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O conceito de direito real

Dilvanir José da Costa

Sumário
1. Introdução. 2. Caracteres do direito real
e do direito obrigacional. 3. Efeitos do direito
real. 3.1. Obrigações com eficácia real. 4.
Requisitos do direito real. 5. Sistemas de
constituição dos direitos reais. 6. Funções do
registro imobiliário. 7. Classificação dos
direitos reais. 8. Evolução do direito de
propriedade. 9. Fundamentos do direito de
propriedade. 10. Limitações ao direito de
propriedade.

1. Introdução
Henri Capitant considera a distinção
entre direito real e direito obrigacional “a
espinha dorsal do direito privado”. Por isso,
a melhor técnica para se conceituar o direito
real é compará-lo e distingui-lo do direito
obrigacional. O conceito objetivo e didático
desse instituto pode ser obtido por meio de
sua análise sob três aspectos: caracteres,
efeitos e requisitos.

2. Caracteres do direito real e do


direito obrigacional
O que mais caracteriza o direito real é o
jus in re ou poder direto do titular sobre a
coisa. Mestre Orozimbo Nonato afirmou, em
sua linguagem exuberante, que “o traço
conspícuo do direito real é a senhoria
Dilvanir José da Costa é Professor de direta”. No relatório do projeto do Código
Direito Civil nos cursos de graduação e pós- Civil alemão, lê-se que “a essência da
graduação da Faculdade de Direito da UFMG. realidade reside no poder imediato da
Doutor em Direito Civil. Advogado. pessoa sobre a coisa”. Isso significa que,
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na relação real, o titular se acha vinculado do titular), a cargo de sujeitos passivos
diretamente à coisa, podendo exercer indeterminados na sociedade, os quais se
imediatamente o seu direito real sem depen- determinam eventualmente, à medida que
dência da prestação de outra pessoa. É por descumprem o dever de abstenção e se
isso uma relação atual e induvidosa e uma sujeitam às ações reais do titular.
situação tranqüila para o titular, que já
domina a coisa e pode exclamar: tenho 3. Efeitos do direito real
jus in re!
Os caracteres de um instituto jurídico
Diferente é a situação do credor de uma
produzem o seu visual, enquanto os seus
obrigação que tem por objeto a prestação de efeitos estão ligados ao seu poder, à sua
um direito real sobre a mesma coisa. Ele tem capacidade e utilidade.
apenas um jus ad rem ou direito à coisa ou O poder direto sobre a coisa, caráter
direito de crédito sobre a mesma. Sendo mero básico do direito real, conduz ao primeiro
credor de uma prestação de transferência efeito ou vantagem desse direito: o poder de
do domínio ou de constituição de outro extrair do seu objeto os benefícios ou
direito real, ele apenas crê ou confia na proveitos inerentes – usar diretamente ou
honestidade e solvabilidade do devedor, que por meio de terceiro (emprestar), fruir
poderá decepcioná-lo, descumprindo a (alugar) e dispor (alienar, alterar, destruir,
obrigação e frustrando-lhe a expectativa de consumir).
atingir o direito real. Por isso se diz que o O poder absoluto ou erga omnes tem como
poder do credor da coisa é indireto ou efeito prático ou vantagem o direito de
mediato, porque se exerce por intermédio do seqüela ou de seguir, perseguir o objeto de
devedor, que se obrigou a constituir o direito seu direito onde quer que esteja e reivindicá-
real em favor daquele. E assim o direito do lo do poder de quem injustamente o possua.
credor encerra uma esperança, uma dúvida Os romanos já proclamavam: “ubicunque sit
ou interrogação até que se transforme em res, domino suo clamat” – a coisa clama por seu
direito real. dono.
Outro caráter típico do direito real é o A seqüela, que decorre do poder absoluto,
poder absoluto do titular sobre a coisa, constitui efeito típico do direito real, de par
porque se exerce erga omnes ou contra toda a com o jus utendi, fruendi et abutendi, que
coletividade, que deve-se abster de perturbar decorre do poder direto sobre a coisa.
essa relação (dever geral de abstenção ou Tão relevantes são esses dois efeitos do
obrigação passiva universal). O poder direito real que o Código Civil, no artigo 524,
indireto ou mediato do credor de uma define o direito de propriedade (síntese dos
prestação se exerce apenas contra ou direitos reais) sob tais aspectos, decorrentes
relativamente ao devedor da mesma, em do poder direto (uso, fruição e alienação) e
razão do princípio milenar de que a sen- do poder absoluto (seqüela ou reivindica-
tença e o contrato só vigoram entre as partes, ção), como se pode conferir:
em regra. “A lei assegura ao proprietário o
Enquanto a obrigação típica tem por direito de usar, gozar e dispor de seus
objeto uma prestação positiva ou negativa bens, e de reavê-los do poder de quem
determinada (dar, fazer, não fazer, inde- quer que injustamente os possua.”
nizar), a cargo de um sujeito passivo A obrigação típica não é dotada de
determinado, a qual somente dele e de seqüela. Assim, se alguém contrata a
eventual co-obrigado pode ser exigida, o aquisição de um objeto móvel e não o recebe
direito subjetivo real do titular corresponde do alienante por meio da tradição, só dispõe
a uma obrigação negativa ou abstenção de um crédito sobre o mesmo. Se o alienante
(dever geral de não perturbar o direito real vem a dispor do objeto novamente e o
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entrega a terceiro, este se torna dono. O mesmo (advertido pelo registro do pacto).
primeiro adquirente não pode voltar-se Há um princípio segundo o qual a alienação
contra o terceiro para exigir o objeto, por falta rompe a locação. No entanto, a cláusula
de seqüela. Só pode postular resolução do supra passa a conter eficácia real, ou seja, o
contrato contra o alienante inadimplente, locatário se vincula ao uso do imóvel com o
com perdas e danos. O mesmo ocorre com o mesmo poder de seqüela inerente ao direito
contrato de aquisição de imóvel ou consti- real.
tuição de direito real imobiliário, antes da Outro exemplo é a denominada obriga-
sua transcrição no Registro Público. ção real ou propter rem (que nasce não da
Outro efeito do direito real é a preferência, vontade das partes, mas em decorrência
inerente aos direitos reais de garantia. Por mesma da vinculação de alguém a certa
ser duvidosa e vulnerável, a obrigação coisa polêmica, como no condomínio e nos
recorre ao direito real para se garantir e tapumes divisórios). A obrigação de pagar
assegurar a sua realização. Recorre aos taxas de administração do condomínio ou
subsídios da seqüela e da preferência. Para despesas com tapumes divisórios constitui
tanto, as partes numa obrigação vinculam uma necessidade imperiosa, exigida pela
uma coisa móvel ou imóvel do devedor ou própria coisa, que por isso deve responder,
de terceiro (que adere ao pacto) ao cumpri- em última hipótese, pela sua solução, seja
mento da mesma. Tal vínculo acessório de quem for o respectivo proprietário. O credor
garantia real faz com que o credor não só pode penhorar a coisa que gerou os gastos,
tenha seqüela sobre a coisa oferecida em em poder de quem esteja ou erga omnes. Por
garantia como exerça preferência para isso se diz que tal obrigação é ambulatória
receber seu crédito com o produto da sua ou ambulat cum domino ou acompanha o
penhora e venda em execução. A obrigação novo dono da coisa.
simples ou típica não dispõe dessas vanta-
gens: tem todo o patrimônio do devedor 4. Requisitos do direito real
como garantia, mas este pode dispor de tudo
Cerca de noventa por cento dos direitos
livremente e se tornar insolvente à época da
reais são constituídos por meio da compra e
execução. No direito real de garantia ou
venda, da permuta, da doação e da dação
obrigação com garantia real, o credor exerce
em pagamento (inclusive em hasta pública
seqüela e preferência sobre bens destacados
e desapropriação ou venda compulsória).
do patrimônio do devedor ou de terceiro, os
Os demais o são por acessão, usucapião,
quais não podem escapar à execução da
sucessão hereditária e outros restritos
obrigação.
modos de aquisição. Daí a importância da
tradição como modo de aquisição dos móveis
3.1. Obrigações com eficácia real e da transcrição do título no registro imobi-
A vantagem da seqüela no direito real liário para a constituição dos direitos reais
ou poder de perseguir o seu objeto erga omnes sobre os imóveis. Em nosso direito civil, não
é tão importante que certas obrigações se basta o consentimento das partes nos contra-
distinguem das comuns ou típicas, por serem tos para se adquirir o domínio ou outro
dotadas de eficácia real ou direito de seqüela direito real. O efeito constitutivo decorre da
ex vi legis ou por sua própria natureza. Um tradição ou entrega real ou simbólica ou
exemplo está no artigo 1.197 do Código Civil, formal dos móveis e da transcrição do
em que um contrato de locação por prazo contrato ou título respectivo no registro
certo, com cláusula de vigência no caso de imobiliário da situação do imóvel. Numa
alienação do imóvel, inscrita no registro palavra, o requisito do direito real é a
público, será respeitado ou cumprido até o publicidade, por meio da tradição e da
seu final pelo eventual adquirente do transcrição. Se o direito real é dotado de
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eficácia erga omnes, tal como a lei, é imperioso Em nosso código, foi consagrado o
que seja conhecido de todos, assim como sistema romano da duplicidade formal –
ocorre com a publicidade das leis. contrato mais tradição (art. 620) e contrato
Quanto aos móveis em geral, não há mais transcrição (art. 530, I), em relação aos
forma de publicidade mais prática e eficiente móveis e aos imóveis, respectivamente.
do que a tradição ou movimentação dos Ainda não adotamos o sistema alemão
objetos. Certos móveis de maior valor e da presunção absoluta do direito real por
importância, assim como os direitos reais meio da inscrição no cadastro imobiliário,
mobiliários de garantia, dispõem de registros com a garantia do Estado. Nosso sistema é
especiais de títulos e documentos, registros o da presunção relativa, admitindo-se a
administrativos etc. anulação tanto do contrato ou título causal
como do registro, mediante ação judicial.
5. Sistemas de constituição
dos direitos reais 6. Funções do registro imobiliário
Tema correlato é o das funções atribuídas
Adotamos o sistema romano-germânico
ao registro imobiliário, que são as seguintes:
de constituição dos direitos reais ou sistema
a) publicidade: tal como a lei, o direito
da duplicidade formal (contrato ou título
real, com eficácia erga omnes, deve ser
causal seguido da tradição ou da transcrição
no registro público). Os romanos o resu- divulgado para conhecimento e segurança
miram nesta fórmula: “traditionibus vel de terceiros, os quais têm livre acesso ao
usucapionibus, non nudis pactis, dominia rerum cadastro por meio de certidões com fé
transferuntur”. O domínio das coisas se pública;
transfere pela tradição (e hoje pela trans- b) constitutiva do direito real: se a publici-
crição, quanto aos imóveis), e não pelos dade é a segurança de terceiros, a função
contratos apenas. Os alemães aperfeiçoaram constitutiva do direito real é a segurança do
esse sistema instituindo o registro ou titular, que vê nascer o seu direito por meio
cadastro imobiliário com eficácia absoluta do registro do título ou contrato. É o que
ou juris et de jure, inicialmente para garantir ocorre na hipótese do artigo 530, I, do
os créditos hipotecários. Código Civil;
O outro sistema é o da unidade formal, c) função declaratória: atua nas hipóteses
em que basta, em princípio, o contrato ou do artigo 530, II, III e IV, do Código Civil –
título para gerar direito real, pelo menos aquisição pelos modos autônomos da
entre as partes. É adotado pelo Código Civil acessão, do usucapião e do direito heredi-
francês: “por efeito das obrigações” (art. 711) tário, os quais independem de transcrição
e “independente da tradição”(art. 1138), para constituir o direito real. O registro se
seguido pelo italiano e pelo português (arts. faz com efeito declaratório apenas, a fim de
408, 879, 1.316). aperfeiçoar um direito real já constituído por
Segundo Mazeaud, o sistema francês outro modo autônomo. Serve inclusive para
seria a evolução da tradição no sentido da valorizar o direito real, ensejando a sua
desmaterialização até a sua eliminação, a alienação e constituição de outros direitos
fim de dinamizar as transações. Mas, diante reais (hipoteca, servidão);
dos riscos das transmissões ocultas, com d) continuidade ou seqüência: é a função
prejuízos para terceiros, o sistema vem histórica do registro, vinculando os títulos
sendo atenuado e aproximado do nosso, por causais e facilitando o acesso à evolução dos
meio do princípio “em relação aos móveis a direitos reais sobre determinado imóvel;
posse equivale ao título” e do preceito que e) função probatória: o registro imobiliário,
veio atribuir prioridade “ao primeiro que pu- mediante certidões expedidas livremente,
blicar a aquisição do imóvel” (Lei de 4.1.55). constitui prova do direito real, aceita sem
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contestação enquanto não for alterado o no artigo 674 como direito real típico. Seria
registro pelos meios legais. direito real especial.

7. Classificação dos direitos reais 8. Evolução do direito de propriedade


A) Direitos reais na coisa própria: Segundo o renomado jurista português
I – domínio pleno ou plena in re potestas Luiz da Cunha Gonçalves, dois equívocos
ou síntese de todos os direitos reais; levaram os socialistas a negar a existência
II – domínio direto, nua propriedade, do direito de propriedade nos primórdios
propriedade limitada, gravada ou onerada: da civilização. O primeiro foi tratar da
substância jurídica da propriedade esva- história do direito de propriedade em geral
ziada do conteúdo econômico ou limitada como se estivessem encarando apenas a
por um ônus ou gravame. história da propriedade da terra. Esta foi
B) Direitos reais na coisa alheia: bastante posterior ao domínio dos bens de
I – de gozo ou fruição: enfiteuse, usufruto, uso pessoal, por várias razões e circunstân-
uso, habitação, servidão predial, concessão cias óbvias. No início da civilização, havia
de uso; mais terra do que os pretendentes ao seu
II – de garantia: penhor, hipoteca, anti- uso, posse e domínio. Não havia cobiça nem
crese, alienação fiduciária e constituição de disputa da terra. Os homens primitivos eram
renda imobiliária; nômades e viviam da caça e da pesca ou
III – de aquisição: promessa de compra e mesmo do pastoreio em grandes áreas
venda irrevogável e sua cessão, inscritas no
disponíveis. A agricultura, que exige o
registro imobiliário (arts. 5º, 16 e 22 do DL
contato maior com a terra, surgiu em fase
58/37); compra e venda com cláusula de
posterior, com o povoamento e maior neces-
retrovenda (art. 1.140 do CCB); direito de
sidade de alimentos. Também, por proble-
preferência do condômino na venda de coisa
mas climáticos e geográficos, muitas áreas,
indivisível (arts. 632, 1.139 e 1.777 do CCB);
mesmo agora, deixam de ser interessantes
direito de preferência do locatário e do
ou cobiçadas, em razão das dificuldades ou
arrendatário rural (art. 33 da Lei 8.245/91 e
art. 92, §§ 3º e 4º, da Lei 4.504/64; direito de impossibilidade mesma do cultivo: os
preferência na enfiteuse (arts. 685 e 689 CCB). desertos, as regiões polares e até mesmo as
C) Posse: a posse está mais para o direito terras áridas como certas partes do nordeste
real do que para o direito obrigacional, brasileiro. Donde o segundo equívoco: não
embora seja condição da utilização das houve, como alegam, um comunismo ou
coisas em ambos esses direitos. A posse pura coletivismo da terra no início. O que houve
ou natural, independente de contrato e de foi a desnecessidade e o desinteresse pela
direito real, é um fato juridicamente rele- sua apropriação individual.
vante e, portanto, um direito amparado Quanto ao primeiro equívoco, de confun-
pelos interditos e capaz de se transformar dir a propriedade em geral com o domínio
em domínio, se atendidos os demais requi- da terra, o grande civilista conclui, categó-
sitos do usucapião. A posse contratual, rico, que a propriedade individual dos bens
objeto de direito obrigacional, é protegida ou objetos de uso pessoal – alimentos,
pelos interditos, inclusive contra o dono, vestuário ou agasalho, habitação e objetos
embora não seja objeto de usucapião. Mas de caça e pesca – sempre existiu, por ser um
sobretudo os direitos reais de gozo depen- sentimento inato e instintivo tanto no
dem da posse, como instrumento indispen- homem adulto como na criança e até nos
sável ao uso direto ou à fruição da coisa. irracionais. Ninguém ousaria subtrair-lhes
Por isso o nosso código a incluiu no Livro o alimento ou a moradia sem sujeitar-se a
do Direito das Coisas, embora não prevista violenta reação.
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Já a disputa da terra somente veio muito exploração, titular do domínio direto ou
depois, com a multiplicação da espécie substância jurídica da propriedade. Além
humana e a necessidade da agricultura em da contribuição econômica ou foro periódico
maior escala. Nessa nova fase, sempre existiu e do laudêmio pela transferência da gleba a
a divisão e a posse da terra em faixas deter- terceiro, o vassalo ainda se obrigava a ser
minadas, para cultivo por uma classe fiel ao senhor da terra, para juntos defenderem-
especial de pessoas estabelecidas ou fixas -na contra eventuais invasores.
em um território, por razões óbvias: a Esse regime econômico-político da
agricultura é atividade não só técnica como propriedade perdurou por toda a Idade
árdua e dependente de qualidades e dotes Média, beneficiando os senhores feudais ou
especiais para o seu manejo, inclusive muita nobreza e a Igreja, como titulares do domínio
dedicação e paciência. Nem todos são aptos sobre vastas áreas de terras. O regime se
para esses misteres laboriosos e cansativos. transformou em forma de exploração dos
Por isso, muitos desistem e repassam suas usuários pelos senhores da terra, gerando
propriedades. movimentos de revolta que culminaram com
A História dá o testemunho da existência a Revolução Francesa de 1789, quando se
da propriedade individual da terra em todas proclamou a liberação dos ônus feudais,
as civilizações conhecidas, por meio de suas passando a propriedade a ser plena e
respectivas legislações: o Código de Hamu- exclusiva em favor dos usuários.
rabi na Babilônia, o Código de Manú na Logo em seguida, o Código Civil francês
Índia, a Lei Mosaica, as leis gregas e as XII – Código de Napoleão (1804) –, primeiro
Tábuas em Roma. Consagrando a experiên- grande código civil da era moderna, definiu
cia de milênios, os romanos aprovaram o o direito de propriedade nos moldes do
primeiro grande código civil, o Corpus Juris Direito Romano, como direito de usar, gozar
Civilis, no século VI de nossa era, reconhe- e dispor da coisa de forma absoluta, no que
cendo e disciplinando o direito de proprie- foi seguido pelas demais nações da Europa
dade privada tal como veio a ser adotado e de todo o mundo civilizado.
por todas as nações modernas, com as Não demorou, porém, a surgir a reação
limitações exigidas pelas circunstâncias. Foi dos socialistas contra a propriedade indivi-
consagrado o jus utendi, fruendi, abutendi et dual e absoluta, a partir do Manifesto
reivindicandi, que encerram os poderes do comunista de 1848 na França, liderado por
proprietário em relação à coisa, de forma Marx e Engels, pregando a propriedade
exclusiva e absoluta. coletiva dos bens de produção. Essas
Não demorou muito e veio a ser implan- idéias deflagraram a Revolução Soviética
tado na Europa um novo modelo de proprie- de 1917, que implantou ali o novo regime de
dade, em conseqüência das ameaças de propriedade.
invasões de terras pelos povos conquista- Na mesma época, a Constituição alemã
dores. Primeiro foram os bárbaros germanos, de Weimar deu um grande passo para a
que invadiram e dominaram o Império socialização do direito de propriedade,
Romano do ocidente e trataram de estabe- proclamando o imperativo da sua função
lecer um regime político e jurídico de social. Esse novo conceito teve grande
propriedade que assegurasse a sua defesa e repercussão, inclusive em nosso país, em que
preservação: a propriedade feudal, cindida as Constituições, a partir de 1934, passaram
ou dividida entre dois titulares, sendo um o a assegurar o direito de propriedade como
usuário, feudatário ou vassalo, titular do regra, mas estabeleceram, como exceção ao
domínio útil, perpétuo e alienável, inclusive princípio, a sua função social, sintetizando
por sucessão hereditária, e o outro o senhor todo o complexo de restrições e limitações à
feudal ou concessionário real da terra para propriedade privada.
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A despeito de todas as idéias e movi- restritas exceções. A caça e a pesca vão-se
mentos contrários a essa instituição, ela restringindo a ponto de constituirem crime...
continua sendo, tal como o instinto de As coisas sem dono e as coisas abando-
conservação da vida, um imperativo das nadas estão cada vez mais reduzidas,
necessidades e do egoísmo do homem, seu limitando-se praticamente ao lixo, cuja
caráter fundamental, na expressão de remoção custa taxa municipal onerosa.
Cunha Gonçalves, com esta citação de Logo, a ocupação por si não justifica hoje
Ihering: “egoísmo que só conhece a si a apropriação das coisas, a menos que se
próprio, só quer para si mesmo, e contudo associe aos demais requisitos do usucapião,
ele construiu o mundo.” E conclui que o este sim um modo técnico e autônomo de
próprio Proudhon, que afirmou “la proprieté aquisição sancionado pela consciência
c’est le vol”, veio a reconhecer que “la jurídica universal.
proprieté c’est la liberté.” b) Teoria do trabalho. O trabalho seria a
fonte e fundamento da propriedade. Também
teve algum sentido na era pré-civilizada,
9. Fundamentos do direito de quando a natureza era pródiga e a produção
propriedade não carecia de capitais. O trabalho era tudo.
Existem quatro teorias principais sobre Com a civilização, destacaram-se outros
o tema: fatores da produção – a terra, as máquinas e
a) Teoria da ocupação. O fundamento do equipamentos, a energia, as vias de comu-
direito de propriedade seria a ocupação ou nicação, o transporte, a tecnologia e uma
apropriação das coisas pela anterioridade infinidade de valores dependentes de
na sua posse. Não haveria outro sentido recursos ou capitais.
para a teoria, desde que a ocupação das A teoria, atribuída aos economistas
coisas já possuídas por terceiro constituiria radicais ou comunistas, serviu ao propósito
invasão de propriedade alheia ou esbulho, de valorizar e resgatar o trabalho como fator
o que seria contraditório. da produção, diante da sua exploração pelos
Com relação aos imóveis, a teoria teria demais agentes da economia.
c) Teoria da lei. Atribuída aos juristas
tido razão completa nos tempos primitivos,
positivistas. A lei seria o único fundamento
relativamente aos primeiros ocupantes das
da propriedade, que existiria ou não con-
terras sem dono (res nulius); ou mesmo em
forme e segundo a determinação legal.
relação aos descobridores de novos conti-
Mas isso não constitui fundamento e sim
nentes ou primeiros ocupantes de terras e arbítrio de determinado regime legal. A lei
ilhas desabitadas. Seria polêmica a ocupa- institui e regulamenta a propriedade
ção se nessas terras houvesse tribos indíge- segundo determinada concepção desse
nas invocando seus direitos de precedência. instituto. Essa concepção é que deve-se
Mas ainda assim a teoria teria sentido e lastrear num fundamento, que será ou não
fundamento se encarada a propriedade sob justo, razoável ou racional.
os aspectos sociais da melhor ocupação, Logo, a lei por si só regula um sistema
exploração e desenvolvimento. de apropriação dos bens, segundo uma
Quanto aos móveis, as novas concepções concepção. A justificação racional do insti-
sobre o meio ambiente jogaram por terra até tuto tem outro fundamento mais profundo.
mesmo o modo técnico de aquisição da d) Teoria da natureza humana. Assim
propriedade móvel pela ocupação, consagrado chegamos ao verdadeiro fundamento do
nos códigos civis, por meio da caça e da pes- instituto.
ca. Já não constituem acessórios das terras, A propriedade individual é tão instintiva
pertencentes aos respectivos proprietários, que decorre de sensações humanas: prazer,
os animais bravios e até os peixes, salvo dor, apetite, carência de bens.
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As necessidades básicas humanas exi- as teses individualistas e socialistas sobre a
gem um mínimo de apropriação de bens que propriedade e seu uso em benefício das
nenhum regime pode negar sem ofensa a pessoas e das coletividades.
direito humano primário e elementar. A Revolução comunista russa de 1917
Uma série de fatores torna os homens pôs fim à propriedade privada dos bens de
desiguais, inclusive pela maior capacidade, produção, incorporados ao Estado socia-
dedicação ao trabalho e ambição maior. Por lista dos trabalhadores e camponeses.
isso, às necessidades básicas se somam A Constituição alemã de Weimar (1919)
outras de proporções variáveis, dilargando inaugurou a era das leis fundamentais con-
o conteúdo da propriedade individual. As sagrando a “função social da propriedade”.
relações familiares e de parentesco ampliam Nossas Constituições, a partir de 1934,
esse conteúdo, com repercussões no direito passaram a abrigar o direito de propriedade
sucessório. como regra e, como exceção, a sua função
Pessoa humana e família justificam a social.
propriedade individual, de que carecem A polêmica hoje se restringe à extensão
para sobreviver e se realizar com dignidade. do conceito de função social, que vai-se am-
A polêmica surge na sua limitação e pliando a cada dia, sob variados enfoques.
regulamentação racionais, em função da A despeito da restauração do direito de
organização social e da necessidade de soli- propriedade sobre os bens de produção e
dariedade humana, previdência social etc. do direito sucessório nas repúblicas socia-
Logo, a natureza humana carente é o listas da Rússia e populares da China, e da
fundamento do direito de propriedade, que queda do regime comunista, o caráter ou
deve atender aos imperativos da solidarie- função social da propriedade decorre da
dade social. socialização do Direito em todo o mundo
moderno.
10. Limitações ao direito de Seria ocioso apontar as áreas de inci-
propriedade dência das limitações, no Direito Privado,
O regime de propriedade com caráter no Direito Social e no Direito Público. Basta
individualista e absoluto está hoje definiti- referir os aspectos mais amplos dos limites
vamente proscrito nas Constituições e na quanto ao seu conteúdo, profundidade e
legislação ordinária dos povos de quaisquer projeção aérea, com todas as implicações
ideologias. (minerais, águas, florestas, fauna, aerona-
O poder de usar, gozar e dispor dos bens vegação, urbanismo, parcelamento do solo,
da forma mais absoluta foi concepção do edificações e construções); direito de vizi-
Código de Napoleão (1804), consagrando nhança clássico e seus desdobramentos
as idéias liberais da Revolução Francesa, modernos que descambam na vizinhança
contrária ao absolutismo e ao regime da internacional e no Direito Ambiental; as
propriedade feudal das terras, com graves desapropriações tradicionais por neces-
ônus para os seus usuários ou vassalos. sidade e utilidade pública, que se ampliam
Já em meados do século XIX, foi lançado para se estender ao interesse social da
o Manifesto Comunista, liderado por Marx agricultura, da industrialização, das refor-
e Engels, contrário a tal regime de proprie- mas agrária e urbana; a Ordem Econômica
dade e pregando sua extinção, pelo menos que intervém na produção, na circulação,
em relação aos bens de produção, como meio na distribuição, no mercado e no consumo
de se pôr fim à luta de classes. de bens; o Direito Social que defende o
As encíclicas papais, a partir da “Rerum trabalhador, o locatário, o consumidor, a
Novarum” de Leão XIII, trataram de conciliar criança e o adolescente; a preservação do
78 Revista de Informação Legislativa
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