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A atividade microglial pode ser modulada pela sinalização endocanabinóide, o que torna o
sistema endocanabinóide (SEC) uma ferramenta poderosa na prevenção e manejo das
disfunções neuroinflamatórias. Além disso, os primeiros estudos em modelos animais de
autismo mostraram alterações no SEC, indicando o envolvimento deste sistema na fisiopatologia
do TEA (Zhang e Alger., 2010; Maccarone et al., 2010, Foldy et al., 2013). O sistema
endocanabinóide é uma rede importante e complexa de vias de sinalização que visa a
manutenção da homeostase. É composto por receptores canabinóides metabotrópicos (CB1 e
CB2), seus ligantes endógenos como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG)
denominados endocanabinóides, e as enzimas responsáveis pela síntese e degradação dessas
moléculas, como diacilglicerol lipase (DAGL) e monoacilglicerol lipase (MAGL) relacionadas ao
metabolismo do 2-AG; e a hidrolase da amida do ácido graxo (FAAH) e N-acil-
fosfatidiletanolamina fosfolipase D (NAPE-PLD) catalisando a AEA. Este sistema é um regulador
chave dos processos metabólicos e vias celulares envolvidas no autismo, como ingestão de
alimentos, metabolismo energético e do sistema imunológico, além de estar envolvido no
processo de desenvolvimento do SNC através da modulação sináptica (Araújo et al., 2019).
As evidências do envolvimento do SEC no autismo vêm da observação de que esse sistema está
fortemente implicado na regulação da reatividade social e emocional, bem como na modulação
de algumas alterações comuns em crianças com TEA, como nos processos de aprendizado e
memória, na suscetibilidade a convulsões e regulação do ritmo circadiano. Além disso, estudos
de neuroimagem em humanos revelaram associações entre polimorfismos no gene codificador
do receptor CB1, (CNR1) e a responsividade à recompensa social, sugerindo que as alterações
nos receptores CB1 podem contribuir para déficits no processamento de recompensas sociais
associado ao TEA. Consistente com isso, a expressão reduzida do receptor CB1 foi encontrada
em cérebros de indivíduos com autismo. Os receptores CB1 estão concentrados no cerebelo,
hipocampo e nos gânglios da base, que são áreas do cérebro implicadas como disfuncionais no
autismo, já os receptores CB2 estão mais presentes em tecidos e células do sistema imunológico,
como na micróglia e em células mononucleares do sangue periférico (PBMC) de crianças com
TEA (Schultz, 2010; Siniscalco et al., 2013).
Além dos modelos geneticamente modificados, modelos de autismo idiopático como BTBR
exibem déficits sociais robustos e bem replicáveis, bem como comportamentos repetitivos.
Utilizando esse modelo, uma investigação demonstrou que o aumento dos níveis de AEA via
administração aguda URB597 (inibidor da enzima de degradação FAAH) reverteu
completamente o prejuízo social nos animais, sugerindo que tal ação é estritamente
dependente do aumento na sinalização de AEA nos receptores CB1 (Wei et al., 2016). Essa
descoberta corrobora a hipótese de que o aprimoramento da sinalização canabinóide auxilia
nos prejuízos sociais relacionados ao TEA. A partir do modelo ambiental, onde ocorre a
exposição pré-natal ao ácido valpróico, Kerr e colaboradores relataram a diminuição dos níveis
de DAGL e MAGL. Outros dados disponíveis neste modelo também indicam que a sinalização
alterada de anandamida pode contribuir para os déficits sociais e de comunicação associados ao
TEA, e suporta o papel da FAAH na regulação de déficits sociais comportamentais (Kerr et al,
2013 e 2016). Os efeitos pró-sociais relatados da AEA em modelos animais de TEA podem
resultar de uma interação com a ocitocina, um neuropeptídeo que promove a ligação parental
e social. De fato, evidências recentes mostraram que a ocitocina estimula a liberação de AEA no
núcleo accumbens, uma chave região para as propriedades reforçadoras de recompensas
naturais e drogas de abuso (Wei et al., 2015 e 2016).
Figura 04. Concentração plasmática de anandamida (AEA) em crianças com TEA e crianças controles
neurotípicas. a Concentração plasmática de AEA diferencia significativamente os casos dos controles. Os
níveis plasmáticos de AEA foram plotados ajustados para outras variáveis neste modelo estatístico.
Indivíduos com AEA plotados acima e os indivíduos controle embaixo, as linhas tracejadas são classificadas
corretamente. b Concentrações plasmáticas de AEA em crianças com e sem TEA, retrotransformadas dos
valores registrados. Os dados são apresentados como LSM ± SEM. As crianças com TEA apresentaram
concentrações plasmáticas mais baixas de AEA (média de 0,149 pg/μl) em comparação com as crianças
controle (média 0,177 pg/μl). Fonte: Karhson et al., 2018.
Esses dados que relacionam alterações no SEC ao transtorno do espectro autista indicam o
potencial da modulação desse sistema no tratamento do TEA. A introdução de canabinóides
exógenos facilita esse processo, que mimetiza a sinalização endocanabinóide natural. Assim, e
principalmente devido aos efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores, canabinóides como o
canabidiol (CBD) representam uma ferramenta promissora no tratamento do TEA. O CBD
oferece potencial para melhorar a habilidade motora, o padrão de sono, a ansiedade e os
sintomas psicóticos, além de demonstrar atividade anticonvulsivante (Agarwal et al., 2019). Mas
diferentemente do seu parceiro mais popular (THC), o CBD é um fitocanabinóide que não
apresenta atividade psicotomimética.
Por expressar fraca afinidade aos receptores canabinóides, os efeitos do CBD ocorrem pela
modulação indireta do SEC, especialmente por inibir a recaptação e degradação enzimática da
anandamida pela FAAH, aumentando assim os níveis de AEA (Bisogno et al., 2001). O CBD
demonstrou ser um potente agonista do receptor de potencial transitório vanilóide do tipo 2
(TRPV2), que regula a secreção de ocitocina e vasopressina (Khalil, 2012; Qin et al., 2008). Age
Por essas e outras atividades farmacológicas, o CBD pode aliviar muitas comorbidades do TEA
como convulsões, problemas gastrointestinais e déficit de atenção. A epilepsia é uma das
comorbidades mais importantes no TEA, e o CBD demonstrou sua capacidade antiepilética, bem
documentada em estudos experimentais e clínicos (Devinsky et al., 2017; Russo et al., 2007).
Além disso, o tratamento com CBD em um modelo de Síndrome de Dravet demonstrou não só
redução efetiva nas convulsões como melhora nos comportamentos semelhantes ao autismo
(Kaplan et al., 2017). O canabidiol pode trazer benefícios para o comportamento agressivo, nos
transtornos de atenção, nos distúrbios do sono, na ansiedade entre outras situações que podem
estar comprometidas em pacientes autistas (Bonnaccorso et al., 2019).
Um estudo prospectivo realizado por Bar-Lev Schleider e colaboradores examinou 188 crianças
com TEA que faziam uso do óleo de Cannabis, na maioria dos casos na proporção de 1,5% THC
e 30% CBD. A análise de segurança e eficácia foi feita utilizando questionários estruturados, com
informações como inventário de sintomas, avaliação global do paciente e os efeitos colaterais
sentidos durante o tratamento. Os sintomas eram analisados através de escalas subjetivas sobre
o comportamento da criança, preenchida pelos pais. Os pesquisadores relataram melhora em
mais de 90% dos pacientes após seis meses de tratamento. Interessante destacar também a
modificação no uso de medicamentos alopáticos neste período, que mostrou uma redução
tanto do número quanto na dosagem da grande maioria dos medicamentos após 6 meses.
Aproximadamente 25% dos pacientes tiveram efeitos colaterais, sendo o mais comum a
inquietação, seguida por sonolência e efeitos psicoativos (Bar-Lev Schleider et al., 2019).
Também em Israel, o grupo do Dr. Adi Aran avaliou sistematicamente a tolerabilidade e eficácia
de uma solução de Cannabis rica em canabidiol em 60 crianças autistas com problemas
comportamentais graves. Os pacientes receberam o extrato de planta inteira contendo CBD e
THC na proporção (20:1). A dose diária total foi de aproximadamente 3,8 mg/kg/dia de CBD e
0,29 mg/kg/dia de THC para as 44 crianças que receberam três doses diárias e 1,8 mg/kg/dia de
CBD e 0,22 mg/kg/dia de THC para as 16 que receberam duas doses diárias. Após o tratamento,
que neste estudo variou de 7 a 13 meses, os surtos comportamentais melhoraram em 61% de
acordo com os relatórios dos pais. Também foi observado melhora nos sintomas de ansiedade
em 39% e na comunicação em 47%, e um benefício adicional relatado após o tratamento com o
óleo rico em CBD foi a redução dos outros medicamentos que a criança fazia uso.
Entre todos os pacientes avaliados apenas um não obteve melhora nos sintomas autistas. As
melhorias mais expressivas foram relatadas para Convulsões, TDAH, Distúrbios do Sono e
Comunicação Déficits de interação social, principalmente nos pacientes não epiléticos. Dez dos
15 pacientes estavam usando outros medicamentos, e nove deles foram capazes de manter aos
efeitos benéficos do óleo mesmo após reduzir ou retirar os medicamentos neuropsiquiátricos.
De acordo com os autores, este é o primeiro relatório de uma melhora acentuada nos sintomas
autistas de pacientes não epiléticos em uso medicinal da Cannabis. Eles relatam ainda que a
longo prazo, a terapia psicopedagógica pode potencializar os benefícios sociais, cognitivos e
comportamentais observados com o a administração do óleo rico em CBD (Fleury-Teixeira et al.,
2019).
Figura 08. Melhora dos sintomas observados nos pacientes submetidos ao tratamento com extrato de
Cannabis rico em CBD por pelo menos 6 meses. Os dados foram coletados dos questionários de
acompanhamento mensal pelos cuidadores. (A) Dados agrupados de todos os 15 pacientes nas seguintes
categorias: transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH, n = 15); distúrbios comportamentais
(BD, n = 15); déficits motores (MD, n = 12); déficits de autonomia (DA, n = 15); déficits de comunicação e
interação social (CSID, n = 15); déficits cognitivos (DC, n = 15); distúrbios do sono (DP, n = 12); crises
convulsivas (SZ, n = 5). (B) Subconjunto incluindo apenas os 10 pacientes não epiléticos que foram
submetidos ao tratamento com extrato de Cannabis rico em CBD por pelo menos 6 meses. Transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH, n = 10); distúrbios comportamentais (BD, n = 10); déficits
motores (MD, n = 7); déficits de autonomia (DA, n = 10); déficits de comunicação e interação social (CSID,
n = 10); déficits cognitivos (CD, n = 10); distúrbios do sono (DP, n = 7). Linhas vermelhas indicam medianas,
caixas azuis indicam intervalo interquartil, linhas pretas horizontas os valores mínimos e máximos.
Observe que todas as categorias apresentam melhorias que variam de modestas a robustas, apesar de
um período muito curto de tratamento. Fonte: Fleury-Teixeira et al., 2019.
Até o momento, apenas um estudo controlado com canabidiol em pacientes com TEA foi
concluído (NCT02956226). É um estudo de fase 2, duplo-cego controlado por placebo, realizado
em um único centro de referência em Israel. Com foco em problemas comportamentais, o
estudo avaliou a eficácia e segurança de diferentes soluções com canabinóides em 150 crianças
jovens com TEA. Os pacientes foram randomizados igualmente entre os grupos que receberam
placebo ou uma das soluções com canabinóides, ambas na proporção de 20:1 CBD:THC, a
primeira com o extrato da planta inteira e a segunda contendo os mesmos fitocanabinóides
purificados sem os outros componentes da planta, como outros canabinóides, terpenos e
flavonóides, que podem contribuir para o efeito terapêutico pelo sinergismo do efeito comitiva
(Russo, 2018). Os tratamentos foram administrados por via oral como terapia complementar
com uma média de 5,5 mg/kg/dia de CBD dividida em três doses diárias. O estudo mostrou que
os canabinóides reduziram significativamente a irritabilidade e os principais sintomas do
autismo comparados ao placebo, mas de maneira semelhante entre os grupos que receberam
as diferentes soluções de canabinóides. Os pacientes demonstraram boa tolerabilidade, com
eventos adversos leves, os mais prevalentes foram sonolência e perda de apetite.
Considerações Finais
Os resultados dos estudos aqui apresentados são animadores e indicam que o uso do canabidiol
e de óleos ricos em CBD pode ser benéfico no tratamento dos pacientes com TEA. O uso de
canabinóides no tratamento de diversas condições neuropsicológicas está crescendo a cada dia,
mas ainda existe uma lacuna nas evidências científicas quando pensamos na maioria dessas
desordens. No caso do transtorno do espectro de autismo já existem evidências experimentais
e clínicas mostrando a melhora nos sintomas frequentemente associados ao TEA como
ansiedade, agressividade, comportamento disruptivo, distúrbios do sono e comunicação social
após o tratamento com produtos ricos em CBD. O efeito anticonvulsivo do canabidiol também
já foi demonstrado cientificamente, sendo inclusive aprovado pelo FDA um medicamento com
CBD puro para o tratamento de epilepsias refratárias. Esse dado é especialmente importante
quando pensamos no TEA, já que epilepsia é uma das comorbidades mais sérias do autismo, e
pode ser controlada com o uso do canabidiol. O óleo rico em CBD demonstrou potente ação
anti-inflamatória, tanto central como sistêmica, eficácia como monoterapia ou tratamento
adicional e se apresenta ótima opção terapêutica, já que possui efeitos adversos leves, sem
efeitos psicotrópicos.
Mais pesquisas estão em andamento, como um estudo observacional prospectivo para avaliar
a farmacocinética dos canabinóides em crianças com TEA que fazem tratamento com Cannabis
medicinal (NCT03699527). Como parte de um estudo maior, o efeito da administração de 600
mg de CBD em dose única versus placebo em indivíduos com e sem TEA é comparado a partir
da espectroscopia de ressonância magnética (NCT03537950). Os pesquisadores já publicaram
alguns resultados preliminares, indicando que o CBD modula os sistemas glutamato-GABA, mas
com respostas pré-frontais diferentes. Nos indivíduos neurotípicos o canabidiol aumentou a
atividade pré-frontal do ácido gama-aminobutírico (GABA) enquanto nos pacientes com TEA
houve a diminuição da atividade GABA (Pretzsch, 2019). Esses e outros estudos que ainda estão
em andamento podem ser acompanhados através do site ClinicalTrials.gov.
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