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Relações família-escola: em busca de um projeto de Educação Infantil

democrático

É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.


Provérbio africano

Trago de volta esse provérbio, bastante representativo da filosofia tradicional Ubuntu,


para discutir a necessária construção de uma real relação de parceria entra as famílias
e a instituição de Educação Infantil. Faço essa referência, pois, aqui no Brasil, esse
provérbio foi bastante citado e grafado em epígrafes de textos discutindo esse mesmo
tema, o que nos sugere alguma concordância com essa forma de pensar o ser
humano conectado com o outro e com o coletivo, postura diversa de uma ética do
individualismo. Contudo, me parece que, apesar do seu sucesso, sua disseminação
trouxe poucas consequências para o ainda conflituoso relacionamento que se
estabelece entre a família e a escola. Ainda são comuns falas que assumem tons
acusatórios de que uma ou outra parte nessa relação está querendo empurrar sua
responsabilidade na educação de crianças.

Das famílias, surgem demandas que, muitas vezes, refletem a expectativa de que as
crianças sejam atendidas quase que de forma particular, reeditando os cuidados
domésticos e, certamente, diferentes em relação aos cuidados coletivos.
Descompassos como esses são bastante notórios nas questões relacionadas à saúde
e revertem focos de tensão e conflito na relação das famílias com os profissionais que
atendem as crianças (Maranhão e Sarti). 

Do espaço da instituição, ainda se identifica uma tranquilidade e uma aceitação


relativas dos profissionais quanto à opção da ida do bebê à creche por parte de
famílias que exercem trabalhos externos ao domicílio, mas não aceitam com a mesma
percepção os de mulheres que se ocupam de trabalhos em sua própria residência.
Estas são consideradas como mães que não “querem” assumir a educação e o
cuidado de seus filhos (Ferreira). Vale ressaltar que a crítica recai com bastante força
sobre as mulheres. São falas que, não poucas vezes, são ditas na presença das
crianças, como se elas fossem invisíveis e insensíveis àquela situação (Monção).

De certa forma, muitos desses conflitos acabam sendo mobilizados por uma ideia de
que a família ou a escola podem “substituir” a atuação de um desses contextos da vida
de bebês e crianças, o que alimenta uma certa “competição” sobre quem educa ou
cuida melhor.

Aqui, então, retomo o nosso provérbio para afirmar a expectativa de que na relação
entre as instituições de Educação Infantil e as famílias possamos superar verbos como
“substituir” ou “delegar” funções e avançar, cada vez mais, no fortalecimento de ações
pautadas por verbos como “compartilhar”, “complementar”, “parceirar” a educação e o
cuidado de bebês e crianças, construindo, de uma vez por todas, uma rede de apoio
em torno de processos educativos de boa qualidade nas creches, pré-escolas e
comunidades.

Para tanto, já temos bons fundamentos em nossos documentos oficiais. As


atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil reforçam:

A integração com a família necessita ser mantida e desenvolvida ao longo da


permanência da criança na creche e pré-escola, exigência inescapável ante as
características das crianças de zero a cinco anos de idade, o que cria a
necessidade de diálogo para que as práticas junto às crianças não se
fragmentem.

Da perspectiva da criança, essas características de aprendizagem e desenvolvimento


referem-se à oferta de espaços de cuidado e atenção, em que experiências
diversificadas deverão se constituir. A entrada na escola amplia a sua rede de
relações para além do âmbito privado da família, já que passa a participar de um
contexto com outros adultos e, especialmente, outras crianças.

Cada bebê que entra em uma creche e cada criança que chega à pré-escola
configuram um espaço de intercessão no encontro de sua família com a escola. Em
cada um desses encontros, esses contextos se reorganizam; colocam em jogo suas
ideias; compartilham concepções sobre cuidado, educação, maternidade, paternidade,
docência de bebês e crianças pequenas; e tencionam entendimentos e práticas de
educação e cuidado. No final das contas, todos aprendem e se desenvolvem, tanto
crianças quanto adultos (pais e professoras/es).

Mais uma motivação para pensarmos na importância da gestão dessas relações,


avançando em direção a um paradigma de parceria e compartilhamento da educação
das crianças.

Talvez, o primeiro movimento que possamos fazer, no âmbito da instituição em que


trabalhamos, é procurar perceber quais os significados que emergem quando
pensamos na relação da equipe escolar com as famílias. Que falas são ditas? Como
são sentidos os movimentos de entrada na unidade? São bem recebidos? Em quais
circunstâncias? Quais são as famílias que são melhor aceitas? Quais aquelas que nos
causam maior resistência e, às vezes, irritação? Por que será assim? O que fazer com
tudo isso? Trabalhar em equipe essas percepções, refletindo sobre o que está em jogo
e mobilizando nossas ações, é um caminho para começarmos a revisitar nossas
concepções e práticas na relação com as famílias. Esse movimento nos ajuda a olhar
melhor para o que entra em jogo quando esses dois meios, a família e a creche,
interagem e para as representações que emergem nesse encontro. Provavelmente,
serão variadas as formas de expressar a relação com as famílias.  

Assumindo a importância dessa parceria, que garante condições de atenção ao direito


das famílias de participarem da educação de seus filhos no contexto da unidade
educativa, podemos pensar em três eixos de trabalho que se intercruzam na
construção da relação da instituição com as famílias.

O primeiro é o eixo do acolhimento. Conforme Maranhão e Sarti:

Os primeiros contatos entre as famílias e os profissionais são decisivos na


construção do relacionamento entre ambos. As primeiras impressões dos pais
podem ser confirmadas ou modificadas nos primeiros dias como usuários, ainda
vulneráveis por estarem no início de uma relação com os profissionais.

A possibilidade de acolher sentimentos que emergem no contexto da relação família-


escola é condição para que se possa ir dando lugar e resinificando sentidos na direção
da construção da relação de partilha e parceria na educação das crianças. São
sentimentos variados: de gratidão, de curiosidade, de ansiedade, de ciúme e de alívio,
entre muitos outros. E são sentimentos contraditórios mesmo, porque a contradição
faz parte da nossa humanidade.
“Dois caminhos podem se colocar: ou a família é submetida a aceitar o projeto
pedagógico já estabelecido (concordando ou não com ele) ou, em outra perspectiva, a
família é assumida como novo parceiro de interlocução sobre esse projeto.”
Em um primeiro momento, a família traz à cena suas representações e informações
prévias a respeito do que seja o trabalho na Educação Infantil. Paulatinamente, vai
tomando contato com a realidade desse serviço. Dois caminhos podem se colocar: ou
a família é submetida a aceitar o projeto pedagógico já estabelecido (concordando ou
não com ele) ou, em outra perspectiva, a família é assumida como novo parceiro de
interlocução sobre esse projeto.

A prática “Adaptação e Aprendizagem e o Me´todo Montessoriano” – ao partilhar com


as famílias atividades que estão sendo desenvolvidas com as crianças no período de
adaptação delas à instituição e, ao mesmo tempo, ao sugerir levar atividades
parecidas para o ambiente doméstico – favorece a familiaridade de parte a parte,
tendo a observação da criança como foco do trabalho. Vale apenas uma ponderação,
que é assumir esse compartilhamento de atividades como uma sugestão, e não como
uma tentativa de “ensinar” aos pais e responsáveis pelas crianças “um modo certo de
ensinar”.

O segundo eixo da gestão pedagógica na relação da escola com as famílias diz


respeito à partilha. Disputas e julgamentos têm dificultado a relação com as famílias,
especialmente quando se busca impor “o melhor para a criança”, baseando-se em
julgamentos atravessados por valores religiosos, estéticos e relativos ao gênero, que
revelam preconceitos com base em percepções diferentes (Maranhão e Sarti).

Assim é que ressaltamos a diversidade de experiências que a família e a escola


possibilitam para as crianças. Uma provê uma educação doméstica, em âmbito
privado. A outra, uma experiência de educação coletiva. Elas podem até conflitar, mas
não se excluem. Partilhar esse projeto educativo parece ser um caminho que favorece
a integralidade do desenvolvimento da criança. Vale ressaltar que isso não quer dizer
que a escola ou a família têm que concordar completamente com as práticas
educativas desenvolvidas em cada um dos grupos familiares que compõem a sua
comunidade, mas são importantes nessa interação o acolhimento e a possibilidade de
dialogar a respeito do projeto pedagógico que se constitui com vistas ao
desenvolvimento das crianças.

O encontro desses mundos constitui ainda a riqueza desse projeto pedagógico,


especialmente se pensamos em importantes aprendizagens da criança, que são a vida
em sociedade, o respeito e o diálogo em torno das diferenças e a superação de
preconceitos de gênero e de variedades linguísticas, sociais e religiosas, entre outras.

O projeto "Dê Asas à Sua Imaginação: Mara Calvis" nos ajuda a pensar o quanto é
possível constituir um solo comum, que fortaleça a partilha de um projeto educativo
que se enriquece para a criança, a partir da conexão com a sua comunidade.

Muitas vezes, quando falamos em partilhar um projeto, pensamos na dificuldade que é


superar divergências e conflitos. Contudo, se ultrapassarmos essa primeira camada,
podemos pensar no projeto educativo das crianças como responsabilidade de uma
“aldeia”. A “aldeia” se faz, especialmente, por aquilo que a constitui como um coletivo,
com um solo comum. Trazer personagens da história local amplia o repertório das
crianças e dos adultos (pais e professoras/es) direcionando o seu olhar para aquilo
que é bastante próprio de sua identidade. Esse movimento pode favorecer laços para
o fortalecimento dessa comunidade.
Nessa direção, também o "Projeto Sacola Viajante – Literatura Infantil" se coloca.
Partilhar com a família as obras de literatura que possam ser lidas na escola e em
casa é um caminho interessante para que a criança possa perceber essa aproximação
dos adultos que parceiram a sua educação.

Por fim, a promoção da participação das famílias é um terceiro eixo de trabalho com o


qual a equipe deve se dedicar. Para isso, há que se ressaltar que essa participação
não é apenas desejada, mas configura um aspecto necessário à consolidação de um
projeto educativo que articula o repertório de vivências que a criança constrói no
âmbito da família ao repertório da cultura em outro contexto, ampliando assim as
possibilidades de aprendizagem na Educação Infantil. Na Base Nacional Curricular
Comum, essa ideia está colocada, ressaltando uma concepção que vincula cuidado e
educação:

Nesse contexto, as creches e pré-escolas, ao acolher as vivências e os


conhecimentos construídos pelas crianças no ambiente da família e no contexto
de sua comunidade, e articulá-los com suas propostas pedagógicas, têm o
objetivo de ampliar o universo de experiências, conhecimentos e habilidades
dessas crianças, diversificando e consolidando novas aprendizagens, atuando de
maneira complementar à educação familiar – especialmente quando se trata da
educação dos bebês e das crianças bem pequenas, que envolve aprendizagens
muito próximas aos dois contextos (familiar e escolar), como a socialização, a
autonomia e a comunicação (p. 36, grifo nosso).

Assim, na sua atuação, a instituição de Educação Infantil tem uma responsabilidade


na construção desse projeto coletivo e a tarefa de favorecer caminhos de participação
das diversas famílias que compõem a sua comunidade escolar.

Também as práticas pedagógicas podem ajudar nesse aspecto quando favorecem a


construção de relações democráticas e cuidadosas com o outro. O projeto "Palavras
Mágicas Encantando a Vida" busca fazer isso, chamando a atenção para uma
construção positiva de autoimagem e também do outro. Faz referência ao Ubuntu,
referência trazida aqui nesse texto, para dizer do bem comum, da cooperação e da
solidariedade. A professora também percebeu reações de preconceito, devido à
origem do conto, e se preparou para trabalhar com elas. Por meio da prática com as
crianças, congregou as famílias e pôde trabalhar no espaço institucional as relações
de convivência e de direito de todas/os à participação.

Certamente, ao ler sobre este assunto, o da relação entre as famílias e as escolas, fica
uma grande inquietação. Será que é possível? Sim, parece que é. Boas experiências
de Educação Infantil têm mostrado o quanto os projetos pedagógicos são fortalecidos
– e, nesse sentido, também as experiências de bebês e crianças na Educação Infantil
– quando toda a “aldeia”, ou seja, a comunidade, participa e dialoga, com vistas à
qualidade dessa educação.

Para isso, faz-se necessário (re)pensar concepções e práticas próprias e


institucionais, de forma que os esforços de aproximação sejam sempre mais potentes
e desejados do que os receios e afastamentos em relação àquilo que me é
divergente. 

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