª aula: iniciando o trabalho de leitura

Depois de apresentado o livro, os alunos irão trabalhar sua relação com as


características vistas do gênero diário. Para isso, em um primeiro momento, será utilizada
a “Nota à 1ª edição” (ANEXO 1) do livro Minha vida de menina, que será entregue
impresso aos alunos. Os alunos deverão ressaltar os trechos onde a escritora define o
gênero diário e expõe algumas de suas funções. Nesse momento, é possível que os alunos
trabalhem em duplas ou em trios, para que discutam e lembrem juntos as características.
No final da aula, o professor deverá colocar em comum com a turma os trechos
selecionados pelos alunos. Segue abaixo uma sugestão de trechos a serem apresentados e
de enunciados para explicar as funções levantadas:

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GÊNERO DIÁRIO
Definição “Em pequena meu pai me fez tomar o hábito de escrever o que sucedia
comigo.”
“Na Escola Normal o Professor de Português exigia das alunas uma
composição quase diária, que chamávamos "redação" e que podia ser,
à nossa escolha, uma descrição, ou carta ou narração do que se dava
com cada uma.”
Funções 1. O diário pode servir para ser relido pelo autor depois de algum tempo
para que ele se lembre do que viveu e das pessoas com quem conviveu:
“Quanto desabafo, quantas queixas, quantos casos sobre os tios, as
primas, os professores, as colegas e as amigas, coisas de que não
poderia mais me lembrar, depois de tantos anos, encontrei agora nos
meus cadernos antigos!”
“Relendo esses escritos, esquecidos por tanto tempo, vieram-me
lágrimas de saudades de meus bons pais, minha boa avó e minha
admirável tia Madge (...).”
2. Quando publicado no formato de livro, o diário pode servir para que os
leitores se interessem e conheçam a perspectiva de alguém que viveu em
uma época passada:
“Nasceu daí a ideia, com que me conformei, de um livro que mostrasse
às meninas de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples
que levávamos naquela época.”
3. É possível também que se estabeleça, a partir dos fatos passados
apresentados, uma comparação com a atualidade:
Não sei se poderá interessar ao leitor de hoje a vida corrente de uma
cidade do interior, no fim do século passado, através das impressões
de uma menina, de uma cidade sem luz elétrica, água canalizada,
telefone, nem mesmo padaria, quando se vivia contente com pouco,
sem as preocupações de hoje.

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4ª aula: trabalho de leitura e percepção das características

Em um segundo momento do trabalho com as características do gênero diário


expressas no livro Minha vida de menina, ainda nos grupos definidos na aula anterior, os
alunos receberão algumas entradas do diário de Morley. Eles deverão localizar as
principais características do gênero diário, como a entrada com data, relato de
acontecimentos cotidianos, apresentação de perspectivas pessoais, nomeação do diário e
marcas de interlocução. Também será solicitado que os alunos procurem por marcas
linguísticas, históricas e culturais que denotem o pertencimento do texto a outra época e
marcas de introdução do discurso de outras pessoas. Sugere-se que o professor entregue
uma tabela ou questões para os alunos com o conteúdo a ser levantado, de forma a
topicalizar o conteúdo a ser trabalhado.
Depois do trabalho dos alunos, o professor exibirá um slide com trechos destacados
com as respostas para discussão conjunta, como feito na aula anterior. Segue um exemplo
de como as características podem ser percebidas na entrada do dia 16 de fevereiro de 1894
(ANEXO 2):

Características do gênero diário em Minha vida de menina


Entrada com data Sexta-feira, 16 de fevereiro de 1894
Quais são os principais acontecimentos A narradora conta que Marciano levou sua
cotidianos relatados? mulher Florisbela, adormecida há dois
dias, para a chácara de sua avó.
Quais são as perspectivas pessoais 1. Ela casou com um negro que faz até
manifestadas pela narradora? tristeza.
(comentários ou uso de adjetivos para 2. (...) fazia pena ver Bela sentada perto do
expressar sua apreciação dos fatos) noivo, coitada.
3. Mesmo assim eu não queria que Bela
casasse com ele. Ela é tão bonitinha!
Parece até uma rosa-camélia, clara, corada
e com uns dentes lindos.
4. Ainda ficou mais bonita assim, de boca
e olhos fechados. Eu olho para ela toda

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hora na esperança de vê-la acordar. Estou
tão triste de vê-la assim!
5. Que coisa esquisita!
Há nomeação do diário? Não
Há marcas de interlocução? (conversas do Vou escrever aqui o que aconteceu hoje
autor com o diário ou com um suposto na Chácara de vovó (...).
leitor)
É possível identificar marcas históricas, Referência à Lei Aúrea e proximidade da
culturais ou linguísticas? (eventos, época de escravidão:
atividades ou palavras próprios da época 1. “Vovó sempre se queixa que a Lei de
na qual o diário foi escrito) Treze de Maio serviu pra dar liberdade a
todo mundo menos a ela, que ficou com a
casa cheia de negros, velhos, negras e
negrinhos.”
2. “A senzala antiga tem um quarto de
noivos que dá para o terreiro.”
Há incorporação dos discursos de outras 1. No dia do casamento meu pai disse: "É
pessoas? um brilhante no focinho de um porco”
2. Vovó sempre se queixa que a Lei de
Treze de Maio serviu pra dar liberdade a
todo mundo menos a ela (...).
3. Marciano contou a história. Diz ele que
um companheiro (...)
4. O doutor já viu e disse que não tem
nada a fazer; é só esperar.

Os dez minutos finais da aula deverão ser reservados para a explicação do trabalho
escrito a ser realizado pelos alunos (especificado adiante, no tópico avaliação).
Caso tenha mais aulas disponíveis para a sequência didática, é possível que o professor
realize a exibição do filme Vida de Menina, de Helena Solberg, solicitando que os alunos
observem os recursos utilizados pela diretora na transposição do gênero diário ao
audiovisual.

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▪ Recursos didáticos
Instrumentos: lousa; giz; slides.
Modos de apropriação, distribuição e circulação dos textos: cópias com os trechos
do livro a serem trabalhados, para que os alunos possam fazer anotações durante a
exposição oral do professor. Espera-se também que os alunos possuam um exemplar do
livro, que possam emprestá-lo na biblioteca da escola ou que possam adquirir uma cópia
na internet.
Modos de organização do espaço da sala de aula e de interação entre os sujeitos:
durante a atividade de leitura e debate sobre os trechos, as carteiras serão organizadas em
grupos.

▪ Avaliação
A atividade final será a escrita de um diário pelos alunos durante o período de uma
semana. Após o trabalho com um livro que foi escrito pela autora em idade próxima à dos
alunos, a proposta é que os alunos encontrem na escrita autobiográfica estímulos para
trabalhar o gênero diário de forma autoral, como sugerido por POSSENTI (2002),
inserindo a subjetividade de suas experiências cotidianas em um quadro histórico que lhe
dê sentido.
Para tanto, serão considerados pelo professor, o respeito às características do gênero
diário (registro da data, uso da 1ª pessoa, linguagem informal, direcionamento ao leitor,
assuntos de cunho subjetivos ou íntimos). Além disso, será considerado o posicionamento
do aluno frente aos fatos narrados, como, por exemplo, a presença de descrições, adjetivos
e características que expressem suas impressões pessoais frente aos acontecimentos. Ele
também poderá evidenciar outros pontos-de-vista, por intermédio da inserção de
discursos de outras pessoas em seu texto.
Os alunos poderão utilizar outros suportes além do papel e caneta, atualizando as
características do gênero. É possível estimular a criação de um blog pessoal, onde os
alunos podem utilizar os hiperlinks como recurso para inserir publicações do Facebook,
Instagram, YouTube ou outros sites que tenham visitado em determinado dia, além de
inserir fotos e vídeos. Também é possível a realização de vídeos para o YouTube, desde
que o aluno respeite as características definidoras do gênero.

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▪ Bibliografia

FRANK, Otto; PRESSLER, Mirjam (Orgs.) O diário de Anne Frank. 20. ed. Tradução
de Ivanir Alves Calado. Rio de Janeiro: Record, 2004.
MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
POSSENTI, Sirio. Indícios de autoria. Revista Perspectiva, Florianópolis, v.20, n.01,
p.105-124, jan./jun. 2002.

▪ Filmografia

Vida de menina. Adaptação de Helena Solberg (2003). Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=0pJZDAJkFyA> Acesso em 03. nov. 2018.

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▪ Anexos

Anexo 1: Nota à 1ª edição

Em pequena meu pai me fez tomar o hábito de escrever o que sucedia comigo. Na Escola
Normal o Professor de Português exigia das alunas uma composição quase diária, que
chamávamos "redação" e que podia ser, à nossa escolha, uma descrição, ou carta ou
narração do que se dava com cada uma. Eu achava mais fácil escrever o que se passava
em torno de mim e entre a nossa família, muito numerosa. Esses escritos, que enchem
muitos cadernos e folhas avulsas, andaram anos e anos guardados, esquecidos.
Ultimamente pus-me a revê-los e ordená-los para os meus, principalmente para minhas
netas. Nasceu daí a ideia, com que me conformei, de um livro que mostrasse às meninas
de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples que levávamos naquela época.
Não sei se poderá interessar ao leitor de hoje a vida corrente de uma cidade do interior,
no fim do século passado, através das impressões de uma menina, de uma cidade sem luz
elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria, quando se vivia contente com
pouco, sem as preocupações de hoje. E como a vida era boa naquele tempo! Quanto
desabafo, quantas queixas, quantos casos sobre os tios, as primas, os professores, as
colegas e as amigas, coisas de que não poderia mais me lembrar, depois de tantos anos,
encontrei agora nos meus cadernos antigos!
Relendo esses escritos, esquecidos por tanto tempo, vieram-me lágrimas de saudades de
meus bons pais, minha boa avó e minha admirável tia Madge, a mulher mais
extraordinária que já conheci até hoje e que mais influência exerceu sobre mim, pelos
seus conselhos e pelo seu exemplo.
Nesses escritos nenhuma alteração foi feita, além de pequenas correções e substituições
de alguns nomes, poucos, por motivos fáceis de compreender.
Agora uma palavra às minhas netas. — Vocês que já nasceram na abastança e ficaram tão
comovidas quando leram alguns episódios de minha infância, não precisam ter pena das
meninas pobres, pelo fato de serem pobres. Nós éramos tão felizes.' A felicidade não
consiste em bens materiais mas na harmonia do lar, na afeição entre a família, na vida
simples, sem ambições— coisas que afortuna não traz, e muitas vezes leva.

Rio, setembro de 1942.


HELENA MORLEY

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Anexo 2: Sexta-feira, 16 de fevereiro de 1894
A Escola abriu ontem e as aulas vão começar segunda-feira. Recebemos a lista dos
livros mas ainda não deram os horários. Todos animados.
Vou escrever aqui o que aconteceu hoje na Chácara de vovó e que é muito triste. As
negras da Chácara do tempo do cativeiro são todas pretas, mas não sei por que saiu uma
branca e bonita. Chama-se Florisbela mas nós a tratamos de Bela. Ela casou com um
negro que faz até tristeza. No dia do casamento houve uma mesa de doces e fazia pena
ver Bela sentada perto do noivo, coitada. Marciano é o negro mais estimado da Chácara.
Aprendeu o ofício de ferreiro e entra na sala para cumprimentar vovó e minhas tias.
Mesmo assim eu não queria que Bela casasse com ele. Ela é tão bonitinha! Parece até
uma rosa-camélia, clara, corada e com uns dentes lindos. No dia do casamento meu pai
disse: "É um brilhante no focinho de um porco". Todo mundo teve pena. Mas ela quis e
vovó diz que gostou porque Marciano é muito bom e trabalhador.
Vovó sempre se queixa que a Lei de Treze de Maio serviu pra dar liberdade a todo
mundo menos a ela, que ficou com a casa cheia de negros velhos, negras e negrinhos. Ela
gosta quando casa qualquer delas; dá enxoval e uma mesa de doces. A senzala antiga tem
um quarto de noivos que dá para o terreiro. De vez em quando tem que se arranjar o quarto
para um casamento. Vovó fica contente e já se casaram muitas. Bela é que foi a última e
já está tão infeliz!
Marciano hoje trouxe-a numa rede com um companheiro ajudando. Ele foi tirando
Bela da rede, todos nós gritamos horrorizados e ele disse: "Não está morta, não, é coisa-
feita". Vovó mandou pô-la numa mesa dura, só com um travesseiro, vestida como estava.
Ela está morta viva. A gente só sabe que ela está viva porque põe um espelho diante da
boca e ele esfumaça. Mais nada, nada! Não se move. Ainda ficou mais bonita assim, de
boca e olhos fechados. Eu olho para ela toda hora na esperança de vê-la acordar. Estou
tão triste de vê-la assim! Bela era como filha de vovó e todos nós lhe queremos tanto!
Marciano contou a história. Diz ele que um companheiro que comia e vivia com ele,
invejou vê-lo casado com Bela branca e bonita e quis fugir com ela. Como ela não
quisesse, levou-lhe uma garrafa de vinho preparado, que ela foi tomando e caindo como
morta. Ele ainda esperou na Formação um dia que ela acordasse, mas desanimou e trouxe-
a para aqui.
Ele fica sentado junto dela olhando-a e chorando. O doutor já viu e disse que não tem
nada a fazer; é só esperar. Que coisa esquisita! Hoje já faz dois dias que ela está assim.
Amanhã espero em Deus que quando chegar à Chácara já ache Bela acordada.

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