Você está na página 1de 314

Copyright © 2021 Pry Oliver

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos de imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Capa: Designer TTenorio

Revisão: Lidiane Mastello

Diagramação Digital: Jack A. F.

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte


dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98


e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Edição Digital ǀ Criado no Brasil

1º Edição

Maio de 2021
Por você, bebê começa exatamente onde A filha do CEO terminou. São
livros individuais, porém os personagens transitam no mesmo universo. Para
uma melhor leitura, a filha do CEO deve ser lido primeiro.

Em Por você, bebê vamos conhecer Otávio Parisotto, um viúvo recluso,


pai de dois filhos e diretor financeiro de uma empresa de sucesso. Otávio é
um homem aparentemente rude, porém carrega sérias justificativas e você
conhecerá todos os motivos ao longo do livro, bem como os esclarecimentos
necessários, nas notas de rodapé.

Por favor, esteja ciente de que em Por você, bebê contém cenas
maduras, para maiores de dezoito anos.

Abraços, Pry
Nota da Autora
Sinopse
Playlist
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capitulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Epílogo 01
Epílogo 02
Agradecimentos
Lançamento mais próximo
Sobre a Autora
”Viúvo, um bilionário recluso, dedica sua vida aos dois filhos e aos
números, sua válvula de escape.”

Aos trinta e cinco anos, o bilionário Otávio Parisotto, herdeiro rebelde


de uma das famílias mais ricas do Brasil, dedica a vida aos dois filhos
pequenos e aos números, sua válvula de escape.

Viúvo do primeiro casamento e divorciado do segundo, sua pior


derrota, o homem blindou o coração e vestiu uma capa de indiferença e
irritabilidade. Por isso, a atração febril pela blogueira Juliana Tavares, uma
mulher de seu passado, não é bem-vinda, mas é inegável.

Juliana odeia Otávio. Mesmo descobrindo que a confusão do passado


não passou de um mal-entendido, Ana, não suporta cinco minutos ao lado do
ogro sombrio e insuportável.
No entanto, a blogueira não contava com a influência de um sorriso
banguela, tampouco com as mãozinhas que insistiam em atacar seus seios.
Ouvir "mamã" daquela boca minúscula foi o seu fim. Seu coração se rendeu
fácil ao bebê de Otávio. Agora, o contato frequente pode se tornar uma
tentação a qual ela não conseguirá resistir.
Para ouvir a playlist de “Por você, bebê” no Spotify, abra o app no seu
celular, selecione “buscar”, clique na câmera e posicione sobre o code
abaixo.

Ou clique aqui
São Paulo

— Esfrega atrás da orelha, rapaz — orientei, sentado na poltrona do


banheiro, concentrado na limpeza das minúsculas unhas do bebê, que
cochilava sobre minhas pernas depois de um banho longo e caprichado.
Dentro do box, meu primogênito esfregava xampu nos cachos compridos,
enquanto cantarolava um soul americano em uma linguagem duvidosa. —
Escutou, Thiago?

— Eu sei tomar banho, pai. Cuida de Noah, cara — resmungou, fazendo


o irmão se espreguiçar e sorrir, exibindo a graciosidade de seus dois
primeiros dentinhos.
— Isso, acorda, grande homem. O casamento do tio Roberto é hoje, e
precisamos viajar. — Abandonei o cortador sobre o balcão da pia. — Você
gostou de brincar com a filha dele, não foi? — Levantei-me, erguendo o
pequeno na altura do meu rosto, esfregando o nariz em sua barriga e
recebendo filetes de mijo na cara. — Ah, seu sacaninha!

Noah gargalhou e suas perninhas agitadas atingiram meu peito. A toalha


que cobria meu quadril despencou no chão e, quando entrei no box para
lavar a lambança do pequeno arteiro, suspeitei da invasão sorrateira e girei
o corpo na direção da porta. Meu segundo impulso foi proteger o bebê no
meu peito, dentro dos meus braços.

Na divisa da porta, trajando um elegante vestido de alças finas,


decotado e justo até a curva do joelho, Taila, a mãe do meu caçula,
sustentava um sorriso receoso no rosto.

— Oi... — A voz fina e melodiosa me fez ranger os dentes. — Foi você


que me deu essa esmeralda. Lembra? — Tocou o pingente do colar que
adornava o longo pescoço e seus olhos âmbar investigaram a completa nudez
do meu corpo.

Respirei fundo para controlar a revolta, mas só consegui tragar o cheiro


dela. Um aroma doce, que penetrou na nebulosidade da minha mente e me
jogou em um cenário de destruição.

— Como entrou aqui?

— Bah abriu a porta...

— Sai! — A encurralei.

— Vou ao casamento do seu amigo, com vocês.

— Fora, porra! — ordenei, apoiando a mão na cabeça do bebê, que se


agitou em meu colo.

— Estúpido! — exclamou falsamente magoada, a mulher empurrou meu


ombro e avançou através do hall que ligava o banheiro ao quarto. Seu
traseiro indo de um lado a outro, a bolsa pequena batendo contra o quadril e
os saltos tinindo no piso do quarto. Linda e ordinária como uma oferenda
maligna.

— Ma. Ma. Ma... — O bebê impulsionou o corpo para a frente e para


trás, querendo alcançá-la. — Ma. Ma... — Suas mãozinhas estendidas
procuravam o colo daquela que deveria ser o seu melhor abrigo.
— Briguei com João Paulo. O casebre que você me deu está em
reforma e agora não tenho para onde ir. Preciso de abrigo. Vim para ficar —
anunciou, ajustando o longo rabo de cavalo na lateral do seio direito.

Eu quase admirei a coragem, mas seus olhos foram rápidos em


esclarecer a falsa segurança.

— Além de traidora, se descobriu louca? — Meu tom grave e perigoso


a fez recuar um passo. — O meu único desejo é que vocês se matem e
desçam para o inferno embalados com o selo de casal filho da puta.

— Quem é a mulher, Otávio? — Vi uma umidade excessiva brotar nos


olhos da mãe de Noah. — JP disse que viu você com uma oferecida no
carro. Uma vadia dos olhos puxados.

Liberei um sorriso infeliz e a fiz recuar mais alguns passos. Quase


encostei nela.

— Não testa a minha paciência, Tailana.

— Não vim provocar... Juro. — Sua unha comprida raspou a poupa da


minha boca. —Vamos ao casamento do seu amigo. E depois, quando as
crianças dormirem, conversaremos como nos velhos tempos. Se houver a
mínima possibilidade, eu vou tentar recuperar a nossa história. — Virei o
rosto, indignado com o desejo feroz que retorceu em minhas veias. — Vai
vestir a roupa, não quero as funcionárias de olho em você.

Ignorando o bebê, ela espalhou a palma em meu bíceps e desceu a ponta


dos dedos nas veias saltadas do antebraço. Cerrei os dentes numa agitação
muda e, antes que o toque ordinário atingisse minha fraqueza, apossei-me de
seu cotovelo e a levei para fora do quarto, por entre o corredor principal e
na direção da escada. Taila não passava de uma peça estúpida nas mãos do
meu inimigo mais íntimo. Ela morreu no dia que cogitou cravar um punhal no
meu peito.

— Ma. Ma... — Em meu colo, Noah continuou mendigando afeto.

— Me escuta, Otávio! — Tentou se livrar. Sem sucesso. — Errei, mas


me escuta, por favor... — Continuei levando-a. — Já parou para pensar que
esse seu jeito truculento ferrou tudo? — Ignorei — Otávio, estou falando
com você! — Continuei calado. — Quero o meu filho! — Ela fechou a
segunda mão no corpo do bebê e tive que ceder para não o machucar
acidentalmente. — Mamãe veio ficar com você, criança.

Nos braços da mãe, Noah sorriu de lábios unidos e olhou-me. O brilho


retido dentro das esferas verde-floresta dizia: "ela veio me ver, papai. Ela
me ama."

Minha criança sentia aquela falta. Vê-lo esperar tanto da mulher que o
ignorou nos primeiros dias de vida partiu o meu peito ao meio. Por isso, só
por isso, recuei. Eu morreria antes de ver meus filhos sofrerem.

No momento seguinte, os dedinhos apossaram-se dos cabelos longos e


esticados artificialmente, e a boquinha avançou possessiva no seio robusto,
sugando firme sobre o tecido de malha do vestido. O menino ficou todo
perdido e ansioso, como se tivesse encontrado um oásis no deserto.

Puxei meus cabelos e virei de costas. Doía ver aquilo. Em cinco


minutos ela levantaria qualquer desculpa para me devolver a criança.

— Está pelado pai, cobre isso. — De cueca e com os cabelos


ensopados, Thiago parou à minha frente e empurrou uma toalha contra meu
corpo.

— Não pode morder a mamãe, criança! Está aprendendo esse mal


costume com quem? — A simples reclamação me fez virar e ficar atento. —
Seu pai não está alimentando você direito, é isso, pequeno selvagem? —
continuou interagindo com o bebê, que a fitava confuso, dividido entre
espanto e devoção. — Olha só essa pança gorda. Você está enorme, bebê
Ogro.

— Seja mais delicada — pedi, totalmente contrariado.

— Isso soou tão contraditório vindo de você. — Taila sorriu e me


mediu dos pés à cabeça, cheia de insinuação. — Você sempre bateu antes de
entrar, mas não lembro de ser delicado. — Mordiscou o lábio e contraiu
tudo em mim.

Rosnei contrariado, firmando minha palma no ouvido de Thiago e


buscando os olhos dele.

— Volta para o quarto, filho.

— Pai, fica calmo. É a mãe dele. O bebê gosta quando ela aparece.

— Não, meu cabelo não, criança. — Taila fingiu dar três tapinhas na
mão no bebê. — Vou colocar você de castigo. — Apontou a unha comprida
no rostinho do meu filho, depois apertou polegar e indicador em sua pequena
bochecha. — Filhotinho de Ogro, lindo.

Confuso com as palavras e gestos irritantes, nu e sentado no braço da


mãe, Noah tremeu os lábios, e aos poucos liberou um choro magoado,
contínuo e nasal.

— Não, pai! — Thiago fechou as mãos em minhas pernas quando


avancei para reivindicar o meu caçula.

— Me devolve o bebê, Taila! — continuei pedindo, sempre afastando a


ideia de tocar nela, de me livrar do estorvo.

— Ele também é meu filho.

— Filho? — rugi com o corpo trêmulo. Meu peito subindo e descendo


em uma respiração ofegante. — Você fica uma eternidade sem ver essa
criança, quando aparece, só sabe magoá-la.
— Saí com ele na semana passada. Eu amo meu filho. — Teve coragem
de replicar. — Passaríamos mais tempo juntos, se eu não trabalhasse de
segunda a sábado. Se eu tivesse ajuda para pagar minhas contas.

— Eu o levo todos os dias para a empresa, dorme na minha sala, sobre


os relatórios. Vai mesmo usar essa desculpa infame? — arfei, segurando-me
no último fiapo de controle para afastar o impulso instintivo.

— Quer comparar o meu trabalho com o seu? — gritou, sacudindo o


corpo do bebê e andando de um lado a outro.

— Não sei que inferno você veio fazer aqui, mulher, mas não vai usar
essa criança!

— Tia Taila, devolve meu irmão. Não complica as coisas. O pai já está
nervoso. — Thiago lutou contra o peso do meu corpo. — Não, pai, se
acalma, por favor.

— Eu não estou machucando o bebê. — A mãe acalentou o filho e, sem


nenhuma experiência com a agitação da criança, quase o derrubou.

— Me devolve esse bebê, Taila!

— É meu filho, Otávio. — Beijou a bochecha de Noah, que chorava,


quase sem voz. — Mamãe não vai reclamar. Para de fazer show, filho. É a
mamãe — sussurrou e só fez o choro intensificar.

— Tavinho, meu filho...


Suspirei fundo quando percebi a mão enrugada contra meu ombro. Uma
orientação silenciosa, um pedido de calma que não funcionava há muito
tempo, no entanto, eu respeitava o bastante para ceder.

— Bah, pega Noah e leva para o quarto — ordenei em um tom ameno.

— Se acalma, menino. Conversem longe das crianças — a senhorinha


disse, já seguindo minha ordem. Sem nenhum esforço, retirou o bebê do colo
da genitora e fez o choro cessar. Restou apenas espasmos do soluço.
— Vai com ela, Thiago — pedi.

— Pai, vai o senhor. Me deixa resolver isso. Eu ligo para minha avó e
peço para ela vir aqui...
— Vai, filho. — Peguei a toalha do chão e enrolei no meu quadril. —
Vai.

— Tia Taila, não provoque meu pai, por favor — Thiago pediu em tom
compreensivo. — Eu confio em você, pai. Não me decepciona, tá? —
suplicou, com os olhos em mim. Apreensivo, ele só se afastou para o fim do
corredor.

— Desce a porra da escada, Taila! — falei autoritário, mantendo uma


distância considerada da invasora.

— Otávio, não nos sentamos para conversar... Por favor, vamos fazer
isso sem brigas, advogados ou família — implorou e em um único impulso
fechei os braços em suas pernas, joguei o corpo esguio sobre meu ombro e
levei escada abaixo. — Sou mãe do seu filho, estúpido!
Os gritos finos espancaram meus ouvidos, murros em minhas costas e
pontapés em minhas coxas.

— Não tenho responsabilidades com você. — Abri a porta da sala e


atravessei o jardim, seguindo na direção do Toyota Prius, um dos veículos
que ela levou depois do divórcio.

— Eu não vou! — Meteu o joelho em minhas partes íntimas e fui


obrigado a soltá-la no gramado. — Troglodita!
— Abre o portão! — Curvado, me recuperando da dor dilacerante,
ordenei ao segurança que estava ali por perto.

— Ela aproveitou quando voltei com as compras. Invadiu com o carro e


não pude fazer nada — meu funcionário tentou se explicar e ofereceu a mão
para Taila.
A mulher recusou a ajuda, engatinhou sobre a grama e prendeu as mãos
em meu braço.

— Só abre o portão! — Meu grito foi suficiente para o homem retirar o


controle do bolso e seguir a ordem.

— Otávio... seu irmão está dormindo fora e me tratando muito mal. Não
me respeita, aposto que está com outra. — A traidora se levantou,
explicando o real motivo de estar ali.

Seu tom de voz soou tão humilhante, que por um milésimo de segundo
meu ego quis tripudiar, diminuí-la e gargalhar até perder o fôlego. No
entanto, ser covarde não fazia parte das minhas ambições. Apenas ignorei a
informação e lamentei o fato dela ser tão burra ao ponto de procurar aquela
situação.

— Os interesses daquele cara sempre foram alimentados pelos meus.


Você sabia disso quando se enfiou na cama dele.

— JP fez a sua caveira e você não está me provando o contrário... —


Com essas palavras ela conseguiu arrancar um sorriso infeliz dos meus
lábios.

— Sou o gêmeo maligno da família Parisotto, Taila! — berrei sem


controle, batendo a mão contra o peito e apontando para ela na sequência. —
Mas tivemos uma conversa franca quando eu trouxe você para dentro dessa
casa. Me comprometi a cuidar de você, me dispus a ser o melhor marido da
porra desse mundo. E acima de tudo, orientei que ficasse longe dele! — A
vontade veio e segurei firme na mandíbula dela. — Você acha mesmo que eu
não sabia o que estava acontecendo? Enganado só é quem confia, Taila.

— Só a sonsa da falecida prestava para você.

— É melhor calar a boca. Deixa a mãe do meu filho fora disso.


— Eu também sou mãe do seu filho.

— Não tenho garantias, mas agradeça todos os dias por eu amá-lo com
todo o meu coração. Só por isso, você... — Engoli o restante das palavras e
larguei a mulher. — Vai, sai logo daqui.

— Ele é seu filho... — ralhou com a voz embargada. — Só tinha


acontecido uma vez. Eu já estava grávida e... muito confusa.

— Sai da minha casa, porra! — Puxei meus fios de cabelo e virei de


costas.

— Era seu rosto e o seu corpo em uma personalidade totalmente


maleável e... Eu queria que você fosse diferente.

— Sai, Tailana — ordenei em tom de alerta.

— Se sabia, por que não me impediu? — Esmurrou minhas costas,


braço e peito — Por que não me deu apoio, Otávio? A culpa foi sua por ser
tão frio e recluso. Insuportável! — Colou a testa no meu peito.
— Você foi o meu pior investimento, mulher.

— Me deixa ficar.

— Por mais apertada que seja, eu não compartilho boceta.


— Patrão... — Sensato, o segurança limpou a garganta, lembrando-me
de sua presença e esperando a segunda ordem.

— Veja se a chave está no painel, liga o carro e coloca fora dos muros.
— Me afastei da mulher.

— Não, não está no painel! —Taila empurrou o segurança.

— Se não estiver, faça ligação direta, mas remova do meu jardim —


exigi, um pouco mais recuperado, me esquivando da mulher que embaraçou
as mãos em meus punhos.
— Vou entrar na justiça para requerer a guarda do menino — ela disse,
desacreditando das próprias palavras.

— Você deveria procurar um psicólogo antes de se meter na justiça


comigo.
Esperei o carro atravessar o portão para jogá-la sobre o ombro e seguir
o mesmo destino. Tentou me acertar, mas prendi seus tornozelos. À essa
altura eu já estava nu outra vez.

— Você nunca vai ser feliz com outra mulher.


— Eu não estou contando com isso. — Continuei a levando nas costas.

— Você tem medo, porque me quer e sabe que teremos recaída se eu


ficar.

— Eu poderia admirar sua autoestima, mulher. Mas vindo aqui, você só


provou que não passa de um brinquedo nas mãos do meu irmão. Um
brinquedo claramente descartado e desesperado.

— Ahhhh! — A mulher puxou meus cabelos.

— Eu nunca deveria ter tirado você daquele chiqueiro — completei e


recebi uma mordida tão forte nas costas que precisei colocá-la no chão.

— Cuidado, não vai se complicar — o segurança me alertou e suspendi


as mãos, me afastando um passo de distância.

— Eu amo você, Otávio. — A mulher passou o dorso da mão nos


lábios bem torneados e conferiu o vermelho do meu sangue. — É uma
verdade absoluta. Eu amo você.

— Vai se ferrar, Taila. — Afastei outro passo, apontando incisivamente


para ela.

— Foi besteira deixar minha casa e meu filho. Nossa família. — Deu
um sopapo no segurança e tentou abraçar meu corpo. — Seu irmão é um
dissimulado, um falso moralista. — Liberou algumas lágrimas. — Você é
brutamontes, mas é leal. Cuida de mim outra vez. Prometo fazer diferente.
Me perdoa.

— Já chega. — Capturei sua mão esquerda e levei na direção do carro.


— Na próxima briga, se matem. — Puxei a porta do veículo e a fiz entrar.
Entrou sem reclamar e me olhou lá de dentro. A pele negra, incrivelmente
perfeita, estava totalmente banhada por lágrimas. — Não apareça mais na
minha casa. — Bati a porta do carro. — Quando quiser ver o seu filho, ligue
para o advogado. Bah vai continuar levando-o até você. Por ele. Só por ele.
— Peguei a chave na mão do segurança e joguei no estofado.

— Quero minha família de volta... — choramingou e virei as costas. —


Otávio!

Entrei pelo portão aberto no jardim, peguei a toalha jogada na grama e


cobri meu quadril.

Segui na direção das paredes transparentes da sala. Veio uma vontade


absurda de sair quebrando tudo. Quebraria, se Thiago não estivesse lá,
observando-me atentamente.

— Venha se cuidar, filho. Roberto inventou de se casar na casa da porra


e é todo metódico com horários — murmurei quando passei por ele e subi a
escada.

— Toda vez que a tia Taila aparece você fica assim. Esquece ela, pai.

— Já esqueci. Há muito tempo.

— Se fosse verdade, já tinha colocado outra no lugar — a criança


murmurou e soltei uma lufada de ar pela boca, desejando uma bebida forte.
— Tem um aplicativo aí, cara. Você é bonitão. Se eu te escrever, vai chover
mulher. Você está precisando muito de uma.

— Isso não é assunto para você. — Passei a mão por seu ombro. —
Esquece essa merda. — Esfreguei meus dedos nos cachos ensopados e
larguei um beijo no meio da testa.
— Para, cara! — Sacudiu-se, tentando fugir do carinho. — É sério, pai.
O bebê não é forte como a gente. É todo sentimental. Acho que ele sente falta
de uma mãe de verdade.

— Não sente. Ele tem a Bah.


— Mas a Bah é velhinha e até trocou suas fraldas. Ela não serve para o
que você precisa.

— Como é? — Ergui a cabeça da criança e fitei dentro de seus olhos


verdes. Os meus olhos, os olhos do bebê. — De onde tirou isso?

— Você era menos bravo quando a mãe de Noah morava aqui e dormia
no quarto.

— Você precisa ocupar a mente, filho. Vou reabrir sua matrícula no


inglês.

Entrei no quarto. Peguei uma garrafa no aparador, abri e tomei alguns


goles. O líquido quente desceu rasgando tudo.

— O coração foi feito para amar, pai.


— O meu é todo fodido. — Bebi mais um pouco. — Já nasci assim. Sua
mãe foi a única a se adaptar.

— E aquela moça coreana que tem umas tatuagens bacanas? Ela nos
ajudou na última vez que o senhor mandou o tio JP para o pronto-socorro. O
bebê gostou dela.

Traguei outro gole, lembrando-me da figura neurótica que levei ao


aeroporto três dias antes. Para se afastar do chefe, que ela amava
secretamente e estava de casamento marcado com outra, a coreana se desfez
de tudo em um mês. Se eu não interviesse, teria vendido o carro importado
por um custo abaixo da metade do valor de mercado.
— Fugiu para as montanhas — murmurei, com o pensamento na mulher
insegura, ingênua e ainda assim, dotada de grande inteligência e ética
pessoal refinada. — O amor pode ser é uma merda, Thiago. — Larguei a
garrafa sobre o aparador. — Na maioria das vezes é um grande sofrimento e
muita raiva de si mesmo.

Fui para o banheiro. Entrei no box. Parei debaixo do jato quente e


fechei os olhos.
— Minha avó disse que você precisa de uma mulher igual a minha mãe.
Mas tá difícil, né?

Ri internamente, com a nítida e perfeita lembrança de Danielle na


mente. Sim, era impossível encontrar outro anjo igual a ela. E mesmo que
esse anjo existisse na terra, eu jamais apagaria outra luz.
— Vai vestir a roupa, ajeitar o cabelo e pegar a mochila, filho —
orientei. — Vamos entrar no jatinho em quarenta minutos.
Arquipélago de Fernando de Noronha

— Tem certeza de que não é um engano? — Estendi a mão, impedindo


que o homem alto, jovem e terrivelmente atraente pegasse a minha mala.

— Sou o Simon Renault, acabei de descobrir uma filha de 27 anos e ela


vai casar-se com um dos meus sócios hoje. Acredita, também estou em
choque. — Ele insistiu, pegou minha mala, abriu o veículo e a levou para
dentro. — Agora entra no carro, querida, porque tudo o que precisamos é
estar naquele iate. A minha filha está angustiada por pensar que o avião se
despenhou contigo lá dentro.

— Misericórdia! — exclamei, foi inevitável.

Quando Madá, minha melhor amiga, disse que o pai me pegaria no


aeroporto daquele arquipélago, imaginei encontrar um português bigodudo,
barrigudo e visualmente maduro, não a personificação do melhor fruto da
terra. E para completar, cheiroso e com covinhas na bochecha.

Madalena me negou a informação de propósito, aquela safada.

— Estás bem? — A voz masculina, calma e carregada de sotaque


lusitano me tirou da análise.

— Apenas cansada da viagem. — Meio estabanada, segurei a mochila


e entrei no carro pela porta do carona, que foi aberta pelo gentil cavalheiro.

Estava completando seis horas desde que desembarquei em São Paulo,


guardei as malas no meu modesto apartamento de dois cômodos, em Vila
Formosa, e saí feito uma louca para entrar no avião de pequeno porte que o
noivo de Madá disponibilizou para me levar até Noronha.

O casamento seria realizado nas próximas horas, em uma cerimônia


intimista, dentro de um iate de luxo, ancorado nos arredores de Fernando de
Noronha. Uma ostentação que Madá merecia e me deixava orgulhosa. Ela e
sua filhinha Isabela eram tudo o que eu tinha de afeto, aconchego e base
familiar.

— A Madalena gosta muito de ti. Amigas de infância. Ela contou-me


que viveram na Bahia. — O português assumiu o volante e tirou o veículo do
lugar.

— É, fomos pai e mãe uma da outra. Ainda é difícil de acreditar que ela
encontrou você.

Ventilei-me com os dedos e o homem fechou os vidros, ligando o ar-


condicionado na sequência. O sol já estava desaparecendo no oeste do
horizonte, mas tudo indicava que a noite seria quentíssima.

— Fiz uma filha aos 14 anos. — Ele sorriu e tamborilou com os dedos
no volante. — Se os meus pais estivessem vivos, não lidariam com isso
facilmente.

— Nem consigo imaginar. Estou com vinte e cinco e até hoje tenho
medo de engravidar na adolescência — comentei, soltando meus longos
cachos e modelando-os com a ponta dos dedos.

Simon riu com minhas palavras. Aproveitei a descontração para, como


quem não quer nada, passar os olhos em seus braços. Encontrei músculos na
medida certa e veias saltadas que enchiam os olhos de qualquer predadora.

— Gosta de viver no Uruguai? — ele acrescentou, depois de um


período de silêncio.

— Foi onde encontrei a melhor oportunidade. — Disfarcei minha


curiosidade e fitei a estrada. — Lá trabalhei alguns anos em um salão de
luxo. Sou maquiadora profissional.

— Trabalhou? No passado? — indagou, deixando claro o quanto era


observador e dando-me motivos para encarar o perfil de seu belo rosto.

— Os sócios se desentenderam e o negócio enfraqueceu. — Meus olhos


contornaram o desenho da barba baixa e muito bem-feita. — Fui demitida e
colocada em uma lista de espera, até o negócio se reerguer. Como não posso
me dar ao luxo de esperar, tive que voltar. Aqui tenho residência própria, é
menos um gasto.

— Se houver algo que possa fazer...

— Se você me sustentar com uma bela mesada e pagar todas as minhas


dívidas, eu caso — brinquei e revirei os olhos para tal possibilidade.

A ideia de casamento nunca esteve entre minhas ambições. Mas um


sugar daddy era muito bem-vindo.

— As raparigas brasileiras são espirituosas. Gosto desse espírito livre


e nada convencional.

— Só tenha cuidado com o "rapariga". Posso esquecer que você é


português e largar um tapa no seu pé do ouvido.

O homem fez uma pausa apenas por tempo suficiente para gargalhar no
volante. Uma gargalhada gostosa e discreta, bem diferente da minha.
— Gostei muito de ti. És uma espécie de mulher que eu levaria para
tomar vinho verde e dançar até o nascer do sol. — Ele ajeitou o vidro
frontal e me olhou através dele. — Sem segundas intenções.

— A vida nos prega cada peça, não é mesmo? Em cinco minutos de


conversa, cogitei a possibilidade de ser chamada de vovó por minha
afilhada. — Encostei a cabeça preguiçosamente no estofado e sorri.

O homem era um verdadeiro tesão, contudo, naquele momento, eu só


queria distrair a mente. Falar besteira. Qualquer coisa que afastasse o
pensamento derrotista que permeava a minha cabeça ao lembrar das
prestações do meu apartamento.

— Calma, és amiga da minha menina. — Levando na esportiva, e se


tornando ainda mais encantador por isso, Simon me entregou um olhar
afetuoso e um belo sorriso de canto. — Se precisar de ajuda financeira com
as suas despesas, peça a Madalena para me avisar. Estarei de volta a
Portugal em duas semanas, mas mando-lhe o que for necessário. Minha filha
fala de ti com muito carinho, sinto-me responsável de alguma forma.

Santo pai, ele roubou a gentileza de todos os machos que passaram


pela minha vida, pensei admirada.

— Não, tudo bem, Simon. Eu me viro. — Removi o celular e um tubo


de gloss da mochila. — Isso foi incrivelmente gentil da sua parte. Agora sei
de quem Madá herdou o coração de ouro.

— Minha filha é muito linda — ele comentou, todo sorridente.

— Linda, sensata, irredutível. — Sacudi o gloss frutado. — Poucas


vezes consegui fazê-la quebrar as regras. — Deslizei o bastão em meu lábio
inferior e recebi o olhar curioso. — Meu Deus, olha a estrada, homi —
gritei quando uma bicicleta desviou no susto.

— Quebrar as regras? Dizes, fazer coisas erradas?

— Viver como se não houvesse amanhã, bebê.

— Tenho uma teoria contraditória sobre isso...


— Eu sei, todos têm — o interrompi. — Especialmente homens de
negócios. Mas sabe de uma coisa, vocês amam se aventurar com quem pensa
diferente. Consegue negar isso?

Ele me olhou, riu meio desacreditado, voltou para a estrada e disse:

— Você pode ter total razão. Mas, ainda assim, não é o melhor
caminho. É perigoso e instável. Fico aliviado por estar casando a minha
Madalena.

— A única vez que sua filha quebrou as regras, engravidou


acidentalmente. — Foi a minha vez de gargalhar. — Ela, simplesmente,
nasceu para ser perfeita e não sabe andar fora da linha. Você não teria
problemas nenhum.

— Hoje, ela e a miúda são o que tenho de mais valioso na vida —


revelou o bonitão, conseguindo me roubar um suspiro.

— Temos algo em comum, Simon, e isso me deixa feliz. Deve ser


maravilhoso ter um pai protetor, alguém com quem contar. — Guardei o
gloss e fechei o zíper da mochila.

— Não há mais ninguém na sua família? Em algum lugar?

— Não, ninguém. Minha mãe partiu quando nasci, meu pai antes disso.
Fiquei com vovó, mas ela não me protegeu como deveria e precisei fugir de
casa aos treze anos. — Sorri para cortar qualquer brilho de lágrima. — Ela
faleceu há seis anos. Já não tínhamos muito contato.

— Estarei sempre a tomar conta de ti e das tuas necessidades. És como


a irmã da minha princesa. Mantenha a calma. Vai ficar tudo bem — disse o
pai da minha amiga, descansando a mão sobre a minha.

Aproveitei para fechar meus olhos e camuflar as lembranças do horror


que foi viver nas ruas. A dor da fome, o medo, o frio... Eu não suportava
voltar para aquele passado. Coisas ali doíam como lâminas enfiadas na
carne.
Em poucos minutos o carro chegou no píer. Com os vidros abertos,
aproveitei para tirar fotografias do sol, que já se escondia atrás das
embarcações.

Escolhi as imagens mais nítidas, marquei a localização e postei nos


stories do Instagram. Agora, mais do que nunca, eu precisava potencializar
meu perfil para conquistar boas parcerias.

Além das seis últimas parcelas do apartamento, eu precisava de um


carrinho para circular em São Paulo e não podia raspar o saldo da conta sem
outro trabalho em vista.

— Chegamos. — Simon estacionou o carro e, sem perder tempo, deu a


volta para abrir a porta do carona. — Venha. — Pegou minha mala e esperou
que eu o acompanhasse.

Seguimos até o iate opulento ancorado no píer. Uma embarcação já


conhecida. Ali, há mais de quatro anos, depois de um grande desgosto, minha
amiga conheceu seu futuro marido. Na mesma noite, fui conduzida de
maneira errada por um mau-caráter, amigo íntimo do noivo. As recordações
em minha mente eram confusas, mas acionava gatilhos todas as vezes que me
via na frente de uma embarcação.

O pai de Madá seguiu em frente com minha pequena mala. Fui em


sequência, segurando as alças da mochila, tentando afastar sensações
perturbadoras.

Entrei na embarcação e alguns passos depois fui surpreendida por uma


bolada que me fez tombar e esbarrar acidentalmente em um homem.

— Ei, olha por onde anda... — o desconhecido disse, com as mãos em


meus ombros. — Oi... Bem-vinda a bordo, princesa.
— Há algum problema, amigo? — Simon indagou e foi suficiente para
o cara sair com as mãos suspensas, dando-me uma última olhada antes de
desaparecer das minhas vistas.

Depois de uma boa respirada, não perdi tempo. Busquei a bola e duas
embaixadinhas foram suficientes para apará-la dentro de minhas mãos.

— Me desculpa... — Um menino parou na minha frente e encarou-me


intensamente, exibindo olhos verdes belíssimos. — Fui eu que chutei a bola.

— Aqui está. — Entreguei o brinquedo, admirando a beleza absurda do


pequeno homenzinho.

— Você parece com a mamãe. — O pequeno esboçou um sorriso fraco.


— Ela deixava os cachos soltos assim. Só não tinha coxas tão grossas e nem
usava roupas curtas.

— Será que tenho uma irmã puritana perdida por aí? — Em um gesto
automático, estiquei o tecido de malha do meu pequeno macacão.

— Acho um pouco difícil. Mamãe era filha única e meus avós são
franceses. — O olhar tristonho respondeu à pergunta que veio em minha
mente e lamentei por ele. No momento seguinte meus dedos foram carinhosos
até os cachos compridos e amarrados no estilo samurai. — Ela se foi quando
eu tinha dois anos e meio.

— Tenho certeza de que ela era linda. Você é a prova. — Curvei-me


para selar o meio de sua bochecha esquerda e fui agraciada com um sorriso
verdadeiro.

— Ela era muito linda, mas eu pareço mesmo é com o meu pai. Da
mamãe só herdei os cachos e a melanina.
— Uma bela herança — falei, meio curvada, totalmente encantada com
o nível elevado de beleza. O verde dos olhos era tão intenso que mais
parecia uma ilustração no contraste da pele negra. — Lamento por sua perda,
docinho.
— Tudo bem. Já faz muito tempo. Ela está guardada na minha memória
e tenho bastante fotografias. — Virou o rosto e bateu nele com o indicador.
— Você pode beijar o outro lado? Só para eu lembrar mais um pouco dela.

Sem pensar duas vezes beijei seu outro lado, já tentada a convidá-lo
para uma volta de patins.

Meu sangue parecia doce, sempre atraía a atenção de crianças. Era


natural, quando percebia que já estávamos brincando ou brigando pela posse
de algum brinquedo.

— Gostei do seu corte de cabelo, pequeno.

— É high fade. — Ele se exibiu vaidoso, correndo a ponta do dedo no


belíssimo desenho degradê. — Meu pai fez a manutenção das riscas. Ele
sabe como eu gosto.

— Você é muito fofo e estiloso. — Toquei seu maxilar bem definido. —


A gente se vê mais tarde no casamento, certo?

— Certo. Não quero atrasar você.

— Um xêro. — Saí, acompanhando o português, que me esperava mais


à frente.

— Espera. — O menino me seguiu. — Qual o seu nome mesmo?


— Juliana, mas pode me chamar de Ana ou Nana. Você escolhe. —
Passei a mão sobre o ombro do pequeno.

— Sou Thiago Parisotto. Fiz oito anos e meio. — Parou um passo e


apontou para o lado oposto. A pulseirinha cravada de diamantes e as roupas
bacanas deixavam claro que ele pertencia a uma família com alta posição
social. — Está vendo aquele homem sem camisa e com uma fralda no
ombro?

— O que está de costas e mais parece um armário? — Minha indagação


fez a criança gargalhar, batendo a palma direita contra a barriga. — É um
belo armário de trinta e oito portas... — completei, meus olhos desenhando
as coxas musculosas, se apegando principalmente à imagem do bebezinho,
que todo empanado no que parecia ser protetor solar, descansava o bumbum
de fralda sobre o braço dobrado do sujeito.

— Ele pratica boxe e gosta de malhar para relaxar — disse a criança.


Seu tom de voz risonho deu margem à diversão.

— Pelo visto, anda sempre estressado... — analisei em voz alta,


torcendo para o homem musculoso virar e revelar os traços de seu rosto.

— Ah, não, nem tão estressado assim. Ele também malha quando está
tranquilo. Meu pai é super calmo. As pessoas até comentam "que homem
calmo".

— Ele é o papai Parisotto?

— Sim, e o bebê é meu irmão Noah. Nossos olhos são iguais, mas as
pessoas ainda perguntam se sou filho biológico dele.

Naquele exato momento, o bebê olhou para trás e exibiu dois pequenos
dentes em um sorriso largo e contagiante. Ele possuía uma mistura mais
diferenciada, tão linda quanto a do mais velho. Embora seus cabelos fossem
castanhos com reflexos loiros e a pele em um dourado mais claro, como a
minha, os traços esculpidos indicavam que algum parente próximo, talvez a
mãe, carregava os traços da minha negritude.

— São pessoas enxeridas, Thiago. Ignorá-las vale muito a pena.

Percebi que Simon seguia longe e retomei o destino. Thiago continuou


andando ao meu lado, segurando os dedos da minha mão, que permaneceu
apoiada sobre seu ombro.

— Meu pai não responde. Ele é muito bom em afastar pessoas só com o
olhar.

— Já gostei do seu pai, docinho... — murmurei, distraída com os


olhares masculinos que surgiam a cada metro quadrado.
— Sério? Ele está solteiro e precisando de uma mulher para dormir no
quarto dele — revelou o menino inocente, fazendo-me cobrir a boca com os
dedos para abafar a gaitada.

— E a mãe do bebê? — Tive curiosidade.

— Não deu certo... Você é casada, Juliana? — Emendou a pergunta.

— Deus me free! — Sem madeira por perto, bati na fibra do iate,


exorcizando o pensamento de estar amarrada a alguém. — Depois a gente
conversa, tudo bem? — Larguei o ombro da criança e continuei andando ao
seu lado. — Preciso maquiar a noiva e tomar um belo banho.

— Você é amiga da tia Madalena?

— Melhor amiga. — Parei na porta de um camarote. Simon estava lá


me esperando.

— Meu pai é amigo do tio Roberto.

— Preciso entrar, docinho. Você vem comigo? — indaguei e a criança


sacudiu a cabeça na negativa.

— Eu não me dou bem com a menina. Ela gosta de me colocar em


problemas.
— Como? — Olhei para Simon, que riu, mas logo estreitou os olhos. —
Não, não, Thiago. Belinha é uma anjinha.

— Estás a falar da minha neta, rapaz. — Simon colocou a mala no chão


e se sentou sobre os tornozelos, mirando dentro dos olhos verdes da criança,
que cruzou os braços e levantou o nariz.

— Ela fica sempre no meu pé, pegando no meu cabelo. É uma enxerida
e não entendo nada do que fala — o pequeno resmungou, o rosto bem
elevado em posição de enfrentamento.

— Ah, não pense assim, meu amor. — Sorri contida. — Belinha tem
três anos. Apesar do pequeno atraso na fala, é inteligente e esperta. Você
também já esteve nessa fase.

— Eu nunca me coloquei em perigo. Ela fez isso hoje, quando deu a


volta no pai e seguiu um passarinho que voou pela escada. — Apontou para
o convés superior. — Se eu não fosse rápido, ela teria escalado o murinho e
caído no mar.
— Onde está Isabela? Roberto já sabe disto? — Simon transpareceu
preocupação.

— Onde está Belinha, Thiago? — Minhas pernas tremeram, as mãos


também.

— Está tudo bem agora. Eu agarrei a mão dela, tirei lá de cima,


coloquei ali no cantinho e reclamei com autoridade. — Ele fechou os olhos e
soltou uma lufada pelas narinas. — O problema foi que a menina se sentou
no chão e me fez passar a maior vergonha. Tio Roberto já chegou agitado.
Nem perguntou o motivo do escândalo, só me olhou sério e levou a filha
para dentro do camarote.

— Vejo que vamos ter problemas no futuro. — O português bateu de


leve no ombro de Thiago e se levantou. — Mas hoje você foi um bom
cavalheiro. — Sorrindo, estendeu a mão para a criança que firmou o
cumprimento.

— Tio Roberto nem me deixou explicar — ofegou por último, com um


leve embargo, evidentemente magoado com a situação. — Os pais não
acreditam nos erros dos filhos. É mais fácil achar um culpado.

— Seu pai deve ter um orgulho danado de ter um filho tão protetor —
expressei, surpreendida com o fato de a criança ter uma dicção melhor que a
minha, grata por ele ser tão esperto ao ponto de proteger minha pequena
afilhada. — Vou roubar você para ser meu protetor particular, bebê. —
Toquei com o indicador no pequeno nariz e virei para a porta que foi aberta.

— É melhor você levar o pai. Vou junto de qualquer maneira — o


menino gritou, mas eu já estava distante, dentro da sala, com os braços
estendidos para a minha afilhada.
— Ahhhh! — Inclinei meu corpo, deixando a mochila cair no chão.

— Nana! — Belinha correu para meus braços. — Bocê demolou,


quelida[1].
— Querida? — Olhei para a patroa, que vinha chegando, vestida em um
roupão de seda e com bobs nos cabelos.

— Roberto me chama assim. Belinha aprendeu e não para de falar. —


Madalena me abraçou e eu apertei a bunda dela.

— Deixa eu vê essa cara de quem fisgou um bilionário! — Afastei seu


rosto e recebi um sorriso bonito e sincero. — Tão meiga, nem parece que faz
miséria quando vê um terceiro braço.

— Amiga...

Madá olhou de viés para o pai. As bochechas coradas eram a sua marca
registrada.

— Hum... Quase virgem de tão pura. Mas ama apoiar os joelhos no


colchão, não é safada? — sussurrei e ganhei tapas estalados.

— Venho buscar você mais tarde, filha. — O português beijou a testa da


minha amiga, a mãozinha da neta e saiu do camarote, fechando a porta por
último.

— Esse vozão é monito, hein? — Belinha comentou.

— Bonito e tem borogodó. — Gargalhei e caminhei até uma poltrona.


Me sentei nela e coloquei a pequena sobre minhas coxas.

— Bebeto... papai de mim — a pequena fuxicou, enrolando os dedinhos


no meu cabelo. — O tetê é de Beinha, ele disse, sim. De Beinha tudo.

— Você quer o mundo? — indaguei com o pequeno rosto entre minhas


mãos e matei a saudade da gargalhada gostosa.
— Ai, quelida, bocê tão endaçada.
— Me conta sobre essa história que você chorou lá fora e fez seu
amiguinho ficar triste? — questionei e Belinha cobriu a testa com a mão,
evidenciando falta de paciência com o assunto.

— Menino bavo. Ele disse assim... "Não pega meu tabelo, Zabela".
Beinha munto tliste, bincou sozinha — dramatizou, deixando a mãozinha em
formato de concha.
— Belinha está sempre disposta a socializar, mas nem todas as crianças
sabem lidar com a espontaneidade dela. — Madalena sorriu, orgulhosa da
filha.

— Menino não dosta de bincar... Ele bigou com mim. Beinha cholou
de lábigas[2].

— Ah, eu não aguento com tanta fofura. — Fiz cócegas e ela se


esquivou entre risos. — É a mesma gargalhada do avô, vulgo daddy dos
sonhos — comentei com Madalena e rimos juntas.

— Simon me acolheu com tanto amor, Ana. — Ela se sentou à minha


frente, na ponta do colchão. — É um pai incrível.
— E um piteuzão, ui, adoro!

Madalena gargalhou com minhas palavras. Eu amava fazer graça para


ver aquele sorriso.

— Ele está envolvido com a Amanda, lembra dela?


— Lembro. Uma bem sonsinha que queria roubar você de mim?

— Não começa com ciúmes.

— Eu não tenho ciúmes. — Dei de ombros. — Você é que tem o


coração do tamanho do mundo. Pelo visto puxou isso do piteuzão português.

— Meu pai é maravilhoso.


— E gostoso — acrescentei e Madalena jogou uma roupa de Belinha na
minha direção.

— Ele tenta se aproximar, mas Amanda é arredia. Eu fico morrendo de


dó dele, Ana. — Madalena se abaixou e removeu o tênis do meu pé.
— Depois do inferno que a loirinha passou com aquela história da falsa
paternidade, não vai ser fácil confiar na bondade humana. — Movimentei
meus dedos dos pés que agora estavam livres.

— Roberto tentou se redimir da parte dele. Comprou uma casa para ela
e o menino. Mas além de devolver, a garota esculhambou e o mandou enfiar
a casa naquele lugar. — Percebi minha amiga prender o riso.

— Ótimo, pelo visto a princesa acordou para a vida. Depois me passa


o contato. Ela era uma excelente blogueira. Podemos gerar conteúdos juntas.
Uma alavanca a outra. Tô precisando de dinheiro, amiga.

— Não, Ana, ela agora é cozinheira.


— Sério? Ela tinha quase 1 milhão de seguidores quando comecei.
Poderia ter dado a volta por cima.

— Amanda fechou todas as redes sociais, Ana. Morre de vergonha


daquele escândalo.

— Achei que só tinha flopado. Pobre barbie girl — lamentei.


— Simon fez uma bela proposta de trabalho, mas ela recusou.

— Recusou?

— Recusou. Mas pensou no bem-estar do filho e voltou atrás. Aceitou,


desde que seja um cargo doméstico. Ela fez cursos de governanta e não quer
viver de compaixão. A garota mudou muito. Desde o nascimento do menino,
é outra pessoa

— A governanta e o bilionário... Isso pode dar liga, hein? Tudo bem,


nem queria ser sua madrasta mesmo — gargalhei —, colírios é o que não
faltam nesse mundo.

— Que cosa... Coílhos? — Belinha perguntou. Estava ligadinha na


conversa.
— Colírios são pessoas bonitas. Você é o meu colírio, o mais lindo de
todos — expliquei e Madalena sorriu daquele jeito elegante dela.

— Uau, isso munto legal. Nana coílhos. Munto monita. — Foi o


suficiente para eu levantar a pequena menina e esfregar meu nariz em sua
barriguinha, arrancando muitas doses de gargalhadas.

— E Zuleide, está aí? Já viu o bonitão da adolescência? — perguntei


quando dei descanso a Belinha.

— Mamãe recusou o convite, Ana. — Vi muita tristeza dentro dos olhos


azuis da minha amiga. — Ela queria trazer o vagabundo do Benjamin e não
aceitei.
— É muita cara de pau daquela ordinária.

— Papai pertou o tescoço[3] de Dejamim. Juiede bava com ele —


minha afilhada resmungou esperta.

— Roberto não suporta mamãe, Ana. Só não a colocou na cadeia


porque implorei.
— Eu estranharia se ele fosse complacente. — Levantei-me e coloquei
Belinha no chão. — Esquece Zuleide e vamos rebocar essa cara. — Abri
minha mala e removi a maleta de maquiagem. — Diminui o ar-condicionado.
Está tão calor que estou pensando em comparecer à cerimônia de fio dental.

— Não inventa, doida. Roberto chamou um líder religioso. — Madá


riu, sem duvidar da minha capacidade.

No momento seguinte fui fisgada por um barulhinho familiar que soou


ali por perto.
— Nenélope munto tansada[4]. — Belinha defendeu a amiga, que
cochilava naquela hora do dia.

— Penélope, acorda, sua safada! — gritei e presenciei a galinha pular


do puff, correr e entrar no segundo cômodo. A flanelinha vermelha que
enfeitava o pescoço caiu no caminho.
Faltava pouco mais de uma hora para o início da cerimônia. Tempo
suficiente para colocar um biquíni poderoso, dar uma volta no convés da
superestrutura e fotografar o início de noite naquele lugar lindo.

A luxuosa embarcação de três andares, já ancorada distante do


arquipélago, estava com as luzes de navegação acesas. Aquilo provocava um
efeito divino nas águas calmas do oceano.

Depois de caminhar e registrar poucas fotografias, descansei meus


cotovelos sobre as amuradas. Sozinha, meus pensamentos agitados insistiram
nas lembranças confusas e distorcidas dos meus vinte e dois anos, quando
estive no interior daquele iate.

A sensação em meu peito era tão ruim que dificultava a passagem de ar.
Eu não gostava nenhum pouco daquele sentimento de impotência. A terapia
cumpriu seu papel por anos, eu deveria estar mais forte agora.
De olhos fechados e esfregando a mão no peito, inspirei e expirei
lentamente, soltando o ar pela boca, repetindo mais vezes, como me
instruíram no passado.

Um pouco mais aliviada, liguei o visor do celular para conferir o


horário. Foi quando desviei o olhar só por um segundo e me deparei com um
cara deitado sobre a espreguiçadeira mais escondida.
Um pé seguia firme no chão, o outro sobre o colchonete da
espreguiçadeira. Usava calça jeans destroyed e exibia o abdômen nu. Os
braços musculosos e dobrados sobre o rosto deixava escapar apenas o
queixo bem definido. Parecia apagado, como se estivesse ali há horas.

Talvez esteja passando mal, pensei, levemente preocupada, mas segui


meu caminho. Não estava em condições naquele momento.

Firmei a mão no corrimão da escada e desci um pouco, mas, curiosa,


girei o pescoço e vi uma garrafa de vodca quase vazia aos pés da
espreguiçadeira.

E se não for a primeira do dia? Ele pode tropeçar na cadeira, cair no


mar e morrer afogado.

Dei liberdade para minha consciência dramática e subi os dois degraus.


Voltei. Me aproximei.

— Psiu! Moço! Acorda! — Entortei o pescoço quando atentei para o


fato de que o pinguço era um verdadeiro monumento. Desses que era
necessário dar duas voltas e ficava restando para a terceira viagem. — Está
consciente, mizera?

O som da minha voz pareceu despertá-lo. Em um curto intervalo vi os


braços saírem de cima do rosto e a força de um olhar sombrio estremecer
minha base.
— Merda! — Recuei alguns passos.

— Tudo bem? — indagou, como se estivesse lendo o meu rosto,


estudando meus traços.
— Não tenho medo de você.

— Conheço você? — Ele olhou para os dois lados e voltou para mim.

— Não se aproxime! — ordenei quando mudou o passo.

Era ele, muito mais forte, mas sim, era ele.

— Não vou fazer isso. — Passou os olhos no meu corpo e estremeci.


— Já vou descer.

Se abaixou, e nesse intervalo de segundos, antes que ele alcançasse a


bendita garrafa, meu sangue ferveu nas veias. Força tomou conta do meu
corpo, o pânico deu espaço para a raiva. Fiz o que deveria ter feito aos vinte
e dois anos: o joguei sobre a espreguiçadeira e esmurrei como podia, com
toda a minha indignação.

— Você é maluca? — gritou, quando conseguiu imobilizar meus


braços.

— Vagabundo, aproveitador! Ahhh! — Jogada sobre ele, desci meus


dentes e mordi a parte mais carnuda de seu peito. Mordi com força. Travei
meus dentes ali, e rasgaria o pedaço se dedos firmes não puxassem meus
cabelos. — Você nunca mais vai atormentar a minha mente! — declarei com
o rosto em cima do dele. — Eu deveria ter feito um escândalo naquela
época, sei muito bem quem é o seu pai. Riquinho de merda!

— Quando conheci você?

A respiração dele veio ofegante, bateu no meu rosto. Seus olhos de


gude alargaram-se na minha boca raivosa e cerrei os dentes feito uma
[5]

canibal, pronta para outro ataque.

— Me soltaaaa!

— Não solto — contestou, a respiração muito dificultosa, entrecortada.


— Conheço você. — A mão, ainda presa nos meus cabelos, apertou o
punho. — Mas de onde? — A pergunta veio retórica e inflamou a minha
raiva.
— Quem bate não chora, não lembra. Quem apanha nunca mais esquece.
— Meti meu joelho no meio de suas pernas e vi o homem gemer com o rosto
virado. — Nojo de você!

— Maldita... — murmurou num tom plangente, rangendo os dentes de


pura agonia, retorcendo-se em busca de alívio naquela área atingida. — Puta
que pariu...

— Merece ficar sem isso aí. — Me sentei sobre ele, tomei impulso e
pulei da montanha de músculos. — Porco, covarde!

Deflagrei mais três socos e saí dali sem olhar para trás.

Desci os dois andares trêmula. Correndo. Desnorteada.

Passei pelo espaço ornamentado da festa e me enfiei no camarote da


Madalena. Ela estava sentada na poltrona e Belinha dormia em seus braços.

— O que aconteceu? — Madá indagou.

Andei de um lado a outro. Indignada demais para respirar normalmente.

— Encontrei o lobisomem... — arquejei —, lá no topo da embarcação.

— Ana, precisamos conversar...

— Que ódio, Madalena! Por que não deixou aquele cara fora dessa
viagem? Nem comi direito hoje, sequer arrumei minhas coisas em São Paulo.
Estou cansada pra caramba. Eu não tenho que passar por isso aqui.

— Espera, meu amor. — Ela se levantou, foi para a cama e colocou


Belinha no centro do colchão. — Roberto pediu que eu não comentasse com
você até o momento da cerimônia, mas agora é tarde. — Voltou, puxando-me
pela mão, levando-me na direção do sofá.

— Como é? — Me apartei dela. — Você sabe que fiz terapia, que odeio
me sentir acuada, que aquela merda me afetou diretamente. Por que não
brigou com seu marido para deixar o amigo fora dessa?
— Ana, comentei com Roberto, falei tudo o que aconteceu, que o amigo
dele te drogou naquela festa e invalidou suas escolhas...

Indignada, sem querer ouvi-la, me afastei para a ponta do sofá. Apoiei


meus cotovelos nas coxas e cobri meu rosto com as mãos.

— Não suporto me sentir assim.

— Sou a pior amiga do mundo — ela lamentou com a voz embargada.

— Não vou ao seu casamento. Mais tarde pego um bote e volto para o
porto — declarei, determinada.

— Amiga, não faça isso comigo.

— Eu não quero nem olhar na sua cara, Madalena.

— Não foi ele, Ana.

— Eu sou maluca. É isso?

— Ana... — Madá escorregou o traseiro no estofado e capturou minha


mão outra vez. — Roberto me contou tudo. Naquela festa, quem te drogou e
levou para o camarote foi outro cara.

— Vou pegar minha mala e levar para o bote. Não me procure pelos
próximos 100 anos. Acabou, Madalena. Acabou tudo.

Levantei decidida e fui puxada de volta. Vi desespero nos olhos azuis.

— O lobisomem tem um irmão. Gêmeo univitelino. Mesma carga


genética... Iguais. — Soprou, como se estivesse cansada. — É isso. Foi o
irmão dele naquela noite.

— Gêmeos? — Um rebuliço desmedido tomou conta de mim, e, num


turbilhão de pensamentos, tentei processar a nova informação.

— Sim. Lembra do cara que estava no seu pé, te cercando a noite toda?
— Ele se aproximou e elogiou o meu cabelo... — Repassei as cenas,
procurando por lacunas.

— Foi o Otávio, amigo do meu marido.

— Ele foi gentil, me chamou para dar uma volta e aceitei. Ficou por
perto, me esperou finalizar a maquiagem das clientes. Quando finalizei,
fomos para a proa. Tinha uma garrafa de vodka. Tomei algumas doses e vi
tudo rodar...

— Você sempre foi fraca pra bebida.

— Lembro que ele saiu para pegar um café forte e fiquei deitada no...
em algum lugar. Voltou sem camisa e com um suco de melancia nas mãos.
Aquele suco estava com um gosto estranho, mas pensei ser o álcool da minha
boca.

— Segundo o pai de Belinha, quem voltou com o suco e levou você


para o camarote, foi o outro, que estava de intruso na festa. — Madalena
parou para respirar e me observar. Continuei tentando alinhar as novas
cenas. — Roberto planejou resolver essa situação hoje. Me pediu isso. Não
vi mal, Ana.

— Eu dei com a garrafa na cabeça de quem? — perguntei, incisiva.

— Só o Otávio pode te responder. Mas quando encontrei você, era ele


que vigiava o seu sono. Isso Roberto me confirmou. Não esqueço daqueles
olhos vermelhos, tinha muito ódio retido ali. Soube que quase matou o irmão
naquele dia.

— Estou enojada. — Levantei-me, vendo a história se encaixar e me


machucar na mesma medida. — Não importa quem foi o maldito. Aconteceu
e está aqui. — Bati na minha têmpora com o indicador.

— Vem, senta. — Madá estendeu a mão, mas recusei.

— Ele me perguntou quanto tinha sido o programa. O que levou a


garrafada.
— Então foi o Otávio. Roberto me contou que a festa estava cheia de
modelos que faziam serviços extras e o amigo era o responsável pelo
pagamento.

— Desde quando você sabe disso? — resmunguei magoada e vi minha


amiga começar a chorar.

— Soube recentemente. Roberto me convenceu que não era assunto


para conversar por telefone.

— Engole agora. Se chorar vai casar igual um palhaço. Brigamos e não


vou refazer sua maquiagem. — Esfreguei meus olhos ardidos. — Acabei de
derrubar o homem inocente sobre uma espreguiçadeira e esmurrar com muita
força. Ahhh!

— Amor, não tem como você derrubar um homem daquele tamanho sem
que ele permita — Madalena contestou com cautela. — Você tem um metro e
cinquenta e oito, é meio que impossível...

— Eu derrubei e esmurrei. Até mordi no peito — assegurei.

— Mordeu no peito? — Ela estreitou os olhos, duvidando fielmente da


minha capacidade.

— O que é Madalena? Quase arranquei um pedaço de carne do homem.


Arrebentei todo. Está caído lá até agora.

— Tudo bem, acredito na sua grande força. Ninguém se meteria com


você, nem aquele homem grande e... lutador de boxe.

— Sonsa — xinguei, muito chateada. — Acredita se quiser, não é isso


que está em jogo aqui. Você poderia ter evitado essa confusão.

Fui na direção da minha mala e procurei por uma peça discreta. Joguei
o vestido que eu usaria na festa de qualquer jeito e Madalena o aparou antes
que alcançasse o tapete.

— Eu já conversei com Roberto. A Venturelli vai fechar uma longa


parceria com você. Remunerada, viu? Nada de só recebidos.
Ela tentou me agradar de maneira irrecusável, mas resisti.

— Bati no homem errado. Se eu não fosse forte, ele poderia ter


revidado e me quebrado no meio.
— Ele é um cão raivoso. Melhor não repetir. — Com essas palavras
ela conseguiu a atenção dos meus olhos. — Eu protejo você de tudo. — Veio
e limpou uma poeira inexistente no meu ombro. — Sabe, você é a cara da
marca Venturelli. Daria uma excelente embaixadora. Embaixadora —
repetiu.

— Embaixadora? — indaguei, tentando não parecer interessada. —


Salário fixo?

— Totalmente fixo. — Ela pegou minha mão e beijou. — Você é a


melhor blogueira que eu conheço.

— Sou mesmo.
— Será uma honra para a Venturelli. Roberto até lançou uma linha nova
para cabelos crespos e cacheados.

— Eu vi os seguidores da Venturelli triplicarem quando ele te defendeu.


Conquistou a grande massa feminista e até as adolescentes românticas. —
Não deixei de comentar, querendo cutucá-la de alguma maneira.

— Mera coincidência.
— Empresários marqueteiros têm astúcia — insisti.

— Roberto é um dos maiores empresários do país. Ele ganhou muitos


prêmios internacionais. Transita em todas as áreas. É professor de
administração, Líder Coach. CEO de uma empresa que fundou aos vinte e
três anos e é número 21 no ranking da América Latina — defendeu o marido
com unhas e dentes e não parou por aí. — Sem contar, que apoia meus
sonhos. Fica todo orgulhoso quando me vê pilotando um avião. Meu marido
nunca precisou usar a vida pessoal para vender produtos.

— Chá de pica disgramado — rezinguei.


— Ana... Somos adultas agora, resolvemos tudo com maturidade, sem
brigas.

Peguei o necessário para um banho e fechei a mala.


— Não vou estragar seu dia — conclui e estendi a mão para um abraço
chocho. — Eu deveria estar mais orgulhosa, mas meu coração mole não
resiste a sua cara cínica.

Eu não conseguia dormir uma noite em conflito com ela.

— Nunca mais escondo nada de você. Prometo — resmungou dengosa.

— Eu preciso pedir desculpa para o lobisomem, né?

— Acho justo. Ele cuidou de você naquela noite. — Madá beijou meu
rosto e minha testa.

— Preciso de outro banho. Já volto para vestir você e retocar a


maquiagem. — Me desvencilhei, removi a parte de cima do meu biquíni e fui
na direção do banheiro.

— Eu vou acordar Belinha do cochilo — resmungou animada. — Está


quase na hora da cerimônia. Daqui a pouco Simon chega para me buscar.

Entrei debaixo do jato do chuveiro, colei minha testa na parede e soltei


o ar dos pulmões. Precisava consertar a confusão, mas não me sentia nenhum
pouco confortável diante da figura daquele homem. Olhar na cara dele era o
mesmo que rever seu irmão. E seu irmão me fez voltar para a infância, para a
pior fase da minha vida.
Limpei uma lágrima sorrateira e sorri para Madalena, vendo-a mais
bonita do que antes. Seu brilho natural irradiava com tanta intensidade que
me deu a certeza de sua completa felicidade.

— Ela está maravilhosa — Simon disse ao meu lado, me oferecendo


uma taça de espumante.

— Ela sempre ansiou por um ninho. — Recebi e firmei a taça entre


meus dedos. — É muito bom vê-la tão realizada.

— E tu? — O português deu um gole na bebida.

— Eu? — Virei o rosto para encará-lo, foi quando meus olhos


flagraram uma cena que acontecia no fundo do espaço da cerimônia.
Entre os poucos convidados, o homem que eu deveria me desculpar até
o final da noite, protegia um bebê em seus braços e conversava com o
garotinho da bolada de mais cedo.

Sim, o sobrenome era o mesmo. Não me atentei antes, mas agora tudo
se encaixava. Otávio Parisotto, herdeiro da Pinhos Parisotto, era o pai das
duas crianças.
Cheirei a bebida da taça com o olhar investigativo. Ele aparentava ser
um bom pai para as crianças, talvez seu coração fosse gentil o suficiente
para aceitar minhas sinceras desculpas sem grandes ressentimentos.

Com a verdade clara, não era inteligente brigar com o diretor financeiro
da Venturelli.

— Juliana? — Simon brindou sua taça na minha duas vezes.

— Oi? — Sorri, virando-me para o cara bonito com covinhas.

— Você também sonha com um ninho?

— Sonho com voos mais altos. Encontrei conforto na liberdade —


respondi de imediato, distraindo-me com o chorinho manhoso do bebê. —
Sou pássaro livre.

— Ainda é jovem. Há uma grande possibilidade de mudar de ideia nos


anos vindouros.

— Não, querido. Serei muito feliz, realizada e totalmente solteira —


completei, despejando o conteúdo da minha taça na dele. — Só abro exceção
para um sugar daddy, mas preciso avisar: a luta por adaptação seria travada.

— Até o ano passado, antes dos meus pais partirem, pensava


exatamente como tu. — O português deu uma bela talagada no líquido da
taça e assumiu um ar risonho.

— Aprendi a ser sozinha, Simon. Pode até parecer contraditório, mas


acredite, só encontrei segurança na liberdade.
O choro ficou intenso lá atrás e eu parei para assistir. Agora, o
menininho esperneava em um desespero copioso, lutando bravamente para
descer do colo do pai.

— O miúdo está a chamar a mãe — Simon disse, seguindo meu olhar.

— Impossível. Ele é pequeno para formular as... — Calei a boca


quando ouvi claramente um "mama". — Eita, hoje em dia é como se eles já
nascessem sabendo das coisas.

— O bebê de uma amiga de Portugal nasceu com um dente na boca.


Aquele ali tem dois. E está estressado por querer a mãe.

— É uma das razões pelas quais escolhi ser apenas dinda. — Sorri um
pouco alarmada com o desespero da criança. — Não teria estrutura para
lidar com esses lindinhos todos os dias. Eu acabaria competindo o choro e
exigindo um colo como recompensa.

— Sobre a exigência, pode ser resolvida facilmente se tiver um


companheiro ao lado — disse o português, sem abandonar o ar divertido.

— Oxente, está querendo me casar, daddy?

— Se chegasse há um mês e não fosse íntima da minha menina, eu


assumiria a missão de quebrar a tua resistência. — Simon piscou com aquele
lindo sorriso nos lábios e eu tremi da cabeça aos pés.

Ele era o próprio borogodó, qualquer mulher sentiria o mesmo.

— Lamento profundamente pelo meu atraso, daddy.

Me preparei para soltar uma piada que o deixaria desconcertado, no


entanto, meus olhos foram tragados pela imagem de dois braços curtos que
vinham estendidos na minha direção.

— O miúdo quer você. — A frase de Simon provocou um puxão forte


no meu peito.
— Não. Claro que não. Eu nem o conheço — contrapus, vendo o pai da
criança me fuzilar com seus olhos verdes e furiosos. Algo semelhante a uma
promessa de morte lenta e sofrida. — Socorro, Jesus. — Virei a taça e fingi
não estar bebendo vento.

— Está tremendo, Juliana. — Simon apoiou a mão gentilmente nas


minhas costas.

— Sim, às vezes eu tremo. — Caminhei dois passos até a mesa do bufê,


inclinei-me sobre ela e deixei a taça. — Não tem nada a ver com o pânico de
ter atacado um gigante vingativo por engano — sussurrei para mim mesma e
tive uma vontade louca de fazer xixi.

Respirei fundo quando me lembrei de não ter colocado nada por


debaixo do vestido. Foram horas sentada e com jeans, no primeiro voo, só
queria deixar respirar um pouquinho. Agora, eu estava prestes a mijar no
chão.

— Sente-se um pouco, querida. — Simon veio e continuou me


apoiando.

— Estou bem. — Coloquei um salgadinho na boca e mastiguei. —


Fome. É isso. — Mastiguei outro. — Está vendo? Melhorei.

Cruzei minhas pernas para segurar a urina.

— Então alimente-se. Coma mais.

— Preciso ir ao banheiro. — Procurei pelo lobisomem e não encontrei


sinal dele. O choro do bebê estava distante, mas, ainda assim, incessante. —
Vou lá... Já volto.

Apressei o passo em direção ao camarote de Madá e me tranquei lá.


Aliviei minha bexiga no banheiro e respirei fundo na frente do espelho.

Era certo pedir desculpas pelo ataque, porém, minha coragem se


esgotou quando recebi o olhar frio e truculento. Além de ter vestígios do
homem que me molestou, esse Otávio queria minha cabeça.
Trêmula, soltei o ar lentamente e organizei meu vestido. Apesar de
decotado e fendido até a base da coxa, a peça azul era longa e encorpada em
tricô feito à mão.

Algumas respiradas depois ajeitei o decote e saí, determinada a adiar o


contato até estar mais calma. O homem era amigo do marido de Madá, não
faltaria oportunidade para o bendito pedido de desculpas.
Passei pelo corredor dos camarotes e ouvi o chorinho vindo de um dos
cômodos de porta aberta. Ignorei, sacudi as ideias e segui em frente. Não era
problema meu.

— Oi, você pode chegar aqui? — A voz infantil me fez frear as


sandálias no piso náutico. — Juliana!

Foi inevitável, virei-me e topei com o menino na divisa da porta. Ele


sacolejava o pacotinho escandaloso em uma tentativa fracassada de acalento.

— Tudo bem com ele, Thiago? — Olhei para todos os lados,


procurando pelo pai. Meu peito e cabeça ferviam em pânico.

— Meu irmão acha que você é a mãe dele.

— O quê? — Ignorei os sentimentos desconfortantes e me aproximei


das crianças. — Por quê?

— Acho que foi o cabelo e a pele. O seu está preso, a mãe dele usa
assim — explicou e olhei assustada para o bebê, que tentava a todo custo
alcançar meus braços.

— Hey... — Segurei a mãozinha. — Você não conhece o cheiro da sua


mãe, neném? — Os olhinhos imploraram por meus braços e meu coração
mole não resistiu ao ver aquele apelo. O embalei cuidadosamente e observei
sua pequena cabeça deitar contra meu peito.

— M-Ma... — Soluçou ele, raspando as unhas no meu busto, unindo as


pálpebras e liberando um sopro de alívio, como se o verdadeiro conforto
fosse encontrado.
Meu coração sofreu um leve descompasso. Por um pequeno instante
senti o pânico perder a força e isso me fez retribuir o aconchego com um
beijo.

— Acho que sua mãe não vai gostar de saber que o neném dela está de
olho em outra tetina. — Tirei a mãozinha de dentro do meu decote e usei a
bainha da camisa pequena para enxugar as lágrimas e secreção nasal.

— A mãe dele não liga.

— Como não? Mães são ciumentas, docinho. — Olhei para dentro do


camarote. — Vocês estão sozinhos?

— O pai foi fazer leite... — O menino entrou e me chamou com a mão.

— Eu preciso voltar para a festa. Ele parou de chorar. Segura o seu


irmão. — Tentei fugir e vi o bebê se enroscar como um filhote de preguiça.
Grudou pernas e braços em mim.

— Não tem jeito. Noah não vai soltar você agora. — Thiago se sentou
na cama. — Entra.

— Não é uma boa ideia. — Entrei receosa, sentindo um frio atacar


minha espinha. — Toma ele.

— Ma. Ma — o grunhido insistente veio acompanhado de sorriso


desdentado e um soluço curto.

— Docinho, não faça isso comigo. — Olhei para a porta aberta antes de
me ajoelhar ao pé da cama.

Coloquei o bumbum do bebê no colchão e acariciei suas costas com a


palma da minha mão. Quando relaxou, o fiz deitar de costas. Ele sorriu todo
faceiro, chupando a língua enquanto olhava para o meu decote.

— Meu irmão é muito dengoso — Thiago avisou antes de jogar uma


loção anti-mosquito na cama. — Ele se esfregou muito, acho melhor passar.
A pele do bebê é totalmente sensível.
— Eu não posso ficar aqui. — Abri a loção, coloquei uma porção na
mão e massageei o braço do bebê. — Estou muito cansada, quase
adormecendo.

— Ele já vai dormir para liberar você. Noah ainda não tem dois anos e
meio para entender as coisas da vida — disse o menino, me lembrando de
antes, quando revelou que nessa idade ficou órfão de mãe.

TPM, é uma merda!

Soltei o ar pela boca, sem saber lidar com a mistura de sensações que
atingiu meu peito. Aflição, medo e algo mais sublime.

Eu deveria sair do quarto naquele momento, no entanto, meu corpo


começou a agir fora de controle. Enquanto massageava as canelinhas gordas
de cima a baixo, meus lábios beijaram os pés cheirosos.

A áurea inocente das crianças e o pouco que eu já sabia delas,


atingiram meu coração a ponto de incomodá-lo. Foi assim quando vi Belinha
pela primeira vez na maternidade, quando a peguei nos braços e prometi que
seria tudo para ela, que seria sua segunda mamãe.
— Ela veio ver o bebê... — sussurrou o mais velho e eu fiquei tensa,
sentindo um arrepio percorrer todos os poros do meu corpo.

O lobisomem estava no quarto, atrás de mim. O cheiro cem por cento


masculino que agrediu meus sentidos deu a certeza completa de sua
presença.

— Ele está... ele está mais calmo, Thiago — consegui dizer, olhando
para ele por cima do ombro. — Vou sair.
Levantei-me e nem precisei mudar o passo para o bebê se manifestar,
batendo os pés no ar, rolando na cama a ponto de se jogar e ser amparado
por quatro mãos. Minhas e de seu pai, que me olhou nos olhos e se afastou
com o filho nos braços.

— Ele estava chorando... — murmurei o óbvio.


— Éh... Éh... — No colo do pai, o menino repetiu o choro manhoso e
estendeu os braços para mim, chamando "Mama" em seu desespero
comovente.

— Tudo bem, vou ficar com ele mais um pouco. — Prontifiquei-me


com as mãos estendidas e uma eternidade depois o homem trouxe a criança.

Eu nem toquei nele. Voltei para a cama, recebi a mamadeira das mãos
de Thiago e coloquei na boca do bebê, que se encolheu no meu colo e fitou
meus olhos a cada tragada que o bico de borracha recebia.

— Pai, você também achou ela bonita?— Thiago disse e ergui a


cabeça.

Peguei os olhos do homem fixos em mim, como se quisesse cruzar a


carne. O quarto não era minúsculo, mas fui tomada por uma sensação
claustrofóbica absurda.

— Quero me desculpar pelo descontrole de mais cedo. — Aproveitei o


momento, mas ele não disse nada. Sentou-se na poltrona, tirou o celular do
bolso e prestou atenção nele. — Arrogante! — Soltei e ouvi um rosnado do
lobisomem.

— Pai, o bebê gostou dela, faz alguma coisa — o menino sussurrou ao


lado do ouvido do pai.

— Vai brincar lá fora, filho — o homem pediu e o menino atendeu,


dando uma piscadela antes de sair do quarto e puxar a porta.

Eu olhei rapidamente para o bebê. Ele sorriu com o bico enfiado na


boca, apenas brincando, sem sugar o leite.
— Você não está com fome, neném. — Fingi puxar a mamadeira.

Muito esperto, o bebê mordeu a borracha e chupou rápido, parando


apenas para sorrir. A intensidade de seus olhos verdes sempre dentro dos
meus.
— Lembrei de você — rosnou a voz mal-humorada. — Era meu irmão
naquela noite. Roberto esclareceu tudo para mim.

— Sim, Madalena acabou de me contar também. Você entende o meu


descontrole?

— Naquela noite, encontrei você quase uma hora depois e estava


acordada, parcialmente despida, e ele dava na sua garganta — disse isso
sem se importar e fiquei angustiada, agrupando as imagens que até então
estavam distorcidas em minha mente.

— Nunca te ensinaram que é extremamente perturbador recolocar a


vítima dentro do cenário? — Olhei para cima, engoli o bolo de angústia que
veio na minha garganta e me mantive falsamente plena.

— Não me culpe por um erro dele. Tenho muitos, mas nenhum


relacionado a estupro — disse secamente, seu olhar frio não mostrava
nenhuma compaixão.

— Preciso me desculpar pela garrafada de quatro anos atrás e pela falta


de controle de mais cedo — insisti, tentando resolver minhas pendências de
uma vez por todas.

Quanto mais cedo eu resolvesse, mais rápido me livraria do


desconforto. Da presença dele.

— Já levei pancadas maiores — disse ele, agora com os olhos fixos


nos meus pés, engolindo em seco o suficiente para revelar seu pomo-de-adão
subindo e descendo.

Segui seu olhar e não encontrei nada de errado ou grandioso. Era


apenas uma sandália flat rasteira com tachas transparentes, entrelaçada com
fios de nylon e fecho no tornozelo.
— Gostou do modelo da sandália? — precisei provocar e vi o homem
ficar de pé.

Em um salto, ele caminhou até a porta para abri-la.


— Se encontrá-lo, não cometa o erro de mais cedo. Ele é traiçoeiro e
vai convencê-la do contrário.

— Eu estava com raiva. Ainda estou.

— Não se aproxime dele! — Ele usou um tom autoritário, me


assustando e fazendo o bebê soltar um gritinho engraçado. — Eu me vinguei
por você. Esqueça a existência dele e você ficará bem. Fique longe de mim,
também. Fique longe, principalmente, de mim.

Eu ri indignada.

— E quem te disse que eu faço questão? Só entrei aqui pelo bebê. — A


criança soltou outro grito engraçado e beijei a mãozinha dele antes de
finalizar com um tom infantil: — Foi por você, bebezinho, safado.

O menino riu e soltou uma mistura de "papapa".

Isso fez o homem olhar para o meu colo. Ele observou o filho por mais
de cinco segundos, depois abriu a porta novamente e saiu da sala.

— Vou esperar aqui fora — disse ele, já de costas, desaparecendo do


meu campo de visão.

Exalei pela boca e fechei os olhos por dez segundos.


— Eu acabei com ele mais cedo, por isso está virado no setenta —
sussurrei para o anjinho e inalei o cheiro de seus cabelos loiros.

Ele uniu os pezinhos no ar, colou os longos cílios e rolou a língua sobre
o bico da mamadeira. De repente, ficou sonolento.

Levantei-me, o coloquei sentado no meu braço e caminhei lentamente


pelo quarto. Acariciei seus cabelos ralos e esperei o arroto chegar, enquanto
sentia seu coração bater contra o meu. Quando ele arrotou, já estava
dormindo com a mãozinha firme no mamilo do meu peito.

— Oi... — murmurei da divisa da porta.


O pai estava a dois passos de distância. O menino sentado no tapete
náutico.

— Ele dormiu? — o lobisomem indagou ao desencostar da parede.


Olhos fixos no bebê em meus braços.
— Ele está sonhando com a mãe. Chamou duas vezes. — Entreguei o
bebê.

Quando sustentou o filho, a mãozinha segurou firme no meu decote e eu


tive a missão de soltar dedo por dedo tomando cuidado para não o acordar.

— Pede o telefone dela... — Thiago disse de onde estava e o pai olhou


para ele, transferindo uma clara repreensão.

— Então... assunto encerrado, não é? A mordida, o... os socos no peito


e aquela coisa toda... — Gesticulei, nervosa. — Não que eu me importe com
o seu rancor, mas vou ser embaixadora da empresa Venturelli e sei que você
é diretor lá. De repente, você consegue convencer o CEO de que não estou
vendendo a marca e... Não, é melhor não mexer comigo, porque aí teremos
um grande problema. Não é uma ameaça. Apenas um aviso. — O homem
franziu a testa, como se estivesse entediado com minhas palavras. — Vou
voltar para o salão agora.

Apontei e virei de costas, saindo às pressas. Não estava com condições


de perder o emprego por causa de um mal-entendido.

— Não lembrei de você durante esses anos — disse arrogantemente. —


E não misturo vida pessoal com profissional.

Eu nem olhei para trás. Segui meu caminho e voltei para a festa.
Nós nos encontramos no salão novamente, mas ele não me olhou no
rosto. No dia seguinte, quando acordei, ele não estava mais na embarcação.
Aliviada, fiz minha oração e desejei não ter problemas com ele em minha
nova empreitada.

Suas feições me deixaram extremamente abalada, mas eu não podia


perder o riso.
São Paulo, uma semana depois

— Nana, bocê... falando papai do céu?

Abri apenas um olho e fiscalizei por ele. Belinha estava sentada à


minha frente com seus cabelos completamente desgrenhados em
consequência da noite de sono. Ela simplesmente dormia ao meu lado e
acordava aos pés da cama.

— Bom dia, docinho. — Passei a mão em seus cabelos e organizei um


coque no topo. — Nana estava agradecendo por alcançar mais um ciclo de
dias vermelhos.

— Mermelho?

— Coisa de gente grande, amor. — Saí da cama e a coloquei no chão.


— Vamos tomar banho, fazer um café gostoso, arrumar o apartamento...
— Bincar...

— Isso. Vamos brincar muito. Sua mãe volta hoje e mais tarde vai
querer roubar você de mim.

— Mamãe... Papai de Beinha... Tudo foi embola.

Minha afilhada teatralizou, arrebitando um biquinho dengoso, e forcei


meus lábios em sua bochecha gordinha. Ela repetiu aquilo muitas vezes ao
longo da semana, principalmente durante as longas chamadas de vídeo que
os pais faziam da Europa.

— Hoje você abraça seus pais bem forte, amor da minha vida. —
Entrei no banheiro com ela.

— Nenelope sozinha. Oh, Nenélope, munta fome de papá deíssa... —


continuou com o leve drama e puxei o baby-doll de seu corpo.
— Aquela safada está é tendo uma vida de rainha. — Levei Belinha
para debaixo do chuveiro morno. — Quem diria que, antes de mim, Penélope
moraria em uma cobertura de alto padrão?

— Ela pecisa... Um papai os ovinhos.

— Nada de macho para Penélope agora. Ela precisa curtir a vida boa
antes de encher a casa de filhos. — Gargalhei daquela loucura toda. —
Fecha o olho e levanta a cabeça. Hoje é dia de tirar o grude do cabelo —
orientei e auxiliei também.

Madalena e seu marido estariam de volta da lua de mel naquela tarde.


Belinha optou por ficar uma semana comigo e aproveitei cada segundo ao
lado dela. Foi festa todos os dias e muitos episódios de “O Show da Luna”,
seu novo vício.

Dei banho, medi a glicose e apliquei a insulina necessária. Quando


terminou o café da manhã e ela escovou os dentes, deixei-a com o tablet no
sofá e corri para o banheiro para fazer a higiene necessária.
Não foi, juro que não foi, cinco minutos, Belinha entrou cambaleando
pela porta do banheiro, fazendo careta e segurando um gato gordo e amarelo,
parecendo o bichano Garfield dos filmes que eu assistia na adolescência.

— Ai, tolicença[6]...

— Belinha, por tudo o que é mais sagrado! — Saí coberta de xampu,


enrolando a toalha no corpo, quase escorregando no azulejo. — Onde você
encontrou esse gato?

— Ele lá na valanda.

— Na varanda? — Sentei-me sobre os calcanhares e aliviei o peso


dela. — Como você entrou aqui, sujeito? — investiguei, deixando-o na
altura do meu rosto.

— Miau... — foi tudo o que o gato resmungou, e eu seria mais doida do


que o natural se esperasse o contrário.

— Venha tomigo[7]! — A pequena saiu do banheiro e fui atrás, levando


o bichano nos braços. — Entou o bulaco. — Ela apontou para a abertura na
emenda da rede de proteção. — Acho foi assim.

— Ele deve morar na vizinhança.

Analisei o buraco e me surpreendi com a capacidade do gato em


escalar o parapeito para chegar até a minha área de serviço, no quinto andar
do prédio, e depois entrar por aquele buraco, a quase dois metros do piso.

— Ele... amigo de Beinha — Belinha murmurou lá de baixo, com os


braços cruzados, já tramando algo.

— Ele mora com alguém. Precisa voltar para casa, docinho. — Voltei
para dentro do apartamento e levei o gato.

— Ele disse... Não tem mamãe, não tem papai, não tem vozão, não tem
Nana. Dabiga de vento, bumbum fedolento, chujo todo...
Enquanto Belinha tentava me convencer a ficar com o invasor, peguei
leite na geladeira, despejei em uma tigela e coloquei no chão. Rapidamente o
gato atacou o líquido.

Ele estava mesmo malcheiroso e sujo. Esperei o bichano finalizar a


bebida para ler a plaquinha presa em sua coleira.
"Sr. Gusmão", estava escrito lá, e julguei ser o nome dele. Não havia
sinal de seu tutor ali.

Repus a tigela, pensando na possibilidade de deixá-lo comigo até que


eu soubesse de onde ele vinha e o motivo da fuga. Augustinho, o simpático
porteiro do prédio, me ajudaria nas buscas.

— Venha, me ajuda a dar um banho nesse fugitivo, amor.

— Iupi! — Belinha pulou, em seguida arrastou o gato na direção da


varanda. — Beinha cudar munto de bocê, gandãozinho.

— Devagar. — Fui atrás, separando o sabão de coco e abrindo a


torneira quente. — Precisamos ir às compras. Ele não pode ficar aqui apenas
bebendo leite.

— Beinha compar tudo de papá... esse gato monito.

O bichano tentou fugir, mas a pequena o capturou perto da porta.

— Miau...

— Bem-vindo ao lar, Senhor Gusmão.


Com o celular entre o ombro e a orelha, tentando falar com Madá, tirei
tudo de dentro do carrinho do supermercado e lotei o fundo do carro. Usado,
mas totalmente meu. Comprei à vista, no início da semana, quando o marido
da Madalena confirmou a minha contratação.

Eu assinaria o contrato de um ano na próxima quarta-feira. O salário


cobria a prestação do apartamento e sobrava para as despesas básicas.
Minha maior preocupação foi resolvida. Agora, meu objetivo era fazer o
Instagram bombar, alcançar mais de um milhão de seguidores e conseguir
novas parcerias para colocar dinheiro de volta na poupança.

— Munto de seguedo.= — Belinha resmungou para si mesma quando


eu a prendi na cadeirinha, no banco traseiro do carro.

— Quer assistir no seu tablet?

Organizei as sacolas de compras jogadas sobre o banco ao lado. O rolo


com tela de aço, o carpete e as compras do gato estavam amontoados no
assoalho.

— Beinha axisti a Luna — ela respondeu com o olhar muito agitado.

— O carro tá cheio, mas logo chegaremos em casa. Tudo bem? —


Deixei um beijo em sua testa. — Não vai demorar nadinha. — Fechei a porta
traseira, dei a volta no veículo e assumi o volante.

Quando o carro estava a duas quadras do prédio e o som do tablet de


Belinha deu uma trégua, ouvi um chiado estranho.

— Shh, seguedo — minha afilhada disse baixinho, com o indicador


colado aos lábios. Vi tudo através do espelho frontal.

— Oi, docinho? — indaguei, dividindo o olhar entre o espelho e a


estrada.

— Bebê... Menino monito... carro de Nana, não. Seguedo — murmurou


com as mãos cruzadas sobre o abdômen, olhando disfarçadamente para o
assoalho, obrigando-me a colocar o veículo no acostamento.
— Tem um bebê no carro, Belinha?

Coloquei os joelhos no assento e puxei a montanha de sacolas,


revelando o moicano cacheado de uma criança e um bebê, que dormia
pacificamente em seus braços, com uma chupeta na boca, entre as compras,
atrás do tapete do gato.

Os filhos do lobisomem.

Agora pronto, mais confusão com aquele homem.

— Como entraram aqui?

— Antes de tudo, tenho uma proposta irrecusável para você.

— O quê, menino?

— Ele encondeu ali, Nana.

— Você é mesmo uma fofoqueira, né, pirralha! — O menino arremessou


folhas de couve em Belinha.

— Beinha é monitinha, bocê é munto de foqueiro! — Bela rebateu


chorosa, devolvendo a folha de couve na cara.

— Bocuda! — O menino ergueu o bebê dorminhoco, tentando sair de


trás do tapete.

Rapidamente estendi a mão e trouxe o neném para meus braços.

— Bocê nindo, manué monito do colação!

Belinha alcançou os cachos do moicano, puxou com vontade e cravou


os dentinhos de leite na bochecha do garoto.

— Ahhhhh!

— Belinha! Chega!

— Ele tomeçou bigar com mim.


— Por que entrou dentro do meu carro, Thiago? O pai de vocês sabe
que estão sozinhos pelo mundo? — Cheirei o cabelo do neném, que estava
muito lambido, bem penteado e voltado para o lado.

— Ele não sabe. Vou avisar que estamos em sua casa.

— Vou levá-los à sua casa, agora. Se comporte aí e segure seu irmão.

— Não, espera. — Thiago conseguiu sair do aperto, afastou as sacolas


e se sentou ao lado da cadeirinha de Bela. — Estou com muita sede. —
Tirou o celular do bolso. — Minha casa fica no Ibirapuera, bem longe. Você
pode me dar seu endereço?

— O Ibirapuera não é tão longe. — Entreguei o bebê e esperei que o


irmão o colocasse nos braços. — Vou levá-los lá.

— Também estou apertado. Muito apertado — insistiu, dando tapinhas


no bumbum do irmão dorminhoco.
— Número dois? — indaguei.

— Um e o dois.

— Já usou uma moita?


— Moita? Urgh! — Olhou para o celular. — O pai está ligando.

— Merda! Me dê o telefone. — Já na frente do volante, pronta para ir,


levantei a mão e esperei o celular pousar ali.

— Sequestraram meus filhos, porra! — Ouvi o homem Apavorado do


outro lado e colei o celular na orelha. — Thiago!

— Oi, seus filhos estão bem e comigo.


— Filha da puta! Você não sabe com quem está se metendo, cadela!

Afastei o celular e respirei fundo. A distância do aparelho não foi


suficiente para abafar os desaforos seguidos de ameaças.
— Eu estava no supermercado do shopping e agora encontrei duas
crianças dentro do meu carro. Venha buscá-los nesse endereço. Quero te
mostrar a cadela raivosa que vive dentro de mim!

Saí da chamada, deixando-a ativa enquanto digitava meu endereço e


enviava no mesmo aplicativo.

Quando devolvi o aparelho, o menino tentou explicar a peraltice. De


longe pude ouvir os gritos de repreensão.

Revoltada, quase bati o carro na saída da avenida.

— Vou dar uma olhada no prédio. Aqui só temos os dois Chihuahuas do


206 e o papagaio do 114 — disse o porteiro, após trazer as últimas sacolas
de compras para o meu apartamento.

— Obrigada, Augustinho. Por enquanto, vou cuidar dele aqui. Não


quero que caia nas mãos erradas. — Olhei para o gato que, poucos segundos
antes de Belinha agarrá-lo, dormia esparramado no meu sofá.

— Se precisar de alguma coisa, pode me chamar. — O velho passou


pela guarnição da porta.

— Vou precisar de areia. Você pode pegar um pouco, por favor?

— Vou providenciar. — Ele deu uma pequena reverência, todo


simpático, e foi para a escada.

Sozinha com as crianças, fechei a porta e soltei o ar, como se


esvaziasse um balão.
— Ma... ma... — sussurrou o bebê, enganchado em minha cintura.

— Você. — Apontei para o menino sentado no braço do sofá. — Leve o


tapete e a tela para a varanda. — Apontei o caminho.
— Eu?

— Sim, você mesmo, pequeno encrenqueiro. Guarde os materiais lá e


volte para ir ao banheiro. Você não está com vontade?

Ele relutou, mas foi. Carregou minhas coisas e voltou perguntando:

— O que vai fazer com aquilo?


— Preciso fechar o buraco da rede ou em alguns dias aquele sujeitinho
traz a gangue do beco inteirinha. — Apontei para o gato. — Agora vá fazer
as suas necessidades. Vou preparar um lanche.

— Sua casa é do tamanho do meu quarto... — avaliou com uma


sobrancelha arqueada. — Não, meu quarto é um pouco maior.

— Eu não nasci em berço de ouro, amorzinho. — Fui até a geladeira e


tirei queijo e presunto de lá. O bebê em meu colo sempre acariciando meu
seio com sua mãozinha. — Este lugar é um palácio para quem já viveu na
rua.

— Você morou na rua, Juliana?

— Vai fazer às suas necessidades, Thiago. — Pisquei para ele. — Vou


fazer um sanduíche delicioso.

— Tudo bem. — Ele olhou torto para meu saco de pão e foi até o
banheiro.

— Rum, nem em sonho sabe o que é passar por um perrengue —


comentei em voz alta e o bebê soltou um gritinho, lutando para alcançar o
pão que coloquei dentro do prato. — Você quer, neném? — Cortei um
pedacinho e passei na língua dele.
Ele moeu com a gengiva e pediu mais.

— Ma... Ma... Ma... — Abriu e fechou a mãozinha, os olhos fixos no


pão.

— Precisamos conversar sério, neném. — Larguei tudo e coloquei ele


sentado no sofá. Ajoelhei-me na frente dele e segurei seu corpinho. — Eu
sou Juliana. Ana... Nana — sussurrei, lutando para incutir meu nome em sua
mente.

— Ma. Ma... — insistiu o bebê, rindo astutamente, tentando alcançar


meu peito.

— Não, bebê. Nana. Nana.

— Bocê... olho munto cololido — Bela murmurou ao lado, fechando o


indicador e o polegar na frente dos olhos. — Nana não é mãe de bocê.
Tendeu? Nana de Beinha. Tudo.

— Inha...

— Ah, molequinho safado! — Agitei os dedos na barriga do menino.


— "Inha" você aprendeu, não foi?

Uma gargalhada gostosa contagiou minha sala e respirei fundo,


proibindo meu útero de coçar.
— O pai chegou. Está subindo — disse o mais velho ao deixar o
banheiro. — Ele está nervoso com minha fuga. Não leve para o pessoal.

— Vou pegar minha frigideira.


— Meu filho, pegue seu irmão e me aguarde na recepção — repeti a
ordem pacientemente e descarreguei o excesso de raiva em uma manobra
brusca, já entrando na avenida do endereço informado.

— Pai, me escuta...

— Em casa a gente conversa, Thiago. — Desliguei o celular e acelerei


o carro.

Sequestro, foi a primeira coisa que me veio à mente quando recebi a


ligação do segurança informando que meus filhos haviam desaparecido no
shopping, durante um passeio rápido, após irem ao dentista.

Eu estava em um serviço externo. Fiquei louco, só consegui respirar


normalmente quando ouvi a voz de Thiago.

O menino deu a volta em dois seguranças, na babá, e entrou no carro de


uma mulher que só vira uma vez na vida, uma completa desconhecida.
Sete anos parecia um bom prazo para o próximo castigo.

Joguei a caminhonete na calçada do prédio e saí do veículo, travando-o


no caminho, já subindo a pequena escada de quatro degraus.

— Não pode deixar o carro aí, senhor — disse um velho, com um


bigode extravagante, claramente pintado em comparação com o cabelo da
cabeça. — Senhor! — Ele tentou impedir minha entrada.

— Serei rápido. — Desabotoei o punho esquerdo da camisa e dobrei


na altura do cotovelo. — Me dê licença. — Ainda ocupado com o tecido,
dei a volta nele e me dirigi ao elevador.

— Seu nome, senhor? — O velho seguiu meus passos.

— Otávio Parisotto. Vim buscar os meus filhos que estão com a


moradora do 503. — Pressionei o botão do elevador com o polegar.
— Dona Juliana, certo. Mas, por favor, tire seu carro da frente do
prédio. É proibido estacionar e... senhor! — ele gritou quando empurrei a
porta de aço, indignado com a demora. — Você pode subir as escadas, às
vezes o elevador para no caminho

— Onde? — Procurei a sinalização e ao encontrá-la, segui.

— Senhor Otávio, você precisa tirar o carro da calçada.

Ignorei o pedido. Só queria ver meus filhos. Não estava com paciência
para ninguém.

Subi a escada dando passos largos, observando com atenção, pois a


iluminação era precária. Um inferno de lâmpadas bruxuleantes.

No quinto andar, procurei o apartamento 503 e apertei o indicador no


botão da campainha.

— Thiago! — berrei — Thiago! — repeti pela quinta vez, até que a


porta se abriu e apareceu a figura da mulher possuída, armada com uma
frigideira vermelha e segurando meu bebê no braço, em posição vertical.
— Bom dia. — Eu tive que dar um passo para trás.

— Você me chamou de cadela, achou pouco, veio estourar meus


ouvidos e quebrar minha campainha? — Empurrou a frigideira no meu peito.

— Só vim buscar os meninos. — Freei os sapatos no piso, evitando que


a avalanche de meio metro me encurralasse contra uma parede.

— Você foi irresponsável. Você os deixou escapar. — Me ameaçou com


a maldita panela. — Não venha fazer presepada na minha porta e não se ache
no direito de me ofender no telefone ou onde quer que seja, porque não vou
tolerar macho se criando pra cima de mim!

Rosnei contra a ousadia e num só gesto afrouxei a gravata, libertando-


me da sensação de asfixia, de ter que engolir calado.

Ela não estava preparada, nem era obrigada a lidar com meus excessos.

Deixei que ditasse seus insultos e foquei no bebê, que agarrado a ela,
gargalhava, soltando gritos fanfarrões, divertindo-se com a situação.

— Chega, mulher — falei sem revolta, usando um tom amigável.

— Não tenho medo de você, com todos esses músculos e dinheiro. Não
tenho medo de ninguém — disse, fazendo-me olhar rapidamente para o teto e
revirar os olhos sem paciência.

— Ok, não me importo. Agora, preciso levar meus filhos.

Calada e arfante, ela desceu a panela. Me mediu de cima para baixo e


se afastou.

— Thiago, seu pai chegou — disse, com o nariz pequeno elevado.

Ela não tinha aquele nariz. Lembrar desse detalhe me fez olhá-la com
mais atenção.

Exibia metade das coxas grossas em uma minissaia jeans. Os ombros


nus escapavam das alças de uma camiseta branca e um cardigã fino de tricô
caía descuidadamente até o cotovelo. Os cachos definidos enfeitavam tudo, a
combinação deles com a pele dourada me causou uma grande nostalgia.
Lembro que meu peito até queimou quando a vi pela primeira vez, há quatro
anos, na festa do iate, quando decidi largar o luto da mulher que eu amava.

Danielle, minha francesinha, era negra retinta, diferente da nanica à


minha frente, mas o cabelo era idêntico. O mesmo comprimento, a mesma
textura... Eu vivia com um punhado de cachos entre meus dedos.

— ... vai?

— Sim — respondi aleatório, sem entender a pergunta, engolindo em


seco.

Ela não usava absolutamente nada por baixo da malha branca. Não
conseguia nem me lembrar da última vez que tive uma visão daquela no meio
da manhã.

— Vai bater no menino, covarde? — Ergueu a panela novamente,


olhando para mim com aqueles olhões cor de avelã.

— Uso outro método de educação. — Empurrei o polegar e o indicador


contra os olhos e veio a imagem de uma semana antes: ela, apenas de
biquíni, me atacando com unhas e dentes, no topo do iate.

Porra!

— Tá azuado ou passando mal? — Cutucou meu braço com a panela.

— Você pode me dar o bebê agora?

— Se eu souber que bateu naquela criança, faço um escândalo tão


grande que você vai querer ser preso para esconder seu rosto do mundo.

Respirando fundo, dei as costas e me afastei.

Abri o segundo punho da minha camisa e dobrei o tecido para igualar


com o outro lado. Já tinha um monte de problemas para resolver e nada me
obrigava a engolir os desaforos daquela mulher.
— Thiago! — gritei.

— Não sinto verdade em você. — Ouvi o grunhido atrevido e me virei.

— Você entende que eu não me importo com o que pensa? — indaguei,


desconcentrando-me rapidamente com a imagem dos mamilos largos e
escuros.

Porra. Salivei.

— Ma... ma... — Noah deixou escapar e sua mãozinha esperta acariciou


o peito robusto, dando mais atenção ao mamilo.

Eu não deveria ter ficado tão preso naquela imagem, mas olhei com
tanta força que a mulher puxou o cardigã e cobriu o ombro. Cobriu tudo.

Puta merda, ela já estava traumatizada com meu rosto e eu ainda a fitei
daquele jeito.

— Pai, vem aqui — Thiago gritou lá de dentro.

— Vem aqui agora, Thiago!

— Pai, está tudo bem. Vem aqui. — Meu filho se aproximou da porta.

— Falo com você quando chegarmos em casa. Venha! — Segurei em


seu braço e alcancei a mão. — Me desculpe pela falta de controle no
telefone — dirigi o pedido à mulher. — Eu estava errado e não gosto de
dever nada a ninguém.

— Pena que não posso me dar ao luxo — ela resmungou, segurando a


mão de Noah que não lhe dava sossego.

— Pai, tem um buraco na área do fundo. Pode consertar? — Thiago não


sussurrou, ele falou alto o suficiente para que a mulher ouvisse e me
encarasse.

— Não tenho tempo para isso. Saí no meio do expediente e estou cheio
de trabalho.
— Pai, ela não alcança. Nem vai te custar nada, cara.

Olhei seriamente para o menino, esperando que a mulher se recusasse e


assim me libertasse da situação desconfortável. Thiago precisava de uma
lição.

— Vamos, Noah. — Estiquei os braços e o bebê afundou o rosto entre


os seios da mulher. Ignorou-me e ainda resmungou. Minha palavra já não
valia 1 real para eles. Eu sabia exatamente quando começou. — Vem, bebê.
— Tentei pegá-lo novamente, mas ele ameaçou chorar e grudou na mulher.

— Vai, neném — a baixinha sussurrou no ouvido do pequeno e tentou


entregá-lo para mim, mas o menino tremeu os lábios, jogou o corpo para trás
e iniciou um choro mimado.

Foi o suficiente para a mulher abraçá-lo novamente.

— Noah! — Levantei o tom, foi necessário.

— Deixa! — disse a mulher, olhando para mim com severidade. — Vou


fazê-lo dormir. Da última vez ele só foi assim. — Me deu as costas e entrou
no apartamento, sendo acompanhada por meu primogênito.

— Porra. — Soltei um suspiro e me encostei na parede do corredor.

— Isso munto de feio, hein? Mamãe bigou com papai de mim. — Ouvi
a reclamação infantil e desci os olhos, dando de cara com a filha do meu
amigo e seus dois dedos em riste.

— Oi, Isabela. — Acariciei seus cabelos.

— Nana bava. Dejobediente. — Ela estendeu a mão macia. — Agola


venha... um gato munto goldo. — Tentou me puxar para dentro do
apartamento. — Ai, Beinha tansada. — Puxou de novo, me fazendo ceder.

Entrei no minúsculo apartamento, estilo quitinete, e contive a


curiosidade em meus olhos.
Aquela mulher era espontânea e mostrava tranquilidade na presença de
outros homens, como o sogro de Roberto, aquele maldito don juan do
caralho. Mas, por todos os motivos, transparecia desconforto na minha
presença.

— Posso consertar a rede de proteção enquanto isso — ofereci a


cortesia, vendo-a em frente à pia, segurando um copo d'água na boca do
bebê. Cuidando dele como sua própria mãe não fazia. — Ou eu posso
esperar lá fora...

— Tudo bem. Preciso muito e não tenho escada — concordou ela, sem
olhar para mim. — Tem um alicate e arame na caixa do armário. — Ela me
mediu da cabeça aos pés e olhou para Noah. — Acho que você não precisa
do banquinho.

— Por aqui, pai — Thiago chamou e eu fui.

Encontrei uma área de serviço equivalente a 3 metros quadrados. A tela


protetora, rasgada bem na costura da parede, estava 60 centímetros acima de
um varal cheio de calcinhas.

— Sem videogame, sem mesada e sem celular em casa, até a segunda


ordem — eu disse enquanto abria o armário e removia a caixa de ferro.

— Pai...

— O que está acontecendo com você, filho? — interrompi, sentando-me


nos calcanhares, colocando a caixa no chão e abrindo em busca do alicate.
— Você percebe que é o único herdeiro de sua mãe, meus herdeiros, de
metade do Pinho Parisotto e por isso só sai de casa com dois seguranças?

— Sim, pai.
— Quando teve a ideia de me desobedecer, de colocar você e a vida do
seu irmão em perigo, Thiago?

— Desculpa, pai. — Meu filho se abaixou ao meu lado e tombou a


cabeça no meu braço. — Vi a Juliana e só pensei em um jeito de fazer vocês
se encontrarem.
— Eu sei o que você está tentando fazer, mas não é assim que as coisas
funcionam. Já conversamos sobre isso.

— O bebê gosta dela, não vê?


— Ele gosta de qualquer mulher com um par de peitos. — Encontrei o
alicate certo e levantei-me. — Essa mulher tem motivos para estar chateada
e eu não tenho que lidar com as consequências disso. — Dei um tapinha no
ombro dele. — Realmente espero que seja a última vez que precise puni-lo.

— Eu também vou cuidar do jardim. Uma hora, todos os dias — ele


emendou.

— Ótimo. — Joguei o maldito bolo de rede no chão e desenrolei o


necessário para uma emenda. — E vai ler mais livros específicos. —
Separei um bom tamanho. — Me ajude aqui.

— Você não acha que ela se parece com a mamãe? — perguntou


Thiago, segurando a tela enquanto o alicate em minhas mãos cortava.

— Sua mãe não era tão anã, nem encorpada. Não usava esse estilo de
roupa e nunca me ameaçou com uma panela.

A última frase fez meu filho rir.

— Ela tem o mesmo olhar de sentimento da mamãe. Tia Taila nunca me


olhou assim.
— Filho...

Meu coração apertou, pois vi tristeza nos olhos do meu menino e, na


maioria das vezes, ele escondia a necessidade emocional. Aquela falta eu
nunca seria capaz de suprir.

— Eu gosto muito dela. Só não gosto deste lugar pequeno. Ainda tem
um gato, pai. Ele fica no sofá. Chama ela para morar lá em casa, por favor.

— Shh! — Olhei por cima dos ombros, procurando um sinal da


moradora. — Vai brincar com a menina. Vou adiantar isso aqui e levá-los
para casa.

— A filha do tio Roberto me mordeu — queixou-se baixinho, todo


contrariado.
— O que você fez com ela?

Separei o fio e fui consertar o buraco. Empurrei as calcinhas com


prendedores na corda do varal, deixando-as empilhadas umas em cima das
outras.

— Eu não fiz nada. Ela que me tira do sério.

— Thiago...

— Tá! Chamei de pirralha. Menti?

— Você não gritou com ela? — Amarrei o fio e teci na emenda.

— Sou mais velho, pai. Não posso deixar essa garota que nem sabe
falar direito dar a volta em mim.

Ri internamente, lembrando que conheci a mãe dele quando era criança,


durante um dos muitos jantares de negócios dos meus pais, e a partir daí foi
briga até os quatorze anos, quando nos beijamos e perdemos a virgindade.

— Se você continuar com essa implicância, o pai dela vai querer capar
suas bolas mais cedo ou mais tarde. E terei que permitir, em nome da honra
dos pais.

— Que a mamãe me proteja lá de cima. — Meu filho segurou o


pauzinho com as duas mãos, me fazendo externalizar o riso.

— Thiago, tem um lanche na mesa. — A voz feminina bateu nas minhas


costas e virei o rosto na direção dela. — Vem, Thi. — Ela me olhou estranho
e cheirou o cabelo de Noah.
Porra, meu bebê estava muito aconchegado no calor daqueles braços.
— Aproveita e fica aqui, fazendo companhia ao meu pai — disse o
menino, já saindo da área.

— Ele não dormiu... — comentei apenas para quebrar o silêncio e


acelerei o processo da emenda na tela.

— Não me sinto bem quando estou com você — ela revelou o que já
estava claro.

— O cara que mexeu com você não tem o nome dos meus filhos
tatuados no antebraço esquerdo, nem os pés deles nas costas. Atente-se a
isso. — Achei necessário esclarecer.

— Isso é muito fofo para a sua imagem... — ela murmurou


preguiçosamente e a olhei de soslaio. — Olha, eu já sei que você não é o
asqueroso do seu irmão, mesmo assim, é uma coisa que vem de dentro. Não
estou conseguindo separar as pessoas. É uma sensação ruim aqui dentro. Me
machuca.

— Entendo sua situação. — Travei o último laço com o fio e comecei


outro. — É melhor não me ver.

— Agradeço se evitar.

— Estou aqui só pelos meninos. Já conversei com o Thiago e avisei do


perigo. Ele não vai fazer isso uma segunda vez.

— Perigo?
— Acredito que você entenda a insegurança e a responsabilidade que é
ter dois herdeiros milionários dentro do seu carro.

— Oxente, no meu golzinho? — reproduziu um certo tom risível. —


Não tenho maturidade para discutir isso sem pedir a benção. — Vi pelo
reflexo quando ela levou a mãozinha de Noah até o meio da testa para em
seguida distribuiu beijos ali, provocando risadas doces em meu filho. — Me
sinto mais próspera agora.
Mostrou-se bastante peculiar, em relação ao seu jeito travado e habitual
de ser, até seu sotaque nordestino ficou evidente.

Gostei de ver aquela naturalidade. Ela brilhava assim quando a


conheci. Naquela noite, fiquei tão transtornado com um problema pessoal
que nem percebi que algo mais sério estava acontecendo no camarote.
João Paulo a usou para me confrontar, para me fazer perder o controle e
deixar a coisa assumir. Ele sabia como provocar a maldita coisa violenta na
minha cabeça. E naquela noite, quase o matei.

— O que aconteceu te afeta muito? — perguntei sobre o som da risada


de Noah, ainda de costas, fazendo um trabalho já desnecessário. — Sua
vida... contato com pessoas...

— Quer saber se eu transo? — Veio na lata, mais íntimo do que minha


pergunta pedia. — Sim, muito — completou. — Quando estou à vontade,
quando quero e do jeito que quero. Sozinha também, embora eu prefira uma
boa companhia.

Caramba, que mulher maluca é essa?


— Por que você não procurou a polícia na época? — Mudei o ritmo do
assunto.

— Não sei dizer. Vergonha, medo de estar delirando. As memórias


eram muito vagas em minha mente. Eu nem me lembro que você entrou na
cena.

— Você estava acordada... — hesitei, tentando escolher as palavras —,


enquanto eu resolvia meus problemas com ele, você sorria. Quando eu o
deixei, você veio falando umas maluquices...
— Que tipo de maluquices?

— Me ofereceu o... a bunda.

— Esculhambado! — gritou comigo, cobrindo a orelha do bebê com a


mão. — Eu estava drogada. Não me lembro de nada.
— Confusão do caralho. Achei que você fosse uma das garotas
experientes e contratadas para a diversão.

— Estava maquiando as modelos. Apenas isso. Quando soube que ele


era o herdeiro de uma das famílias mais ricas do país, tive muito medo —
ela confessou e soltou um suspiro, como se estivesse exausta com o peso do
assunto.

— Quando me enfrentou no iate, pareceu ser mais destemida.

— A situação era outra. Eu estava abalada. Fiz exame e não foi


comprovado a conjunção carnal. Minha cabeça virou uma zona. Não tinha
amparo para comprar uma briga sem provas. — A voz saiu meio embargada,
alertando-me que o assunto deveria ser encerrado naquele momento.

— Melhor se poupar — orientei, com um bolo de indignação travando


minha garganta. — Mas tenha certeza, se tivesse denunciado, chegaria ao
meu conhecimento e eu faria algo por você. Qualquer tipo de contato sexual
sem consentimento é crime.

— Você denunciaria seu irmão?


— Eu acabei por aqui. — Apertei o último nó com o alicate.

— Por que ninguém diz que são dois herdeiros?

— Já vou pegar o bebê. — Me virei, passei por ela e lavei as mãos na


torneira do tanque.
— Não pode responder?

— Tenho muito trabalho para concluir agora. — Sacudi minhas mãos e


recebi seu olhar de desaprovação.

— Fiz um lanche para você também. — Ela me estudou com uma


sobrancelha erguida. — Assim, encerramos nossas pendências
amigavelmente.
— Não há necessidade. Tenho relatórios importantes para análise. O
Roberto viajou, como você sabe, e estou na liderança da Venturelli.

— Você não tem perfil de CEO — comentou, entregando-me um pano,


olhando para qualquer lugar menos para o meu rosto.

— E o que você sabe sobre isso? — Sequei minhas mãos por mais
tempo do que o necessário.

— Já li alguns romances, sei que, na realidade, é totalmente o oposto


daquilo, o oposto de você. — De repente, se virou e saiu, levando meu filho
enganchado na curva de sua cintura.

Não entendi o que quis dizer. Joguei o pano sobre a máquina de lavar e
fui atrás.

— Hum, dostoso[8]. — A filha de Beto estava traçando um sanduíche,


sentada à mesa, ao lado de Thiago.

Meu filho olhava com receio para a comida no prato. Só por isso fiz
questão de me aproximar da mesa e sentar-me na quarta cadeira, que estava
vazia ao lado dele.

— Thiago... — Olhei de soslaio e isso bastou para fazê-lo segurar o


pão e deixar uma mordida ali

— Esse é seu. — A mulher à minha frente apontou para o prato e levou


um generoso pedaço de melancia à boca do bebê.
Noah, todo à vontade, sugou a fruta com seu olhar devotado, fazendo
com que uma chama batesse em meu peito e corresse em minhas veias.

Apreciando a cena, abocanhei um pedaço do sanduíche e o comi. Meus


sentimentos se mostraram totalmente aquecidos com a cena de cuidado.

Repeti a mordida e comi mais do lanche simples e delicioso. Devorei


tudo.
— Se quiser mais, ainda tenho pão. Levante-se, fique à vontade na
cozinha — disse Juliana, totalmente envolvida com a alimentação do bebê.

— Foi o suficiente.

— Você come muito, pai. Fique com o meu. — Thiago ofereceu e mais
uma vez olhei para ele. — Pensando bem, está gostoso demais para dividir.
— Deu uma segunda mordida no alimento.

— Você tem jeito com crianças — comentei para quebrar aquela tensão
estranha que pairava no ar.

— Ajudei a cuidar de Belinha desde o nascimento. Madalena não sabia


muito coisa e descobrimos tudo na tora.

— Na... tora? — Minha pergunta saiu embaraçada entre pigarros.

Eu deveria estar bem longe dali, não puxando conversas aleatórias.

— Com dificuldades. Na marra, à força... — explicou.

O bendito cardigã caiu de seus ombros e a visão redonda engoliu meus


olhos sem piedade.
— Preciso trabalhar. — Levantei-me. — Agora você vem, Noah.

— Espera. Vou lavar a boca dele e niná-lo um pouquinho. Olha, está


sonolento. — Ela se levantou e saiu com meu filho para o segundo cômodo.

Aproveitei para observar o pequeno ambiente. À frente vi uma cama


muito confortável, um armário embutido e um sofá de três lugares. No
puxado da cozinha havia armário embutido, mesa, pia e fogão. Era muito
pequeno, não dava o tamanho do quarto das crianças, mas era
excepcionalmente limpo, charmoso e confortável.

Mudei de passo e um grito agudo me fez pular para longe. Um gato


persa absurdamente gordo estava lá olhando para mim. Todo ouriçado e
raivoso, porque pisei em seu rabo.
— O que aconteceu? — A mulher veio rapidamente e percebi uma certa
acusação em seus olhos. — Você bateu nele?

— Não, nem vi.


— Dois gandãozinhos bigando. — Essa frase saiu da mesa, da
menina.

— Olha o Noah... — Alcancei a mulher e peguei o bebê com cuidado.


Ele já estava despencando o pescoço, mas sorria de lábios fechados. —
Agora é comigo.

Consegui recuperar meu filho e aninhá-lo no peito.

— Como você vai dirigir? — ela perguntou, ajeitando as roupas do


meu bebê.
— Meu carro de trabalho tem uma cadeirinha fixa. Vem Thiago.

— Ah, o menino vai embola... Nem bincou com mim — lamentou a


filha de Beto.

Ela desceu com dificuldade da cadeira e acompanhou Thiago até a


porta.
— Me solta, pirralha — Thiago resmungou e isso só fez a menina
apertar sua cintura. — Ô, pai! — gritou.

— Bavinho[9]... — disse a menininha ao soltá-lo. — Bocê mundo


nindo, esse tabelo.

— Você me deixa bravo, menina! — Thiago se afastou dela.

— Bocê tão monito da mamãe... Esse tabelo cacheado — disse a


criança espontânea, tentando alcançá-lo, mas ele se esquivou para perto da
mulher.
— Tchau, docinho. — A mulher beijou a testa do meu primogênito e
então me olhou meio enviesada.
A menina de Roberto abraçou minha perna e acariciei seus cabelos
antes de seguir em direção ao elevador, onde esperei Thiago por alguns
segundos.

Eu ainda veria a mulher por aqueles dias. Seu contrato de parceria com
a Venturelli estava em minhas mãos e precisava de uma nova revisão antes
de chegar a Roberto.
No início da tarde daquela segunda-feira, precisei deixar o escritório às pressas para levar meu
filho ao pronto-socorro. Há quarenta e oito horas, Noah não evacuava e, naquele momento do dia,
chegou a notícia de uma crise de choro acompanhada de febre alta e inquietação.

Peguei o carro e saí sem olhar o que vinha na frente. Considerei uma apendicite aguda e me
culpei por não identificar os sinais.

A centelha de alívio veio com o resultado do exame de imagem. Não passou de uma crise de
constipação. Algo menos preocupante, mas ainda perigoso a longo prazo.

— Oi, Beto? — sussurrei, equilibrando o celular entre o ombro direito e a orelha, enquanto
passava a pomada nas dobras da coxa do bebê. Minutos antes, ele estava cochilando no meu peito
quando a merda vazou pelas laterais da fralda descartável e fez um estrago em nós dois. — Roberto?

— Estou dirigindo... Como vão as coisas aí? — perguntou meu amigo,


do outro lado da linha.

— Acabei de sair do banho com o Noah. O remédio funcionou. Ele


cagou de novo e não foi tão duro.
— Que bom. Madá estava me contando que Isabela teve uma crise
dessas nos primeiros meses de vida. Noah vai ficar bem.

— A barriga não está mais inchada. Agora ele vai dormir melhor.

— Bah e a outra babá estão na casa?

— Acredito que assistindo a novela. O que foi?

— Isabela ficou dormindo com a babá... Estou indo na Mynt Lounge


com Madalena. Quando seus filhos dormirem, deixa na responsabilidade
das meninas e venha conosco.

— Numa segunda-feira, Roberto? — Levantei as perninhas e coloquei a


fralda descartável ali.

— Madalena quer aproveitar o restinho do último dia de folga. Já


estamos a caminho. Vem com a gente?

— Vou colocar Noah no berço e cair na cama. Não perdi nada na rua.
— Mergulhei a blusa do pijama na cabeça loira do meu filho e ajustei os
bracinhos na peça.

— Você precisa de distração, Otávio. Há quanto tempo não sai sem as


crianças?

— Há 542 dias. Você deve lembrar do bacanal que organizou na serra.


Joguei no ventilador e ouvi a senhora Venturelli bradar no fundo da ligação. Até um estalo de tapa
rolou. A linda piloto com traços delicados e voz aveludada, fazia meu amigo, que antes repudiava a ideia
de casamento, comer na palma da mão.

— Querida, isso foi há quase dois anos. Não tínhamos uma história...
eu não sabia sobre a Isabela ...

Beto se enrolou do outro lado da linha e achei o momento perfeito para


encerrar a ligação.

— Preciso desligar.
— Espera, Otávio! Ainda são dez da noite. Estaremos no mesmo
camarote de sempre...

— Boa noite, Roberto.

Desliguei o aparelho, joguei na cama e coloquei o bebezinho em meus


braços.

A cabecinha perto da curva do meu pescoço exalava um cheiro


incrivelmente doce. Ali era o meu melhor lugar. Meus filhos enfraqueciam os
demônios que assombravam minha mente. Um olhar deles se igualava aos
sedativos mais potentes.

Dei algumas voltas no corredor. Passos sutis alimentaram a sonolência


do bebê. Quando o sono profundo chegou, fui para o quarto e coloquei-o no
berço. Sem demora, separei o lençol para enrolar Thiago, na cama ao lado.

Eles dormiam juntos. Um estava lá para o outro, tinha que ser assim. Eu
estimulava o instinto protetor neles. Seria diferente com meus filhos.

— Pai... — Thiago abriu os olhos quando removi o HQ Marvel de suas


mãos.

— Dorme. — Joguei o lençol sobre ele.

— Meu irmão...

— Ele está bem. Coloquei no berço. — Deixei um beijo em sua testa.

— Tomou outro banho? — ele sussurrou quando uma gota escorregou


do meu cabelo e molhou sua bochecha.

— A merdinha do seu irmão vazou da fralda quando ele estava no meu


colo. Nós dois entramos no banho.

— ... bom que ele fez de novo. Boa noite, papai — ele sussurrou com
os olhos fechados, me fazendo sorrir.
Thiago raramente me chamava pela forma duplicada. Aos oito anos, não
encontrava conforto na linguagem infantil. Além de ler muitos livros
específicos, ele havia herdado a minha personalidade, especialmente a
autossuficiência. O resto me preocupava, por isso eu o monitorava.

Depois de mais uma conferida no berço, voltei para o quarto e me


joguei no conforto da minha cama. Ignorei o celular que mostrava outra
ligação de Roberto, virei para o lado oposto e fechei os olhos.

Dez minutos depois, quando eu fitava a imagem da Danielle, minha


primeira mulher, grávida de Thiago, na mesinha de cabeceira, o celular
vibrou nas minhas costas.

Virei na cama. Agora era José, meu outro amigo. Casado desde os
dezoito anos, era o mais velho do nosso trio.

Trabalhávamos juntos. Roberto, o CEO fundador do grupo Venturelli,


filho de uma antiga passadeira dos meus pais com um empresário amigo
deles, nasceu dois anos antes de mim. Zé, o CIO da empresa, veio da Bahia
aos quatro anos, quando minha mãe encontrou a dele em um restaurante e se
encantou com as iguarias que a cozinheira conseguia produzir.

Estivemos distantes no último ano. Eu me isolei, para falar a verdade.


Vivia explosivo com tudo e temia derramar ódio nas duas pessoas que,
mesmo sabendo da má companhia, ficaram ao meu lado nos piores
momentos.

— Oi, Zé... — Me virei para o teto do quarto e coloquei o celular no


ouvido.

— Roberto está te esperando na boate.

— Não vou. Que porra é essa agora?

— Você precisa sair da bolha e conhecer pessoas novas. Mulheres


novas...

— Vai cuidar da sua família, Zé!


— Você tem 35 anos, Otávio. Sei que tem um monte de merda nas
costas, mas você precisa sair da caverna e se socializar. Eu confio em você,
Roberto também. Tudo vai ficar bem lá fora.

Soltei um suspiro e sentei-me na cama, passando a mão pela umidade


do meu cabelo, estressado com aquela maldita intromissão, ponderando por
se tratar de dois parceiros da vida.
— Minha única preocupação é o bem-estar das crianças. Se eles estão
saudáveis e seguros, o resto não importa. Sei lidar comigo mesmo, estou
bem assim.
— Hoje conversei com Beto. Você é nosso irmão caçula, Otávio. Mesmo repelindo nossos
conselhos, não vamos deixar você se afundar. Está decidido — assegurou com um maldito tom
autoritário, fazendo-me rir indignado.

— E a solução para meus problemas é uma foda? — Me joguei para


trás, deixando minha cabeça cair no travesseiro.
— Não é sobre isso, mas sim, você precisa de uma boa surra, do tipo que leva dois dias para
o olho voltar ao lugar, que precisa tomar uma gemada para colocar o pé fora da cama...

Desliguei o celular, deixei cair no colchão e cobri os olhos com o braço.

Segundos depois, pensei na maldita possibilidade. Uma hora de corpo quente não era suficiente
para atingir um coração categoricamente frio.

Sentei-me na cama e ajustei meu topete com os dedos. Olhos fixos na parede transparente do
quarto, vento gélido da noite paulistana batendo no meu rosto, o aroma do meu jardim tomando conta de
tudo.

Eu não era adepto, mas já havia recorrido aos serviços antes. Sabia onde encontrar as melhores
garotas de luxo dispostas a compartilhar sexo por dinheiro. Uma troca justa.

Precisando de uma pausa, levantei-me da cama, olhei para os estabilizadores de humor no armário
e voltei para o aparador de bebidas. Tomei duas doses de uísque e fui até o closet do quarto.
Gastei sete minutos do Ibirapuera até a opulenta boate no Itaim Bibi. Entrei ao som de uma música
trepidante e sob a modulação de luzes que davam uma atmosfera apropriada.

Na pista principal, tranquila em comparação a outros dias da semana, casais dançavam; no bar,
grupos de mulheres, sozinhas e acompanhadas, divertiam-se entre os drinks mais caros da noite.

Meus olhos pragmáticos não perderam tempo. Passearam ali, fazendo uma seleção rápida entre
aquelas que se adequavam à minha necessidade.

Duas loiras se destacaram no balcão. Uma delas ergueu a bebida, fazendo um convite claro. Tive
quase certeza de ter visto aqueles rostos em algum lugar. Acreditei serem filhas de uma amiga da minha
mãe. Apesar de tentadoras, já não serviam para o que eu precisava.

Sem grandes expectativas ou sinais de emoção, mirei na outra ponta do balcão. E naquele
momento, sem que eu esperasse, uma pequena avalanche atingiu meus olhos com força, mantendo-os
vidrados, precipitando estímulos, ofuscando tudo.

Porra!

Sozinha, sustentando um drink colorido na mão, ela movia os quadris preguiçosamente. No corpo,
mangas compridas para equilibrar o decote generoso. Nos pés, botas acima do calcanhar. A cascata de
cachos abundantes descia até a cintura, e meus olhos seguiram aquele caminho, até alcançar a elegante
curva, estupidamente favorecida pelo corte da minissaia de couro.

Linda, de todos os ângulos.

Uma possibilidade sacana cruzou minha mente, mas eu a descartei no momento seguinte. Nosso
histórico corrompido não permitia aproximação. Era tóxico querer lidar com isso.

Soltando uma lufada pelo nariz, olhei para o segundo andar, disposto a procurar melhor lá de
cima. Fui ali em busca de foda, aquela mulher não me oferecia isso, tampouco ocuparia o meu tempo.

Não foram três segundos de relutância e um cabresto puxou meus olhos de volta. Agora a mulher
caminhava em direção à escada com passos firmes e confiantes.

Atordoado com a bela visão, antes de seguir meu caminho, deixei que ela ganhasse distância. Mas
algo caiu de sua bolsa naquele percurso e tive que acelerar os passos para alertá-la do descuido.

— Estou com ela. — Preciso avisar quando um cara se abaixou para pegar o objeto no chão. —
Isso fica comigo.

O sujeito olhou para mim, mas escolheu ser sábio. Entregou a carteira de couro na minha mão e
desapareceu com os amigos.

— Ei! — gritei, tentando sobressair ao som da música. Ela tinha deixado cair a carteira,
possivelmente com documentos, no salão de uma boate e, consentindo ou não, agora me olharia na cara.
— Juliana! — Virou ao chamado. Olhos alargados, sobrancelhas curvadas e lábios comprimidos com
firmeza. — Tudo bem. Sou eu. — Suspendi meu antebraço esquerdo e revelei o nome dos meus filhos.
— Você deixou cair. — Estendi a carteira de longe.

A mulher veio furiosa. Puxou meu braço e raspou a longa unha no contorno da tatuagem. Foi
instantâneo. Calor irradiou pelo meu sistema nervoso e um curto-circuito deu pane no meu cérebro.
Achando pouco, ela mergulhou o dedo na bebida e esfregou o desenho, em toda a extensão visível.

Engoli o excesso de saliva.

O toque, o cheiro, a ousadia, aquele cabelo perfeito e as curvas arredondadas... Caramba, como
da primeira vez, fez meu sangue descer muito rápido.

— Não vi cair. — Sem me olhar no olho, resgatou a carteira e colocou-a na pequena bolsa
transversal.

— Acontece.

Subitamente desambientado, fui em frente e subi os primeiros degraus. Todos os meus sentidos se
conectando e minhas veias latejando em busca de alívio.

O álcool ingerido, minutos antes, assumia sua cota de responsabilidade, porém, seria covardia não
admitir a potente tensão sensual que me envolvia em nossas pequenas interações.

— Veio ver seu amigo? — indagou ela pelas minhas costas, fazendo meu pescoço ouriçar. —
Madalena também me ligou.

— Estou apenas de passagem. Não vou estragar sua noite. — Usei um tom impessoal. Meu tom
natural.

— Eu não te culpo de forma alguma, viu? Mas é que...

— Você vê o fodido toda vez que olha para mim — completei o que ela hesitou em dizer.

— Algumas situações me desestabilizam e odeio me sentir acuada. — Calou-se, mas a trégua


durou até chegarmos ao primeiro andar. — Embora, os seres humanos precisem uns dos outros, né? —
Chupou o líquido do copo pelo canudo. — Por exemplo, você entende de finanças e é diretor financeiro
de uma baita empresa de sucesso... — Outra tragada no líquido. — Posso precisar de uma consultoria
com preço camarada em algum momento.

Me olhou de soslaio e estreitei os olhos, querendo não acreditar na artimanha baseada em


interesses.

— Não atuo como freelancer.

— Nem por uma possível amizade?

— Não.
— Para pessoas com poucos dígitos na conta? Você nem teria muito trabalho.

— Não.

— Para a melhor amiga da mulher do chefe?

— Não.

— Viu, então — murmurou em tom resignado e parou na minha frente, de costas, atrasando meus
passos.

Cristo, ela não era bem certa.

— "Viu" o quê, mulher? — indaguei, olhos cativos nas coxas grossas.

— "Viu" de "Ok". A gente fala assim na Bahia. — Virou-se e me recompus em um piscar de


olhos. — Hoje estive lá na Venturelli. Fui assinar o contrato. Roberto me disse que você sugeriu um
aumento de 5%. Obrigada. Você não tem ideia do quanto vai me ajudar.

— Não foi aumento — pontuei. — Apenas reajustei o valor final. Deu no mesmo. Depois você
calcula com calma — emendei, esperando que acreditasse.

— Ah, entendi. Até porque, você não tem motivo para me dar um aumento, não é? — Soltou uma
risadinha nervosa, um som incomum, semelhante ao grunhido de um porquinho. Quando percebeu meus
olhos curiosos, ela se recompôs e levou o canudo aos lábios. — Então, encerrou aqui. Este foi,
definitivamente, nosso último contato.

— Certo. — Foi minha última palavra.

Vi Roberto e alguns conhecidos no camarote e me aproximei para cumprimentá-los. Sentei-me no


sofá de couro marrom com eles.

Ela chegou depois e cochichou no ouvido da mulher de Beto, que se afastou do marido para ficar
ao lado da amiga, no sofá da frente.

— Vieram juntos? — Roberto arqueou o canto do lábio. De pernas


cruzadas, em sua costumeira pose de marajá, girou o punho, deixando o
uísque sambar no fundo do copo. — O que é isso? — Sem largar o copo, ele
apontou com o dedo mindinho para a lombada da minha calça jeans.

— Fiscal de pau do caralho! — Penteei meus cabelos com os dedos e


avaliei se a mulher podia ouvir algo de nossa conversa.

— Conhecemos a pessoa certa na hora errada e eu já consertei isso.


Agora depende de você fazer a coisa certa.
— Estou sem paciência para falação. — Deixei meu pescoço cair para
trás e coloquei minha cabeça no espaldar do sofá. — Só vim pegar uma puta
apresentável. Já vou descer.

— Algo novo? — perguntou ele, sua voz demonstrando uma


preocupação clara e sincera.

— A mesma merda de sempre.

— Está indo na terapia?

— Estou bem quanto a isso. — Sacudi minhas pernas abertas e


permaneci olhando para o teto.

— É Taila atormentando de novo? — sondou de maneira cuidadosa,


pois sabia que eu preferia não expor meus problemas.
— Ela poderia desaparecer do mundo que eu não sentiria falta.

— Calma. — Senti algo frio em minha mão e observei de lado. Meu


amigo colocou um copo com algumas doses ali. — Fala direito, é a mãe do
seu filho.

— Ela só lembra disso quando briga com o amante.

— Você parece tão exausto, Otávio. Por que não antecipa suas férias?
Vai viajar com as crianças.

— Negativo. Os números são uma terapia, não preciso de férias agora.


— Levantei-me do sofá, virei o copo e traguei de um só gole. — Que diabo
é isso?

— Coca-Cola zero. — O sujeito tatuado que eu chamava de melhor


amigo ergueu seu próprio copo de bebida e sustentou um sorriso carregado
de ironia — Você precisa ficar longe do álcool, irmãozinho rebelde.

— Foda-se!
Abandonei o copo na mesa de centro e fui para o parapeito de aço inox.
Apoiei meus braços ali e apreciei a vista ampla.

Dois minutos depois, ainda não havia encontrado nada, mas decidi agir.
Seguindo o corrimão, caminhei em direção à escada. Só não esperava parar
abruptamente e quase derrubar a pequena avalanche escada abaixo.
— Cuidado! — alertei, as mãos cravadas em sua cintura. Tão perto que
pude sentir o cheiro fresco exalando pela pele aveludada.

— Nossos encontros são ridiculamente desastrosos — disse ela rindo e


fechou os olhos por um longo intervalo de segundos. — Desculpe, fui
afetada por dois drinks de menta. Sou um desastre.

— Vai sentar com sua amiga.

— Não. — Abriu os olhos e sorriu para mim. — Se você fosse meu


tipo, poderia acreditar que é o destino querendo bagunçar minha vida.

— Seu tipo? — perguntei, demonstrando interesse na resposta.

— Quem não pode com o pote, não pega na rudia[10], né, bebê? — Bateu
os cílios lentamente. O mínimo entendimento daquela frase fez minha
garganta secar de ansiedade. — Você já pode me soltar agora. — Me olhou
lá de baixo, enquanto eu traçava um contorno imaginário sobre os lábios
carnudos e levemente rosados. — Me solta cara, vou paquerar na pista.

— Claro. — Recuperei a sanidade, friccionei os olhos e levantei as


duas mãos.
— Agora é muito sério. Foi nosso último contato. Não temos assunto
em comum. Consultoria gratuita ou algo que valha a pena fazer o esforço.

— Sim, último contato. — Passei a mão pelos cabelos e virei as costas


sem dizer mais nada.

Desci as escadas, respirando fundo. Eu precisava sair daquela


abstinência. Imediatamente. Antes que a libido começasse a brigar com o
bom senso.
Fui ao bar, pedi três doses de conhaque e observei a pista de dança. A
música estava lenta, em consequência disso, apenas casais dançavam lá.

Ao meu lado, três mulheres pediram bebida. Uma delas, branquinha


com cabelos longos e uma boca pequena, roçou o braço propositalmente em
mim. Sorrindo e mordendo o lábio em uma sensualidade quase inocente, ela
se desculpou. Era uma pena que fosse tão magra para compreender a
intensidade exigida pelo meu corpo.

Sorvi o resto da bebida de olho na outra, uma morena de olhos escuros


e sobrancelhas espessas. Ideal, se não exibisse um anel, possivelmente de
compromisso, no dedo.

A ruiva ao lado dela usava um vestido solto, dando indícios de


gravidez, um mês no máximo. Não servia.

Nenhuma mulher ali servia.

Não foi uma noite apropriada para sair da caverna, conclui o


pensamento e vi Juliana indo para um canto específico com um sujeito. O
maldito sorriso lindo, dizia que aquela noite, para ela, estava sendo
promissora.
Mais estressado, levantei-me do banco e saquei a carteira. O valor da
bebida foi deixado no balcão.

— Psiu! — Uma mão agarrou meu abdome por trás e estremeci sob
aquele simples toque. — Que sensível... Posso acreditar que fui a última? —
a voz feminina sussurrou em meu ouvido e a reconheci imediatamente.

Taila, traidora do caralho.


Sem motivos para olhar na cara dela, me desvencilhei e caminhei em
direção à saída da boate. No entanto, algo perigoso passou pela minha
cabeça e trouxe um alerta vermelho.

Voltei, olhando para todos os lados.


— Seu amante está aqui? — Fui até a mulher que, com olhos
esperançosos e tristes ao mesmo tempo, sorriu.

— Se você me aceitar de volta, abandono tudo. — Ela segurou meu


rosto. — Você não presta, mas eu te amo, Otávio — ofegou, beijando meu
queixo, empurrando seu corpo no meu.

— Taila! — repreendi, quase levando uma rasteira da abstinência.

— Sinto muito sua falta. Principalmente ao amanhecer e durante os


banhos. Me leva para seu carro...

— Ele está aqui ou não, Tailana? — bradei, e ela deu um sobressalto,


como se tivesse levado um golpe.

— Ele foi buscar uma bebida no segundo bar — respondeu


amargamente.
— Inferno!

— Otávio! — gritou, mas eu já estava distante dela.

Entrei na pista e procurei. Não demorou muito para que Juliana


aparecesse em meu campo de visão.
Inclinado sobre sua altura, um estranho, com no máximo vinte anos,
falava uma merda qualquer em seu ouvido.

Porra, eu deveria voltar para minha casa, me jogar na cama e dormir


profundamente. Mas não era isso que meu subconsciente estava me forçando
a fazer.

Juliana não era indefesa, tampouco minha responsabilidade, porém


estava meio bêbada, como da primeira vez, que algumas doses bastaram
para ficar vulnerável.
— Ei, o que está fazendo? — ela gritou enquanto era puxada dos braços
do rapaz.

— Ele está aqui. — Eu a peguei pelo punho e saí, levando-a em direção


à saída. — Mantenha sua boca fechada.

— Vaitipaporra[11], macho! — Desceu o rosto e foi com os dentes no


meu braço.

— Maldição, quer me ouvir? — Peguei-a pelos ombros, olhei para


aquele rosto lindo e vi uma sombra de medo ali. — Fique calma.

— Você me fez acreditar que era um homem gentil — reclamou, seus


olhos quase saltando para fora.
— Eu fiz o quê? — Lutei mentalmente, tentando lembrar o momento
exato em que plantei aquela mentira na cabeça da pequena.

— Me deu um aumento, foi sonso e achei fofo! — Empurrou o dedo


contra meu peito, como se exigisse reparação por tal decepção.

— Se não aguenta o álcool, por que bebe?

— Não te devo nenhuma satisfação!

Suspirei, sem paciência para aquela versão bêbada birrenta e esclareci


a situação:

— Meu irmão está aí. Você está pronta para esse maldito encontro?

— Eu não tenho medo dele. — Ela moveu o rosto habilmente e franziu


os lábios em indignação, sustentando uma coragem frágil. — Tenho é muita
raiva.

— Confusa assim, você não vai conseguir fazer nada. — Escorreguei


minha mão e juntei nossos dedos. — Vem.

Ela olhou para aquele contato, então eu a puxei para fora e ouvi um
grito de protesto escapar de sua boca.

Passamos de mãos dadas entre vários conhecidos da alta sociedade.


Não observei, mas acreditei que não havia sites de fofoca de plantão naquela
porta.

Sem levar em consideração o registo criminal, nunca fui um assunto


memorável, porém, minha mãe, o marido e o outro filho, os donos da maior
empresa brasileira de bens e consumo, quinta no ranking mundial, sempre
estiveram presentes nas mídias sociais e na TV. Por meio de patrocínios em
reality shows e programas de auditórios, a família Parisotto espalhava seus
alimentos, bebidas, produtos de limpeza e higiene pessoal por toda parte.

— Vocês não falam um com o outro? — perguntou a mulher ao meu lado


quando entramos no estacionamento. — Sempre foi assim? — Estalou os
dedos na frente do meu rosto. — Ei, pode me contar mais?

— Não temos intimidade.

— Oxe, então me largue. — Puxou a mão e massageou o pulso. —


Homem bruto só é bom na intimidade e sob a minha permissão — murmurou
para si mesma, mas eu ouvi, e alguns caras que passavam perto também
ouviram e cresceram o olho.

Ela era uma complicação, que eu não precisava, mas sem pensar duas
vezes, fui em frente, capturei a mão pequena outra vez e ignorei qualquer
relutância.

— Vou te deixar na porta do prédio. — Tirei a chave do bolso e


destravei as portas do meu Audi R8.

— Você sente a presença dele? Se conecta com ele? Se ele é o gêmeo


do mau, você é o bom? — continuou com as perguntas e fechou a outra mão
na articulação do meu cotovelo. — Bom é um exagero. Otávio lobisomem
Parisotto é um Shrek. Você já assistiu Shrek? É um ogro solitário, que vê,
sem mais nem menos, a vida ser invadida por uma série de personagens de
contos de fadas.

— Você não acha melhor ficar calada?

— Estou tentando quebrar o clima ruim, pedaço de cavalo! — Tentou


se livrar de mim, mas eu apertei minha mão na dela. — Este é nosso último
contato. Não confio em você.

— Você parece mais curiosa do que assustada.


— Colocando as unhas de fora, senhor poucas palavras? — protestou
com um ar implicante e me deu uma cotovelada na costela. Não doeu nada,
mas foi o suficiente para deixá-la ir. — Nunca entrei em um bichão desse —
disse ao alcançar meu carro.

— Entre agora! — ordenei e imediatamente dei a volta para fazer o


mesmo.

Abri a porta e assumi meu lugar.

— Estou passando a mão... Você deixou à toa porque quis. — Do meu


assento, assisti o movimento do finalzinho do decote exagerado. O par de
coxas grossas e muito lisas, sem nenhum sinal de pelo, me fez engolir em
seco. — Amei, todo pretinho... — paparicou o carro.

— Minha cor preferida — revelei, e vi o cenho franzido da mulher


aparecer na porta.

— É bom que não esteja me paquerando. — Me avaliou com os olhos,


depois sentou-se no estofamento e deu dois pequenos pulos.

É só uma carona, alertei meu subconsciente. Meu corpo seguia


totalmente estressado por ter perdido a noite em que decidi me dedicar à
foda.

— Coloca o cinto.

— Não vou com você. Estou de carro. — Sacou o celular da bolsa. —


Só vou tirar uma foto para exibir no Instagram. — Alongou o pescoço,
empurrou o rosto para frente e registrou aquela bela posição. — É igual ao
do Neymar, né?

— Não sei. — Saiu como um rosnado.

— De que caverna você saiu? — Me entregou o celular. — Tira duas


para garantir — ditou, já colocando o aparelho de última geração, mais
potente que o meu, na minha mão.
— Sim — concordei e nos curtos segundos que ela mudou e
permaneceu em poses, meus olhos se perderam em uma contemplação
silenciosa. — Oi...? — perguntei quando a ouvi dizer algo que não pude
prestar atenção.

— O celular. Me deixa ver... — Tirou o aparelho da minha mão. —


Credo, tudo coisada — resmungou, mexendo no aplicativo de fotos. — Você
é um péssimo fotógrafo. — Levantou o aparelho e registrou uma selfie ali
mesmo.

Achei graça do rumo inesperado que a noite estava tomando. Quase


sorri. Ela era linda, com uma beleza cativante, charme sedutor e um sorriso
leve. E exalava tudo isso sem deixar de ser a pigmeu insolente que me
atacou com unhas e dentes no topo de um iate. Aquele fio dental era uma
péssima armadura de guerra, ela deveria pensar sobre isso.

— Quer testar outros ângulos? Longe daqui — indaguei e meu tom de


voz áspero a fez dar um leve sobressalto.

— Esse é o nosso último contato, já disse — protestou em um tom


graciosamente desaforado. — Acho que vou aproveitar essa aqui. — Me
mostrou o celular e puxou sem que eu visse qualquer coisa. — E as
crianças?

— Dormindo.

— Qual é? Você contabiliza as palavras para o uso diário?

— Ficaram dormindo. A babá está de olho em tudo — emendei, a


respiração pegando na garganta. — Noah passou mal hoje cedo.

— O bebezinho? — Ela guardou o celular na bolsa.

— Sim. — Peguei uma água mineral que estava ali por perto. — Mas já
está tudo bem. A médica passou uma nova dieta e alguns remédios.

— Que bom. Ele é muito pequenininho para ficar doente — disse,


observando cada gole de água que descia por minha garganta. — O que é
isso? — Apontou o indicador na direção do meu rosto. — Você quase sorriu.
— Não. — Larguei a garrafa vazia entre minhas pernas.

— Sim, entortou esse cantinho bem assim. — Sinalizou no rosto dela e,


sem que eu esperasse, cutucou minha barriga, fazendo meu corpo inteiro se
contrair ao toque. — Faço você perder a pose em dois tempos.

Insistiu e me esquivei todo travado, totalmente fora do eixo. Por isso


meus filhos gostaram dela logo de cara. Era uma moleca. Arteira o suficiente
para pôr fogo em um barril de pólvoras.

— Chega, Juliana! — Ofegante, consegui prender seus punhos na frente


do corpo. — Quanto você bebeu?

— Não estou bêbada — afirmou em um sussurro brincalhão. — Me


solta e não me olha assim.

— Eu não vou te fazer mal — assegurei.

— Não estou insinuando isso, bebê. — Inclinou a cabeça ligeiramente


para o lado e me avaliou de ponta a ponta.

— Prefiro que não me chame assim — murmurei, lutando contra a


respiração.

A atração era louca e não poder saciá-la estava me deixando nervoso.


Desejei que João Paulo aparecesse na minha frente para que eu pudesse
descontar a frustração de forma apropriada.

— Você não tinha tudo isso de músculos. — Ela mordiscou o lábio


inferior, pensativa, dando uma olhada indiscreta nos meus braços.

— Você fez rinoplastia.

— Observou isso? — Seus olhos me deram atenção outra vez.

Você foi a primeira a chamar minha atenção após três anos de luto,
como esqueceria?, comentei secretamente e afrouxei as mãos que prendiam
seus braços.
— Tente evitar meu irmão, principalmente se estiver sozinha. — Minha
mão roçou a ponta de um de seus cachos e meus dedos coçaram para saciar o
desejo de uma velha mania. — Você conhece seus limites psicológicos,
certo?

— Já ultrapassei todos os meus limites para sobreviver. Eu aguento.

Havia um leve tom de tristeza em sua voz quando ela disse essas
palavras. E esse sentimento cutucou um lugar específico dentro de mim. Um
espaço vulnerável e doente. Juliana era tão forte quanto se mostrava, porque
é isso que fissuras profundas nos obrigam a ser: fortes, corajosos. E não
precisei conhecê-la tão bem para identificar que ela usava o riso para
afugentar o peso do passado.

Meu coração acelerou em uma velocidade absurda e a coisa na minha


cabeça lutou, querendo exteriorizar.

— Se ele te incomodar, quero ser o primeiro a saber — me forcei a


dizer.

— Se saia disso[12]. — Ela sacou um chaveiro da bolsa e colocou uma


das botas fora do carro. — Obrigada por ter evitado um trauma pior naquela
noite. Nem consigo imaginar como é viver com o fruto de um crime.

— Não pense nisso, Juliana. Não se maltrate assim.

— Boa noite, Otávio. — Ela saiu do veículo, fechou a porta e mexeu os


dedos do outro lado do vidro.

Ofegante, deixei a preocupação empurrar a necessidade de fugir para


minha caverna.
— Onde está o seu carro? — indaguei ao sair do veículo.

— Está aqui na frente.

— Vou dirigir pra você — comuniquei.

— Não. Nem pense nisso. — Ela deu dois passos para trás.
— Você está tonta.

— Não estou. Em trinta e quatro minutos, estarei em casa.

— Em trinta e quatro minutos você pode adormecer no volante e parar


de sorrir. Você não pode parar de sorrir.

— O quê? Como assim? — Lançou um sorriso confuso.

— Vou levar você. — Tomei o chaveiro da mão dela e levantei para o


alto quando tentou recuperar.

— Não! Me devolve!
Ela saltou e, insatisfeita por não ter atingido seu objetivo, foi rápida no
jogo baixo.

— Não, Juliana! — repreendi, esquivando-me de seu ataque.

Aos trinta e cinco anos, eu era o cara que fugia de cócegas no


estacionamento de uma boate, depois de absorver uma dor que podia me
enlouquecer sem avisar.

— Me devolva, Otávio!

Senti a forte presença atrás de mim e meu peito tremeu quando o som de
uma buzina atingiu a membrana dos meus tímpanos. Em um intervalo de
segundos, agarrei a cintura de Juliana, virei seu pequeno corpo e senti um
carro passar por minhas costas.

— Santo Deus! — ela gritou, trêmula em meus braços.

— Tomei uma decisão melhor. Você vai entrar no meu carro. Depois
volto com um segurança e pegamos seu carro. Amanhã sua chave estará nas
mãos daquele velho de bigode preto.

— E-eu me mijei um pouquinho — foi o que ela disse —, tudo bem,


concordo em não sujar meu carro.

— Você é um pouco traiçoeira.


— Só quando estou bêbada.

— Você disse que não estava. — Meus dedos acariciaram seu couro
cabeludo por trás.
— Me leve logo, cara. Não me mime tanto. Não estou acostumada e
posso querer enfeitiçá-lo para ser meu escravo.

— Dependendo dos benefícios, ofereço a minha orelha. — Me permiti


entrar na diversão e a encaminhei de volta para o meu carro.

— Você fica muito estranho quando tenta ser aleatório. — Ela apontou
o dedo na minha cara. — Mas seus filhos são fofos.

— Fecha o olho, acordo você quando chegarmos. — Travei o cinto de


segurança nela.
— Vou ficar bem acordada. Não confio em macho.

— Você pode descansar. Eu nunca daria a você qualquer motivo para


suspeitar de mim.

Fechei a porta, dei a volta e peguei o volante. Poucos minutos depois,


quando o carro parou em frente ao prédio, acordei-a e a ajudei entrar no
prédio.

— Dona Juliana. Está tudo bem? — perguntou o velho, escondendo


meio sanduíche nas costas. A camisa social azul com respingos de ketchup,
mal comportava a espessura da barriga.

— Augustinho, esse é meu lacaio. Lacaio, este é o Augustos.

— Ela bebeu um pouco e passou por um susto — expliquei ao porteiro.

— O elevador está funcionando esta noite. — O bigodudo apertou o


botão e abriu a porta. — Tá tudo bem mesmo, não é, dona Juliana?
— Boa noite, Augustinhoooo — cantarolou ela enquanto a porta de aço
se fechava.
Chegamos ao topo em silêncio, e quando ela abriu a porta e entrou, o
gato amarelo e gordo se enroscou entre suas botas, miando em desespero.

— Traga meu carro. Não tente roubá-lo de mim... — disse ela, puxando
a alça da bolsa para fora da cabeça e deixando o acessório cair no chão.

— Amanhã de manhã ele estará na garagem do prédio — afirmei.

— Vem aqui. — Ela gesticulou com a mão.

— O quê?

Ela repetiu o gesto, depois ergueu a mão, fazendo-me entender e, ao


mesmo tempo, estranhar.

— Com esse tamanho você tem medo de mim? — perguntou rindo. —


Você fica nervoso. Eu percebi.

— Você não pode beber, mulher.

— Vem agora, lacaio — ordenou e, respirando irregular, não deixei de


atendê-la. Inclinei-me sobre ela e, estático, deixei o calor de seus lábios
macios encontrar o lado esquerdo do meu rosto. — Cheiroso... Que tesão,
meu rei.

Porra! Meu pulso bateu forte e o desejo de agarrar os cabelos daquela


nuca incendiou minhas veias. Eu precisava de muito mais. A pequena mulher
estava bagunçando minha vida tranquila e não tinha ideia da teia obsessiva
em que estava se metendo.

— Tome um café forte e não abra a porta enquanto não estiver bem. —
Lutando contra o magnetismo perigoso e difícil de ignorar, respirei pelo
nariz e me afastei.

— Não me dê ordens. — Estudou os membros inferiores do meu corpo.


— É uma poltrona bastante resistente... — Apontou a unha comprida para
dentro do apartamento, os olhos ainda fixos em mim. — Preciso comprar
para colocar ali. Poltrona de couro. Couro sintético e resistente. Nada de
animal.
— Fecha essa porta agora, Juliana. — Precisei usar um tom incisivo.

— Vou fechar, porque quero. — Bateu a mão no peito. — Preciso


cuidar do senhor Gusmão. Vem aqui bichinho. — Ela se abaixou, pegou o
gato e me encarou com os olhos vacilantes, vencida pelo sono.
Dei um passo à frente, afastei ela da porta e puxei até que estivesse
travada.

— Passe a chave — mandei pelo lado de fora.

— Se disser a alguém que paquerei você, eu nego — ela murmurou do


outro lado e me fez ouvir o clique da chave dentro da fechadura.

Juliana precisava se manter longe do álcool, porque ficava vulnerável


demais naquela situação.

Tirei o telefone do bolso e selecionei um número importante da lista


telefônica. Eu precisava ver alguém antes de voltar para casa.
Em trinta e oito minutos, meu carro parou em frente ao muro alto de um
casarão no Jardim Europa.

Eu não gostava daquele lugar. Entrar ali me trazia lembranças tristes.


Todas as vezes que tentei, depois da adolescência, meus gatilhos foram
disparados, e o monstro que vivia acorrentado sobressaiu.

Com o celular em mãos, selecionei o número da ligação que fiz na


estrada e deixei chamar algumas vezes, o suficiente para avisá-la que eu já
estava na porta. E não demorou um minuto para o estreito portão de madeira
se abrir e a bela mulher loira em um robe de seda e chinelos peludos
aparecer.

Surpresa e até assustada, ela cruzou os braços e caminhou


elegantemente em direção ao meu carro.
Estava tarde, mas era difícil encontrá-la disponível durante o dia, e eu
precisava avisá-la que promessas seriam quebradas, se algum infortúnio
acontecesse com pessoas importantes para mim.

Saí do veículo para recebê-la e observei o vento frio despentear seus


cabelos curtos, fazendo-me lembrar da infância, quando ela descansava nos
fins de semana sem os penteados formais e a imagem poderosa que tinha
orgulho de carregar nas costas.

— Onde está seu casaco? — Foi a primeira coisa que saiu da sua boca
quando me alcançou e testou a temperatura dos meus braços.

— Desculpe ter vindo tão tarde, mãe. — Deixei uma sombra de sorriso
escapar. Sua voz suave e seu cheiro bom aqueceram meu peito e fechei meus
braços em volta dela. — Eu precisava ver você.

— Aconteceu alguma coisa? Sua cabeça? — Ela segurou meu rosto


com as mãos e procurou sinais de desequilíbrio ali.

— Estou bem, só queria te ver.

— Você bebeu — afirmou, puxando as pálpebras dos meus olhos com


os dedos. — Usou mais alguma coisa?

— Que merda, mãe! — Eu quis me esquivar, mas ela fechou os braços


em minha cintura e deitou a cabeça no meu peito.

— Não, não vai agora. Só estranhei. Você nunca mais me procurou,


filho, e sempre coloca desculpa para não me ver.

— É tão difícil achar você no Brasil. — Dei a mesma desculpa de


sempre e deixei minha mão acariciar seus fios dourados. — Você está bem,
dona Adriana?

— Estou melhor agora, amor. E minhas crianças?

— Thiago está mais esperto e Noah mais manhoso — eu disse e ela


sorriu no meu peito.
— Já desmarquei tudo para estar no aniversário do pequenino. Estou
com tanta saudade...

— Noah teve que ir ao médico hoje, mãe.

— O que aconteceu? — perguntou, quebrou o abraço e olhou para mim


com preocupação. As mãos continuaram em minhas costelas.

— Ele já está bem e medicado. Foi uma crise de prisão de ventre.

— Vou mandar minha assistente ver os melhores nutricionistas de São


Paulo.

— Eu cuidei disso. Não se preocupe.

— Você faz tudo. — Ela soltou um suspiro de alívio, encostou os lábios


no meu peito e deixou uma marca de afeto ali. — Vamos entrar. Tem
chocolate quente e bolo.

— Seu marido está aí? — perguntei, olhando por cima da cabeça dela,
percebendo que o segurança fixo da casa estava lá, me avaliando com
cautela, com todas as malditas ordens claras.

— Sim, seu pai está em casa, Otávio — retrucou, segurando meus


dedos para levar aos lábios. Os olhos já marejados, como da última vez. —
Meu filho, venha comigo.

— Ele sempre acha que vou te machucar. — Ri indignado, querendo


quebrar a cara do capanga que me encarava na porta de entrada. — Seu
marido é um bastardo do caralho.

— Shh! Não fale assim do seu pai — me repreendeu e me afastei dela


para virar de costas.

— Entra, mãe. — Puxei meu cabelo e soltei um suspiro irritado.

Naquele intervalo de segundos decidi não tocar no assunto da maldita


violação de João Paulo, como pretendia. A minha mãe parecia vulnerável,
não a mulher forte e CEO poderosa que ela costumava ser. Na verdade,
sempre foi assim. Ela murchava completamente quando estava perto de mim,
porque eu drenava suas forças e a deixava triste. Sempre foi assim.

— Não aguento mais ter você longe de mim, Otávio. Seu pai quer ver
os netos com mais frequência. Quer passar o final de semana com eles,
viajar com eles...
— Ele me odeia — a interrompi. — Eu não quero meus filhos perto
dele.

— Não diga isso, meu filho. Vocês precisam se perdoar. — Ela me


abraçou por trás. — Seu irmão me pediu para trazer Noah...

— Foda-se esse idiota! — Virei, chateado com a audácia. — Se ele se


aproximar a um metro do meu bebê, juro que despedaço as costelas que
sobraram nele.

— Otávio!

— Noah é meu filho. Meu filho! — Me afastei dela outra vez. — Eu


acabo com ele, você sabe disso.

— O bebê veio para unir vocês, Otávio. Por que não dá uma chance ao
seu irmão? Ele quer conviver com você. Sempre quis o seu bem.

— Ele quer ferrar com a minha vida! — Cerrei meus punhos e um


rosnado escapou da minha garganta. — Nunca se conformou que Danielle me
escolheu com todos os fodidos defeitos — respirei fundo, meu coração já
acelerado —, ele iludiu a cadela da Tailana para me afrontar. Mas Noah é
meu filho! Meu bebê.

— Respira, meu amor. — Minha mãe apoiou as mãos no meu peito e


seus lábios tremeram. — Calma. Respira.

Não queria deixá-la mais triste. Nem era digno de estar na presença
dela.

Droga, eu precisava deixá-la em paz.


— Boa noite, mãe. — Deixei um longo beijo em sua testa. — Eu amo
você. Mesmo que eu não mereça, preciso que você me perdoe novamente.

— Eu daria tudo o que tenho para ter vocês unidos outra vez. — A
lágrima escorreu de seus olhos e a culpa me deu um soco no estômago.

— Não chore, mãe. Por tudo o que é mais sagrado, não chore. Eu fiz
uma promessa da última vez e pretendo cumpri-la. Por você. Ele só precisa
não se aproximar do que me pertence.

— Seu irmão é bom. E você também, Otávio.

Não. Não éramos bons.

— Sim, mãe, você está certa — concordei, só para vê-la bem.

Adriana Parisotto era uma mulher muito inteligente, farejava qualquer


blefe, mas também era mãe e preferia se iludir com a possibilidade de
reconciliação.

— Promete que vai falar com seu irmão?

— Qualquer dia, eu saio com ele.

Na última tentativa de reconciliação, eu o mandei para o pronto-socorro


com uma lesão no abdômen.

João Paulo sempre me atacou de forma pacífica e direta. No ponto


fraco. E quanto mais ele tocava minha ferida, mais eu o atacava... E me
destruía na mesma proporção.

— Por favor, filho. — Ela piscou esperançosa e mais lágrimas


derramaram por suas bochechas.

— Por você. — Forcei um sorriso. — Mas agora não.

— Já é uma esperança. Vou me agarrar. — Ela distribuiu beijos no meu


rosto. — Hum... Esse perfume é de mulher... — Cheirou-me no pescoço,
fazendo-me limpar um pigarro que não existia na garganta.

— Saí com o Roberto, a esposa dele e alguns amigos.

— E quem deixou esse perfume em você? — Ela ergueu uma


sobrancelha e sorriu em meio a tristeza.

Minha mãe era perfeita quando não estava triste.

— É uma mulher que conheci no passado e está de volta. — Joguei as


palavras, querendo não pensar nas consequências.

Dane-se as justificativas! Eu voltaria para minha casa, mas deixaria a


minha mãe com o coração quente.

— Ela tem um nome? — indagou, alargando o sorriso, toda empolgada,


como se eu fosse uma criança voltando para casa depois do primeiro dia de
aula.

— Juliana.

— Juliana... — avaliou. Seus olhos verdes, incrivelmente perfeitos,


brilhando. — Juliana é um bom nome de nora. Ela é bonita?

— Sim, ela é.

— Gostosona?

— É perfeita. E nanica também.

— Isso está ficando interessante. — Sorrindo, ela mediu os músculos


do meu braço com as mãos. — E o cabelo. Me surpreenda.

— Os cachos chegam à cintura.

— Sabia! Naturais como os da Dani ou falsos como os da Tailana.


— Não sei, mãe, não importa. — Beijei sua testa para encerrar o
assunto.

Eu já tinha ido longe demais.

— Se não sabe, é sinal de que ainda não dormiram juntos. — Arregalou


os olhos — Você está sendo cauteloso, Otávio. Está apaixonado, filho?

— Porra, mãe, não imagina coisas que não existem.

— Quero conhecê-la.

—Você não tem motivo para conhecê-la. É apenas uma amiga da mulher
de Beto. Não está acontecendo nada.
— Você teve períodos de devassidão, depois disso só me falou da Dani
e da Tailana. As duas que colocaram aliança no dedo.

— Vou dormir! — Abri a porta do carro.

Trinta e cinco anos e ela me tratava como se eu tivesse a idade de


quando saí de casa.

— Me contou da Juliana porque ela mexeu com você, bonitão.

— Entra, dona Adriana.

— Eu vou entrar. — Ela deixou mais um beijo no meu rosto. — Beije


meus netos por mim. — Cruzou os braços e deu alguns passos para trás. —
Estou cheia de trabalho, mas vou providenciar uma folga para visitá-los.
Quero saber tudo sobre a minha nora.

— Entra, mãe.
Ela soprou um beijo no ar e caminhou rapidamente em direção à porta
estreita. Passou pelo segurança e desapareceu da minha vista.

A mãe ficou animada, mas era extremamente discreta quando se tratava


de sua família. Muito ocupada, logo ela esqueceria aquela bobagem de nora.
Aquele assunto precisava morrer ali.

Entreguei as informações necessárias e a chave do carro de Juliana aos


meus seguranças noturnos e subi a escada de minha sala.

Fui direto para o quarto dos meninos. Abri a porta com cuidado e
entrei. Eles estavam dormindo na mesma posição que eu havia deixado.
Apenas arrumei o cobertor do Thiago e fui para minha suíte.

No caminho, aproximei o ouvido da porta do quarto onde dormiam as


babás dos meninos e só me afastei quando identifiquei o som do ronco da
mais velha.

Enfermeira aposentada, Bah estava prestes a fazer setenta anos, mas


ainda se importava com o trabalho da outra babá, uma jovem senhora de
quarenta e dois anos.

Foi a Bah que cuidou de mim durante minha infância problemática e


início da adolescência, quando recebeu o diagnóstico correto de meu
temperamento agressivo e fúria descontrolada, e o marido de minha mãe
usou sua maldita ignorância para considerá-la responsável e demiti-la.

Há nove anos, quando descobri que o filho dela, um bastardo de merda,


a estava roubando e maltratando fisicamente, em outro estado do país, fui
buscá-la para morar comigo.

Fechei meu quarto, fiquei nu no caminho do banheiro e deixei a


lembrança perfeita da pequena mulher de cabelos cacheados entrar no
chuveiro comigo.

Exausto, com a água batendo nas minhas costas, dobrei meu braço sobre
o azulejo e inclinei minha cabeça sobre ele. Meus olhos desceram para o
músculo rígido com veias latejantes e a intensidade dos meus pensamentos
por Juliana aumentou.

Suas curvas, seu cheiro, sua voz, o toque da pele perfeita... A cabeça do
meu pau até brilhava, implorando por um aperto quente. Droga, eu estava
uma bagunça.

Excitado, liberei um rugido entre os dentes e soquei a parede. Eu


precisava me livrar da agonia, mas não poderia alimentar uma atração
nociva pela vítima do bastardo que compartilhava da mesma carga genética
que eu.

Juliana era luz, o oposto de mim, mas carregava alguns traumas. Outros
traumas que eu não conhecia. Uma alma ferida facilmente reconhece outra e
logo cria afinidade. Um sentimento ruim para quem não tem saúde.

Empatia entre doentes é a soma de dores, e quando a merda é


psicológica, a destruição é o caminho mais fácil. Juliana precisava estar
perto de pessoas saudáveis. Longe de mim.
Ah, fodido, João Paulo, era bom você nem sonhar em chegar perto
dela outra vez.

Deitado na pequena boia inflável com cobertura, Noah, vestindo uma


sunga de banho, ergueu as pernas acima do corpo, determinado a alcançar
os pés com as mãos.
O dia estava ensolarado e um cheiro calmo de colônia infantil
exalava por todo o perímetro da piscina. O bebê não falava, era muito
pequeno, porém, sua garganta emitia sons graciosos e seus dois grandes
dentes estavam lá, batendo nas gengivas superiores, como se fosse um
ritual de força.

Esperto, ele ergueu a cabeça, levantou a perninha com determinação


e realizou a árdua façanha infantil: abocanhou o dedo do pé e começou a
chupá-lo.

Mas o movimento repentino sacudiu a boia na instabilidade da água.


Noah lutou com o pé na boca e na rapidez de dois segundos seu corpinho
foi arremessado nas águas profundas da piscina.

Ele não conseguia nadar.

Ele não conseguia respirar.

Era apenas um bebê indefeso.


Ele estava se afogando...

Não! Meu Noah, não!

Abri os olhos, enchi os pulmões de ar e cambaleei para fora da cama,


deixando o lençol fino que cobria meu corpo no chão.
Fui rápido no corredor. As cenas do pesadelo gritaram a cada passo,
trazendo uma terrível agonia ao meu peito, medo de que aquele sonho
maldito se tornasse realidade.

Só me permiti respirar quando entrei no penúltimo quarto e meus filhos


apareceram no meu campo de visão.

Dormindo. Tranquilos. Seguros.

Respirei fundo cerca de três vezes e, com o peso de uma mão apertando
meu peito, escorreguei para o tapete do quarto. Minhas costas descansaram
ao lado da cama de Thiago e meus olhos piscaram entre ele e seu
irmãozinho.

O sonho foi um aviso do subconsciente. Era preciso ter mais cuidado


com os gatilhos e não descurar os medicamentos. Meus filhos precisavam de
mim e eu precisava deles.
Uma semana depois

Minhas mãos deixaram seus cabelos e deslizaram para a roupa de cama. Minha coxa direita
tremeu sobre seu ombro, a outra amoleceu contra o colchão.

Com sua cabeça entre minhas pernas e meu nervo endurecido sendo sugado, ele deslizou a palma
da mão pelos meus seios e pressionou o mamilo na ponta dos dedos, fazendo-me arquear sobre o
colchão e roçar meus quadris em sua boca, seguindo um movimento contínuo. Para frente e para trás.
Acelerando à medida que ele me levava para a segunda explosão. E aquilo me deixou completamente
sem ar, me contraindo toda na cama.

E nos segundos que lutei para recuperar o controle da mente, sua língua quente deslizou para cima
e para baixo, acariciando toda a extensão sensível. Delicadamente, colheu tudo o que tinha direito.
Então, moveu os lábios pela minha barriga, entre os meus seios, até alcançar o meu sorriso e roubar o
resto do meu fôlego com um longo beijo de língua.

— Eu preciso de você... — Ofegante, ele colou a testa na minha.

Sem forças, depois das ondas orgásticas, só consegui levantar as mãos e deixar meus dedos
acariciarem seu rosto de forma íntima e afetuosa. E naquele momento, com a sombra de um lindo
sorriso, ele desapareceu, como se fosse um infeliz truque de mágica.

Sonolenta, abri meus olhos que insistiam em permanecer fechados e repassei os flashs de
memória projetados em minha mente.

O bem-estar do prazer alcançado fluía pelos meus músculos, por toda a minha região pélvica, mas
tinha sido apenas um delírio. O terceiro naquela semana. Com ele. Otávio Parisotto.

O homem vinha gostoso nos meus sonhos, só me agradava. Eu me perguntava se, daquele jeito
grosseiro, ele poderia ser atencioso entre quatro paredes.

Mas, não era bom pensar nele. Para o bem da minha segurança emocional, eu deveria esquecer
aqueles olhos verdes obscuros e a pontada de interesse que vi correndo dentro deles em nosso último
encontro. Desde o início, a vida nos afastou e eu precisava entender isso como um propósito de
proteção.

Talvez fosse melhor retomar minhas consultas na psicóloga. Eu não tinha como saber se era
normal ter sonhos eróticos com um cara cujo rosto eu precisava esquecer.

Um dos meus cachos rolou sobre meu rosto, então percebi quem me acordou. O gato amarelo
estava ali no travesseiro, com suas duas patas habilidosas afofando meu cabelo em uma massagem
habitual.

Gusmão me acordava na mesma hora todos os dias, e se eu não saísse da cama para encher sua
tigela de comida, ele fazia uma grande cena de escândalo no apartamento.

— Bom dia para você também... — murmurei e coloquei minha bochecha no travesseiro. — Não
vou conseguir sustentar as exigências da sua pança, amiguinho. — Fechei meus olhos. — Vou procurar
um trabalho decente para você se sustentar e ajudar em casa.

— Miau...

— Sim.

— Miau...

— Pois vamos ver. Entrou, ficou, tem que colaborar, bebê.

Afastei o lençol e deslizei para fora da cama. Inspecionei rapidamente e não encontrei nenhum
sinal de cocô ou urina.

Gusmão era um gato treinado e fazia suas necessidades na caixa de areia, na área do fundo. Ele
era tão esperto que pegava a comida com a pata e colocava na boca. Fazia o mesmo com a água para
não molhar o bigode. Uma coisa curiosa que eu nunca tinha ouvido falar.

Augustinho, o porteiro, ajudou-me nas buscas pelo tutor, mas não tivemos sucesso, nem vimos
manifestação nos quarteirões vizinhos.

A ideia de colar cartazes no bairro passava pela minha cabeça, mas eu temia encontrar
oportunistas e pessoas maldosas. Persa de raça pura, certamente, o gatinho tinha pedigree e valia muito
dinheiro.

— Miau... — o safado exigiu, esfregou-se nos meus pés e eu corri para pegar sua primeira
refeição do dia.

Em uma hora, eu estava pronta para começar meu dia de trabalho. Precisava fazer algumas
edições e agendar postagens no Instagram, que agora era minha nova fonte de renda.

Mas primeiro eu precisava dar um pulo na rua.

Gusmão, já escovado e na coleirinha, brincava com uma caixa de sapato ao lado da porta. Naquela
manhã, se tudo corresse bem, ele conseguiria seu primeiro emprego.

Eu tinha acabado de subir uma foto dele no meu perfil do Instagram. Escrevi duas linhas sobre sua
chegada repentina à minha casa, e fiquei impressionada com a quantidade de curtidas e comentários
fofos que o safado recebeu. Ele era bom, tinha um grande futuro pela frente.

— Vamos ali fechar negócios, amiguinho. — Eu o coloquei no meu colo e destranquei a porta para
sair do apartamento.

Dirigi meu golzinho pelas ruas do bairro e em poucos minutos entrei em um famoso pet shop nos
arredores de Vila Formosa.

Com Gusmão na minha frente, fui até o balconista, que me levou até o dono, um homem alto, de
cabelos grisalhos e óculos de aro redondo no rosto. Arnaldo, me disseram que esse era o seu nome.

Eu o cumprimentei calorosamente e fui recompensada com simpatia. Geralmente isso acontecia,


pois eu tinha lábia e minha cara de pau me levava aos mais diversos lugares.

— E esse garotão? — O homem transferiu um olhar solícito para o bichano.

— Esse garotão é o Gusmão, seu Arnaldo. — Inclinei-me, coloquei o bichano no colo e juntos
entregamos nosso melhor olhar persuasivo.

— Ele é muito fotogênico, e sua tutora, também conhecida como eu, alcançou 800 mil
seguidores no Instagram. Acredito que uma parceria entre sua empresa e nosso marketing digital seria
muito promissora. — Fui direto ao assunto.

— Miau... — Gusmão se manifestou no meu colo e ganhou um cafuné do empresário.

— No momento...

— Tenho uma bela proposta de parceria, garanto — interrompi ao perceber que levaria um
decepcionante "não". — Sou blogueira antiga, agora influenciadora digital. Trabalho com beleza e meu
público-alvo é quase 100% feminino. A maioria delas são tutoras de animais domésticos.

Nunca fiz aquela análise entre meus seguidores, mas joguei de acordo com os comentários da foto.

Para fortalecer minha palavra, tirei o celular da bolsa e abri na imagem postada recentemente.
— Veja os dados de uma única postagem do Gusmão. — Cliquei nos insights e coloquei o aparelho
na frente dos olhos do homem. Ele aparentemente não entendeu o significado dos dados, porém, achei
que os números altos fizeram diferença. E, claro, não perdi tempo. — Vamos começar por meio de
permuta. Sua empresa oferece todos os produtos e serviços para o Gusmão, incluindo clínica e
alimentação, e retribuiremos com tour mensal pela loja e avaliação dos recebidos no Instagram.

O empresário raspou seus dedos no cavanhaque branco, avaliou minhas palavras e perguntou:

— Sem pagamento em dinheiro?

— Não nos primeiros seis meses, porque depois vai chover patrocínio e o Gusmão vai poder
escolher com quem quer trabalhar.

— É minha filha quem cuida dessa parte. E já tem gente famosa trabalhando conosco — ele quis
rebater.

— Vou mandar as métricas para o e-mail dela, para ela avaliar. Mas já garanto que minhas ações
são as mais incríveis — acrescentei —, veja este perfil. — Virei a cara do gato. — Não há outro mais
carismático em São Paulo, Senhor Arnaldo. Gusmão é um artista nato. Vai chover clientes aqui e nas
filiais da sua empresa.

E assim, duas horas depois, saí da clínica veterinária de seu Arnaldo, com um novo influenciador
digital nos braços. Gusmão fez uma série de exames e os resultados foram satisfatórios. O veterinário
avaliou sua idade, disse que ele deveria ter entre dois ou três anos, quase 25 anos, em comparação com
a idade humana. Ele também me orientou sobre os cuidados e esclareceu dúvidas de comportamento.

Só esperava que o gatinho nunca inventasse de trazer ratos para dentro de casa, pois não teria
maturidade para aceitar isso como um presente de amor, como o médico me fez acreditar.

— Não tenho dinheiro sobrando, Gusmão, mas a sua fartura e cuidados médicos estão garantidos
— eu disse enquanto acariciava seu pelo.

O telefone tocou em minha bolsa transversal e só dei atenção quando coloquei o gato no banco do
passageiro do carro e me sentei na frente do volante.

— Oxente, número desconhecido? — Achei estranho, mas como o prefixo era de São Paulo,
recebi a ligação e coloquei o cinto de segurança para pegar a estrada. — Oi, bom dia?

— Bom dia, Juliana, eu sou Adriana Parisotto, tudo bem?

— Oi? — Troquei o aparelho de orelha quando escutei o nome acompanhado do sobrenome. — É


um trote da prisão, né, sua rapariga? — Elevei o tom.

— Não, não é trote! Sou realmente Adriana Parisotto.


— Vá apertar a mente de outro, mulher!

— Não, não desligue! Meu filho me falou sobre você. O Otávio — informou essas palavras e eu
paralisei por dois segundos.

Coloquei o aparelho diante dos meus olhos e pensei naquela possibilidade. Era mesmo a
mandachuva falando comigo?

— Você é a mãe do lobisomem? — perguntei com o celular na frente da boca, vendo meus
grandes olhos pelo retrovisor do veículo.

— Oi? Não entendi.

— Mulher, você é aquela loirona que aparece na televisão? Você é a dona da Pinhos Parisotto?
— Levei o telefone ao ouvido novamente e cobri minha testa com a outra mão.

— Isso, querida. Mudei uma programação inteirinha para conseguir um horário para você.
Podemos nos encontrar hoje?

— O quê? — Coloquei o celular no viva-voz, liguei o carro e manobrei para fora da vaga.

— Você está com horário livre? Estou animada para conhecer minha nora.

— Como?! — Freei o carro abruptamente e ouvi um buzinaço na minha retaguarda. — O


estacionamento é amplo, abestalhado! Se pique na frente, vá! — Toda errada na situação, briguei com o
motorista pela janela do carro, mas logo voltei com os olhos fixos no celular sobre minhas coxas. —
Tem alguma conversa atravessada aqui, dona Adriana.

— Só Adriana, por favor. — A voz da loira soou risonha. — Otávio não me disse que você era
tão espirituosa.

— Tudo bem, talvez você tenha algo a me dizer que ainda não sei. Vamos conversar. — Joguei o
carro em outra vaga para dar atenção à mulher que me chamava de nora.
No centro de uma delicatesse luxuosa e quase vazia, no Jardim Europa,
após uma busca rápida, localizei a mulher sentada à mesa no canto mais
discreto.

Era ela, a mandachuva, totalmente focada em seu celular, usando


óculos escuros deslumbrantes que combinavam com a roupa verde-clara que
usava. Um macacão chique, do estilo que minha melhor amiga amava.

O que ela realmente queria comigo? Nora? De onde veio isso?

Nunca me aproximei dela, mas a conhecia pelas redes sociais. Há anos


comecei a manter as postagens interessantes postadas no perfil da Forbes em
uma pasta no Instagram, e Adriana Parisotto, sempre aparecia lá, entre as dez
mulheres de maior patrimônio líquido, no Brasil. Ela foi e continuava sendo
um exemplo de sucesso e empoderamento. Tudo isso me fazia admirá-la...
De longe. Seu perfil pessoal, com quase dois milhões de seguidores, era
privado e ela nunca aceitou meu pedido para segui-la.

Bem, ela foi amigável ao telefone.

Quando joguei o carro na vaga para sanar minha curiosidade, ela me


implorou que a encontrasse e despertou todos os estágios de minha
curiosidade.

Até abstrair o fato de que ela era a mãe daquele cara que me fez mal.
Pensar em tudo isso fazia meu peito queimar de angústia, mas eu não podia
deixar o medo me dominar. Episódios ruins do passado não interviriam na
minha vida.

Com a mão na alça da coleira e um funcionário local na minha cola,


observando o quão longe eu estava indo com o gato, o que era proibido no
local, fui até a mesa onde estava a mulher que eu admirava
profissionalmente.

— Adriana Parisotto? — sussurrei, impassível por fora e confusa por


dentro.

Ela levantou a cabeça, tirou os óculos do rosto e seus incríveis olhos


verdes varreram meu corpo de cima a baixo, uma longa inspeção que me
deixou um pouco trêmula.

— O quê, você ficou desapontada? — perguntei, me sentindo em uma


entrevista com a Chanel, Dior, ou algo que mudaria meu futuro.

— Você é pequena para ele — foi a primeira coisa que a mulher disse.
— Mas nós mulheres podemos cuidar de tudo, certo? Estou casada há 38
anos e só reclamei no início, quando não entendia que podia usar tudo a meu
favor. Veja como minha pele e meu cabelo estão brilhantes aos 57 anos.

Sim, ela era estupidamente bonita. Por procedimentos ou não, ela nem
parecia ser mãe de dois marmanjos.

— Com todo o respeito, Adriana, não pensei que nossa primeira


conversa fosse sobre os benefícios de uma piroca. — Sorri nervosamente,
com os dentes expostos, e ela se levantou, veio com a mão na minha direção,
pousou no meu ombro e beijou minha bochecha esquerda.

— Não me interprete mal, é que te achei tão espirituosa ao telefone,


resolvi tentar fazer o mesmo. Eu sei como a formalidade é assustadora. Já
estive em seu lugar — explicou ela com um tom rosa-claro ganhando suas
bochechas pálidas. — Sente-se, vamos conversar. — Indicou a cadeira.

— O que exatamente o seu filho falou sobre mim? — indaguei antes de


ser interrompida pelo funcionário local.

— Senhora, o gato...

— É senhorita — Adriana interrompeu o homem. — Ela é minha nora,


está comigo e o bichinho também.

Depois disso, o homem se desculpou e foi embora preocupado, pois


certamente tinha ordens para não deixar meu gato entrar ali. Eu seria rápida
para não o prejudicar.

— Ou a senhora se confundiu, ou seu filho inventou o que não existe. —


Sentei-me e trouxe Gusmão para meu colo.

— Vocês podem não estar em um relacionamento sério, ainda, mas ele


está muito interessado. Caso contrário, não teria me visitado apenas para
falar sobre você.

— Ele fez isso? — questionei e admito que fiquei chocada.

— Otávio tem suas peculiaridades. Ele não diz o que pensa, mas se
você olhar nos olhos dele, poderá encontrar todas as respostas. E eu
encontrei um novo brilho lá quando me revelou que o cheiro de frutas
cítricas era de uma mulher do passado que esteve com ele naquela noite.

— Seu filho e eu nunca estivemos juntos da maneira que você


acredita... — Hesitei ao notar um brilho de êxito nos olhos da mulher.

— Nem um beijo? — Com um largo sorriso no rosto, ela serviu café do


conjunto de xícaras disponíveis e ofereceu para mim. — Ele está sendo
cauteloso. Você é especial.

Cristo! Ela só podia estar delirando.

— Quer saber como nos conhecemos? — indaguei, escolhendo as


melhores palavras para relatar minha dor e assim acabar com aquele assunto
de nora de uma vez por todas.

— Quero saber tudo. Nunca estive presente nos relacionamentos do


meu filho, mas agora decidi assumir meu papel de sogra da melhor maneira
possível. Quero vê-lo bem, em um relacionamento saudável.

A felicidade baseada na ilusão era tanta que uma névoa de lágrimas


brilhou no fundo dos olhos da mulher.

Mas eu não poderia agradar seu ego pessoal com mentiras e negar a
mim mesma.

— Não existe relacionamento, primeiro quero que você entenda isso.


— Usei um tom didático, calmo e compreensivo. — Não posso negar que
nossos encontros foram marcantes. O primeiro, em particular, foi muito
significativo, porque ele me salvou de um abuso sexual...

— Meu Deus! Sinto muito, Juliana — ela me interrompeu, trazendo sua


mão muito alva para cobrir a minha. — Se isso te incomoda, não precisa
falar.

— Não, tudo bem. Fiquei muito tempo na terapia. Nada sobre meu
passado, por mais impertinente que seja, não me define. Eu me preocupo em
como você vai receber o que tenho a dizer — continuei com o mesmo tom
didático e vi os olhos da mulher vacilarem confusos. — Conheci o Otávio no
iate do marido da Madalena, Roberto Venturelli.

— Betinho é filho de uma grande amiga. Que Deus a tenha. Ainda me


culpo por estar fora do país no dia do casamento dele. Eu devia isso a Edite
e já teria te conhecido antes. — Saboreou o café — Continue, querida.
— Otávio flertou comigo. Foi rápido, mas também fiquei interessada.
Bebemos juntos e apenas algumas doses foram suficientes para me deixar
tonta. Ele ficou preocupado, chamou duas madames para ficarem comigo
enquanto arranjava um bote para me levar à superfície. Eu disse que não
precisava de tanto, então ele foi buscar um café quente. — Respirei fundo,
vendo a mulher totalmente interessada na história, uma história triste que
também a magoaria. — Eu apaguei nesse meio tempo — continuei. —
Quando acordei as mulheres não estavam lá...

O celular da mulher tocou na mesa, afugentando minhas palavras.

— Desculpa. Eu preciso atender — ela me informou, firmando minha


mão sobre a mesa para deixar claro que ainda estava comigo, prestando
atenção em mim. — Oi, amor. Não, não estou em casa — falou ao telefone.
— Saí com uma amiga. Sim, seu pai viajou hoje cedo... Não filho, seu irmão
não quer. Não pense em procurar as crianças sem que ele autorize. Falo com
você mais tarde, amor. — Ela encerrou a ligação e pressionou o dedo no
telefone até desligar completamente.

— Tudo bem, Adriana? — perguntei, percebendo uma evidente


preocupação cobrir os traços de seu rosto bonito.

— Tudo sob controle — disse ela, enquanto tirava sua mão da minha.
— Otávio é gêmeo, mas não tem uma boa relação com o irmão. São bons
para mim e, ao mesmo tempo, movem o ponto mais fraco que carrego no
peito. Por favor, nunca se aproxime de João Paulo, meu outro filho. Você não
vai confundi-los na aparência. Hoje, Otávio é dois em relação ao biótipo
corporal do irmão. — A loira fungou o nariz e eu permaneci calada,
avaliando tudo. — É um alerta precoce, que pode assustar, mas já aconteceu
com a primeira mulher, e recentemente, a história se repetiu com a outra. A
mãe do bebê veio destruir a esperança que eu ainda tinha dentro de mim...
Desculpe, você pode continuar.

Adriana Parisotto ergueu o queixo e abriu uma bolsa que estava na


segunda cadeira. Com lenços nas mãos, ela enxugou as lágrimas, deixando-
me sem reação, sem saber se deveria tocar no que acabei de relatar como
sua fraqueza ou ocultar informações que não acrescentariam nada para mim.
Gusmão roncou no meu colo, esparramado de bruços. E eu olhei para
ele enquanto decidia entre sair sem olhar para trás ou fingir demência.

— Acho que você já entendeu que eu e seu filho, Otávio...

— Ainda estão se conhecendo. Entendi — a loira falou sobre minhas


palavras e me senti mal por ela ter optado por se iludir. — Ele tem um gênio
forte, mas garanto ser um bom homem. Caseiro, super responsável e um
excelente pai também.

A mulher estava quase implorando para que eu me envolvesse com seu


filho. O mais curioso era que ela não parecia ser desequilibrada. Eu só
podia pensar que algo não tão saudável estava por trás daquilo.

— Eu preciso sair agora, Adriana. Foi um prazer conhecê-la. —


Segurei o gato dorminhoco de uma forma confortável e me preparei para
levantar, fugir daquela família confusa.

Eu não precisava colocar mais problemas nas minhas costas.

— Fique um pouco mais — ela insistiu.

— Não posso, o gato está com fome. — Sacolejei o bichano para fazê-
lo miar. Ele nem mesmo se moveu.

— Então, saia comigo e as crianças esta tarde, Juliana.

— Dona Adriana...

— Você precisa conhecer meus netos. São inteligentes, lindos e


carentes de afeto materno. Vou tirar a tarde de folga para brincar com eles no
parque. Venha conosco.

— Eu conheci as crianças — contei.

— Conheceu? — perguntou ela retoricamente e foi fácil ver uma nova


centelha de esperança nos olhos da mulher.
— No casamento. Eu coloquei o pequeno para dormir. Ele me
confundiu com sua mãe. — Levantei-me com o gato nos braços.

— Tudo bem que você não tenha nada com meu filho, mas vamos sair
esta tarde com as crianças. — Ela também se levantou, sorrindo
esperançosa.

— Dona Adriana...

— Por favor...

O telefone tocou pela quinta vez na mesa do meu escritório, e o


pequeno monitor informou que o ramal era o mesmo, o da diretoria.

Já no meu limite, puxei o cabo com força da tomada, joguei o aparelho


longe e voltei os olhos para as planilhas, exibidas em várias janelas no
computador à minha frente.

Roberto, e todos lá, sabiam que eu odiava ser incomodado durante o


expediente, principalmente naquela época do ano, quando os inventários se
aproximavam e era preciso que todos os números batessem.

Seja o que for, ele vai esperar até que eu esteja disponível,
determinei, mas pouco mais de quarenta segundos, houve uma batida na porta
da sala, me fazendo praguejar enquanto tombava a calculadora científica na
mesa.
— Você está bem, amigo? — A voz cautelosa de Roberto veio do outro
lado da sala.

— O prédio está desabando? — perguntei indignado.


— Tudo no lugar aqui fora — o homem tatuado, que eu chamava de
melhor amigo e que por acaso era o CEO fundador da empresa, disse, com a
cabeça e parte do tronco na estreita abertura da porta. — É que o chá da
tarde da Isabela vai começar.

— Isso é sério, Roberto? — Levantei minhas mãos, mostrando minha


mesa de trabalho totalmente montada, os relatórios em papel contínuo ainda
saindo da impressora.

— É o chá da tarde de Isabela, Otávio — disse isso um pouco


ofendido, como se o evento fosse mais importante do que o fechamento das
contas de uma das maiores empresas brasileiras. — Largue tudo e venha.
Minha bebê perguntou por você — completou.

— Você deve estar brincando comigo! — resmunguei e relaxei minhas


costas na cadeira giratória. Eu estava tão tenso e ocupado nos últimos dias
que dores musculares me perseguiram implacavelmente. — Estou há uma
semana sem mastigar a comida do almoço, não pense que vou deixar tudo
para um chá da tarde, servido por uma criança de três anos.
— A criança de três anos é minha única filha. Se ela disser que este
porcelanato é grama, no dia seguinte ela vai chegar aqui e encontrar grama
no chão. Se ela exigir que meu CFO esteja presente no chá da tarde de suas
bonecas, ele levantará o rabo carrancudo da cadeira para se sentar no tapete.
Então venha antes que ela exija a presença das secretárias e tudo se torne um
caos aqui.

— Foda-se! Só vou ficar cinco minutos! — Levantei da cadeira e


tranquei meu computador.

— Não resmungue. Você largava o trabalho para trocar fraldas antes de


eu ouvir falar da Isabela. — Beto deu um tapinha nas minhas costas e me
empurrou para fora da sala.
— Você sabe que sua filha tem interagido com o Thiago, certo? —
Joguei a indireta na tentativa de desafiá-lo.

— Ela interage com todos. É comunicativa. Minha filha é uma líder


completa. Pare de conversa fiada.

— Thiago tem inteligência acima da média. Tenho certeza de que será


um grande líder, assim como a pequenina. Já pensou sobre essa parceria de
sucesso? Primeiro uma disputa implacável, depois o alinhamento das
afinidades... — Descontei meu cansaço na angústia do meu amigo.

— O que exatamente você está insinuando? Que me tornarei alguém


capaz de capar as bolas do seu filho quando ele se tornar um filho da mãe de
um metro e oitenta e olhar para a minha bebezinha?

— Quando ela tiver dezoito anos, você vai ser um velho com uma porra
de um novelo branco na cabeça e uma bengala na mão. Não poderá fazer
muita coisa — concluí, deixando-o de narinas infladas.

— Vou conversar com o Thiago na próxima vez que o encontrar. Não


vou dar moleza só porque é seu filho. — Beto alargou a gravata no percurso
e empurrou a porta de sua sala.

— Melhor não transformar em algo proibido. Quando sua filha fizer


dezoito anos, ela começará a questionar o motivo da intriga. Talvez isso
aconteça mais cedo. — Bati com as costas da mão em seu peito. — Só posso
te desejar boa sorte. É bom não ser pai de menina.

— Inferno! — exclamou Beto, pensativo, e entrei na sala,


abandonando-o com seus problemas futuros.

Em um canto da diretoria, uma pequena mesa rosa acomodava


recipientes de plástico com biscoitos coloridos. Em cada extremidade,
xícaras em formato de animal eram enchidas com o bule, que a criança de
vestido azul, servia.

— Otávio, você por aqui? — brincou José, enquanto dava um gole no


líquido de sua xícara de urso panda.
— Venha agola, gandaozinho... — a menina disparou, depositando o
bule sobre a mesinha. — Bocê... de uncórnio.

Ela apontou para o conjunto de xícara disponível e eu me juntei aos


meus dois amigos. Sentei-me no tapete, peguei a alça da pequena xícara em
forma de unicórnio na ponta dos dedos e dei uma sacolejada.
— Ê, boca de me dê![13] Sua filha separou a quantidade certa de
biscoito para cada um. — Zé deu um tapa na mão de Beto por roubar um
biscoito de seu pratinho de urso panda.

Definitivamente não me enquadrava no papel de pai de menina, com


toda sua delicadeza, cuidado especial e persuasão infantil.

— Ah, Otávio, recebi uma ligação importante mais cedo — disse Beto
enquanto eu saboreava o chá com gosto de camomila. — Era a tia Adriana
querendo o contato da nora.
A informação inesperada chegou aos meus ouvidos e o líquido que
estava na minha boca foi expelido, molhando parte da mesa, até o Zé, que me
xingou de boca cheia.

— Merda! — Larguei a xícara sobre a mesa e a menininha veio com um


guardanapo, limpando minha camisa e reclamando da sujeira.

— Segundo ela, a nora é a amiga de Madalena. Antigamente nós


tínhamos moral para saber das coisas por sua boca. — Roberto mordeu um
biscoito e sorriu daquele jeito presunçoso.

— Escondendo o jogo dos amigos, salafrário? — Zé questionou


enquanto puxava o prato de biscoitos que a menina havia reservado para
mim.

— Minha mãe está fazendo confusão. — Levantei-me, meus dedos


puxando os cabelos do couro cabeludo. — Ela nunca se importou com meus
casos.
— Então você está de caso? — Beto seguiu questionando.

— Que caso, Roberto? É tudo um mal-entendido.


— Elas vão se encontrar em algum lugar hoje.

— Confusão do caramba! O que deu nela? — indaguei, surpreendido


por minha mãe estar se importando, envergonhado por ter colocado a mulher
naquela confusão. — Ela disse para onde estavam indo?

— Só que pegariam as crianças — informou Roberto.

— Vou sair. — Olhei para o Rolex no meu pulso que marcava 15h40.
— Não volto mais hoje.
Inclinei-me para beijar o cabelo da menininha e corri para fora da sala,
deixando-a tagarelando e exigindo que eu voltasse para a mesa.

Saí pelo corredor central, afrouxando minha gravata.

Meus passos longos e firmes fizeram as secretárias saírem do meu


caminho com gritos de medo. Motivadas por uma maldita fama de carrasco
que se espalhou pela empresa sem que eu soubesse a origem, elas mal me
cumprimentavam e sempre gaguejavam quando eu precisava que elas
providenciassem algo a respeito do trabalho.

Com a mente acelerada, invadi meu escritório apenas para pegar a


mochila com meus pertences e desligar a impressora.

Tranquei a porta e saí com o telefone no ouvido. Não consegui entrar


em contato com minha mãe, como imaginei. Ela desligava o celular nas raras
ocasiões em que se permitia fazer uma pausa do trabalho.

— Thiago! — gritei quando meu filho atendeu o celular. — Onde vocês


estão? Sua avó está aí?
— Minha avó nos buscou e encontramos Juliana aqui no parque perto
de casa.

Por que isso agora, mãe?, indaguei em pensamento.


Entrei no elevador e expulsei o estagiário que tentou fazer o mesmo.

— Sua avó está falando com ela, filho? — Selecionei o térreo no painel
e encostei minhas costas na parede de aço.

— Elas estão rindo juntas. Minha avó também gostou dela. Só falta
você aqui.

— Vou pegar vocês — declarei enquanto pressionava meu polegar e


indicador contra os olhos, pensando na melhor maneira de resolver aquela
situação. — E Noah?

— Ele já atacou os peitos da Juliana três vezes. O bebê está grandinho,


pai. O senhor precisa tirar isso dele.

— Eu vou conversar com seu irmão, filho. Estou desligando aqui.


Espere por mim. Onde estão exatamente?

— Aqui, perto da ciclovia.


— Os seguranças estão aí?

— Minha avó disse a eles para ficarem por perto. Ela nunca vem, pai, e
agora ela está aqui — meu filho falou empolgado e avaliei a repercussão
daquele encontro para o psicológico de Juliana.

— Tchau, pai.

— Já chego aí, filho.

Guardei o aparelho e esperei a porta do elevador abrir antes de me


dirigir apressadamente para o estacionamento interno, onde estava minha
picape.
Se dona Adriana não tivesse comentado sobre Juliana em casa, ainda
era possível reverter a situação. O constrangimento com a confusão era o
menor dos problemas. Aquela mulher sofreu quando se aproximou de mim no
passado, era minha responsabilidade protegê-la do que estava por vir.
Em um ponto estratégico do Parque do Ibirapuera, ainda dentro da
minha caminhonete, vi os meninos se divertindo com as duas mulheres e não
pude deixar de reconhecer que, embora eu estivesse presente em
absolutamente tudo em suas vidas, pela ordem natural das coisas, eles
sentiam falta de calor materno.

Sorrindo em sua pequena bicicleta, meu primogênito dava voltas na


frente de um banco de cimento onde as duas mulheres descansavam. Minha
mãe com Noah sentado no colo, Juliana brincando de comer os pezinhos
dele, fazendo-o rir.

A pequena mulher me atraiu desde o início. Agora, além do desejo


inegável, sua sensibilidade maternal me impressionava e seus pequenos
detalhes encantavam as crianças a ponto de fazê-las se sentirem seguras em
sua companhia.
Querer o bem dos meus filhos era um requisito que preenchia o vazio
dos meus olhos e eu já estava considerando oferecer um bom salário para tê-
la sempre interagindo com eles. Tudo indicava que ela tinha pouco dinheiro
na conta e não hesitaria em aceitar minha proposta.

Dona Adriana me ajudava a suprir esse papel, mas devido à demanda


de trabalho, ela raramente aparecia. Os meninos que viviam lá nos almoços
semanais, Thiago até a acompanhava em algumas viagens de negócios, mas
quando percebi que João Paulo estava aproveitando aquele espaço para
jogar o menino contra mim, interrompi as visitas imediatamente.

Ele nasceu com a cabeça sã, desde cedo foi amado pela família, teve o
reconhecimento de quem nunca me atrevi a querer e ainda tentava reter o que
me pertencia. Mesmo meus filhos, ele tentou usurpar.

Depois da frustração de nunca ter Danielle, sua maior raiva era não
poder provar que Noah era seu filho.

Meu filho. Nada poderia provar o contrário, pois tínhamos a mesma


carga genética e eu era casado com a traidora na época em que o bebê foi
gerado.

Aceitei o cruel desafio de conviver na dúvida, mas nunca, em hipótese


alguma, pensei em desistir de meu filho.

Tailana alegou que o bebê era meu, mas sua palavra não valia nada, era
puro interesse. Se ela ousasse beneficiar o amante perante um juiz, perderia
os pequenos benefícios garantidos no maldito contrato pré-nupcial, pois era
necessário revelar sua infidelidade. Ela era estúpida, mas temia voltar à
miséria.

No início do ano passado, depois que minha mãe precisou correr para o
hospital com uma súbita inflamação no pâncreas e ficou dias na UTI, João
Paulo veio propor uma trégua. Isso tinha que acontecer naquele momento e
eu me vi engolindo toda a minha dor por ela.

A falsa paz ruiu quando percebi que Taila se preparava para apunhalar
minhas costas e esperei ver o quão longe eles iriam para dar um pouco mais
do que João Paulo merecia. Aqueles dois me fizeram experimentar um grau
de fúria da qual não estava disposto a me lembrar.

Afastando os pensamentos destrutivos, saí da caminhonete e caminhei


em direção aos meus filhos. Ainda no caminho, Thiago me viu e acenou.
Olhei para os dois lados e quando voltei para eles, Juliana não estava mais
ali no banco de cimento. Ela tinha patins em seus pés, algodão doce na mão e
estava deslizando sobre rodas. Na minha direção, com uma roupa esportiva
favorecendo todas as curvas do corpo.
Sentindo uma gota de suor psicológico escorrer pela minha nuca e um
resfriado constrangedor comer meu estômago, fui forçado a desacelerar e
meus olhos vacilaram em busca de uma saída menos embaraçosa.

— Nem mais um passo — ela disse, trazendo o algodão doce para meu
peito, como se fosse uma espada.

— Foi um mal-entendido — expliquei antecipadamente, vendo-a me


encarar com um pouco de raiva e depois começar a se virar, patinando sem
desviar o olhar, como se fosse um falcão flutuando sobre as rodas, um falcão
de meio metro. — Você vai ficar tonta. — Me virei, mas ela já estava nas
minhas costas. — Para com isso. — Verifiquei o perímetro, lotado de gente
desocupada e vendedores ambulantes.

Maldita mania louca que a nanica tinha de reduzir minha idade.

— Você vai ter que me dar algo valioso. — Ela parou na minha frente,
deu um passo ruim e agarrou minha gravata, se não fosse por isso ela teria
caído no chão. — Trabalha sempre assim? — indagou, demonstrando uma
boa dose de presunção, seus olhos escorregando sobre a camisa social que
cobria meu peito. — Nada mal.

— Mencionou as merdas de João Paulo? — emendei a pergunta,


segurando-a pela cintura, tão perto que o cheiro de fruta que emanava de
seus cabelos me impregnou.

— Não — respondeu, entortando a boca com feição de desgosto. —


Sua mãe me pediu para ficar longe dele. Pelo que entendi, ele está com a
mãe do bebê, né? — Abocanhou uma quantidade generosa do algodão-doce.
— Ela acha que vocês vão entrar em conflito... Me disputar. Algo assim. Eu
não contei, talvez outro dia. Eu gosto dela.

— Você não precisa se envolver nas histórias bizarras da minha


família, Juliana.
— Achei que tivesse intimidade, já que fui colocada como nora de sua
mãe. — Ela esfregou o algodão-doce na minha boca e eu virei o rosto. — O
que, você não gosta de um docinho? Prefere chupar limão azedo? Bem sua
cara.

Esfregou o doce novamente, me perturbando de uma forma que eu não


estava acostumado. Quase soltei uma frase obscena.

— Tenho uma proposta de trabalho para... Inferno, quer parar de


esfregar essa merda em mim? — Meu tom saiu áspero.

Me esquivei e tudo que a garota fez foi pegar um pedaço do maldito


doce e esfregar na minha boca, me fazendo engolir contra a vontade.

— Não grita comigo não, bebê. Nunca te dei ousadia para isso. —
Segurou meu maxilar e deslizou os dedos nos pelos curtos da minha barba.
— Ficou um pouquinho de açúcar aqui.

Droga, eu precisava esfriar meu sangue com um bom sexo selvagem.

— Sobre o que mais conversaram? — perguntei enquanto ela mexia na


minha barba.

A minha mãe sempre foi cautelosa, mas diante dos últimos


acontecimentos, era bom estar seguro. Eu não queria assustar a pequena.

— Vários e vários detalhes sórdidos — sussurrou e fui obrigado a rir


da mentira. — Não vou fazer drama, mas quero algo valioso para compensar
essa confusão toda.

— Quero conversar um assunto com você — falei sério e a mulher


tentou me fazer comer mais um punhado de algodão doce, obrigando-me a
segurar firme em seu punho. — Nossa história limita meus passos, mas
acredito que você saiba que não está lidando com um moleque, então
considere isso antes de provocar.

— Não é porque você vive carrancudo que sou obrigado a ser — ela
murmurou, enquanto puxava minha gravata sutilmente, fazendo meu pescoço
cair sobre seu tamanho. — Você errou quando me envolveu nessa situação.
Agora sua mãe não para de me chamar de nora. E o bebê, que já me chamava
de mãe, acredita fielmente que tenho leite nas tetas. Eu deveria estar virada
no setenta com você, disgramado!

— Foi um terrível engano. Por tudo o que aconteceu, eu nunca me


envolveria com você — precisei revelar.

Ela agarrou minha gravata com mais firmeza, só para ganhar impulso e
empurrar meu peito.

— Me deve algo e vai pagar — insistiu naquilo e comeu o algodão-


doce. Exalando sua fúria inofensiva, continuou: — Em seus círculos
financeiros deve ter muitos homens de meia-idade, montados no dinheiro e
interessados em cuidar de jovens atraentes e inteligentes. — Suspirou como
se estivesse exausta e eu rosnei em desaprovação. — Me consiga um Sugar
Daddy. Depois de pagar sua dívida, seguiremos por caminhos opostos.

— Sugar fodido daddy é o caralho! — exclamei com um riso indignado,


consertando minha gravata que a essa altura estava toda torta.

— Vai dar calundu, agora? Você me deve e vai pagar com um daddy,
amigo seu, de preferência que saiba sorrir alegremente.

Uma porra!

— Quero você trabalhando para mim, na minha casa, brincando com os


meninos e colocando Noah para dormir sempre que necessário... — Calei-
me quando um riso desaforado escapou dos lábios dela. — Vá para casa,
pense sobre isso e me procure. Ofereço um bom salário.
— Seus filhos precisam de uma mãe, não de outra babá — ela rebateu,
e eu afrouxei a gravata em volta do pescoço, pensando em uma forma mais
direta de esclarecer a súbita proposta.

— Sim, é exatamente disso que eles precisam, de uma mãe. Você de


dinheiro.

— Oxe, se saia... — Ela recuou, os olhos um pouco assustados


enquanto a proposta se dissolvia. — Estou cansada, precisando descansar.
Quero um daddy, não virar mommy. Se você não vai conseguir os contatos, o
marido de Madalena faz isso por mim.

Inferno!

— Prefere se prostituir?

— Vai se ferrar! — Me mostrou o dedo do meio.

— Desculpe, não foi isso que eu quis dizer. Eu te ajudo e você me


ajuda com as crianças. É isso. Faço um contrato — propus sem me importar
com as consequências. — E você não terá que se enfiar na minha cama.

— Não fica bravo com ela, pai. Por favor.

Ouvi a voz do meu filho e dei um passo para longe da mulher. Thiago
estava ali na nossa frente, com um olhar cauteloso, um pé no pedal da
pequena bicicleta e o outro apoiado no chão em busca do equilíbrio

— Não estamos brigando, filho. — Aproximei-me dele para acalmá-lo.


— Você já brincou, agora vamos para casa.

— A Ju deu uma volta completa na ciclovia comigo. Ela pode lanchar


lá em casa agora?

— Pa... Pa... Pa... — Levantei os olhos ao ouvir o doce som e vi meu


bebê chegando no colo da minha mãe, com os braços estendidos na minha
direção.

— Ju! — Thiago gritou e me virei para ver a mulher se afastando.


O bebê também viu. Seus pequenos lábios tremeram e não demorou
muito para ele chorar, magoado pela emoção da ausência.

— Calma, filho. — Eu o coloquei em meus braços. — Papai vai trazê-


la para você. Apenas seja paciente.

— O que aconteceu, Otávio? — perguntou minha mãe e eu ignorei a


pergunta. — Por que ela saiu assim?

— O que aconteceu com você, mãe? — Alisei minha mão nas costas do
bebê e beijei sua cabeça, mas ele continuou se jogando, sua mãozinha
abrindo e fechando e o choro contínuo intensificando. — Por que fez isso?
Nunca se importou com isso.

— Você precisa de uma mulher e essas crianças de uma boa mãe.


Conversaremos mais tarde. Juliana está voltando — ela avisou e me virei
para ver a pequena deslizando lentamente em nossa direção.

— Bebezinho escandaloso, ouvi seus gritos do outro lado da rua, pare


com isso. Já estou aqui — Juliana murmurou em tom infantil e o bebê se
jogou em seu colo. — Eu também tenho uma vida e um gato inquilino para
alimentar — continuou ela, já com o bebê no peito, meu filho soluçando
depois de tanto chorar.

— O aniversário de Noah é na próxima sexta-feira — fui rápido —,


será uma festa intimista. Só os funcionários, alguns amigos e minha mãe...

— Eu... — Dona Adriana levantou a mão.

— Você já vai fazer um ano, pacotinho?! — Juliana exclamou


enfatizando um susto e Noah arqueou o canto do lábio antes de soluçar e
esfregar o rosto na arredondada carne dos seios femininos.
Ele estava fazendo um excelente progresso.

— Sua amiga, a mulher de Beto, vai. — Tentei reter um pouco daquela


atenção.

— Está me convidando? — Juliana olhou para mim.


— Sim, ele está — minha mãe se intrometeu, toda animada.

— Não posso comprar um presente tão caro para você, menininho... —


Juliana continuou interagindo com aquele tom de voz que Noah achava
perfeito.
— Ele não precisa de nada. Só vai. Meu filho gosta de você.

— Claro que não precisa de nada, o pai é herdeiro da Pinhos Parisotto


e tem um carro igual ao do Neymar — ela rebateu.

— Sou herdeiro do meu trabalho.

— E da Parisotto também... — dona Adriana acrescentou ao nosso


lado.

Eu realmente não entendia o que estava acontecendo com minha mãe.

— Ela pode ficar em nossa casa agora e esperar até sexta-feira, pai?
Por favor — Thiago sussurrou ao meu lado, discreto o suficiente para fazer
Juliana ouvir e arregalar os olhos com uma evidente recusa dentro deles.

— Você não vai dormir agora, neném, vai chorar, mas eu tenho que ir,
amor. — Juliana tentou afastá-lo, mas Noah enfiou as mãos nas roupas dela e
as pernas ficaram presas na circunferência das costelas. — Noah, pequenino,
por favor.
— Eu fico com ele. — Dona Adriana foi com jeito. O bebê olhou para
ela, sorriu e não se importou em mudar de colo. — Vovó vai cuidar de você
para o papai namorar.

E assim se afastou com o neto, disfarçando para que ele não visse a
saída de Juliana.

— Pense na proposta e me dê uma resposta. — Peguei o braço de


Juliana antes que ela me deixasse.

— Não vê o sentimento dos seus filhos? Eu não posso me


responsabilizar com isso. — Ela olhou para Thiago, que espiava tudo de
perto. — Preciso ir.

— Vamos conversar com calma. É apenas um trabalho. Você precisa


ver dessa forma — insisti.
— Não posso. Envolve o sentimento deles. Os meus. O plano era ficar
longe... Você sabe de quem.

— Ele não entra na minha casa. Eu assumo a responsabilidade de


protegê-la. Podemos sair hoje e conversar melhor sobre a proposta.

— Já estava planejando isso. Então você mandou sua mãe trabalhar no


meu psicológico — afirmou ela.

— Não. Acabei de pensar.

— Adeus, Otávio. Eu não posso comercializar um sentimento tão puro,


que não me pertence. Não me sinto capaz. — Ela foi até Thiago, beijou o
rosto do meu filho, depois fugiu de mim sem olhar para trás.

— Você fez tudo errado... Tudo errado! — Thiago reclamou com a voz
embargada e pedalou até onde estava sua avó.
Fiquei dois dias sem sair de casa, cuidando das minhas coisas,
limpando o apartamento, organizando e otimizando meu perfil do Instagram.

Consegui uma parceria com a marca curly[14], da Venturelli, e gravaria


meu primeiro conteúdo na semana seguinte, então precisava garantir um bom
engajamento do perfil para não falhar no primeiro patrocínio.

Embora eu tivesse garantido o pagamento das últimas parcelas do


apartamento, as coisas não iam bem para o meu lado. Eu não era famosa,
tampouco agenciada, o que fez com que as marcas ignorassem meus e-mails.

Lutar sozinha pela sobrevivência no ambiente digital era uma tarefa


muito difícil. Mas para manter meu nome limpo e minha barriga cheia, eu
precisava continuar tentando.
Foi muito fácil pensar em aceitar a proposta enviesada de Otávio
Parisotto. Mas colocar os prós e os contras em uma escala me fez voltar
atrás. Os olhos melancólicos do bebê e o desespero afetuoso do menino mais
velho eram de partir o coração.

Eles precisavam de calor permanente e do verdadeiro afeto de uma


mãe, sentimentos que eu não tinha para oferecer, nem achava certo
comercializar. Aos 25, meus sonhos eram outros. Estudar, por exemplo.
Queria muito ter tempo e dinheiro para estudar Marketing e Administração.
Cursos que me proporcionariam oportunidades, nos mais diversos caminhos.

O mais sensato era evitar os pequenos para não criar expectativas em


seus corações necessitados. Até mesmo evitar o pai deles, porque minha
intuição dizia que o homem não era 100% equilibrado, e de problema
bastava os meus.

Naquela tarde de quinta-feira, fui ao supermercado mais próximo e


comprei algumas sementes e materiais de jardinagem com a ideia de plantar
grama comestível para meu amigo inquilino. Ele amou o passeio de carro.
Quando chegamos fui direto para a área do fundo, onde me sentei no chão
para facilitar o manuseio da tarefa.

Usei um filtro de papel úmido para armazenar as sementes de linhaça e


os grãos de trigo. Em dois dias, elas estariam germinadas e prontas para
serem transferidas para os vasos de terra. Eu estava realmente me apegando
ao gato e me adaptando à sua rotina metódica.

À noite, Madalena me convidou para jantar com a família dela, e para


variar, o Gusmão foi comigo no carro. Ele estava todo assanhado, entrou na
cobertura da minha amiga e desapareceu. Depois do jantar, Belinha o
encontrou rondando o poleiro de Penélope e, com uma série de repreensões
infantis, trouxe-o de volta para a sala. Eles brincaram com um trem elétrico
ali. Minha afilhada soltando aquelas risadas gostosas a cada salto que
Gusmão dava na velocidade do brinquedo.

— ... você não queria fazer mais nada na vida. Madalena, por que você
é assim, hein? — Tomei um gole do meu chá e minha amiga bufou entre as
bochechas, quase se engasgando com a bebida quente, sustentando a pose
elegante que tinha desde a infância e só se destacou ainda mais com os
treinamentos de sua primeira profissão na aviação. — Acho que aquele
bichão de borracha foi o meu presente de aniversário que você mais gostou.

— Fala baixo, Roberto tem ouvido biônico e vai ouvir essa besteira. —
Ela enxugou o líquido que escorria pelo queixo e deu outro gole no chá. —
Esqueça isso. Sou uma mãe de família agora.

— Você é safada, Madalena. — Mergulhei um biscoito no líquido


quente da xícara e comi. — E quando economizamos dinheiro para fazer um
curso on-line de ginástica íntima? Zuleide descobriu e quebrou uma vassoura
na minha cabeça, aquela égua. Foi minha única noite na prisão, mas dormi
com gosto. Até tomei café com o delegado, tu lembra? Madalena, você só
chorava na recepção.

— Nós vivemos tantos momentos bons, trágicos e vergonhosos. —


Madalena se emocionou entre o riso. — E aprendemos um pouquinho com
todos eles.

Essa era a minha melhor amiga, Madalena Bianca. Altruísta, linda como
uma pintura feita a mão e safada. A safada mais chorona que já conheci.

— Ah, não, docinho. Melhor mudar de assunto antes que você inunde
sua cobertura duplex. Vamos falar de negócios — sugeri para acabar com o
chororô. — Você acha que seu marido pode me conseguir
um daddy bilionário?
— O quê? — Madalena deixou a xícara na mesinha de centro. — Logo
você que tem pavor de relacionamentos, Ana. Por que isso agora?

— Desemprego, conta bancária no vermelho, cartão de crédito


vencendo... E assim por diante.

— Não, Ana! Eu vou te ajudar. Esqueça isso.


Minha amiga se ofereceu sem pestanejar. Mas uma de nossas maiores
afinidades era a dignidade, e eu possuía total ciência de que não tinha idade
para depender dela.

— Você já me ajudou muito nessa vida, Madá. Sem você, já teria


morrido de fome nos becos de Valença. Mas hoje tenho 25, amor, preciso
continuar crescendo. Um dia poderei surfar as ondas do sucesso, e algo me
diz que agora será mais fácil se um bom daddy valorizar minha companhia.

— Amiga, você tem pavor de regras e submissão. Nunca namorou na


vida, Ana. Esses contratos são exigentes e o principal requisito é a lealdade
sem liberdade.

— Eu sei, Madá. Mas preciso renunciar à liberdade por um tempo. —


Com o bule na mão, coloquei mais chá na xícara. Eu já estava meio
resignada com aquela decisão que saiu de uma provocação. — Você
conseguiu um bilionário devoto e agora está aí, toda feliz, com esses lindos
olhos brilhando. — Tomei um gole do líquido quente. — Eu só não quero me
casar, estou fora disso. Um contrato de dois anos é suficiente. Exigirei que o
bom velhinho pague a minha faculdade. Não vou abandonar meus sonhos.

— Posso me sentar com vocês? — Roberto Venturelli apareceu na sala,


vestido com seu suéter vermelho do superpai, idêntico ao que Belinha usava
naquela noite.

— Sinta-se à vontade e já me faça um favor. — Olhei para Madá e


tomei mais um gole do chá. — Preciso do contato de seus amigos bilionários
e disponíveis, que estejam dispostos a bancar uma sugar baby tímida,
educada e quase virgem.

Madalena lutou contra o riso e transferi para ela meu olhar de


reprovação. A safada não estava me levando a sério.

— Bilionário e solteiro, só Otávio — respondeu o homem, pegando a


mão da mulher e deixando beijos nas costas e no pulso. — Você já parou
para pensar que começamos essa história juntos e que seria diferente se não
houvesse tantos desencontros?
— Não, nunca pensei sobre isso e estou fora de qualquer conclusão —
respondi imediatamente, bebendo o chá de um só gole.

— Posso saber o motivo da aversão? — ele perguntou, estreitando os


olhos e acentuando três linhas de expressão em direção à sua têmpora. —
Não foi Otávio quem te machucou naquele iate.

— Seu amigo é um brucutu e tenho minhas dúvidas sobre a sanidade


dele — expliquei e o homem olhou para mim com tanta análise que minha
risada relaxada minguou. — O quê? — Olhei para Madalena e encontrei
olhos curiosos voltados para o marido.

— Vocês estão interagindo com frequência? — indagou Roberto. — Na


segunda-feira você saiu com a mãe dele, certo?

— Sim — respondi. — Ela entendeu uma história completamente


errada, queria me conhecer e eu fui, porque admiro a história dela.
Consertamos o mal-entendido e cada uma foi para sua casa. Qual é o
problema? O que eu disse para me olhar assim?

— Se não estão envolvidos, não há razão para termos essa conversa. —


Foi tudo o que o homem respondeu antes de se levantar, ir até o armário de
bebidas e ficar lá.

— Às vezes acho que ele é um pouco arrogante — revelei e Madá


balançou o rosto antes de se levantar para se sentar ao meu lado.

— Sim, ele é todo presunçoso, mas é o presunçoso mais perfeito que já


conheci — a dedicada esposa me retificou enquanto observávamos os
movimentos do homem poderoso em um fofo suéter preparando sua bebida
alcoólica.

— Você entendeu o que aconteceu aqui? Eu menti sobre o lobisomem


ser um brucutu?

— Eles são muito apegados, Ana. Amigos de infância. E meu marido o


defende fortemente — Madalena sussurrou perto do meu ouvido e jogou a
cabeça na direção do homem. — Roberto me contou que o Otávio nasceu
com o cordão umbilical preso ao pescoço do irmão, sufocando-o. Por isso,
alguns parentes próximos chamam o lobisomem de gêmeo maligno. Eles o
julgaram desde o nascimento. Uma crueldade sem tamanho.

As palavras escaparam da boca da minha amiga e o efeito delas


aumentou minha frequência cardíaca. Recriei a cena dos bebês e pensei nos
homens que eles se tornaram.

Um estava em meus pesadelos, o outro frequentava meus sonhos mais


vívidos. Otávio Parisotto não sorria e estava sempre estressado, mas nunca
foi maldoso comigo. Se ele não tivesse agido quando precisei, eu teria
sofrido graves consequências nas mãos de seu irmão.

— Amaldiçoaram um e caiu sobre o outro? Que família é essa? —


consegui dizer enquanto as coisas começaram finalmente a fazer algum
sentido. — Eu acredito no poder das palavras. Uma criança não deve ser
amaldiçoada dessa maneira, nem por uma brincadeira infeliz.

— Penso da mesma forma, Ana. Meu estômago revirou quando ouvi


essa história. Você lembra que minha mãe amaldiçoava minha Belinha?
Quando Roberto me contou, só consegui pensar nisso. Que os céus continuem
protegendo a minha princesa.

— Zuleide é um caso perdido. A maldição dela era sobre você sofrer


com a Belinha tudo o que tinha feito com ela. E Deus sabe que aquela égua
traiçoeira só teve o seu amor — murmurei com o olhar distante. — A
maldição se tornou uma bênção. Belinha veio carinhosa e apaixonada por
você — acrescentei, e naquele momento o marido de Madá voltou com um
copo, do que parecia ser uísque, nas mãos.

— Se vocês puderem não tocar no nome dessa senhora, ficarei


satisfeito — disse ele, evidentemente chateado, e Madalena olhou para
baixo.

A mãe dela era uma das mulheres mais tóxicas que eu conhecia, mas
Madá tinha o coração bondoso demais para lidar com isso.
— Adriana Parisotto deixou escapar sobre as mulheres que seu amigo
teve e até me disse para ficar longe do agressor que ela chama de filho —
recuperei o assunto, pois fiquei comovida com o relato de Madá.

— Danielle, a mãe de Thiago, foi o grande amor do Otávio — Roberto


relatou. — Um dos poucos amores verdadeiros que pude testemunhar. Meu
amigo ficou completamente destruído quando ela faleceu. Ele viveu o luto
por três anos, até que encontrou você naquele iate e sentiu a chama
novamente. Eu acredito que você entende de que chama estamos falando.

— Se eu tivesse escolha, preferiria que aquele encontro nunca tivesse


existido — falei a verdade com um gosto amargo na boca.

— Depois da festa no iate, Otávio fez mais uma pausa sozinho...

— Pausa, pausa... de mulher? Esse homem é do planeta terra? —


interrompi, arqueando uma sobrancelha. Minha curiosidade falou mais alto.

— É homem, amiga. A pausa deles significa fazer cachorrada sem


compromisso — Madalena acrescentou e o marido limpou um falso pigarro.
— Outro dia, descobri que esse fulano aqui estava levando o amigo para
orgias. Muito pouco antes de descobrir a Belinha. Faça as contas.
— Ele ficou em pausa... — Roberto pigarreou novamente e eu estreitei
os olhos. — Até que o capital humano da Venturelli contratou uma nova
secretária e ela despertou o interesse dele. Tailana, a mãe do bebê, trabalhou
exatamente três meses antes do meu amigo levá-la para sua caverna.

— E a mãe do bebê o traiu com o outro, né? — perguntei olhando para


a Madalena, ela também queria saber mais sobre isso.

— Sim. Otávio só não matou o irmão de uma vez, porque tia Adriana
entrou na frente e implorou. Foi uma verdadeira tragédia que nem vale a
pena lembrar. João Paulo passou dias em coma induzido para evitar maiores
danos ao cérebro.
Misericórdia!
Senti um tremor correr pela minha espinha e rasgar todos os poros do
meu corpo.

— Tudo porque a maldição cruel os pegou. — Mostrei meus braços


arrepiados para Madalena e tirei minhas próprias conclusões, sentindo
ondas angustiantes revirarem meu estômago e atingirem minha garganta.

— Nesse caso, acredito na ciência, mas respeito suas crenças e


intuições. — O homem tragou a bebida e largou o copo na mesinha. — Quer
ouvir outra história?

— Vá em frente — encorajei-o.

Apavorei-me com a cena violenta projetada em minha mente, mas


desejei saber um pouco mais sobre aquele assunto que minutos atrás não
fazia o menor sentido na minha cabeça.
Entrelacei os dedos com os de Madalena e preparei-me para ouvir o
que o homem à nossa frente tinha a dizer.

Meu Deus, eu não deveria estar tão curiosa. Era uma história triste
que não me pertencia e me assustava.

— Preciso de mais chá — disse Madalena, liberando minha mão para


reabastecer nossas xícaras —, continue, amor. — Ela voltou para o meu lado
e recebi o líquido quente e delicioso que já estava me deixando mole.

Cruzando uma perna sobre a outra, Roberto Venturelli deu início ao


assunto da maneira mais inusitada, fazendo-me lembrar dos fragmentos de
seus cursos caríssimos que o algoritmo do instagram me oferecia quando ele
ainda era um Líder Coach atuante:
— Em maio de 1962, a Marvel Comics[15] lançou um de seus
personagens mais visivelmente reconhecíveis. Um super-herói sem poderes
e cuja força sobre-humana era sua maior fraqueza. — Roberto hesitou por
um momento, como se refletisse se deveria expor a informação.

Julguei o quão sério poderia ser.

— Continue, por favor. Já vi muita coisa nesta vida, meu estômago se


contorce, meu cabelo arrepia, mas eu aguento — reiterei, segurando um
sorriso assustado.

O homem acenou com a cabeça e continuou, no mesmo tom instrutivo,


olhando para mim, estudando minhas reações:

— Na história original, o Dr. Robert Bruce Banner, foi atingido por


radiação eletromagnética de alta frequência ao salvar um adolescente
durante o teste militar de uma bomba que ele desenvolveu. Desde então, o
cientista foi condenado a dividir a vida com seu alter ego sombrio, que
aparecia de repente, era selvagem e destruía tudo ao seu redor... — Naquele
momento, um trovão rompeu os céus, fazendo o homem olhar para a cortina
aberta do outro lado da sala. Em meio a outro trovão, ele continuou: — A
fera cinza, que só ficou verde por causa de uma falha na impressão da
primeira revista, foi a responsável pela popularização de um distúrbio que
atinge uma pequena massa da população mundial: o Transtorno Explosivo
Intermitente ou Síndrome de Hulk. Você já ouviu falar, tem algum
entendimento sobre o assunto? — ele perguntou com cautela, fixo em mim.

— Não... — murmurei confusa, suando frio, ainda absorvendo a


informação. — Seu amigo é assim?

— Otávio apresentou os sintomas na infância, mas devido à


complexidade, só identificaram a TEI na adolescência, quando ele iniciou o
tratamento e optou por fazer isso no isolamento. Literalmente se afastou do
mundo. Aos dezoito anos, já morava sozinho e tinha alguns funcionários
escolhidos a dedo. Na faculdade não fez amigos, não frequentava eventos
familiares, não viajava para passear, namorava a mesma mulher com quem
se casou cedo e era o sol que o iluminava... Ele se ajustou para não
alimentar a fera, e aqueles que o amavam e estavam dispostos a lidar com
suas peculiaridades, adaptaram-se às suas escolhas.

Roberto fez uma pausa, então fechei os olhos por alguns segundos e
pensei nas crianças.

— Ele...

— Ele... — interrompi o homem. — Desculpa, você pode continuar.

— Tudo bem, pergunte. — O tatuado levantou as mangas do suéter até o


cotovelo e relaxou no sofá.

Olhei para minha amiga e encontrei seus dois grandes olhos azuis. Ela
estava tão abalada quanto eu. Certamente pensando nas crianças.

Lembrei que interagi tão pouco com Thiago e ele sempre foi atencioso,
silenciosamente clamando por carinho, ao contrário do bebê que chorava
para estar em meus braços.

Cristo! Os olhos de Tiago carregavam ternura, mas sim, já tinha visto lá


dentro sentimentos semelhantes aos que vi no pai dele.

— Não há cura? — perguntei e senti a mão de Madalena apertar a


minha. — Seu amigo vai viver com isso para sempre?

— A TEI é diagnosticada aos 6 anos, atinge o pico aos 30 e declina aos


50.

— Então, ele está enfrentando o auge da doença agora — fiz uma rápida
reflexão.

— Depois de tantos anos usando medicamentos e associando-os às


terapias cognitivo-comportamentais, embora não consiga prever ou controlar
as crises, Otávio conhece os principais gatilhos que alimentam a fera e faz
de tudo para evitá-los. Assim como o personagem Hulk, o portador dessa
síndrome não tem prazer, nem vê glória em sua agressão, e quando a fera
dorme, a culpa, a amargura e o desprezo são seus maiores companheiros.
Tenho o Otávio como irmão, Juliana. Respeito o homem que ele se tornou.
Você entendeu o que eu acabei de dizer? Entende que ele não faz mal às
pessoas, que é um homem impetuoso, mas carrega sérias justificativas e se
pudesse, seria diferente?

— Eu entendo, Roberto. Isso explica e justifica muito. Também não


consigo parar de pensar nos meninos. É genético? As crianças vão
desenvolver? — emendei as perguntas, com meu coração já pequenininho no
peito.

— Alguns estudos indicam que pode ser hereditário, mas o transtorno


não existia na família dos pais de Otávio — esclareceu Roberto. — Estudos
também indicam causas fisiológicas, quando há disfunção na captação da
serotonina, uma das substâncias que fazem a comunicação entre os neurônios
e está diretamente envolvida no processo das emoções. A hipótese em torno
da família é que tia Adriana adquiriu toxoplasmose e encerrou o tratamento
ao descobrir a gravidez dos gêmeos e isso foi o motivo da disfunção.

— E o pequeno Thiago? — liberei minha aflita pergunta.

— Thiago é monitorado desde os seis anos, mas nunca apresentou


características da síndrome — Roberto disse, percebendo meu grau de
angústia.

Soltei um longo suspiro de alívio. Eu não deveria estar tão preocupada,


e tão envolvida com aqueles dois pequeninos, no entanto, meu coração
estava doendo.

— E o irmão gêmeo ordinário? — foi a vez de Madalena perguntar.

— João Paulo veio com desvio de caráter... — Roberto respondeu,


enquanto olhava na direção do corredor que levava aos quartos. — Só um
minuto! — Ele se levantou de repente e correu naquela direção.

Só então ouvi três gritos agudos de Belinha que me bastaram para


começar a correr.
Cheguei ao destino segurando Madalena, depois de termos batido na
guarnição da porta do quarto e quase caído no chão.

— Belinha, pelo amor do pai! — Uma vez dentro do quarto de


princesa, caí de costas contra a parede, quase batendo no chão de tanto
susto.

— Nana, senhola num sabe... conteceu tomigo... — Veio a pequena,


com uma mãozinha no peito e a outra no quadril, a legging rosa com
corações azuis marcando as grossas coxas sob o vestidinho. — Ai, quelida...

— O que foi, filha? — Madalena havia se jogado na poltrona rosa e


agora respirava aliviada.

— Dicaladinho[16] do gato... Ele tomeu[17] uma galartixa... Nhac! Do


chão a cama minha.

— Ele só matou, a bicha ainda está inteira — disse Roberto, puxando o


gato de debaixo da cama da filha. — Só não sei de onde veio essa lagartixa.

— Misericórdia! Depois dessa traquinagem... — Um novo trovão


rompeu o céu naquele momento. — E isso também... — Apontei o indicador
para cima, ainda recuperando o fôlego. — Preciso ir para casa. Gusmão, seu
comedor de lagartixa, vem aqui.

— Dorme aqui hoje, Ana. Amanhã você volta — sugeriu Madalena e eu


neguei com o indicador.

— Não, amiga. Vai cair uma chuva forte, minhas coisas estão todas
conectadas e você sabe como é o sistema elétrico maluco daquele prédio. —
Abaixei-me para colocar Gusmão no colo. — Depois terminamos a
conversa, Roberto. Agora não paro de pensar nas crianças.

— Só as crianças? — perguntou Roberto, segurando o cadáver da


pobre lagartixa pelo rabo.
— Sim. Estou pensando muito nos meninos. — Fui sincera. Naquele
momento, foram aqueles olhares carentes que mais se destacaram na minha
memória.

— Amiga, você tem certeza? A entrada lá do quarteirão costumava


inundar. Fique conosco hoje — insistiu Madalena, vindo atrás de mim,
segurando a mão de Belinha sapequinha.

— Chego ao prédio antes que a chuva caia. Não se preocupe, amor. —


Beijei a bochecha da minha amiga e me inclinei para beijar a testa do amor
da minha vida, minha afilhada.

— Papai do céu guitando... Munto bavo com o gandãozinho... A


galartixa... dabiguinha fulada. Toitada[18].

— Sua mamãe vai te contar a história do trovão, depois você vai me


contar tudinho. — Beijei as bochechas rechonchudas e corri para pegar
minha bolsa e a coleira de Gusmão. — Boa noite a todos.

Toda trêmula, peguei minhas coisas, abracei a bolinha de pelo amarela


e puxei a porta que dava para o elevador particular. Roberto veio em
seguida com a chave de acesso.

— Espero que você seja sábia com as informações que lhe dei — disse
o homem ao abrir o elevador.

— Não tenho o direito de expor uma história tão delicada. Não se


preocupe. Eu só queria saber, porque as crianças confiam em mim de alguma
maneira. Vida que segue em relação ao pai delas. — Entrei no elevador e
toquei no botão do painel que me levava ao térreo.

— Você vai ao aniversário de Noah amanhã? — ele perguntou


rapidamente.

— Não. Ainda não me sinto pronta. Obrigada pelo jantar — eu disse,


enquanto a porta se fechava.
— Da próxima vez, deixo você em casa, danadinho... — Eu conversava
com o gato, enquanto dirigia meu carro pelas ruas desertas e arborizadas do
Ibirapuera.

— Miau... — Gusmão caminhava de um lado para o outro, no banco ao


meu lado, certamente assustado, coitadinho.

Os relâmpagos se multiplicaram, riscando o céu escuro por entre


nuvens pesadas. Trovões estrondavam no ar. Gotas grossas atingiam o para-
brisa, embaçando o vidro, dificultando minha visão, dando certo trabalho ao
limpador de borracha, que oscilava um pouco duro, enferrujado.

Droga!

Algo deu errado com o veículo, tive certeza quando senti os pneus
dianteiros rolarem de forma diferente no asfalto e o carro tremer.

Droga! Droga! Droga!

Assustada e sozinha, joguei o veículo no acostamento, deixando-o


nivelado com o meio-fio.

— Gusmão, eu vou lá fora, bebê — falei mais para criar coragem e


olhei fixamente para o gato por dois segundos, na esperança de que de
alguma forma ele me avisasse do perigo, me proibisse de sair do carro.

— Miau! — O gato dilatou a pupila e arrepiou todo, dobrando de


tamanho, fazendo com que eu levasse o tronco para longe dele.
— Ok, isso foi fofo e horripilante ao mesmo tempo. Me dê cobertura.
Se um malfeitor aparecer, repita e mate-o do coração.

Merda, o que há de errado comigo? Por que estou ficando cada vez
mais íntima de todas essas criaturas que de repente entraram em minha
vida?

Inclinei-me entre os assentos e peguei no assoalho traseiro um guarda-


chuva mini golf que estava comigo há mais de meia década.

— Tá vendo que situação horrorosa nos metemos, Gusmão?

Esfreguei a flanela no vidro para aliviar o nevoeiro, mas com a forte


chuva caindo lá fora, não havia absolutamente nada para ver.

Sem alternativas, retirei a chave do painel, saí com cuidado e segurei


bem o guarda-chuva, pois o vento forte logo quis tirá-lo de mim.
Andei ao redor do veículo e logo encontrei a origem do problema. Um
dos pneus estava torto, parecia solto, algo que certamente não era tão
recente, mas havia atingido seu limite. Isso porque o ex-proprietário garantiu
que fez uma verificação minuciosa quinze dias antes da venda, até me
apresentou os documentos que comprovavam sua palavra.

— Aquele trambiqueiro me fez de besta! — exclamei desesperada, com


um embargo na garganta.

Mesmo naquele momento tempestuoso, lembrei-me de agradecer aos


céus por evitar um acidente grave. Um pouco mais e aquele pneu sairia dali.

Com o guarda-chuva aberto sobre minha cabeça, sentei-me nos


tornozelos, verifiquei de perto o dano e deixei o choro escapar.

Medo, raiva e angústia.

Eu não deveria ter saído de casa esta noite, lamentei e ouvi um motor
batendo na pista, me forçando a levantar para ver a grande moto chegando,
soando a buzina duas vezes antes de o capacete ser removido da cabeça do
piloto e a familiaridade de seu rosto me congelar completamente.
— Não! Não! Não! — exclamei olhando para os lados e quando voltei
para o piloto na moto, vi tatuagens familiares, e da mesma forma, o alívio
não chegou. — Você quase me matou de susto! — blefei sobre o passado do
verbo.

Tive a nítida sensação de que minha alma estava querendo escapar do


corpo naquele exato momento.
— O que diabos você está fazendo debaixo de uma tempestade? —
gritou o homem com sua voz grossa e rígida, e trouxe a moto para perto de
mim.

Segurando o guarda-chuva, mantive minhas costas contra o carro.


Minhas pernas tremiam como gelatina e meus olhos estavam fixos no corpo
longo e musculoso, coberto apenas por uma regata preta e shorts esportivos
do mesmo tom... Coxas expostas, coxas enormes e úmidas. Ok, isso não era
importante no momento.

— O pneu está solto! — gritei sob o violento som da natureza.

— Onde está o estepe? — Ele desceu da moto olhando meu pneu e eu


fiquei congelada no lugar.

— Na loja — eu disse alto o suficiente para que ele pudesse ouvir. —


Vou comprar no próximo mês — completei.

— Porra, como é que dirige um carro sem ter um estepe? — rosnou,


voltando para a moto. — Sobe aqui, Juliana! — ele ordenou e meu coração
acelerou no meu peito.

— Não se ofenda, mas...

— Sobe logo, mulher, teimosa! — ele gritou, fazendo-me desabar de


medo, meus joelhos quase bateram no chão.

— Misericórdia, o que vai fazer comigo? — choraminguei, meus dentes


batendo, o frio somado ao susto correndo violentamente em minhas veias.
— Vou deixar você em casa. — Colocou o capacete de volta. — Sobe
logo mulher, se ainda não percebeu, estou recebendo a porra da chuva na
cabeça.

Certo, Otávio Parisotto estava na minha frente, todo gost... ogro, no seu
jeito suave, e eu não tinha escolha a não ser aceitar sua ajuda. Poderia ser
pior, poderia ser o irmão dele.
— Só um minuto... — Abri a porta do veículo e encontrei Gusmão todo
ouriçado. — Shh, fica quietinho, amor, pelo menos ele é o pai das crianças.
Não temos escolhas. Precisamos acreditar que tudo ficará bem.

Prendi a alça de sua coleira e mergulhei em meu pulso. Abri minha


bolsa para proteger o celular com uma sacola plástica, pois era minha
principal ferramenta de trabalho e ainda restavam 18 prestações a pagar.

— Tá de brincadeira! — Otávio disse quando deixei o carro com o


gato nos braços.

— Meu guarda-chuva! — berrei, vendo meu velho companheiro voar


pela pista. — Me ajuda! — gritei indo atrás, correndo com o peso de
Gusmão, ouvindo o homem xingar irritado nas minhas costas. — Meu
guarda-chuva!
A moto rasgou a pista, passou por mim e só freou lá na frente, quando
meu guarda-chuva foi atingido e aparentemente recuperado.
Uma potente mistura de gratidão e medo despertou dentro de mim
quando a moto de luxo fez a curva para voltar na minha direção.

As informações do marido de Madalena, somadas aos estragos da noite


e ao encontro repentino na escuridão, me deixou em pânico e me senti mal
por não saber como agir de agora em diante.

Ele não tem culpa de seu destino difícil.

Ele não vai me machucar.

Ele reconhece o medo nos olhos das pessoas, não tem que lidar com
os meus.

Não foi ele quem me levou de volta à infância.


O passado não define minha vida.

Repeti mentalmente essas frases e me mantive encolhida na chuva, com


Gusmão nos braços, até que a moto parou na minha frente e ele buzinou,
ambas as mãos no guidão.

— V-veja, querido... E-ele é um b-bom homem... — sussurrei para o


gato, encorajando-me, forçando meus pés a se moverem na direção do calor
humano.

O homem puxou a mochila esportiva das costas, tirou um par de luvas


de combate de dentro e prendeu no guidão da moto, onde meu guarda-chuva,
possivelmente intacto, porque era bom, já estava pendurado.

Pela viseira do capacete, pude ver sua expressão incrédula sobre o que
estava acontecendo, mas não houve reclamações e silenciosamente agradeci
a ele. Eu não queria vê-lo nervoso à toa.

— O-obrigada... — me forcei a dizer.

Ele olhou para mim daquele jeito fugaz, colocou a mochila na bunda de
Gusmão e sacudiu para que eu o soltasse. Fiz o que ele silenciosamente
instruiu e joguei minha bolsa lá também, então ele fechou o zíper, deixando
apenas uma pequena abertura lateral, antes de levar de volta para as costas e
prender as alças em seu corpo.

— Obrigada... — Tremulei, subindo no assento da moto, fazendo


minhas mãos alcançarem o tecido da camisa que ele vestia. — M-muito
obrigada ... — Agarrei-me a ele e encostei a cabeça na mochila, sentindo a
comoção do gato e ouvindo os miados altos de medo.

Otávio disse algo enquanto colocava o veículo em movimento, quando


outro trovão cortou o céu e tornou impossível para mim ouvi-lo. Eu só
entendi quando o veículo foi manobrado na direção oposta.

— Ei, não! — Levantei minha cabeça. — Não! Minha geladeira...


Minhas coisas estão conectadas... Já perdi tudo uma vez... Preciso ir pro meu
apartamento agora — expliquei sem fôlego. — Otávio! Me deixe no ponto
de táxi. — continuei gritando e engolindo certa quantidade de água da chuva.
— Otávio, por favor!

Pedi mais um pouco, mas depois calei a boca. Tive medo de que ele
perdesse o foco na pista por minha causa. Já bastava estar passando por
aquela situação.
Porém, lá na frente ele diminuiu a velocidade, colocou o pé na pista,
esperou que três carros passassem e manobrou novamente, agora em direção
ao meu bairro.

Tremendo muito, suspirei de alívio quando o veículo se aproximou da


última curva que ligava à avenida ao prédio. Mas quando foquei meus olhos
na pequena descida, vi um obstáculo de água, na base de cinquenta
centímetros, correndo violentamente em direção à rua debaixo.

— A outra entrada também está inundada? — Otávio falou pela


primeira vez desde que saímos do Ibirapuera. Eu respondi positivamente,
então ele usou sua mão direita para estreitar minhas coxas em seus quadris.
— Se a moto parar, não me solte, pequena! Entendido? Se você fizer isso,
essa merda vai te levar embora.

Ele instruiu e, tremendo e tossindo constantemente, agarrei-me a ele


com todas as minhas forças.

Não vi nada do percurso, apenas senti a força da água atingir minhas


canelas e espirrar em meu corpo.
A potente moto cambaleou várias vezes nos quase seis metros
inundados, mas chegou ao outro lado com o motor ligado. E assim que senti
minhas pernas saindo da água suja, abri meus olhos e verifiquei a situação
do gato. Gusmão permaneceu quietinho, protegido na mochila, miando
fracamente, tão trêmulo quanto eu.

— Não tem como entrar na g-garagem... — Solucei nas costas de


Otávio, pensando que ele iria por aquele caminho.
Mas o homem tinha outra coisa em mente.

Contornou o trecho menos alagado da rua e chegou rapidamente na


subida do prédio, onde acelerou sem procurar alternativas e parou o veículo
dentro da recepção, assustando o pobre Augustinho que passava com sua
capa de chuva amarela e lanterna na mão.

— Não aqui não, seu Otávio! — gritou Augustinho, enquanto eu


deslizava meus pés para o chão.

— Suba e se aqueça — Otávio ordenou tirando o capacete da cabeça,


mostrando o rosto todo molhado, os cabelos curtos e lisos escorregando pela
testa, os olhos verdes incrivelmente vibrantes e frios, sem nenhuma emoção
palpável. — Vou esperar a chuva passar. Envie notícias da sua saúde através
do Beto.
Depois de usar seu tom autoritário, ele se afastou da moto, me entregou
a mochila e foi até a ampla porta da recepção. Ficou parado olhando a chuva
e a violenta correnteza que batia na rampa... Todo encharcado, suas roupas
frágeis demais para protegê-lo da mudança de temperatura, para esconder
qualquer contorno secreto de olhares curiosos.

Droga, o delírio do frio estava me atormentando, deixando minha


cabeça louca.

— Dona Juliana, seu namorado tem sido intransigente cada vez que
aparece aqui. O prédio tem regras e ele precisa respeitá-las — disse
Augustinho, nervoso, olhando para a porta. — O síndico mandou desligar a
energia elétrica para evitar mais estragos. Somente as externas conectadas
ao gerador permanecerão acesas. Seu namorado precisa tirar o veículo daqui
antes que ele me coloque em apuros.

Se eu perder minhas coisas de novo, o prédio vai me reembolsar cada


centavo! — ameacei, pegando meu guarda-chuva da moto, sem paciência,
com a cabeça cheia demais para lidar com problemas antigos.
— Eu apenas sigo ordens. Entenda, por favor, Dona Juliana... Senhor,
você precisa tirar o seu veículo daqui! — gritou o velho, mas Otávio pouco
se importou.

Ele estava muito chateado. Ou talvez fosse a arrogância natural dos


ricos. Eu nem sabia mais o que pensar. Não sabia como agir com ele.

— A moto ficará aqui na recepção hoje à noite — afirmei, e o porteiro


imediatamente discordou. — É impossível dar a volta e chegar à garagem.
Se a moto for roubada, nem o síndico, nem o dono do prédio assumirá a
responsabilidade antes de ser acionada a justiça, portanto evite desgastes,
Augusto.

Observei Otávio passar as mãos nos cabelos e remover o excesso de


água, obviamente preocupado. Não tinha como ele sair, a chuva só
aumentava e o volume da correnteza ficava mais violento. Eu o coloquei
naquela situação inesperada, agora precisava abrigá-lo por algumas horas.
Ele salvou a mim e ao gato. Não podia o deixar se ferrar do lado de fora, era
o mínimo que eu podia fazer.
— Otávio! — gritei, tão trêmula que meus pés mal se moviam do chão.
— Vem aqui. Coloque sua moto naquele canto.

— Dona Juliana, me ajude...

— Estou farta dos problemas deste prédio, Augustinho. Se o síndico


achar que manter uma moto de luxo na rua inundada é mais inteligente do que
aqui, mande-o falar comigo. Tenho alguns desaforos na ponta da língua, já
que ele não me pagou pelo micro-ondas no último apagão.
— Alguma coisa fodida te impede de subir para se cuidar, Juliana? —
perguntou Otávio, vindo em minha direção, tão grande que Augustinho
estremeceu.

— Não. Estou apenas alinhando uma situação — eu disse rapidamente,


observando o porteiro dar um passo para trás, se borrando de medo da
abordagem.
— Preciso ligar para os meus filhos. — Otávio olhou diretamente para
o idoso. — Posso usar aquele aparelho? — Apontou para o balcão.

— Claro... aproveite enquanto ainda temos energia... — disse


Augustinho, indo ao balcão pegar o aparelho.

— Vamos subir, Otávio. Você liga do meu apartamento. Coloque a moto


naquele canto — orientei e o homem acenou com a cabeça, e empurrou o
veículo, levando-o do meio da recepção até o canto da parede que ligava a
escada. — Vou secar o gato e desligar minhas coisas. Me dê dez minutos,
Augusto. Obrigada pela sincera compreensão.

Otávio largou a moto no canto da recepção e esperou que eu passasse


na frente para vir logo atrás de mim. A sombra de seu corpo escandaloso
chacoalhando nas paredes devido ao piscar das lâmpadas.
— Você estava com sua amiga? — ele perguntou, aproximando-se.

— Jantei com a família dela... Seu apartamento é naquele prédio? —


Puxei conversa encostando meu braço nele, me satisfazendo com o calor
humano.

— Casa. Eu moro em uma casa. Gosto de um jardim amplo e privado,


minhas crianças também. Fica a poucos quarteirões do Beto.
— Ah, sim... Aquele bairro é incrível. Vou comprar um apartamento lá
ou no Jardim Europa. Ainda estou decidindo. Seu amigo vai me conseguir
um sugar daddy bilionário — soltei a lorota e olhei torto.

Ele não disse nada, apenas contraiu a mandíbula de uma forma estranha
e subiu empurrando o punho contra as paredes da escada.
Ao chegarmos no corredor, aproveitei o fato de que meus passos
vacilaram para encostar minha cabeça nele. Estranho admitir, mas ali desejei
saber mais sobre suas reações.

— Você vai ficar doente e isso é uma merda, pequena. — O calor da


mão grande alcançou a curva da minha cintura e ficou lá, me apoiando até
chegarmos à porta do apartamento.

Ele me ajudou a tirar a chave da bolsa e segurou Gusmão pelas axilas


enquanto eu empurrava a porta e acendia as primeiras lâmpadas do meu
cantinho.

— Você pode desligar minhas coisas enquanto eu seco o gato? —


perguntei, correndo no banheiro para pegar toalhas. — Não, espere! — gritei
de dentro do segundo cômodo, abrindo os armários, pegando toalhas,
deixando algumas caírem no chão antes de sair rapidamente e ver o homem
puxando a conexão da geladeira e do micro-ondas simultaneamente. —
Enxugue-se primeiro, o que passamos hoje foi o suficiente para nos assustar!
Aqui!

Joguei uma toalha na direção dele.

— Estou sem celular... preciso falar com meus filhos... — Ele


desdobrou a toalha. — E avisar aos seguranças que chegarei mais tarde.
— Aqui. — Resgatei a bolsa na mochila e rasguei a sacola plástica que
protegia meu celular. — Você pode usar. Mesmo que o Wi-Fi caia, tenho
dados móveis e está todo carregado.

Estendendo meu celular no ar, deixei meus olhos se perderem na


imagem do homem esfregando a toalha no cabelo, até mesmo nos músculos
de seus braços e pernas... Misericórdia, eu nunca tinha visto veias tão
dilatadas quanto aquelas. Quase ouvi o som de sangue correndo por elas.

— Você precisa se livrar dessas roupas, Juliana. Vá fazer isso agora.


— Você estava na academia? — ousei perguntar, tentando limitar meus
olhos que agora focavam em uma protuberância exorbitante, evidentemente
compatível com o resto do corpo.

Inclinando meu pescoço em análise, concluí que era bastante robusto e


pesado. Rosa? Será? Movi minha língua quase instintivamente.
— Tenho academia em casa... — Ele continuou se enxugando
grosseiramente. — Toda quinta-feira pratico muay thai em um lugar
adequado, com uma instrutora.

— Ah sim. Eu vou... vou lamber o gato... — Atrapalhei-me com as


palavras e ele olhou para mim. — Vou enxugar o gato. É isso. Antes que ele
fique doente, coitadinho. Veja como ele está.

Com uma toalha na mão, ajoelhei-me em frente ao sofá e comecei a


cuidar de Gusmão, que se lambia no canto das almofadas.

— Esse gato ainda tem de três a quatro vidas, deixe ele na toalha e
cuide da sua — disse o homem, vindo ficar ao meu lado.
— Já vou... — Ergui a cabeça e peguei olhos verdes fixo no meu busto,
minha jaqueta aberta, mostrando a blusa fina que me cobria por dentro.

Engoli em seco.

— Vai ficar doente, mulher... Está tremendo de frio.

Em uma fração de segundos seus olhos encontraram os meus, exibindo


uma poderosa carga de cobiça nas profundezas.

Me senti confusa comigo mesma. As novas informações rondavam


minha cabeça, mesclando a realidade generosa de algo que eu gostava muito
e estava à minha disposição, dando claros sinais de entusiasmo.

Era terrível ser safada e sensata ao mesmo tempo.

Bem recatada, contive o riso e voltei para Gusmão.


— Tudo bem. — Levantei-me depois de enrolar o gato na toalha. —
Vou tomar um banho quente enquanto a energia está ligada. Ligue para seus
filhos.

Ele arfou sob meu toque, minha temperatura corporal aumentou


consideravelmente e eu senti meu rosto formigar.
— Eu também preciso de um banho — disse ele, a voz ficando mais
rouca, excitada.

— Assim, na cara de pau, bonitão? — Tentei soar naturalmente


relaxada, mas acredito que ele notou minha fraqueza. — Você é um pai de
família e eu sou uma moça inocente. Não me corrompa às vésperas de
conseguir um bom daddy. Eles são categóricos sobre a virgindade.

— Vou ficar aqui esta noite — o homem rosnou aquelas palavras com
desgosto. — Até amanhã eu te convenço a ser minha.

— Oi? — Engasguei-me com minha saliva e tossi de forma


escandalosa.

— Trabalhar para mim — corrigiu.

— Não vou trabalhar de babá dos seus meninos, Otávio. — Ainda


tossindo, puxei a manga da jaqueta para fora do corpo com dificuldade. —
Vou ser sugar baby de um bilionário... Eu visito os pequenos sempre que
possível, não se preocupe, tenho responsabilidade emocional.

— Porra, mulher! Vai se lavar, caramba! — disse autoritário, desviando


o olhar do busto que eu estava exibindo despretensiosamente.
— Nenhum paquera manda em mim, acho que você está um pouco
emocionado, bebê. — Puxei a outra manga da jaqueta.

— Não sou os seus paqueras, pequena. Mas se você não tirar esses
peitos perfeitos da minha cara, vou entrar naquele banheiro com você,
colocar os dois na minha boca e me banquetear com eles, enquanto você
geme mais alto do que esses malditos trovões. Você pode me obedecer antes
que isso aconteça? Antes que eu ignore cada merda que existe entre nós e me
impede de seguir em frente?
Contrair, foi inevitável!

Complicado e gostoso ao mesmo tempo!


Mulher empoderada não tem um minuto de paz!

— Me respeite, senhor Otávio! Olha como você fala comigo!

Abalada com cada palavra, com cada nota daquela voz bruta, eu virei
minhas costas, fui até o guarda-roupa, peguei o primeiro conjunto de pijama
e, descuidadamente, deixei cair uma caixa. Uma caixa de objetos indecentes,
que planejei usar naquela madrugada, logo após meus sonhos habituais com
o homem que agora adornava meu quarto.

— Quer ajuda?
— Não! Fique aí — gritei, recolhendo tudo, de costas para ele.

— O pequeno caiu perto da cama — ele gritou, no mesmo tom sério, e


eu tive a nítida sensação de que o sangue estava sendo drenado do meu
corpo.

Sem tempo para me perder na análise, guardei a bendita caixa e corri na


direção do banheiro. Bastou me trancar para que as luzes se apagassem e um
grito fino escapasse da minha garganta.
— Juliana, está tudo bem? — chamei, batendo os nós dos dedos contra a porta do segundo
cômodo, tudo turvo nos quase nove metros quadrados que ela chamava de apartamento.

— V-vou precisar do celular? — ela gaguejou do outro lado, o som de seus dentes batendo,
revelando a condição de seu corpo.

— Você quer ajuda? — perguntei, enquanto ela abria a porta e ficava em frente a uma abertura
limitada.

— Só preciso saber onde pisar. — Puxou o celular da minha mão. — Madalena mandou
mensagem... — Ela olhou para a tela do aparelho e acendeu a lanterna. — Vou deixar a porta aberta,
viu? Estou com medo, Madá não está aqui para me proteger e preciso confiar em alguém. — Sem que
eu esperasse, cutucou meu peito com o dedo indicador e deslizou até meu umbigo, fazendo-me contrair
sob aquele toque.

— Juliana... — Cobri a mão dela com a minha.

— Shh, eu escolho o gato. Gatinho, me ataque se algo sair do controle. Não eu, ele. Ataque-o,
Gusmão. — Puxou a mão e desapareceu da minha vista, me fazendo sorrir na sombra da porta.
Aqueles lampejos de euforia, o jeito hesitante de me olhar... uma combinação de cautela, ousadia,
charme e desejo... Ah, pequena, você é capaz de me desarmar totalmente, como só uma mulher
conseguiu. Isso me fascina, mas desaconselho este caminho complicado.

Afastei-me da porta e andei no cubículo escuro, até o vidro por onde vinham os flashes. Era a
porta de correr que dava para a área externa, onde fiz os reparos na primeira visita. Destravada, ela
deslizava lentamente sobre o trilho. Eu fui lá e fechei. Voltei e me encostei na pia da cozinha.

Poucos minutos depois, Juliana saiu do banheiro toda agasalhada e descalça, com uma toalha
branca nos cabelos e as roupas molhadas na mão.

— Ahhh! — ela gritou de uma forma escandalosa quando me viu no escuro. — Fale com os
meninos agora mesmo e pare de me assustar! — Usou sua doce autoridade, me entregando o celular.
— Você molhou meu apartamento inteiro, véi — reclamou, abrindo a porta da área, saindo e voltando
com panos para usar no chão e mais reclamações.

Achei melhor não interromper as impertinências. Entrei no banheiro calado, levando o celular
comigo. Não abri o aplicativo de mensagens, liguei diretamente para um dos meus seguranças de
plantão e tentei ser rápido com as informações necessárias. Os funcionários estavam em casa. Não
havia perigo ali com a violência da tempestade. Meus meninos dormiam, a babá olhava tudo, como
sempre. Fiquei aliviado.

Não demorei naquele banheiro, só o tempo suficiente para tirar a água suja do corpo e o excesso
do sabonete perfumado da Juliana.

Quando saí do banheiro, encontrei-a na frente da pia. Linda, sendo moldada pelas luzes de três
velas espalhadas pela sala. Chinelos nos pés, toalha na cabeça e pijama quente. Toda coberta, como
precisava estar.

— Falou com eles? — perguntou de costas, lavando a mão na pia antes de levantar uma
assadeira pequena e levar para o forno. — Ligou ou não, homi?

— Eles já estão dormindo... Deixei minhas coisas no box, tudo bem?

Ela se virou em uma fração de segundo e olhou para mim por um tempo. Meu corpo estava
coberto apenas por uma de suas toalhas, a maior que encontrei.

— Deixou sua cueca lá também? — perguntou, ainda me estudando.

— Sim, deixei.

— E agora você está sem uma cueca no corpo, certo?

— Só com a sua toalha — respondi, reforçando o ajuste da toalha na curva do meu quadril.
Na penumbra, vi quando ela mordeu a ponta do lábio inferior. Preferi acreditar que fosse uma de
suas travessuras, trabalhei isso na mente. Só não deu para controlar a violência do sangue que desceu
em desespero até o ponto certo.

— Tem chocolate quente. Quer? — indagou após o silêncio. Tirando os olhos de mim, pegando
uma das três velas e colocando-a em um prato no tapete. — Estou gastando minhas velas
perfumadas que comprei para relaxar com meu daddy bilionário.

— Porra de daddy, Juliana! — rosnei, insatisfeito com aquela merda.

Ela riu ironicamente e voltou para a pia, tão farta das curvas que uma capa de chuva a deixaria
sexy.

— Já está tudo certo, não está sabendo? Seu amigo está me ajudando, cumprindo a sua obrigação.
Você ainda me deve algo valioso, não pense que esqueci. — Enquanto eu rosnava ela descansou um pé
no outro e lavou algo na pia. — O daddy é idoso, mas ainda vai dar um bom caldo.

Caldo bom e grosso é o do meu pau!, sem nenhuma intimidade ou razão para mostrar minha
indignação, deixei escapar um pensamento. Roberto do caralho! É bom que você não esteja levando
isso a sério.

— Esse filho da puta tem nome? — indaguei e ouvi outra risada.

— Nome e sobrenome bilionário. — Ela se sacudiu, indo até a geladeira e tirando uma garrafa, de
onde bebeu água do gargalo.

Acreditei ser água. E, a julgar pela maneira como ela estava ingerindo, estava com sede.

Ela me enfeitiçou há quatro anos e estava fazendo o mesmo agora. Cheia de traumas que
limitavam meus passos e uma maldita conversa infame.

— Qual o sobrenome? Se Roberto conhece, também conheço — insisti no assunto, perguntando


em um tom que não revelava tanto interesse.

— Hum... — Ela tirou a garrafa da boca. — Por enquanto é confidencial. Faz parte do contrato.

— Você já assinou? — Aproximei-me dela e a vi dar um passo para trás.

— Misericórdia. Tá nervoso? — Ela fechou a garrafa de qualquer maneira e segurou-a com as


duas mãos na frente de seu corpo. — Eu conheço algumas canções de ninar... Boi, boi, boi. Boi da cara
preta... Não, essa não! Bicho papão sai de cima do telhado. Deixa esse menino dormir sossegado. Essa
também é terrível. — Colocou a boca da garrafa no meu peito, limitando meus passos. — Homem, por
tudo o que é mais sagrado, acalme-se.

— Você é perfeita demais para estar com um pau mole. Consegue entender isso? — Segurei a
ponta de seu queixo suavemente e observei seu rosto se mover em confirmação. — Por que você está
tremendo?
— T-tô, não.

— Sim, você está.

— F-frio. Muito frio.

— Vá se aquecer naquela cama e esqueça essa merda de velho tarado. Porque eu nem sei
quem ele é, mas já planejei mandá-lo para o inferno com o contrato e todas as perversões que ele está
planejando enfiado no rabo.

— Mise... ricordia! — Se engasgou e tossiu.

— Vai deitar.

— Estou fazendo comida. Você estava treinando. Os braços, socos e pontapés... — Pigarreou. —
Você deve estar com fome.

— Não se preocupe comigo.

— A fome irrita as pessoas, eu falo por mim. É melhor que você esteja bem alimentado.

Inferno, ela está com medo, querendo me agradar por isso.

— Pequena, você não está me bajulando, está? — perguntei, meu corpo parado na frente dela.

— Não, por que eu faria isso? — Forçou um sorriso. — O único macho que agrado é a bolota de
pelo no meu sofá.

— Gosto da sua naturalidade e atrevimento, Juliana. É irritante, mas me aquece, então não pense
em agir com cautela, como todo mundo faz. Eu nunca te dei razões para isso. E pare de me olhar assim.
Não vou te atacar.

Afastei-me dela e sentei-me no tapete, as costas firmes no sofá, os olhos fixos nos seus passos,
que se dirigiram silenciosamente até o guarda-roupa e ali ficou por um longo tempo, escondidos atrás de
uma porta.

— Está frio... — Ela voltou com um pano na mão, olhou para o meu rosto e eu tive que desviar
rapidamente da conexão. — Olha no meu olho, bebê — pediu com aquele merda de apelido que eu
odiava. — Veja, não tenho medo. — Se abaixou ao meu lado.

— Eu entendo você, Juliana. Mas eu não sou o João Paulo. Tente resolver isso em sua cabeça.

— Sim, você não é ele e eu não tenho medo de você. Caso contrário, não teria aberto minha porta
e colocado você aqui dentro.
Desdobrou o pano e veio jogando nas minhas costas, era um cobertor. Ela estava cuidando de
mim.

— Eu não vou te machucar — afirmei, afastando-me do sofá para que o pano caísse nas minhas
costas. Ela estava bem na minha frente, seu cheiro bom entrava em minhas vias respiratórias.

— Não vai. — Ajeitou aquele pano quente em mim, exagerando na tarefa, deixando apenas minha
cabeça exposta. — Eu te daria um abraço forte, mas, assim, com os balangandãs de fora, fico sem
jeito. Sou uma moça pura e prezo por minha honra.

Porra! De duas uma: ou aquela pequena começou a delirar depois da chuva, ou então estava
querendo atear fogo em um barril cheio de pólvora.

— Você vai trabalhar para mim, Juliana? — perguntei quando ela se levantou.

— Já te dei minha resposta. Não vou negociar o amor de mãe. Nunca experimentei, mas sei o que
é não o ter e posso imaginar como seria frustrante colocar expectativas em um sentimento com prazo
de validade.

As palavras escaparam de sua boca em um triste desabafo e me perguntei qual seria sua história.
Fiquei curioso, queria perguntar. No entanto, nunca gostei de ouvir esse tipo de pergunta, então hesitei.
Talvez um dia ela me contasse, e não seria tão triste quanto minha mente doentia presumia.

Juliana era leve, tinha uma presença forte e um olhar determinado, mas gente forte também sentia,
sentia muito e se acostumava a engolir a dor. Eu tinha domínio para pensar sobre isso.

Fiquei lá por alguns minutos, olhando para sua silhueta na escuridão. Ela mexeu em tudo naquele
espaço, enquanto um cheiro bom de comida tomou conta do lugar e me deu água na boca. O gato
também sentiu, então saltou do sofá e se atreveu a se enroscar entre as pernas de sua dona.

Depois de conversar com ele, Juliana encheu uma tigela pequena com porções do que tirou do
forno e soprou longamente, enquanto deslizava os dedos dos pés na barriga do peludo. Aquele filho da
mãe foi o primeiro a receber comida e até coçadinhas de cortesia.

— Vai sobrar alguma coisa para mim? — chamei a atenção dela e isso a fez sorrir.

Sorriso maravilhoso!

eu tinha certeza de que ela fugiria


Cristo, eu queria aquela mulher para mim. Mas
quando descobrisse sobre o monstro na minha cabeça.
— Pronto, pidão. — Ainda sorrindo, ela voltou para o tapete com as mãos ocupadas, sentou-se à
minha frente e colocou a caneca no tapete, ao lado da vela. — Seu delicioso jantar. — Estendeu o prato
e meu estômago gritou.

— O cheiro está muito bom.


— Lasanha de miojo, já comeu? Macarrão instantâneo... Um todo enrolado que vem no
saquinho...

— Vivemos no mesmo planeta, Juliana. Não se esforce tanto. — Levantei o garfo e provei a
comida.

— Tem chocolate quente na caneca. Para você tomar depois. — Cruzou as pernas em posição de
lótus e me observou comer. — Essa receita é no micro-ondas, tive que adaptá-la.

— Você não quer um pouco? — perguntei, saboreando a comida.

— Comi bem no jantar de Madalena.

— Está muito bom. Difícil existir outro prato mais saboroso — elogiei e coloquei outra porção na
boca. Estava realmente delicioso.

— Se quiser mais, ainda tem no forno.

— Você encheu o prato. É suficiente.

— E os meninos?

— Dormindo. Amanhã chego em casa mais cedo e conto para o Thiago.

— E o bebezinho ... Ele dorme sem você?

— Se ele está bem, dorme a noite toda. Tem sido assim desde o nascimento. A babá dele fica no
quarto ao lado, na verdade, as duas babás. Tem uma velhinha que, mesmo aposentada, controla tudo e
Noah a ama.

— É sua avó?

— Não. Mas ela trocou minhas fraldas quando eu era criança e eu a chamo de Bah.

— Sua babá mora com você, Otávio? — perguntou a pequena, deixando escapar um suspiro
franco e afetuoso.

— Ela é sozinha e cuidou de mim por muito tempo. Daqui a alguns anos trocarei as fraldas dela.

— Essa foi a coisa mais fofa e improvável que eu já ouvi de um cara marrento e pelado — disse
entre uma risada, conseguindo me dobrar com sua simpatia natural. — Você tem um sorriso tão lindo,
Otávio, deveria fazer isso com mais frequência.

Nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade e determinação, como se já fôssemos íntimos.


Não houve mais trovão na minha cabeça, nenhum som, tudo parou. Era só eu, ela é nossa respiração.
Vi que ela estava tão perturbada quanto eu. A respiração pegou na garganta quando senti algo queimar
dentro do meu peito, como se as bordas do gelo estivessem forçando um derretimento.
Estremeci, mas um som de miado nos puxou de volta. Porra! Os trovões e todos os ruídos da
natureza voltaram com tudo e Juliana começou a rir.

— O que é, Gusmão? — Ela acariciou o gato que se aninhava entre suas pernas. — Hoje você vai
dormir no tapete. Esse homem ficará com o sofá.

Ela puxou a toalha da cabeça, deixou o cabelo longo e pesado cair na frente de seu ombro direito e
começou a pentear com os dedos. Era estranho vê-la sem o volume dos cachos e isso me fez entrar em
conflito interno para decidir qual estilo a deixava mais bonita.

Procurei comida no prato e vi que já tinha devorado tudo, então, sem tirar os olhos dela, bebi o
chocolate da caneca.

— Você vai no aniversário de Noah? — indaguei logo depois de devorar alguns goles do líquido
quente.

— Decidi não ir. É uma data notável, haverá fotos para ele ver na idade adulta. Não quero
continuar alimentando o apego agora. Noah é pequenininho, vai sofrer em algum momento.

— Você é quem sabe. O convite está feito.

Não insisti, mas desanimei por causa do meu pequeno. Ele não entendia nada, mas ficaria feliz
com a presença dela.

— Além disso, a mãe dele não vai gostar da minha presença. Seu filho fica me chamando de mãe
sem parar...

— A mãe dele não estará lá — eu disse imediatamente.

— Como não?

— Ela não entra mais em minha casa e tenho a guarda unilateral.

— Mas... É a mãe do seu filho. Independentemente de tudo, sempre será a mãe. Você não pode
proibi-la de ir ao aniversário do menino, Otávio.

— Juliana, não fale de algo que você não conhece. — Afastei o prato vazio e coloquei a caneca
dentro.

— Você não acha que o bebê sofre com isso? — perguntou, e segurei a resposta, querendo não
a envolver naquela podridão. — Noah vai fazer um ano, então a separação não foi há muito tempo. Ela
ainda estava amamentando, não estava?

— Tailana nunca deu uma amamentação completa ao filho, Juliana. Na maternidade, ela nem
olhou para o rosto do menino. Noah já saiu de lá comigo.
Minhas palavras a deixou pensativa. Silenciosamente, ela dedilhou os cabelos e tive certeza de que
estavam bem cuidados e macios. Dani sempre visitava o salão de beleza e comprava incontáveis
produtos importados. Juliana, certamente, fazia a mesma coisa. Seus cachos eram muito perfeitos.

— Que mulher desnaturada você foi engravidar, hein? — Juliana comentou, se mostrando
comovida.

Fiquei até com vergonha quando nossos olhos se encontraram naquela sombra de luz.

— Esse casamento foi meu pior investimento — admiti, mas me segurei nessas palavras.

Casei-me com Tailana em um pulo de meses. Ela era gostosa, linda e aceitou minhas condições.
Eu precisava de estabilidade para fugir da depravação em que me encontrava na época, ela queria luxo.
Foi sem amor, apenas tesão e uma esperança de dar certo. Maldita decisão sem planejamento.

— Que bom que Noah tem você — Juliana comentou e aqueceu meu peito. — Imagino que seja
difícil enfrentar isso sozinho. Madalena e eu tivemos muita dificuldade no primeiro ano da nossa Belinha,
quando não sabíamos que ela era diabética.

— Eu já tinha a experiência do Thiago. Só tive problemas para alimentá-lo. Mas as coisas


melhoraram quando me contaram sobre um protótipo semelhante aos seios maternos, que vendiam fora
do Brasil. Mandei buscar e dei o meu melhor para fazer meu bebê se sentir confortável. Noah ficou tão
confortável que começou a me chamar de mãe. Dei fim naquela merda no mês há dois meses.

Juliana riu de maneira agradável e natural.

— Isso explica muita coisa, Otávio. É por isso que ele é um bebê viciado em peitos. Me diz se
não é verdade?

— Noah gosta de você, Juliana. Thiago também. Você é toda perfeita com eles.

— E você, apesar da carranca assustadora, é um pai cadelinha.

— O quê? — Franzi o sobrolho.

"Cadelinha" era um caralho ou eu estava errado?

— Você é um pai rendido. É isso. Não é nada contra sua honra de machão.

Ela se aproximou de mim e eu congelei. Nem vi, só senti seus lábios tocando meu esterno.

— Porra, Juliana. — Suspirei, ofegante, e todo o meu controle se foi. Coloquei as duas mãos em
sua cintura e não a deixei voltar. — Você sabe exatamente o que está fazendo quando mexe comigo,
não sabe? — inquiri, mas não houve resposta, só ficou me encarando, cheia de vontade. — Quer sentar
aqui?

Deitei uma perna contra o tapete e seus olhos caíram oblíquos.


— Sem compromisso, viu? Só para testar a poltrona — disse ela, sentando sua bunda ali, de lado
na minha coxa.

— Testa o que você quiser, pequena — murmurei.

— É confortável e espaçosa, como presumi. — Ela foi deslizando até ficar de costas para mim. —
Estou apenas testando outras posições. Sem compromisso. Não tenho grana para levar hoje.

— Juro que nunca conheci outra mulher tão espirituosa quanto você, Juliana. — Deixei minha
boca encontrar a sua nuca, deslizei meus lábios por lá e engoli seu cheiro. Ela estava me deixando
louco. — Para você, é mais confortável de lado, mas é possível testar todas as posições possíveis se me
der liberdade... — Usei minha língua contra sua pele e seu corpo estremeceu.
Ele não faz mal às pessoas...

É um homem impetuoso, mas se pudesse, seria diferente...

Ele se ajustou para não alimentar a fera...

As palavras dançaram em minha mente, enquanto um par de lábios


quentes aquecia minha nuca, suavemente, mal tocando minha pele. Meus
olhos fechados e todos os meus sentidos conectados a ele.
— Quer ouvir algo sobre mim? — ele perguntou no meu ouvido, sua
voz rouca e profunda me sacudindo por dentro.

— Quero. — A voz saiu num sussurro, em meio ao tilintar do vento na


porta da área.
— Em uma das piores fases da minha vida, depois que minha esposa
faleceu, não me permiti querer estar com outras mulheres por três anos... —
revelou ele, e abri meus olhos, perdendo um pouco da conexão.

Não tive certeza se, naquele grau de excitação, queria ouvi-lo falar
sobre a única mulher que amava e que foi o sol que o iluminou, como seu
amigo me revelou.
— Ela era poderosa. É tão difícil encontrar fidelidade nos homens
quando estamos vivas... — comentei, tentando ignorar o sinal de alerta, a
ameaça de desvantagem.

Eu estava entrando na TPM, era isso. A bicha me virava do avesso.

— Foram três anos sem tocar ou pensar em outra mulher. As


lembranças dela bastavam para mim.

— Você a amava muito, não é?

— Começamos a namorar cedo, descobrimos tudo juntos. Seus pais a


levaram para outro país, mas ela voltou e ficou comigo. Ela sempre esteve
comigo. Amor para toda a vida.

Confirmou as palavras do amigo e tentei empurrar a sensação de perda


que surgiu em algum lugar dentro do meu peito.

Otávio jamais amaria da mesma forma, era fato. Suas próximas


conquistas precisavam saber conviver com isso.

— Ela era linda, né? Seu filho tem uma beleza absurda — perguntei,
tentando soar desafetada.

— Sim, Danielle era a mulher mais perfeita do mundo.

Dei de ombros mentalmente. Era bom não ter nada a ver com ele. Eu
nem sabia por que ele estava me abraçando. Poltrona muito dura. Cruzei
meus braços e comentei:
— Danielle. Belo nome.

Eu nem estava incomodada. Só não queria ouvir mais nenhuma história


naquela noite.

— Juliana também é um lindo nome. — Ele roçou os lábios no meu


queixo e eu virei para o outro lado, recusando-o. — Espírito jovem e cheia
de energia. Inquieta, impulsiva, emotiva e sensual... Essa é você e esse nome
lindo é todo seu.

— Sim, meu nome é realmente lindo — afirmei, um pouco orgulhosa e


surpresa por ele ter prestado atenção no significado.

— Meus amigos planejaram aquela festa no iate como um rito de


passagem. Thiago era pequeno, precisava de um olhar maternal e cheguei à
conclusão que era importante encontrar uma nova mãe para ele. Tudo por
ele. Não era sobre mim, mas me permitiria depois da festa. — Cheirou
minha pele e algo vibrou em meu estômago. — Mas quando meus olhos te
encontraram perto das amuradas do convés, quando você sorriu para mim,
tão linda, cheia de vida, doçura e espontaneidade... Algo mudou. Todo o meu
corpo te queria, Juliana. Foda-se a ideia de que era uma prostituta de luxo,
como a maioria das convidadas. Se não fosse pela maldita intervenção do
meu irmão, se eu não estivesse tão possuído para entender que algo errado
havia acontecido lá, eu teria levado você comigo. Eu teria apresentado
minhas condições e oferecido a vida que você não teve.

Disse essas palavras e uma sensação agradável de poder cresceu dentro


de mim e foi revoando do meu peito até o estômago, afugentando alguns
sentimentos confusos.

Arfei sem saber como reagir.

Ele continuou de chamego no meu pescoço.

— Você acredita que seria assim tão fácil, bebê? E se eu não quisesse
ir com você? — brinquei para esconder minha satisfação e virei a cabeça,
levando meu nariz até sua garganta, engolindo o cheiro bom de seus poros.
Ele estava excitado. Pude confirmar pelo cheiro, mas desejei sentir a
ereção, então me movi contra ele e verifiquei o estrago.

Ele era mesmo um dotadão, de tirar o fôlego.

— Sim, você é sensata e inteligente. Teria fugido sem pensar duas


vezes. — Ficou sem jeito, arrumando meu cabelo. — Eu só queria que
soubesse o quanto mexeu comigo.

A voz grossa saiu sem emoção alguma e meu coração ficou


pequenininho.

— Provavelmente teria fugido, mas o único motivo seria não prolongar


relacionamentos. Embora, agora, eu esteja tentando conseguir um contrato de
um ou dois anos como sugar.

— Ainda com essa conversa, Juliana?! — ele rosnou de desgosto,


causando um arrepio na minha espinha.

— Minha situação não está fácil, amigo. Vou pegar um lençol para
cobrir o sofá e já volto. — Tentei sair dali, porém, o beijo que tocou minhas
costas e a mão grande que parou na minha cintura, me fez recuar.

— Tente ignorar minha grosseria. Só estou preocupado com você. —


Ele beijou minha bochecha duas vezes e eu relaxei minha mente. — Fale
comigo, diga o que precisa e você terá.

— Não, claro que não, Otávio. Nós nem nos conhecemos direito.

— Estamos fazendo isso hoje. Vem aqui, vire-se para mim.

Respirei fundo e fiz o que ele pediu. Coloquei meus joelhos no chão e
deslizei Gusmão no tapete.

— Vou preparar sua cama improvisada — eu disse, mas não me mexi.

Na sombra da luz fraca, vi a intensidade fervendo nas feições de


Otávio. Sua respiração se tornou ofegante, nossos olhos ficaram perdidos em
hesitação, na vontade potente de duelar com nossos problemas pessoais.
— Você é a coisa mais linda, Juliana.

— Você é quente mesmo pelado nesse escuro. — Eu deixei escapar e vi


um riso brilhar em seus olhos.

— Quero conhecer você e tenho pressa. — Mãos grandes chegaram à


minha cintura e sua força me fez montar sobre ele, ao alcance de seus olhos.
— Queria você no passado e quero agora também.

Meu corpo inteiro tremeu, sua voz fez isso comigo.

Vi o cobertor escorregar de seus ombros e levei alguns segundos para


endireitá-lo. Seus olhos me seguiram na ação e ele sorriu como uma criança
quando ganha um afago de alguém em quem confia.

Senti-me criando uma enorme empatia por ele. Certamente, essa foi a
razão para a pulsação exacerbada que me atingiu por dentro.

Deixei seu peito livre para mim e levei as mãos até seu rosto,
acariciando seus traços marcantes com a ponta dos dedos. Lábios,
sobrancelhas, queixo, aquela barba baixa e bem-feita... Havia uma beleza
absurda em sua alma quebrada.

Otávio recebeu minhas carícias e veio beijando meu queixo com toques
superficiais. Ficamos coxas com coxas, quadril com quadril... Uma
correspondência mútua, invasiva e deliciosa.

Um segundo e seus dedos alcançaram minha nuca, sua boca se ajustou à


curva da minha garganta, agora em um contato maduro, indecente e
categórico.

— Venha... — murmurei. — Me beija.

Foi o suficiente.

Ele veio com fome, agarrou meus lábios em um beijo profundo e


ardente. Me segurou em seus braços fortes, eliminou qualquer espaço que
pudesse nos separar. Luxúria crua misturada com doçura.
Combinação perfeita.

Cravei meus dedos em suas costas e deslizei sobre seu pau.


Movimentos seguros e precisos. Uma delícia de fricção que começou a me
deixar encharcada.

Virei minha cabeça e peguei sua língua em um golpe lascivo. Comecei a


colorir sua mente, deixando claro que faria o mesmo com o músculo duro
que sofria abaixo de mim.

Dei um pouco mais e ele recuou com um rugido. Deslizou sua boca
exuberante pelo meu pescoço e ofegou contra a depressão da minha garganta.
Seus lábios, sua respiração e suas mãos estavam em mim. Braços fortes se
fecharam em torno de minhas costelas, me esmagando no desejo de me ter,
querendo fundir nossos corpos a todo custo, até que uma luz vermelha
alertou minha cabeça.

Parei de esfregá-lo.

Ficou desconfortável.

— Otávio... — Tracei minhas mãos em seus ombros e desci pelos


braços, tentando afastá-los de mim. — Otávio, só aperta menos um
pouquinho... — Névoa correu em meus olhos. — Otávio! — gritei.

— Perdão, perdão, perdão. — Ele pareceu cair na real, afrouxou o


aperto possessivo e colocou meu rosto entre as mãos. — Sou um monstro,
tente me perdoar por isso.

A tristeza queimou dentro de mim e me vi segurando as lágrimas.


Enquanto ele se desculpava, preocupado comigo, eu sofri ao identificar
detalhes de sua doença secreta. Não, ele não era um monstro, como afirmou
sem perceber. Eu queria dizer isso, mas revelaria tudo o que ele escondia e
carregava como ponto fraco.

— Não, Otávio. Estava gostoso... Vá em frente, só não me aperte com


muita força. Estou bem. Você é intenso, eu também. — Tentei acalmá-lo.
— Esmaguei você, pequena. Prometi que não te machucaria e fiz isso na
primeira oportunidade. — Ele descansou minha cabeça em seu peito,
circulou as palmas das mãos nas laterais das minhas costelas e beijou meu
cabelo.

Otávio era grosseirão, mas também era um cara doce. De alguma


maneira me senti segura.

— Se não fosse aquele pesadelo, eu teria pensado em você com carinho


ao longo dos anos, Otávio — confessei, na tentativa de nos acalmar. —
Pense aí, um cara rico, bonito, branco que respeita as diferenças, esperando
que uma simples plebeia acabe o trabalho para levá-la na proa de um iate de
luxo... — Deixei a ponta do meu nariz encontrar a pele de seu pescoço. —
Você foi um cavalheiro naquela festa. Até cuidou de mim e esperou minha
amiga voltar.

— Cuidei e posso fazer isso com mais frequência.

— Estou me convencendo disso. — Soltei um suspiro satisfeito. —


Aquilo cortou, né. Você nem me contou.

— Foram apenas cinco pontos aqui atrás... Fechou rápido. Um golpe


não faz diferença para o que já é uma droga... Você está bem mesmo?

Observei suas palavras e forcei minha memória a procurar sinais que


ele poderia ter dado quando eu ainda não conhecia sua história. Não
encontrei nada, pensaria nisso mais tarde.

Talvez ele só estivesse tentando confiar em mim.

— Eu estou bem. Agora venha e roube meu fôlego de outra maneira. —


Cobri uma de suas mãos, juntei nossos dedos e os levei para meus lábios. —
Sinta como você me deixou. — Desci a mão dele até o cós do meu pijama e
o fiz entrar lá.
— Juliana...

— Sinta. — Coloquei a força do meu corpo sobre os joelhos e levantei


alguns centímetros de seu colo.
— Quente... — murmurou ele, indo para o lugar certo, o dedo indicador
descendo, dando pequenas voltas ao redor do clitóris até atingir a umidade.
— Pronta. — Sentiu o entorno da entrada. — Quase pronta.
Estremeci e contraí a base das minhas coxas. Então ele puxou sua mão,
e suas palmas cobriram em seguida meus seios. Acariciou os mamilos duros
no tecido e me deixou mais dolorida. Tragou o cheiro do meu cabelo e
encontrou minha boca, me tomando com uma vontade enlouquecedora.

Suspirei com pressa. Ele desceu as mãos e traçou as partes da minha


bunda, apertando-as, antes de me levantar e me virar no sofá, deixando
minha cabeça no espaldar, meu corpo meio inclinado, meio deitado.

Lá ele me beijou, tentando ser calmo, nossos gemidos se misturando, o


fogo consumindo nossas veias. Acariciei seus músculos, passei os dedos
pelas costelas. Senti que estava perdendo a toalha e esfreguei o pé nele. Fiz
o tecido cair no tapete. Eu o deixei todo nu e desejei vê-lo sem tanta
dificuldade.

Palavras sujas escaparam dele quando baixou a boca nos meus seios.
Empurrei meus quadris, deliciando-me com a sensação agradável de sua
língua em minha carne, seus dentes raspando ocasionalmente em sua maneira
madura de fornecer uma mamada.
De repente, ele soltou meu mamilo, desceu para minha barriga e foi até
as coxas, beijando o tecido do pijama em uma tortura deliciosa que atingiu
minha virilha, a parte que cobria minha vagina. Lá eu ondulei contra ele,
desejando mais, desejando tudo.

— Seu cheiro é delicioso. — Largou essas palavras e subiu salpicando


beijos em meu umbigo, deixando a mão no meio das minhas pernas.

Eu não usava a segunda peça, dava para ele sentir tudo. Estava inchada,
molhada, pulsante, querendo mais dele. Otávio apalpou meus detalhes,
rosnou contra minha pele e moveu os dedos em giro, me masturbando
levemente. Estremeci. Senti meu coração pular uma batida e fui abafada por
meus próprios gemidos.

Aquela deliciosa tortura se estendeu, enquanto ele deixava meu clitóris


duro e inchado. Joguei a cabeça para o lado, engoli um pouco de ar e ondulei
o máximo que pude, seguindo seu ritmo lento. Minhas mãos subindo e
descendo por seus cabelos molhados. Seus lábios excitavam minha barriga,
minha virilha, sem interromper o trabalho dos dedos, que logo começaram a
me masturbar com mais firmeza e rapidez.

— Ahh... — Engasguei-me naquele momento, estremeci e agarrei seus


cabelos. — Otávio... — Serpenteei sem controle, ondas de prazer me
invadindo, sacudindo minhas carnes, acelerando o coração em meu peito.

Habilmente, ele puxou minhas calças até os joelhos, rolou para longe
dos meus pés e espalhou minhas pernas nuas sobre o sofá. Alguns beijos
úmidos foram dados na minha pele e sua cabeça foi parar no meu centro. A
língua chegou quente, massageando o botão duro lentamente, levando-me às
alturas. Eu choraminguei seu nome, ouvindo-o suspirar como um selvagem,
esfregando o nariz em mim e, em seguida, chupando meus lábios bem
gostoso.

Gritei, incapaz de segurar. Apertei seus cabelos e empurrei meu sexo


contra ele. Ele viu que era o meu limite e não parou. Me chupou com mais
firmeza, enfiando a língua dentro de mim, buscando meu prazer, lambuzando-
se com o que encontrava, voltando ao meu clitóris, acertando-o com a língua
ritmadamente e fazendo com que estrelas invadissem minha cabeça.

Abri minha boca em um grito silencioso, prendi meus joelhos em sua


cabeça e vi a explosão acontecer em segundos.
Gostoso como eu imaginava ... Como vinha em meus sonhos.

— Ahh... Ah... — Me deixei em sua boca e perdi minhas forças.

Minhas pernas amoleceram e o observei puxar o ar para os pulmões,


ofegando pela boca após a asfixia, descendo novamente para cuidar de tudo
e fazendo eclodir pequenos espasmos no meu corpo sensibilizado.
— Pequena... — murmurou, abafado, enquanto movia sua cabeça entre
minhas pernas, dando-me um glorioso beijo de língua.

— Pequena. Abatida. Pelo. Grandão.

Choraminguei, esparramada no sofá, meus olhos presos na sombra da


cena quente, meu corpo perdendo um pouco das forças restantes.

Otávio murmurou algo, me soltou com um estalo, ficou de joelhos e


bateu seu pau contra meu clitóris.

— Haaaiixxx! Seu gostoso! — chiei, dobrando minha espinha,


mordendo meu lábio.

— Você não espera que eu a deixe ir depois disso, não é, pequena?


Atingiu meu nervo novamente, em uma sequência deliciosamente
dolorosa. Contraí-me completamente e, sorrindo, me protegi com as mãos.

Lânguida, levantei minha cabeça para vê-lo glorioso, mas peguei outra
coisa no escuro.

— Ahhh, misericórdia! — gritei, fixa nos dois faróis que brilhavam no


tapete.

— O que foi? — Otávio me abraçou, todo preocupado e me fez sentar


no sofá.

— Gusmão, ele não pode ver essas coisas. — Respirei fundo e escondi
o rosto no peito de Otávio. — Que vergonha, sempre o coloco no banheiro.

— O quê? Sempre? — Otávio rugiu e eu alisei sua costela.

— Tenho minhas necessidades, bebê.


— Foda-se, você é minha

— Eu não sou, não. — Beijei seu peito. — Estamos apenas nos


conhecendo. — Beijei outra vez. — Respire fundo e relaxe, eu vou cuidar de
você... O meu gatinho ainda está olhando?
— Quando isso? — perguntou em tom de exigência e tive a leve
impressão de que ele estava meio enciumado.

— Oi?

— Juliana vai para a cama e durma. — Ele se levantou do sofá, nu e


agitado. — Vamos conversar amanhã.

— Oxe, o que foi? — Fui atrás, toda bamba. — Deixe de presepada.


Vou colocar Gusmão no banheiro e cuidar de você.

— Não, você vai dormir — disse categórico e foi na direção do


banheiro. — Saí de casa apenas com a CNH e as luvas na mochila.
Continuaremos depois.

— Ah, é isso? — Dei a volta nele e parei na frente da porta. — Eu


tenho proteção. Sempre tenho.

— Inferno! — rebateu, inquieto. — Você não tem nada que me sirva.

— Você acha que é o único fruto fertilizado da terra? — Ri com


ousadia, passando os olhos naquela sombra duríssima e maravilhosa, meus
joelhos prontos para o chão. — Você é meio pretensioso, bonitão.

— Eu só posso estar pagando pelos meus pecados — ele resmungou a


frase entre os dentes, quase inaudível.

— Vou entrar com você, está tão duro que não se aguenta sozinho.

— Eu dou conta disso. — Beijou minha testa, me agarrou pela cintura,


levantou meu corpo do chão e me afastou da porta. — Vá se deitar agora,
Juliana.

Entrou no banheiro e fechou a porta na minha cara.

Passei a mão pelo cabelo, sentei-me na cama e esperei alguns minutos.


Demorou muito lá dentro. Levantei-me, coloquei meu ouvido na porta e ouvi
o barulho abafado da água do chuveiro. Ele estava no box. Forcei a
maçaneta, mas a encontrei trancada.
Amuada, fui até o guarda-roupa e separei os lençóis. Organizei o sofá e
o deixei confortável.

Coloquei outro par de calças. Deitei-me na cama, puxei o edredom e


fiquei à espreita. As velas já estavam se apagando, os raios cessando.
Otávio continuava lá dentro.

Ele estava com ciúmes.

Oxe! Nós nem tínhamos nada.

Pior, depois que voltei ao Brasil minhas companhias não eram nada
mais do que vibradores e sonhos com aquele indivíduo.

Dei de ombros para qualquer explicação.

Ele não precisava saber disso.

Eu era uma mulher livre.

Muito livre.
Minutos depois, a porta do banheiro rangeu. Sentei-me na cama e vi a
grande sombra nua movendo-se pelo apartamento. Meus olhos logo
perceberam que ele não estava mais excitado.

Ele foi até o sofá, olhou rapidamente e veio em direção à cama. Deitou-
se ali, com o rosto para cima, e me puxou sem avisar.

— Boa noite — disse ele, colocando um braço em volta de mim e


pressionando meu rosto em seu peito.

Estava cheiroso e fresquinho.


Sorri, esfreguei meu rosto, encolhi meu corpo e envolvi uma perna em
torno dele.

— Sou uma mulher livre. — Fiz questão de lembrar.

— Apenas durma, pequena.


Acordei com um barulho irritante no chão e murmúrios desconexos de
Juliana, que se movia sonolenta, aninhada em mim, com a mão no meu peito
e o rosto no músculo do meu braço.

Algo profundamente significativo havia acontecido na noite anterior, e


aquela linda mulher estava entrando em minhas veias facilmente. Se não
fosse pela minha bagagem, eu entraria em sua vida com determinação e lhe
daria todas as certezas de que seu lugar era ao meu lado.

Sempre lutei pela estabilidade do meu canto, pois precisava viver bem
e com as pessoas certas, sem riscos, ansiedade ou os danos que alimentavam
meu lado selvagem. A ideia de ter Juliana comigo todos os dias, ao lado dos
meus filhos, que era o meu bem mais precioso e a minha motivação diária,
me trazia uma agradável sensação de plenitude.
Eu odiava aquela doença fodida que ferrava minha cabeça e arruinava
o curso da minha vida.

O barulho perturbador se intensificou e fez a pequena virar para o lado


oposto, quase despertando de seu sono.

Sentei-me na cama e soltei um suspiro profundo quando identifiquei de


onde estava vindo.

Era o gato. O bastardinho estava parado na frente da pia, de costas para


a cama, e sua pata batia na tigela de alumínio contra o chão, espalhando
aquele som irritante pelo apartamento.

Aquele pequeno empata foda queria comida e batia na tigela como se


tocasse a sineta de uma recepção de hotel.

Nu, levantei-me e fui até o fogão. O apartamento ainda estava escuro,


mas a luz suave de um novo dia entrava pela porta de vidro da área.

O dia estava perfeito. Fazia um ano desde que vi meu bebezinho pela
primeira vez. Eu logo iria para casa e o encheria de carinho.

Tentando fazer o mínimo de barulho possível, peguei a tigela, tirei o


que sobrou da lasanha do forno e despejei ali. O gato enlouqueceu no meu
pé, esfregando os pelos nos meus calcanhares, miando incontrolavelmente.
Só parou quando manteve a boca ocupada.

Voltei para a cama, sentei-me ao lado de Juliana e observei como ela


ficava linda ao amanhecer. Ficaria ainda mais perfeita se estivesse na minha
cama.

Tracejei o tecido que cobria seu braço com a ponta do meu indicador e
um sorriso começou a dançar no canto de seus lábios. Aquilo fez meu corpo
acordar imediatamente.

Eu queria aquela mulher em minhas veias, em minha casa, montando


meu pau dia e noite... Dane-se, se ela me domasse, eu iria a qualquer lugar
com aquela pequena atrevida pulando em cima de mim. Porra! Pensar nisso
estava me deixando tão duro que chegava a doer.
— Já amanheceu? — ela murmurou sonolenta.

— Sim. E estou indo embora. Preciso estar na empresa às sete e quero


ver meus filhos antes disso.

— Que responsável... — A mão dela deslizou pelo colchão e apalpou


minha barriga, mandando contrações para o lugar certo. — Como é viver
sem sentir frio, bebê? — ironizou, me fazendo rir.

Ela sempre me fazia rir.

— Você me aqueceu a noite toda, Juliana.

— Awn, eu não deveria achar fofo ser chamada de cobertozinho. — Se


espreguiçou manhosa e de olhos fechados, e sem que eu esperasse, fechou a
mão no meu mastro, fazendo uma forte descarga descer pela minha espinha.
— Que saúde, hein?

O dedo experiente vagou pelo nervo certo e mordi o meu lábio inferior
para manter a boca fechada. Puta merda! Tive que usar toda a minha força de
vontade para não a jogar de costas e deslizar para dentro da boceta
acolhedora que ela escondia entre as pernas.

— Pequena, se não vamos nos tornar dois selvagens irresponsáveis,


pare de ferrar minha cabeça. Vou acabar engravidando você nessa cama.
Você quer isso?

— Misericórdia, homi, vira essa boca pra lá. — Ela me deixou e se


sentou na cama.

Desorientado e sem fôlego, deixei um beijo em sua testa

— Você vai na festinha do meu Noah?

— Não tenho o seu endereço.

— Eu venho buscar você.


— Meu carro! — Ela arregalou os olhos. — Pode me dar uma carona
em sua moto? Preciso ver meu carro.

— Calma, não levanta agora, está frio. Fico com suas chaves e cuido de
tudo. Vou precisar do documento para resolver com o reboque.

— Você é sempre fofo assim ou ainda tem interesse em me contratar?


— indagou ela, seus olhos vagando sobre minha nudez.

— Não vou mais te oferecer esse emprego, Juliana. Você vem para
minha vida de outra maneira. — Deixei bem claro e ela olhou para mim por
alguns segundos antes de levantar o indicador e movê-lo em negação.

— Sou uma mulher livre, Otávio. Não estou disponível para


relacionamentos. E você é abusado demais para me dizer isso assim. — Foi
incisiva, mas não pensei em desistir.

— Venho buscá-la para o aniversário. — Beijei sua bochecha. — Você


vai ficar comigo, lá na minha casa, o fim de semana inteiro — declarei e ela
riu alto, do jeito que eu gostava e aquecia meu corpo. — Basta levar
calcinhas, quero você desfilando só com elas no meu quarto. — Peguei sua
boca e mordisquei a polpa de seu lábio inferior.

— Você está tentando cometer o mesmo erro que cometeu quando se


enrabichou com a secretária — ela murmurou, retribuindo o beijo, mas eu
parei e procurei seus olhos.

Não, Roberto não seria capaz de expor minha vida sem minha
permissão, pensei ao sentir os dedos da mulher correrem pela minha barba e
sua boca voltando a se mover sobre a minha. Não, Juliana teria fugido. A
situação era complicada demais para ser recebida sem medo. Até Tailana,
que só queria meu dinheiro, voltou depois de um mês de reflexão.

— Quem te disse que Tailana era minha secretária? — indaguei e a vi


engolir em seco. — Foi o Beto?

— Eu não posso saber?

— O que mais ele te disse?


— Que você amava a mãe do seu primeiro filho.

— Você se lembra das minhas palavras, Juliana? Que você foi


importante naquele momento do passado?

— Lembro... — Ela fixou os olhos nos meus.

— E por que você está se comparando ao meu erro com a Tailana?

— Eu não estou me comparando. Só não quero que você faça planos


antes da hora. Não tenho apego. Você entende? Sempre fui uma mulher livre,
não é agora que vou enrabichar por um cara depois de uma sessão de beijos.
Tenho apenas vinte e cinco anos, Otávio. Não estou preparada e nunca
pensei em estar. Não sei por que estamos tendo essa conversa.

Ouvi o discurso e levantei uma sobrancelha, tentando entender se as


palavras eram realmente dirigidas a mim.

— Meu ritmo é diferente, Juliana, mas eu a respeito com todo o meu


ser. — Me levantei da cama.

Fui ao banheiro, abri a torneira da pia e coloquei o rosto no jato de água


fria. Senti quando ela alcançou a porta, então levantei minha cabeça e peguei
minhas coisas no box.

Coloquei as roupas úmidas na frente de seus olhos e parei, esperando


que ela me desse passagem.

— Não vou dormir lá, mas venha aqui amanhã — ela disse, puxando
seu quadril para longe da porta. — Sem compromisso, só pra gente
conversar e assistir uma série na Netflix. Jogar uma conversa fora, uma
conversa dentro... Comendo mandioca com linguiça frita... Você gosta?

— Não gosto da ideia de viver sem compromisso. Se vamos começar, é


bom que saiba que não vou parar até que você seja minha — falei com
clareza para que ela entendesse como as coisas funcionavam para mim.
— Estamos em um impasse terrível, lindo. Você é estável e caseiro, o
oposto de mim, mas é gostoso e nossos corpos estão se dando bem... O que
vamos fazer com tanto tesão?

— Vamos encontrar um meio-termo. — Segurei seu rosto e selei sua


boca com um beijo. — Não estou disposto a deixar você ir.

— Vou na festinha do neném — ela disse, deixando um sorrindo no meu


rosto. — Mas não precisa me pegar. Vou com Madalena e minha afilhada. —
Beijou meu peito. — Agora vá ver seus filhos. Nossa Netflix está agendada
para amanhã à noite. Venha preparado, se não quiser usar algo do meu
estoque.

— Eu tenho uma sala de TV em casa ... — Aprofundei um beijo em sua


boca. — Isolamento acústico... Você vai gostar.

— Sou cara de pau, então não me dê tanta liberdade. — Ela pegou


minha mão e puxou meu lábio entre os dentes. — Hora de pegar o beco,
bonitão. — Me levou para fora do banheiro, em direção à porta de saída,
pegou a mochila no caminho e jogou no meu peito. — Beije as crianças por
mim.

Trocamos carícias na porta e nos despedimos com um beijo quente,


lento e profundo.

Quando desci, encontrei o porteiro e outro que se dizia ser o síndico, ao


lado da minha moto, registrando fotografias em seus celulares. Me desculpei
pelo transtorno, mas não fiquei para escutar suas bajulações. Saí de lá
disparado para ver meus filhos e levar o café da manhã deles antes que
deixassem o quarto.
Olhei novamente para a lixeira aberta no banheiro, para o bolo de papel
higiênico que continha os três testes de farmácia.

A água do chuveiro caía continuamente, o box permanecia aberto,


estrategicamente, na tentativa eficaz de abafar meu choro, que já havia se
esvaído após longos minutos de desespero.

Sim, eu estava grávida. Desconfiei no início da semana, mas fiquei com


medo de fazer o teste, na esperança de que fosse só coisa da minha cabeça,
algum tipo de inflamação, qualquer coisa menos uma criança.

Eu estava completamente perdida. A esperança que eu tinha de voltar


para casa do meu marido estava descendo pelo ralo.

Idiota!

Você é a mulher mais burra deste mundo, Tailana.

Largou sua estabilidade para implorar o carinho de um cara infiel e


astuto. Agora carregue o filho dele, a condenação que você merece por
entrar nessa maldita teia de traição.

Ergui meu rosto e tirei o pé do pedal da lixeira. Meus olhos ardiam de


tanto chorar, minha barriga doía de cólica, a mesma que senti durante toda a
gravidez do bebê ogro.
Mais cedo pensei em ligar para o Otávio, pedir ajuda, implorar para
ele cuidar de mim, como fez durante a outra gravidez, quando já sabia da
traição, duvidava da paternidade do filho, e ainda o queria bem.

Mas cheguei à conclusão de que seria outra estupidez. Otávio me


expulsaria de lá com a polícia e o escândalo chegaria a João Paulo. Eu
perderia qualquer chance de proteção.

Eu estava ferrada. Se ao menos João Paulo me deixasse ir, mas não, ele
sempre conseguia me manter em suas mãos.
— Está tudo bem, princesa? — A voz soou do outro lado da porta e
minha cabeça começou a latejar. Ele chegou no meio da noite, meio bêbado,
depois de uma festa que eu sabia que não tinha nada a ver com negócios. —
Taila?

— A cólica aumentou, você sabe como eu estou.

— Quer um chá?

Um venenoso, eu queria gritar, mas mantive minha boca fechada,


respirei fundo e abri a porta.

— Já tomei o remédio. Vai passar. — Apertei o cordão do meu robe e


passei por ele.

— O que é, princesa. Você está delirando de novo? — ele perguntou em


uma calmaria fingida, depois de segurar gentilmente meu braço.
Ele tinha toques gentis, palavras amorosas, as melhores intenções e uma
forma sutil de me responsabilizar, de fazer minha mente acreditar que o erro
estava só em mim.

— Certo, você não saiu sem mim, não chegou bêbado e não me chamou
pelo nome da maldita Danielle, duas vezes, em uma única madrugada. Sim,
estou delirando... — comentei, sem forças para iniciar outra discussão. —
Vá tomar seu café e me deixe em paz.

— Exagerei na bebida, porque estou sofrendo com o fato de hoje ser


aniversário do meu filho e não poder ficar com ele...

— Que filho? Para de loucura. Isso já está passando do limite. — Eu o


deixei falando sozinho.

— Tailana! — Ele me seguiu e sua grande mão deslizou pelo meu


braço, agarrou meu punho com firmeza e levou-o aos lábios. — Quando
você vai fazer algo por mim, princesa? Não vê o quanto eu sofro por não
estar com meu filho.
— Ele não é seu filho. — Mais uma vez repeti a verdade, que ele, nem
mesmo Otávio, acreditava. — Noah não é seu filho, João Paulo. Por que
você não para de me atormentar com isso?

Meus olhos se encheram de lágrimas e meus ombros caíram. Eu estava


pedindo muito, mas queria tanto um pouco de paz.

Ele riu com desgosto e beijou meu punho outra vez.

— Sim, o pequenino é meu filho, princesa. Você é apenas uma mulher


confusa. Confusa, histérica, sem berço e sem moral, mas ainda a amo. — Ele
beijou meus dedos. — Vista a roupa mais perfeita do seu armário. Hoje
vamos para o aniversário do nosso filho.

— Vai se ferrar, João Paulo. — Eu o empurrei, fui para a cama, larguei


os chinelos e me encolhi.

— Taila, Taila, Taila ... Por que você é tão imprudente, princesa? Você
sabe que toda paciência tem limite, não sabe? — Ele veio, parou na minha
frente e sentou-se nos calcanhares.

— Não vou levar você para ver o filho do SEU IRMÃO! Não vou ao
tribunal revelar que o traí e que o filho dele é seu. Você não vai criar aquela
criança, seu desgraçado, doente, ordinário! Você pode ter tirado tudo dele
para saciar seu ego fraco, mas as crianças... — Eu me calei quando dedos
firmes se fecharam em minha garganta. — S-sol-ta ...

— Olha, o que você me obriga a fazer, Tailana. — Apertou os dedos e


meus olhos ficaram turvos. — Você está destruindo nossa relação! — Me
empurrou, me deixando sem fôlego, tossindo na cama.

— Você... Me machucou...

— Nunca maltratei mulher nenhuma na minha vida, Tailana, agora você


me obriga a virar aquele monstro.

— Á-gua...
— Vamos ver um psiquiatra para testar sua sanidade. Se nada resolver,
seu destino será a fazenda. Você precisa viver isolada por um tempo para
valorizar os sentimentos verdadeiros.

— João... — murmurei tentando me levantar da cama.

— Eu te dei tudo mulher ... — Ele acariciou meus cabelos — Te salvei


das garras de um monstro, que destruiu a vida dos meus pais, a minha vida, e
acabaria com a sua também. É assim que você me agradece?

— Queria ter força para voltar e fazer tudo diferente. Otávio nunca me
maltratou, nem mesmo quando pegou nossa traição — falei e sua mão
apertou meu cabelo, puxando o aplique com força, tirando alguns pedaços do
lugar. — Noah é filho do seu irmão! Do seu irmão! — gritei entre um gemido
de dor.

— Você está escolhendo um péssimo caminho, princesa — ele


sussurrou através de sua respiração, no meu ouvido. — Prepare um lindo
vestido, vamos sair hoje à noite.

Deitada, eu o vi se afastar, passando a mão na poltrona para pegar meu


celular, retirando a chave da porta para mantê-la trancada. Foi a primeira
vez que atingimos o limite, a primeira vez que ele me machucou fisicamente.

Eu precisava acabar com aquela situação antes que ele me destruísse.


— Eu tô é morta! — disse Madalena, sentada no meu sofá, depois de
ouvir os acontecimentos da noite passada.

Ela tinha chegado com a Belinha no início da tarde, para me levar até a
casa dela, de lá íamos para o aniversário do bebê de Otávio.

— Tudo começou com empatia, amiga. Então eu vi aquela silhueta


maravilhosa na minha frente, o cheiro masculino cutucando meu nariz, uma
palavra fofa aqui, outra palavrinha suja ali... O estrago foi feito —
justifiquei, sem vergonha, com a imagem do homem clara em minha mente.

— Mas como vai ser? Beijo e tchau, como sempre foi? Amiga, pelo
pouco que Roberto me contou, esse homem vai querer colocar você nas
costas e levar para a caverna dele.

— Misericórdia! Não me assuste, Madalena.


— Você gostou? — ela sussurrou quando Belinha passou por perto,
correndo atrás de Gusmão com meus pincéis de maquiagem nas mãos.

— Estou lascada, amiga — respondi no mesmo tom e Madalena cobriu


a boca com a mão. — Na hora não pensei em nada, mas já meditei muito
hoje. Não é uma aventura simples como estou acostumada. Envolve o
sentimento dos dois meninos, um distúrbio psicológico que é muito delicado
e meus problemas pessoais com o irmão. Se eu fosse pensar em tudo, não
teria acontecido. Mas não pude resistir àquele homão quente e fofo...
Amanhã ele vem aqui para a gente comer mandioca e linguiça frita.

— Santo Deus, Ana! Você vai acabar se apegando.

— Eu sou uma mulher livre e dona de mim mesma, Madalena. Eu não


corro esse risco.

— Eu também sou livre. Livre, apaixonada, feliz e fiel ao meu


compromisso. Relacionamento não é uma prisão como você pensa, Ana.
Recebi as duas mãos de um homem bom, que me respeita, ajuda a sonhar e
nunca pediu nada em troca. Eu não poderia ser uma mulher mais feliz e
realizada. Nossa primeira casa era tóxica, a sua ainda mais tóxica, mas você
pode viver bem em uma família feliz. Acredite em mim, Aninha. Antes eu só
te motivava, mas agora eu vivo isso. É muito real e confortável.

Fechei meus olhos e balancei minha cabeça. Não duvidei da sua


felicidade. Mas a personalidade de Madá era exatamente o oposto da minha,
e eu me sentia sufocada só de pensar em uma relação fechada e concreta.

Eu não deveria estar pensando tanto nisso.

— Você vai mesmo continuar pilotando? — Tentei mudar de assunto.

— É o meu sonho, Ana, agora que posso realizar, só vou parar de


pilotar na hora certa. — Madalena pegou minha mão e algo dentro de seus
olhos brilhou. — Eu quero engravidar outra vez, antes dos trinta. Roberto
sonha com isso dia e noite. Ele quer viver esse momento, fazer tudo o que
não pôde fazer na gravidez de Belinha.
Ela sorriu e meu coração se contraiu só de lembrar das suas
complicações durante a gravidez de Belinha. Foi uma fase tão difícil, que a
vi quase sem vida, prometendo que nunca mais engravidaria.

Engolindo o bolo que prendeu minha garganta, abri um sorriso e beijei


as costas de suas mãos por um longo tempo.

— Tudo vai ficar bem. Você é a mãe mais perfeita que conheço. Mal
posso esperar para pegar este pacote em meus braços. Você já pensou, se
vier um garotinho?

— Meu Deus, amiga, não me faça chorar antes da hora. — Ela apontou
para as lágrimas em seus olhos.

— E já estarei com meu querido daddy bilionário para encher meu


principezinho de presentes caros — brinquei, querendo vê-la sorrir.

O sorriso dela era perfeito. Se existia outra mulher mais bonita no


mundo, eu duvidava.

— Só se for o daddy Parisotto — Madá riu, enxugando os olhos. —


Estou percebendo que você está muito enrabichada para tão pouco tempo.
Pense com calma sobre isso, sua danada.

— Não pira, amiga. — Levantei-me e fechei a porta da área, me


preparando para sair de casa com ela. — Daddy é negócios, Otávio é
empatia.

— Você é uma safada, Juliana. Uma safada que está se apaixonando por
um pai solo e só vai perceber isso quando for chamada de “minha mulher”.

Ela fugiu do travesseiro que eu joguei nela, se levantou do sofá e pegou


a mão de Belinha.

Coloquei Gusmão na coleira e removi o blush que Belinha colocou em


suas bochechas. Passaria muitas horas longe de casa e ficaria mais relaxada
se o deixasse com as funcionárias da Madalena, durante o aniversário do
bebê de Otávio.

Verifiquei o visor do meu celular.

Seis e meia da noite.

Chegamos tarde no aniversário do bebê. Belinha adormeceu e ao


acordar ficou manhosa e chorou sem querer sair do colo. Agora ela estava
ativa, tagarela como sempre.

A casa de Otávio ficava perto do prédio onde Madalena morava. Era


uma mansão sofisticada e discreta, com muros altos e um forte sistema de
segurança.

Quando o carro de Roberto Venturelli passou pelo portão, avistei uma


pequena fonte no centro de um extenso e florido jardim de grama baixa e
verde. Um verdadeiro refúgio privado.

Naquele momento me peguei pensando em como devia ser maravilhoso


para as crianças morarem ali.

Saí do carro olhando tudo ao meu redor e vi alguns seguranças em


ternos pretos andando pelo jardim.

Aquela foi a segunda casa de luxo em que entrei e já estava querendo


fotografar cada canto para mostrar no meu stories do Instagram. Talvez
Otávio me autorizasse. Não custava nada pedir.

Pegando minha afilhada pela mão, segui Roberto e Madalena por um


caminho de lajotas. Logo chegamos na porta da casa, ao lado de uma parede
larga e transparente, que deu aos meus olhos uma incrível sensação de
liberdade.

— Minha nossa, que sonho de casa — falei com Madalena através da


leitura labial enquanto Roberto beijava a mão de uma senhora baixinha e
corcunda que nos recebeu com um sorriso genuíno e nos convidou a entrar.

Entrei com a Belinha, sentindo frio na barriga e com vontade de tocar


em tudo.

— Juliana! — Ouvi a voz do menino quando seus braços já estavam


fechados em volta das minhas pernas. — Você veio. O bebê vai gostar tanto.

— Como você está, Thiago? — Me curvei para beijar os cabelos dele.

— Munto nindo. — Foi Belinha quem respondeu, avançando nos


cabelos da criança. — Tabelo munto celoso... Olhos cololidos...

— Nem venha, pirralha, vá brincar com o Noah. — Thiago soltou


minhas pernas para se afastar das mãozinhas de Bela.

— Bocê, bavinho do meu colação. — Bela o agarrou pela cintura e


Thiago levantou as duas mãos, olhando para o rosto de Roberto, que o
encarava.

— Isabela! Fique com a sua mãe — disse Roberto, alargando a gola da


camisa polo, olhando para Madalena, que ficou sem entender nada.

Estreitei os olhos, entendendo a paranoia do homem e segurei uma das


mãos de Belinha e a outra de Thiago, separando-os, seguindo com eles na
direção da poderosa Adriana, que vinha com o bebezinho nos braços.

— Olha quem veio te ver, meu amor. — Adriana Parisotto beijou a


têmpora do neto e o garoto se jogou em minha direção, fazendo meu coração
quase pular pela boca antes de apará-lo desajeitadamente em minhas mãos.

— Menino, se comporte, seu safadinho. — Eu o abracei, apoiando


minha mão em sua cabeça.
Respirei fundo, me recuperando do susto e ele riu com o queixo no meu
ombro e as mãozinhas presas nos cachos do meu cabelo.

— Oh... Ma... Ma... — Noah riu, deixando a cabeça cair para o lado,
soltando aqueles gritinhos fanfarrões que eu já conhecia.

— Ele deu os dois primeiros passos hoje cedo e está assim, mais
arteiro que de costume — disse a avó, enquanto eu usava uma linguagem
infantil para brincar com o pequeno.

— Juliana. — A voz profunda e incisiva de Otávio chegou aos meus


ouvidos e me virei em sua direção.

Fui preenchida por uma ansiedade boa, que ia do peito ao estômago.

— Oi... — Não sei se sorri, mas a intensidade do que eu estava


sentindo triplicou quando ele veio me cumprimentar e esbarramos nossos
lábios antes que ele tocasse minha bochecha.

Otávio estava fazendo uma bagunça dentro de mim e eu tinha urgência


para que ele colocasse tudo no lugar.

— Já volto — falou a mãe de Otávio antes de nos deixar.

O filho acompanhou os passos da mãe com o olhar e eu o segui.


Adriana Parisotto, ao que parecia, havia sido chamada por um dos
seguranças, que agora falava com ela e com a senhorinha que nos recebeu na
porta de entrada.

— Fique à vontade — Otávio disse, olhando-me nos olhos antes de se


virar para o amigo e dizer: — Mostra a casa para elas. Vou ver o que minha
mãe está cochichando com os seguranças.

— Gostou da casa, Juliana? — indagou Roberto, com um sorriso torto e


olhar minucioso.

— É uma casa poderosa — comentei, beijando a mãozinha do bebê que


corria sorrateiramente por minha gola. — Chegamos tarde demais ou somos
os únicos convidados?

— Otávio não gosta de casa cheia. É sempre a mãe, os amigos e os


funcionários — o homem explicou, recebendo a bebida que uma moça
uniformizada o ofereceu. — Olha o Zé e a Marcela!

Vi a mulher se aproximando com um bebê novinho nos braços. O


homem ao lado dela eu já tinha visto de longe quando estive na Venturelli
para assinar o contrato, era um dos diretores, o responsável pela tecnologia
de informação do grupo.

Madalena cumprimentou a mulher, me apresentou e juntas interagimos


com o bebezinho. Foi quando a senhorinha se aproximou e disse algo a
Roberto que o fez largar a bebida e avançar em direção a porta da sala.

— Roberto! — Madalena gritou, mas o homem já estava longe.

— Fiquem com as crianças — o outro amigo, José, disse, olhando para


a esposa e seguiu Roberto.

— O menino João está aí na porta com Tailana. Estão causando


problemas para os seguranças e querendo ver o bebê — disse a velhinha.

Muito trêmula e pálida, ela foi amparada por Madalena.

Paralisei nos primeiros segundos, mas um grito do bebê em meu colo


me trouxe de volta. O medo já queria tomar conta do meu coração.
Estava começando a cair uma garoa fina quando entrei no jardim da
minha casa, seguindo os passos da minha mãe, que agora ia longe, passando
pela porta estreita do muro, tentando alcançar o filho e assim evitar o
conflito.

Segundo o segurança, João Paulo estava lá fora e queria ver meu filho,
como se tivesse algum direito sobre ele, como se ele não fosse um invejoso
infeliz, inconformado por não ter tudo que construí com minha cabeça
ferrada.

Minha mãe saiu e fechou o portão.

Ampliei meus passos e flexionei minhas mãos, tentando relaxar meus


músculos e me livrar de qualquer brecha para a fúria.

Como se fosse possível controlar.


Com os olhos da mente eu já via João Paulo estragando minha sanidade
na adolescência, me motivando a usar drogas, cutucando a fera destruidora
que eu lutava para conter. Por mais que eu lutasse, simplesmente não
conseguia controlar os fantasmas do passado quando ele estava por perto.

Roberto seguiu meus passos, mas não disse nada. Ele sabia como lidar
comigo e estava lá para me proteger de mim mesmo.
Meu amigo passou pelo portão primeiro. E então eu vi meu irmão
gêmeo. Agitado. Andando na frente de seu carro de luxo. Ele parou quando
me viu e transferiu uma expressão mortificada. Evidentemente irritado, sem a
cara de puta ardilosa que costumava convencer as pessoas. Preferia vê-lo
assim, bem exposto, com nossos sentimentos compatíveis.

— Otávio! — Minha mãe apareceu e suas mãos delicadas abraçaram


minha cintura. — Meu filho, seu irmão, só quer ver o Noah.

O meu olhar fixou-se no de João Paulo, deixando claro que não queria
conflito, não na frente da nossa mãe. Eu nasci doente da cabeça, ele
desenvolveu um desvio de caráter, mas tínhamos algo em comum que nos
ligava apesar de toda a merda da nossa existência. Cada vez que tentávamos
uma trégua, estávamos pensando nela.

Porra, como eu odiava vê-la vulnerável! Ela deveria ser sempre a


rainha destemida da minha vida.

— Mãe, entre! — instruí com cuidado, usando um tom muito calmo para
tranquilizá-la. Ela negou, movendo seu rosto contra meu peito, me apoiando
com sua força de passarinho. — Entre, minha mãe. — Suspirei, coloquei
minha mão em seus cabelos e vi a indignação ascender nos olhos de João
Paulo.

— Quero ver Noah — ele disse, sua mandíbula tremendo de despeito.

— Você sabe que a única maneira de conseguir isso e me mandando pra


casa do caralho, não sabe, irmão? — avisei com cautela. — Você quer tentar
isso hoje.

— Otávio, olha a sua mãe! — Roberto me repreendeu e respirei fundo


três vezes.

— Tailana! — João Paulo gritou. — Venha aqui, Tailana. Entre nessa


casa e traga nosso filho! — Ele caminhou até a porta do passageiro e puxou
a mulher para fora do carro.

— Me solta! — minha ex-mulher brigou com o amante e minha mãe me


libertou e foi ajudá-la. — Eu não vou fazer isso, já disse! — Ela conseguiu
se soltar e olhou para mim. Então ela abaixou a cabeça e tocou a base do
pescoço com a mão, como se estivesse com dor naquele lugar. — Otávio...
— Veio em minha direção, exibindo olheiras profundas ao redor de um par
de olhos vermelhos e inchados.

O que aconteceu com ela para estar tão horrível?

— Caramba, mulher, você está bem de saúde, ordinária? Onde foi parar
a cor de seus lábios? Dane-se, não é mais da minha conta.

— Me deixa ficar, Otávio. — Ela me agarrou pelo meio e pude ver uns
buracos no centro de seu cabelo.

Até recentemente, aqueles fios falsos eram impecáveis. Além desse


dano, ela também estava um pouco rançosa, algo como odor de vômito.

— O que ele está fazendo com você, Taila? — perguntei, mas forcei
seus braços para longe de mim. — Onde sua vaidade foi parar?

— Me deixa voltar — implorou com lágrimas nos olhos.

— Você não vai voltar, mulher. Pare de se humilhar e fuja dele enquanto
há tempo.

— Seu irmão quer que eu entre com uma ação contra você ... — Ela
cruzou os braços e se fixou em um ponto atrás de mim. — Quem é ela?
Virei minha cabeça bruscamente, cerrando os punhos em uma ação
instintiva de proteção.

Juliana estava na porta. Em seus olhos, encontrei apenas preocupação


por mim.

Voltei para a frente, pegando João Paulo parado ao lado de nossa mãe,
sustentando uma curiosidade evidente no rosto, seus olhos brilhando,
desenvolvendo um novo frenesi pelo que me pertencia.

— Você é um homem morto! — ameacei apontando diretamente para ele


e meu instinto me fez avançar até Juliana.

Eu prendi a cintura da pequena e a empurrei comigo para a abertura do


portão.

— Otávio, venha comigo — ela disse, andando de costas, minhas mãos


em volta dela. — Está tudo bem. Só entre na sua casa, fique com os seus
filhos e tranque a porta. Estou com você.

— Me desculpe por isso, Juliana. Fica lá dentro com sua amiga e os


meninos. Eu já vou encontrar vocês.

— É a mãe do bebê? — perguntou Juliana e pude sentir os olhos de


Taila ardendo nas minhas costas.

— Você colocou uma vadia dentro da nossa casa! — Taila gritou e


respirei fundo com a indignação me estrangulando por dentro.

— Noah é meu filho, mãe, assim como o Thiago é de outro desgraçado


qualquer. Otávio é um retardado, ele nunca faria crianças tão saudáveis! Até
você sabe disso. — Ouvi João Paulo gritar lá fora e a névoa vermelha, já
conhecida, neblinou os meus olhos.

— Entra agora, Juliana! — A ordem saiu da minha boca, enquanto meus


músculos formigavam e minha frequência cardíaca subia.

— Quem é a morena? — Novamente um grito dele. — Ela já sabe que


seu filho é um monstro e mantém as mulheres em uma porra de prisão
particular?

A afronta me rasgou por dentro e um rugido estrangulado escapou de


dentro do meu peito. Incapaz de me controlar, larguei Juliana e fui com tudo
na direção dele.

— Otávio! Pare, Otávio! — gritei em desespero, ajudando Adriana


Parisotto a se sentar no meio-fio antes que ela caísse com força no asfalto.

Os quatro homens que tentaram contê-lo não tiveram sucesso. Agora, o


irmão, com o nariz sangrando, estava dentro do carro, mas tão afetado pela
pancada não conseguia fazer o veículo sair do lugar.

Otávio socava os vidros blindados, depois de ter esbagaçado a lataria


inteira com golpes.

Eu não estava preparada para vê-lo naquele surto desenfreado. Esse ser
violento não era o meu Otávio. Queria ir lá trazê-lo de volta, mas o medo me
encheu de angústia, meu estômago revirou e me esforcei para não vomitar,
como sua ex-mulher fazia perto da parede da casa.

— Não! Não machuque meu filho! — Adriana gritou e seus pés


ganharam vida própria.

Desesperada, fui atrás dela. Um dos seguranças bloqueou nosso


caminho, mas consegui avançar com os olhos e captei o momento exato em
que o marido de Madalena disparou os pequenos dardos metálicos de uma
arma de choque em seu amigo, deixando-o trêmulo, sem qualquer ação,
jogado no chão ao lado do que sobrou do carro.

— Otávio! — Corri, deixei meu joelho tocar no chão e segurei o rosto


dele entre minhas mãos — Tinha necessidade disso?! — gritei exaltada,
acusando o marido da minha amiga.

— Acredite, Juliana. Ele mesmo pediria isso se tivesse como — foi o


que o homem justificou quando se juntou com os seguranças para levantar
Otávio do chão.

Adriana Parisotto seguiu o filho inconsciente, mas no meio do caminho


olhou para trás e correu em direção ao carro. Eu sabia quem estava lá, então
a deixei sozinha com aquele desespero e voltei para o portão da casa, para
onde meu Otávio foi levado.

— Você... está com ele?

Ouvi uma voz baixa e fraca quando atravessei o portão e decidi voltar.

A negra, de corpo esguio e magro, tinha uma das mãos na parede. Meio
curvada, ela tossia muito sobre uma poça de vômito.

— Acho que você precisa de ajuda — falei durante aquela análise.

— Eu preciso do Otávio... Quero conversar com ele... João Paulo não


vai... Ele não vai me deixar em paz sem a ajuda do Otávio.

— Venha, colega. Você está muito perturbada das ideias. — Segurei-a


no braço e levei um sopapo. — Ah, fia da peste. Não quer ajuda, não?

— Eu quero meu homem. Minha casa. Minha vida — ela disse


incisivamente, em sua voz baixa e mimada. Quando ela tossiu, eu a peguei de
má vontade e a puxei contra as paredes, para dentro da casa. — Eu não sou
louca — gritou. — Não sou louca!

— Não é, só precisa tomar um chá calmante e um banho.


— Você quer matar o bebê!

— Sangue-de-cristo-tem-poder! — exclamei abalada.

— Ahhh! Me solta. — Ela tentou me morder e eu tive que segurá-la


pelos cabelos.

Levei-a para dentro de casa e a deixei sentada no sofá, então Madalena


chegou com o Noah nos braços e a mulher se levantou para pegá-lo.

— Criança, venha dar um abraço na mamãe, meu amor — disse a mãe,


caminhando até o filho.

Noah olhou para mim e olhou para ela, então olhou para mim
novamente e empurrou o bico que estava em sua boca deixando-o pendurado
na corrente. Ele parecia tão confuso, coitadinho.

— É sua mãe, Noah. Vai ficar com ela. — Acariciei a bundinha da


fralda.

Ele olhou para a mulher novamente e se jogou imediatamente nos meus


braços, deixando sua mãe agitada, gritando na sala, chorando, xingando e
fazendo ameaças.

Nove e quarenta e cinco da noite. Verifiquei no visor do meu celular,


assim que Roberto desceu as escadas e pegou a filha que dormia nos braços
da minha amiga. Ele havia levado a ex-mulher de Otávio para algum lugar e
só então chegou para buscar Madalena. A outra família de amigos havia
partido minutos antes.
— Tem certeza de que vai ficar? — minha amiga perguntou novamente.

— Não vou deixá-los, Madá. — Olhei para o bebê que dormia no meu
colo, com a cabeça encaixada na curva do meu pescoço. — Como está seu
amigo, Roberto?
— Medicado... Quer mesmo ficar aqui esta noite? — Roberto perguntou
e eu assenti.

— Cadê o Thiago? — indaguei, olhando para as escadas.

— Sentado na porta do quarto do pai. Thiago entende que este não é um


bom momento para estar com ele, mas nunca o deixa completamente sozinho.

— Eu entendo e fico triste por ele estar tão crescido em sua pouca
idade. — Funguei, sentindo minha alma sofrer por todos eles.

— Otávio está em tristeza profunda e com o humor oscilando o tempo


todo — Roberto completou, após engolir o nó na garganta. — Ele me pediu
para levá-la daqui, então peço que não entre lá, até que ele esteja pronto
para enfrentar as coisas aqui fora. Às vezes, leva alguns dias. Se decidir
voltar para casa, ligue para a Madalena. Venho buscar você e levar os
meninos para dormir na minha casa.

— Não vou entrar no quarto — assegurei. — Mas ficarei aqui pelas


crianças. Vejo como as coisas vão ficar amanhã e ligo.

— Come alguma coisa, amiga. — Madalena beijou o meu rosto, os


cabelos de Noah e saiu, seguindo o marido e sua filha.

Apertei o celular na palma da minha mão e me levantei com o peso do


bebê. Naquele momento a senhorinha descia as escadas. Minutos antes ela
subiu com uma bandeja de alimentos, agora, estava voltando com as mesmas
coisas nas mãos.

— Otávio não me apresentou, não tivemos tempo, mas estamos juntos e


eu conheço os filhos há mais tempo. — Senti a necessidade de dizer, já que
ela me investigava com simpatia porque o bebê grudava em mim.
— E você vai ficar depois de hoje? — perguntou a velhinha, soltando
um suspiro de pura preocupação.

— Eu já entrei aqui sabendo de tudo... Como é o nome da senhora?


— Poliana, mas você pode me chamar de Bah. O Tavinho foi o
primeiro a me chamar assim, depois todos o seguiram. Exceto João, que... —
ela hesitou.

— Continue, por favor, Bah — insisti, querendo saber tudo.

— O Tavinho precisava de uma atenção especial, exigia mais de mim,


mas eu cuidei de ambos. O menino João não entendia essa necessidade do
irmão e exigiu que seus pais contratassem uma segunda babá que prestasse
atenção apenas nele. Foi quando me tornei invisível aos olhos dele. — Bah
piscou e um par de lágrimas escorreram por suas bochechas enrugadas. —
Fico triste cada vez que eles brigam. Estou velha, não consigo mais conter
minhas emoções. Lamento falar tanto, minha querida.

— Não se desculpe. Eu também sou uma tagarela. — Queria abraçá-la


por ser tão especial na vida do Otávio, mas segurava o pacotinho nas mãos,
então só sorri para ela. — Acho que temos muito o que conversar. Quero
saber tudo sobre o Tavinho.
Rimos juntas, mas o sorriso desapareceu gradualmente. Estávamos
muito tristes para sustentá-lo.

— Ele e essas crianças precisam de muito amor. Eu preciso fazer


minhas orações. Vou pedir para você ficar. Vou me recolher agora. Tente
fazer o Thiago deitar. Ele não me obedece em situações como esta.

— Dona Adriana ainda não desceu — falei retoricamente quando a


velhinha seguiu em frente, levando a bandeja nas mãos.

— Ela está vigiando o sono do filho. Não vai descer tão cedo... — Bah
comentou, de costas para mim, afastando-se lentamente.
Subi as escadas com o bebê e parei na frente de Thiago, que estava no
chão, com os braços cruzados sobre os joelhos.

— Docinho, venha aqui comigo. — Ao som da minha voz ele ergueu a


cabeça.

— Não posso deixar meu pai, Juliana.

— Ele nunca fugiria sem você, certo? — perguntei e ele piscou os


olhos, como se confirmasse meu raciocínio — Então venha comigo, docinho.
Se Otávio acordar amanhã, você precisa estar bem para interagir com ele.

Ele desviou os olhos, refletindo, então perguntou:

— Você vai ficar com meu irmão?


— Vou ficar com você também, amor. Venha comigo. Esse pacotinho
aqui está muito pesado e preciso colocá-lo em um berço. — Estendi o pulso
da mão em que segurava o celular.

— Você vai dormir aqui? — O menino se levantou, passando as costas


da mão sobre os olhos e dando um sorriso esperançoso.

— Quero um lugar na sua cama e não estou disposta a ouvir um não —


brinquei.
Os olhos do pequeno se iluminaram.

— Nosso quarto é aquele — ele disse, apontou e seguiu na frente. —


Amanhã você dorme no quarto do meu pai — declarou. — Ele vai ficar bom
mais rápido. — Abriu a porta do quarto. — Meu pai ficou muito feliz
quando Noah nasceu. Vocês podem ter uma nova criança, por favor?

— Docinho, vou apenas cuidar de vocês, não me traumatize antes da


hora. O que há com você e seu pai para serem tão adiantados?

— O bebê também é. Esqueceu que ele já foi chamando você de mãe?


Meu irmão é um espertalhão. Entre, Ju.
— Uau, Thiago, amei o seu quarto! — admiti, observando a forte
decoração de dinossauros.

— Meu irmão gosta do Tricerátops. Ele sempre dorme com esse aqui.
— Ajeitou o berço e segurou um pequeno dinossauro. — Ele é herbívoro e
suas principais armas de combate são esses três chifres aqui. Essa espécie
viveu durante o fim do período Cretáceo, principalmente na região que é
hoje a América do Norte. Você gosta de dinossauros, Juliana?

— Gosto. Gosto sim. Eu até... — Limpei a garganta para cortar


qualquer blefe. — Me ajude aqui, puxe o lençol. — Ele fez o que eu pedi e
em seguida coloquei o bebê dentro do berço.

— Eu já fui à França Jurássica[19], com os meus avós, pais da mamãe.


Lá é considerada o Jurassic Park da vida real, pois foi encontrada mais de
1.500 pegadas de dinossauros de espécies herbívoras e carnívoras. Aqui em
São Paulo existe um parque com alguns dinossauros robóticos e em tamanho
real. Eles se movem e grunhe. Vou pedir ao meu pai para levar você lá até
que ele esteja bem para fazer viagens longas.

Eu olhei para ele com admiração, vendo sua melhora repentina no


entusiasmo.

— Você é um menino muito inteligente, Thiago.

— Tento saber um pouco de tudo, Ju, mas tem tanta coisa que ainda não
descobri. Meu pai diz que preciso ir com calma, mas gosto de aprender.
Assim mantenho minha cabeça ocupada.

— Você não brinca?


— Quem brinca é criança. Já estou entrando na adolescência. Faltam
apenas três anos e meio.

— Minha nossa, e nove e meio até você ser um adulto barbudo! —


Fingi um espanto e ele sorriu convencido. — Você está com fome? — Tracei
meus dedos até o corte perfeito na parte inferior de seu cabelo.
— Eu não consigo comer, Ju — disse ele, a voz baixa e comprimida. —
Meu peito está com o mesmo vento estranho, acho que isso é preocupação
com o papai.

— Ele vai ficar bem, docinho... — Levantei minha cabeça e suspirei


profundamente para conter as lágrimas, enquanto meu coração afundava de
tristeza com as palavras do menino. — Que tal você me levar para conhecer
a cozinha?
— Não acredito que meu pai tem uma namorada tão parecida com
minha mãe. — Ele fechou os braços em volta da minha cintura sem que eu
esperasse. — Seu olhar sentimental é igualzinho ao dela.

— Meu amorzinho, hoje estou uma manteiga derretida, então não me


faça chorar. Vamos, me leve para a cozinha agora.

— Você vai me fazer comer, não é? — disse ele, o rosto relaxando num
sorriso suave.

— Até a sua pancinha ficar do tamanho da minha — confirmei,


cutucando sua barriga com os dedos.
— Não, eu não tenho pancinha. Isso é coisa para o meu irmão! — Ele
se esquivou e eu continuei fazendo cócegas.

Quando o bebê resmungou no berço, nós nos calamos e saímos do


quarto na ponta dos pés.
Eu estava sentada na cama de Thiago, cochilando, de costas na
cabeceira, quando ouvi um clique vindo do corredor.

Lutei para alcançar meu celular na mesinha em formato de vulcão e


conferi as horas na tela.

Duas e meia da manhã. Eu tinha dormido muito.

Após alimentar Thiago e petiscar os lanches que seriam servidos na


festa, subimos as escadas, olhamos a porta do quarto de Otávio, trocamos
olhares tristes e fomos direto para o quarto decorado com dinossauros.

Sentei-me com o pequeno na cama e para distraí-lo fiz perguntas sobre


os dinossauros. Ele realmente entendia o assunto e, naquele momento, eu
conseguia dizer pelo menos 20 nomes das 700 espécies de dinossauros que
foram descobertas.
Ouvindo passos se afastando, consegui me levantar sem acordar Thiago
e prendi meu cabelo em um coque alto enquanto olhava para o bebê. O
principezinho dormia a noite toda. Ele não chorou nem quando troquei sua
fralda cheia de xixi.

Não vi ninguém no corredor. Então me aproximei da porta do quarto de


Otávio, coloquei meu ouvido lá e tentei captar algum sinal sonoro.
— Juliana... — Ouvi meu nome e me afastei com um estalo, esfregando
a mão no peito que disparou de susto.

Adriana Parisotto estava parada no topo da escada.

— Oi Adriana, só queria saber se está tudo bem.

— Fui lá, vi que você ficou com os meninos. Eu estava descendo para
pegar água, mas resolvi voltar para acomodá-la em outro quarto mais
confortável. — Ela liberou um suspiro cansado.

— Seu filho...

— Ele está dormindo. Estável e medicado. Venha. Eu vou te mostrar


outro quarto...

Eu a interrompi:

— Quero vê-lo, Adriana. Ele sabe que estou aqui?

— Sabe. Mas não quer ver ninguém. É assim mesmo, querida. Depois
da fúria, vem um profundo estado de vergonha e tristeza. Roberto te contou
sobre a TEI, certo?

— Sim, mas quero saber mais sobre ele. Estou me envolvendo com o
seu filho e com as crianças. Quero saber tudo.

Minha mente ainda estava rodopiando tonta, cheia de preocupação e


dúvida, mas enquanto eu tentava entender os detalhes, as certezas surgiram, e
todas giravam em torno do meu desejo de ficar.

— Vamos lá embaixo? — sugeriu ela, me estendendo a mão.

— Vamos.

Eu fui. Então, Adriana pôs a mão no meu braço, e me levou pela


escada.

Caminhamos em silêncio até o primeiro andar da casa. Eu estava tão


envolvida em meus pensamentos que não percebi o resto do caminho até que
entramos na cozinha gigante.

Parte das luzes estavam acesas e não havia nenhum funcionário lá.
Quando nos sentamos à mesa, uma ao lado da outra, Adriana finalmente
começou explicar:

— Houve um tempo na infância em que meus filhos eram unidos. — O


olhar da loira vagou para longe. — Mas aos seis anos, quando Otávio
começou a dar sinais do transtorno, as coisas começaram a se complicar. Ele
era sempre agressivo e triste, nunca normal. Como não existia exame
específico para identificar o TEI[20], os profissionais tiveram dificuldade na
clareza da interpretação clínica e nos deram o diagnóstico de hiperatividade.
O atraso do tratamento adequado fez Otávio precisar cada vez mais de
atenção e, infelizmente, meu marido e eu não podíamos oferecer o mesmo
tempo ao nosso outro filho. João Paulo era pequeno para perceber que a
situação exigia todas as minhas forças. Então ele começou a culpar seu
irmão por nossa falta, e esse cruel sentimento de desprazer foi se
agigantando com o passar dos anos.

Abalada e evidentemente exausta, Adriana colocou a mão na minha,


como se pedisse o meu apoio; eu a segurei com afeição.

— Hoje, ele continua querendo o que Otávio possui, estou certa? —


indaguei e a mulher abaixou os olhos em uma muda confirmação. — Sobre o
que foi dito lá fora e fez Otávio perder o controle. A viúva... Thiago é uma
cópia do Otávio, com uma dose extra de melanina. Como seu filho pode
brincar com isso? A menos que ele...
— Não, Danielle foi fiel até seu último suspiro — Adriana interrompeu
minhas palavras. — A família dela morava na França, mas ela passava
férias aqui no Brasil, com a família da mãe, que era nossa vizinha na época.
A menina vivia na minha casa, brincando com o João Paulo. Ela tentava se
aproximar de Otávio, mas ele a afastava em todos os sentidos. Aos quatorze
anos, Otávio e Danielle simplesmente desapareceram. Ficamos todos
malucos. Os pais dela consideraram que meu filho poderia ter machucado a
menina por não gostar dela. Mas eles voltaram algumas horas depois, e
vieram de mãos dadas, e seus rostos estavam tão corados que pareciam ter
tomado sol naquele dia chuvoso. Aconteceu algo especial entre eles, eu fui a
primeira a saber, o João Paulo descobriu depois, então o que já era difícil
tornou-se insustentável.

— Danielle queria Otávio e João Paulo queria Daniele. Ter perdido


para seu irmão fez seu rancor crescer. — Sintetizei quando ela se calou para
enxugar as lágrimas. Não havia outra conclusão que eu pudesse tirar.

Adriana abaixou a cabeça e assentiu, lamentando.

— Eu reconheço minha grande parcela de culpa. Tive os dois. Eu


deveria ter cuidado de tudo, mas não dei conta e negligenciei a atenção para
um deles.

Exasperada com os relatos, fechei minha segunda mão sobre a dela,


ensaiei um tom de voz despreocupado e demonstrei meu protesto contra
aquela culpa:

— Acredite em mim, você deu o seu melhor, Adriana. Eu nunca tive


pai, ele era caminhoneiro e se perdeu em uma curva quando minha mãe
estava grávida. Ela não resistiu e morreu no parto. Nunca tive nenhum tipo
de carinho e proteção até que minha melhor amiga me encontrou vasculhando
o lixo em um beco da nossa cidade... Não era só sentimento que eu não tinha,
era comida e um teto para colocar minha cabeça... Eu tive muitas
oportunidades de ser ruim, mas optei por aprender com todos os momentos
difíceis, outros foram necessários esquecer para seguir em frente. A gente
escolhe ser ruim, se ele não tem diagnóstico de psicopatia, ele escolheu ser
assim por incompreensão. Você engravidou nova, né?
— Eu tinha 21 anos... Lamento o que você passou tão nova e sozinha,
Juliana... Lamento muito — disse ela com sinceridade.

— Se eu for contar minha vida, podemos passar um dia inteiro que


ainda vai faltar coisas. Mas prefiro não abrir a caixa do esquecimento. Fiz
muita terapia para pensar assim e não vou voltar atrás. Prefiro olhar para o
futuro. — Sorri morosamente e ela retribuiu o sorriso. — Você é uma mulher
de coração generoso, Adriana. Não me arrependo de ter admirado você na
internet — confessei, beijando a mão dela. — E agora, olhando em seus
olhos, vejo que você reconhece que seu filho é um mau-caráter por escolha.
É normal aceitar isso e não se culpar. Você já enfrentou muitas coisas para
continuar a se maltratar assim, mulher.

— Eu o amo — interrompeu-me — Amo os dois... Eles e essas


crianças são minha vida.

— Não duvido disso. Você é mãe. As mães amam incondicionalmente.


Está tudo bem — concluí. — Venha e me dê um abraço, meu bem. — Eu
estendi minhas mãos e ela veio. — Você conseguiu dormir?

— Não. Estava vigiando o sono de Otávio e preocupada com João...


Agora estou mais tranquila. O pai acabou de pegá-lo no hospital. Já estão em
casa.

— Então, vamos aproveitar esse momento para dormir? — Tentei ser


sensata, realmente precisando recuperar minhas energias mentais.

— Vou procurar um pijama que sirva em você. Dani ou Tailana devem


ter deixado alguma coisa...

— Não, não, Adriana. Nem pensar. Estou supersatisfeita com esse meu
vestidinho. — Me levantei, segurando a mão dela. — Por falar em Tailana...
Ela estava desorientada hoje ou aquele é o normal dela?

— Vou pegar minha água. — Adriana encheu um copo no purificador e


novamente colocou o braço no meu, e voltamos para a escada que levava
primeiro andar da casa.
— A ex-mulher de Otávio é desorientada ou não estava em um bom
dia? — perguntei por curiosidade.

— Ela não estava em um bom dia. Por isso pedi ao Beto que a levasse
para um lugar seguro.

— Ela só gritava pelo Otávio, queria conversar com ele de qualquer


jeito. Nem perguntou pelo bebê...

— Vou falar com ela quando puder. Não sairei daqui até que Otávio
esteja bem. Já cancelei todos os compromissos importantes para os
próximos dois dias.

Ficamos em silêncio por um tempo enquanto subíamos as escadas, mas


uma pergunta dominou minha mente e me deixou sedenta pela resposta.

— E o pai dele... Ele não vem aqui para ver o filho? — inquiri em um
tom errado e limpei a garganta procurando minha voz mais delicada. — Eles
não se dão bem, é isso?

— Eles não...

A mulher ficou em silêncio, pois quando chegamos ao topo da escada,


vimos a silhueta gigante saindo do quarto das crianças e, como se não
percebesse a nossa presença, entrou em seu quarto e fechou a porta.

— Ele foi ver as crianças — comentei retoricamente.

Adriana suspirou.

— É a preocupação dele. Venha. Vamos dormir.

— Adriana... — Parei por um momento, enquanto minha mente rejeitava


o medo e aceitava uma nova decisão. — Vou ficar com ele.

Estava decidido.

— Não, não. Ele está em um período de vulnerabilidade. Só eu, Bah e


Danielle...
— E agora, Juliana — interrompi minha sogra, soltando sua mão,
disposta a aprender realmente a lidar com o filho.

— Juliana... — ela implorou, mas eu já estava testando a fechadura e


descobrindo que ela estava aberta.

Tremendo da cabeça aos pés e fingindo naturalidade, pisquei para


minha sogra e entrei no quarto frio e escuro, fechando a porta atrás de mim.

Dentro do quarto gigante, sob a penumbra de uma fileira de pequenos


pontos de luz que vinha do gesso do teto, engoli em seco, olhando para o
homem deitado de bruços, vestindo apenas calça de moletom branca. Braços
fortes em volta do travesseiro, costas nuas. Cama enorme e coberta apenas
com forro do colchão. Impecável.

Otávio sentiu minha presença e certamente estudava meu próximo


passo.

Suspirei lentamente, reunindo mais coragem. O silêncio parecia querer


me sufocar.

Não consegui me mover até que meu cérebro de alguma forma se


normalizou. Então, estreitei o espaço que me separava da cama, sentei-me a
seus pés e rastejei até que todo o meu corpo estivesse deitado sobre as
costas de Otávio.

Soltei minha respiração e suas costas subiram e desceram. Ele ofegou


cerca de cinco vezes até relaxar.

Estou aqui, bonitão, falei em pensamento e meus dedos vagaram entre


seus fios úmidos e gelados.
Eu não sabia quais eram as melhores palavras naquele momento, mas
respirei fundo, beijei seu ombro e comecei a cantarolar:

You have my heart[21]


And we'll never be worlds apart

May be in magazines
But you'll still be my star
Baby, ‘cause in the dark

You can't see shiny cars


And that's when you need me there
With you I'll always share

Because
When the sun shine, we shine together
Told you I'll be here forever

Said I'll always be your friend


Took an oath, I'mma stick it out to the end
Now that it's raining more than ever

Know that we'll still have each other


You can stand under my umbrella

You can stand under my umbrella

Ella, ella, eh, eh, eh


Under my umbrella
Ella, ella, eh, eh, eh

Under my umbrella
Ella, ella, eh, eh, eh
Under my umbrella
Ella, ella, eh, eh, eh, eh, eh, eh

Eu ainda estava cantarolando baixinho quando ele se virou lentamente,


me fazendo deslizar no colchão ao lado dele.

Ficamos em silêncio, olhando nos olhos um do outro.


Levei minha mão até seu rosto e desenhei os contornos perfeitos com a
ponta do meu dedo indicador.

Ele fechou os olhos, sentiu todo o meu carinho e, calado, desceu a mão
na lateral da minha coxa e subiu o tecido fino do meu vestido. Eu o ajudei a
fazer aquilo, sentei e me livrei da peça. Nós olhamos por um intervalo de
segundos e ele segurou firme em minha cintura e sua força me levou de
encontro ao peito musculoso.

Ele fechou os olhos, sentiu todo o meu carinho e, silenciosamente,


colocou a mão na lateral da minha coxa e puxou o tecido fino do meu
vestido. Eu o ajudei a fazer isso, sentei e me livrei da peça.
Nós assistimos por um longo intervalo de segundos e sua mão veio
firmemente para minha cintura, levando-me para seu peito musculoso.

Me encolhi nele e respirei o cheiro fresco de seu corpo quente.


Continuamos quietos e íntimos, até que, finalmente, eu o vi dormindo.
Cansada demais, não percebi quando também me perdi em um sono
profundo.
Fui acordado por um pássaro cantando no jardim.

Uma fina corrente de ar atingia a cama e, devido à pouca luz do quarto,


percebi que as cortinas estavam separadas e a porta da varanda aberta.

Levei alguns minutos para recuperar as cenas da noite anterior e soltei


um suspiro angustiado quando elas vieram.

Fui levado pela cegueira da raiva, virei bicho e fiz toda a merda na
frente da Juliana.

Eu me esconderia como fiz outras vezes. Eu fecharia as janelas com o


blecaute das cortinas e ficaria no quarto um mês inteiro odiando aquela
maldita doença e todas as suas consequências, mas meu coração estava
batendo forte agora e o motivo era ela: a pequena maravilhosa que se
aninhou nos meus braços, que não fugiu, que cantou para mim, aliviou o meu
fardo e suspirou no meu peito.

Cristo, eu estava imensamente apaixonado e queria desfrutar desse


fluxo contínuo de esperança todos os dias da minha vida.

Virando a cabeça para a esquerda, vi o vestido que ela usava dobrado


sobre a cama, onde deveria estar seu corpo lindo.

Juliana, eu não vou te largar mais, pequena.

Sentei-me na cama com a paixão queimando meu peito.

O riso doce do meu bebê e a fala infantil dela interagindo com ele
chegaram aos meus ouvidos e eu sorri com avidez. Ela estava no quarto das
crianças, brincando com elas, enchendo-as de amor e esperança.

Ansioso, tirei a calça e fui para o banheiro. No chuveiro, tomei um


banho frio para diminuir o entusiasmo que borbulhava em mim.

Preciso ser romântico para não machucar a pequena!, concordei


enquanto escovava os dentes na frente do espelho, vendo a bolsa dela atrás
de mim, no armário.

Larguei a escova, me enrolei em uma toalha seca e cheirei meu robe


pendurado no gancho. Ela usou. Estava úmido e com o cheiro dela. Cheiro
gostoso de mulher.

Mas qual a utilidade da fragrância se não podemos experimentá-la?,


pensei enquanto caminhava em direção a seus barulhinhos com meus filhos.

Caramba, eu não estava tão preparado e senti o coração bater na


garganta ao flagrar uma cena saída direto das páginas de um conto de fadas.
Dane-se, nunca li um, mas sabia que só tinham finais perfeitos.

— Usar roupas e estar pelado, para o papai, é a mesma coisa, né


meninos? — Isso veio na voz de Juliana, que estava vestida com uma das
minhas camisas, sentada no tapete, com o bebê entre as pernas, enquanto
massageava os pés de Thiago, que continha um sorriso feliz.
— Pa. Pa. Pa... — Noah, vestindo apenas fralda descartável, camisa e
meias, passou o pé pela coxa grossa de Juliana e segurou-a com força nos
cabelos até estar pronto para dar dois passos bambos em minha direção.

Eu o peguei antes que caísse no chão e beijei o rosto dele.

— Bom dia... — falei, de pé ao lado de Juliana, com Noah sentado no


meu braço e meu coração sacolejando no peito.

— Bom dia... — Ela me olhou e sorriu de um jeito bonito.

— Onde está minha mãe?

— Estou aqui. — A voz calorosa veio da porta e me virei naquela


direção. — Você está lindo assim... feliz, filho. — Ela veio e beijou meu
rosto. — Eu fico com eles. Podem ir namorar — sussurrou em meu ouvido,
deixando-me de rosto quente. — Venha com a vovó, bebezinho. — Tirou
Noah dos meus braços.

Ansioso olhei para Juliana.

Ela estava entretida com Thiago, então sentei-me ao lado dele, na cama,
beijei sua testa e olhei nos olhos da pequena.

— Vou deitar de novo — eu disse. — É cedo ainda.

Ela estreitou os olhos antes de fazer uma varredura indecente no meu


corpo.

— Vou terminar a massagem do Thi, daqui a pouco vou lá cuidar de


você. — Ela piscou sugestiva e eu me levantei com a imaginação gritando
por dentro.

— Você já tomou café da manhã, Thiago? — perguntei ao meu filho.

— Já — ele respondeu com um brilho novo nos olhos.

— Ótimo, filho. Sua avó ficará com você agora e almoçaremos todos
juntos na mesa.
— Obrigado por trazê-la, pai! — Meu filho levantou e apertou minha
cintura em um abraço repentino. — A Ju dormiu no seu quarto e você ficou
calmo rápido.

Limpei minha garganta e tentei ignorar as risadas de minha mãe.

— Te encontro na hora do almoço, filho. Papai te ama muito. —


Afaguei seus cachos, olhei para a porta e fiz aquele caminho.

Fui para o meu quarto, tirei a toalha, deitei-me na cama e esperei


Juliana.

Longos minutos se passaram até que ela chegou. Veio quietinha, trancou
a porta e se juntou a mim na cama. Cada curva farta agora estava colada no
meu corpo, sua cabeça cheirosa descansando no meu peito.

— Como você está, Otávio?

— Bem. — Foi minha resposta.

E excitado pra caralho, só pensei, querendo não atropelar as coisas.

Tê-la estreitada com a força dos meus braços naquela cama era estar no
paraíso.

— Quer conversar um pouquinho comigo? — perguntou.

— Sou assim, Juliana. Não queria que você visse nada daquilo. Eu
falaria com você em breve. Só não tinha certeza ainda.

— Tudo bem, estou aqui, não estou? — Beijou meu peito e entrelaçou
sua perna em mim.

Respirei fundo. Mais relaxado.


— Nasci com um lado agressivo que é incontrolável, faço tratamento
semanal e fico mais aqui, na minha zona de conforto. Mas não prendo
ninguém em casa. Nunca fiz isso. Eu só protejo as pessoas que amo porque
ganhei muito dinheiro e temo por nossa segurança.
— Seu irmão quis provocar você usando isso. Eu nunca confiaria em
uma palavra daquele canalha.

— Você também terá um segurança particular a partir de agora, Juliana.

— Calma. — Ela sorriu, segurando o meu rosto. — Uma coisa de cada


vez, lindo.

— Você conversou com alguém, provavelmente minha mãe, sobre minha


doença, depois veio dormir comigo, sem medo. Você quer ser minha. Já sei e
não vou pedir que vá embora, vou tentar ser melhor para você, assim como
sou para os meus filhos.

O rosto dela tremeu e sua pélvis empurrou duas vezes contra minha
perna.

— Eu posso te chamar de “grosseirão esperto”? — Mordeu o meu peito


e eu gostei muito daquilo.

— Você pode me chamar de qualquer coisa, inclusive de “meu”. Você


também pode cantar aquelas palavras bonitas da noite passada.

Meu coração acompanhou o ritmo de sua respiração.

— Otávio... — Um beijo foi deixado no meu peito. — Estou me


apaixonando. Isso é tudo que sei agora.

— Fica comigo. — Minhas palavras saíram em um jato. — Podemos


despertar o amor juntos e iluminar todas as sombras que nos habitam. —
Inspirei a fragrância boa de seus cabelos. — Vamos nos colocar no lugar do
outro e isso vai doer muito. Mas também reconheceremos nosso melhor
potencial e nos daremos forças para manifestar esse potencial adormecido
até que o outro esteja feliz e realizado.

— Estou bobinha e sempre zombei de minha melhor amiga. Ela vai


passar isso na minha cara — sussurrou de olhos fechados.

Suas mãos estavam habilidosas indo e vindo no meu peito, até que a
danada passou a circular um dos mamilos. Uma travessura boa.
Traguei saliva, e quase rosnei ao sentir a ponta do dedo brincando, e eu
riria da sua ousadia se alguma coisa já não estivesse doendo de tão inchada.

Sabia que pelo rabo do olho ela acompanhava interessada o inchaço.


Aquilo muito a interessava.

A mim também. Um meio sorriso estava no meu rosto, e observei que


Juliana liberava um sorriso travesso e irônico.

Ela era tão sexy, especialmente agora, mordendo a polpa do lábio.

Porra, Juliana....

— Eu quero você agora, mulher... — falei quase num rosnado, a voz já


rouca por causa do sangue desesperado inchando o que ela desejava.

Não dava mais para ficar ali naquela posição. Minhas mãos foram para
seu quadril, e a girei na cama num movimento hábil.

Juliana deu um gritinho de surpresa que fez queimar cada célula minha.

Todo meu gelo se derretia.

Prendi suas mãos acima da cabeça na cama, e acomodei meu corpo


sobre o dela, com cuidado, para que ela sentisse a dureza do que ela estava
provocando há tempos. Queria que ela sentisse como a coisa era grande e
estava interessada nela.

Juliana parecia gostar da prisão do meu corpo sobre o dela. Acomodei


o pau entre suas pernas.

Nossas respirações estavam entrecortadas.

— Eu não vou te largar nunca mais... — declarei.

— Qual é o outro motivo de eu estar aqui, cutucando onça com vara


curta? — falou arfante. O olhar brilhante como fogo líquido procurando o
meu.

Era um sim.
Minha! Ela queria ser minha!

— Pois vou te cutucar agora com uma vara longa, Juliana!

— Misericórdia!

Ela deu uma pequena gargalhada, muito breve, porque estava excitado
demais para não a calar com um beijo.

Eu estava faminto. Juliana queria que eu virasse onça e eu virei. Só


dela e só para ela.

Beijei aquela ousada e maravilhosa boca, que eu adorava e me deixava


louco.
Agi por puro instinto e algo mais. Um desejo irrefreável de passar a
língua em seus lábios, saborear, morder a carne grossa e macia.

Remexia-me sobre ela selvagemente.

O pau muito duro e quente melando já suas coxas.


Juliana gemia enquanto eu comia a sua boca. Não era suave. Era
delicioso e profundo. Ela abriu a boca para receber minha língua ávida, e
gemia, os braços ainda presos acima da sua cabeça.

Não tive como não gemer também.

Minha língua entrou profundamente, como se fosse outra coisa dura que
queria entrar dentro dela. Meu corpo se colava mais ao seu. Ela era pequena,
macia e voluptuosa debaixo de mim. Beijava-a ardentemente, entorpecido de
prazer.

E sua boca estava doce. Muito doce e sua língua brincava com a minha.
Provocativa e sinuosa. E seu corpo estava rendido ao meu.

Ela lutava para respirar e eu notei que estava bancando um bruto


selvagem mais uma vez.
Afrouxei o contato, e descolei a boca da dela, resolvido a ir com menos
fome e menos pressa.

Juliana sorriu.
Soltei suas mãos, e, para minha mais agradável surpresa, Juliana me
envolveu com seus braços, e sorriu largamente parecendo muito satisfeita.

Olhei-a, maravilhado. Sorri ao sentir que ela estava ali comigo. Minha
tristeza ia embora quando ela me beijava. Parecia que seu sorriso levava
embora tudo de ruim. Me dava esperança.

— Pequena, desculpa, estou indo com muita sede ao pote?

— Não, estava perfeito... — Ela deu um olhar satisfeito. — Quero


mais, por favor, me dá mais... Mais beijos, mais sorrisos.

Como resistir àquele pedido?

Sorri mais, e tomei novamente seus lábios bonitos e sensuais, sedento,


firmando seu queixo para que minha língua devorasse sua boca. Nossas
línguas se entrelaçavam, nossas respirações se misturavam.

As mãos atrevidas de Juliana foram para minhas costas, o que me fez


grunhir. Arranhava-me como uma gata assanhada.

Ela desceu em seguida suas palmas para minha bunda, e ela a apertou
com selvageria. Não pude deixar de dar uma risada rouca.

— Você gosta de provocar... — rosnei.

— Quero você — falou, lambendo os lábios, e enfiando mais as unhas


na minha carne.

— Juliana...

— Gosto da sua bunda!

— Também adoro a sua — falei, apertando a bunda dela com as mãos


em concha, erguendo-a pelo traseiro.
Dei mais uma risada rouca, e mordi seu pescoço, o que a fez dar um
gritinho.

Linda, sensual, sem medo de exprimir o prazer que sentia.


Vi seu olhar oblíquo me pedindo, e todo meu controle se esvaiu.

Fui até sua orelha, falando com a voz rouca.

— Quer que eu te toque inteira, pequena? Quer que eu te dê muito


prazer?

— Sim. Quero tudo o que você tem — ela murmurou, depois levou suas
mãos até meus ombros, até segurar meu rosto e me fazer encará-la. — Lento
e quente...

Minhas mãos deslizaram por seu corpo voluptuoso. Ela usava uma das
minhas cuecas e, porra, ficou tão sexy nela.

Arranquei tudo com pressa até que estivesse nua.

Suspirei quando vi aquele corpo inteiramente perfeito. Linda em cada


centímetro de pele. Um sorriso preguiçoso apareceu em meu rosto. E uma
onda de emoção me varreu ao mesmo tempo. Meu corpo e meu coração
estavam presentes.

Olhei para a barriga que respirava com lentidão, para a cintura bem
torneada, para a beleza dos quadris largos, o sexo gostoso entre as pernas
que dava vontade de lamber sem parar, até meus olhos pousarem no busto
alto e convidativo.

Toquei os seios duros, maravilhado.

Eles estavam macios ao meu toque, lindos de ver, com os bicos bem
empinados, e rapidamente os abocanhei para meu deleite.

O desejo veio forte, alucinado de sugar aqueles bicos que ficavam


durinhos na minha boca quando eu chupava fazendo barulho de sucção.
Juliana jogou a cabeça para trás, cheia de prazer, remexendo o quadril
involuntariamente, ondulando, fazendo meu pau latejar doido para estar
dentro dela.

Sugava os mamilos duros, apertava os globos, e grunhia de plena


satisfação animalesca. Minhas mãos depois se encheram com sua bunda, às
vezes arranhando suas coxas, enquanto continuava com a sucção prazerosa.
Adrenalina pulsava em minhas veias.

Juliana quase gritava, apertando suas pernas uma na outra. Eu sabia que
ela estava com um tesão louco, como eu.

Depositei beijos em seu pescoço, sua boca, e fui até sua orelha, para
mordê-la. Ficou arfante e rendida. Minhas mãos continuavam a apertar a
bunda gostosa.

Meu pau doía de tão duro, longo e teso, repousado em sua coxa.

Eu precisava muito sentir o toque de Juliana em mim ficar mais ousado.

— Pega nele — pedi. — Você quer?

A resposta dela foi ir com sua mão até meu pau e circundá-lo em um
toque erótico. A mão dela se encheu com ele e latejei.
— Grosso, imenso e quente... — falou baixinho, e quase gozei, quando
senti que sua mão rodopiava sobre meu pau, indo e vindo.

— Imagina ele dentro você... Todinho dentro de você — rosnei,


enlouquecido, de olhos fechados, sentindo o prazer esmagador.

Abri os olhos, e vi seu olhar lânguido, denso, os cachos cheirosos dos


cabelos esparramados sobre a cama, e cobri sua boca, fazendo movimentos
com a língua que queria muito fazer dentro dela, enquanto ela me masturbava
sem misericórdia, e eu gemia rouco.

Sabendo que estava muito perto de gozar, tirei delicadamente sua mão,
e vim fazendo uma trilha de beijos quentes na pele suave de sua barriga até
chegar na parte que eu queria.

Abri possessivamente suas pernas e olhei aquela entrada que me fazia


salivar.

Aspirei a fragrância deliciosa e senti minha vista nublar de prazer.

— Cheiro bom, gosto melhor ainda — falei, com a voz carregada,


louco para sentir aquele sabor precioso.

— Não me torture... — Se ondulou direto para minha boca, e lambi com


vontade a carne cheirosa e molhada.

Estava muito pronta pra mim, muito úmida e inchada. Passei a língua
nas dobras, dentro da abertura, depois chupando com gosto. Juliana estava
com as pernas tremendo, e as segurei para melhor me deleitar.

Seus gemidos me atiçavam.

Lambi o nervo duro, depois o suguei, enquanto Juliana arquejava, com


seu corpo que serpenteava de prazer enquanto eu me fartava.

Parei antes que ela gozasse. Dessa vez, ela ia gozar com meu pau.
Ergui-me
Respirando como um selvagem, com o gosto bom de Juliana em minha
boca, sabia que era a hora de chicoteá-la de prazer com meu pau.

Peguei meu pau, alongando-o mais, preparando, sentindo a cabeça bem


molhada, enquanto Juliana o olhava, fascinada.

Nossos olhos eram puro desejo.

— Vou entrar em você, pequena — rosnei. — Vou entrar bem gostoso.


— Todo — ela disse, toda segura, arfando de tão excitada. — Quero
todo.

Enquanto ela pedia, peguei a proteção que estava na mesinha ao lado, e


cobri meu pênis que estava já dolorido de tanto esperar.
Juliana umedeceu os lábios, e abri mais suas pernas, e a puxei mais
para mim.

Ainda erguido, eu me posicionei, massageando a glande na sua


abertura. Subindo e descendo, batendo sobre seu nervo.
— Otávio! Ai... — gemeu, serpenteando os quadris, contraindo-se
naquela tortura.

Observei seu olhar atordoado de prazer e fui entrando nela, bem


devagar.

Fechei os olhos quando senti que se alargava para me receber. O urro


que ela deu foi quase um rosnado quando a preenchi totalmente. Cada
centímetro meu estava dentro, tocando a cavidade apertada de Juliana.

Estávamos agora bem encaixados, e nossos olhares passaram a ficar


fixos um no outro, carregados de luxúria inebriada. Peguei-a pelas dobras do
joelho, para me firmar mais em seu interior e começar a estocar.

Comecei a estocar de leve, meu pau deslizando na abertura apertada.


Trinquei os dentes de prazer, impulsionando, impulsionando.

— Juliana — rosnei, com o maxilar duro.

Os seios de Juliana pulavam à medida que eu aumentava as estocadas.

Delícia de visão. Puta que pariu.

— Como você é gostosa, pequena...

Meti mais rápido, aproveitando a sensação de plenitude. Os gemidos de


Juliana eram música. Os meus urros de prazer. O barulho do choque dos
nossos corpos, puro tesão.

Precisava beijar sua boca e terminar com aquilo.


Larguei seus joelhos e me joguei por cima dela, arremetendo agora
como um louco, beijando sua boca com aflição. Suando sobre ela a cada
arremetida. Juliana passou a puxar meus cabelos com selvageria, apertando-
se mais contra mim, e aquilo me fez acelerar mais as estocadas.

Ela estava perto, eu sentia.


Ela gritou quando sua vagina começou a apertar mais meu pau,
pulsando. Ela estava gozando. Convulsionando, travando meu pau dentro
dela.

Ai, caramba!

Não aguentei. Um urro grave me tomou, e falei algum palavrão


desconexo, sentindo meu pau vibrar dentro dela, um orgasmo profundo me
varrer e levar todo meu ser.

Minha semente encheu a camisinha. Gozamos quase juntos.


Tomei fôlego e fechei os olhos, de plena exaustão do prazer.

Juliana me abraçou, enquanto eu descansava sobre o seu corpo. Muito


colados. Unidos.

Sentia-me feliz, aliviado. E também exausto.


Olhei-a e vi que ela sorria. Suas mãos passaram a fazer carinho em meu
cabelo, e levei minha mão até seu rosto macio, acariciando também.

Não sabia que eu podia ser tão feliz outra vez, como naquele momento.

Rocei meus lábios nos dela, cheio de ternura. O prazer foi absurdo
quando suas mãos entrelaçaram meu pescoço.

— Foi muito melhor do que em meus sonhos, sabia? — murmurou,


provocativa.
— A melhor parte é saber que você sonhava safadeza comigo. E quer
saber? Eu também sonhava. Sempre. E muito.

Nós sorrimos e nos beijamos mais um pouco.


Sentia-me amolecer em seu interior. Era melhor tirar o preservativo
para não dar rolo.

Com delicadeza, retirei o pênis devagar, e saí de cima de Juliana,


rolando para o lado, e dei um suspiro descansado, passando as mãos em
meus cabelos.
Como tudo era bom!

Foi quando olhei para meu pênis e me deparei com uma visão que me
fez fazer uma careta.

O preservativo estava rasgado.

Arregalei os olhos e Juliana percebeu. Seu olhar foi direto para o meu
quadril. As mãos na boca, em uma expressão completamente consternada.

— Não! — A voz dela saiu engasgada.

Fiz uma expressão vencida. Não sabia o que pensar. Aconteceu...

— Sinto muito. Não sei o que houve.

Ela fez uma cara de quem ia dar um berro muito alto.

— Seu disgramado! — Levou as duas mãos à cabeça — Meu pai da


misericórdia! O que vou fazer da minha vida?

Levantou-se num pulo, e continuou pulando e correndo, enquanto eu a


olhava, meio chocado.

— Calma, pequena. Vem aqui.


— Não posso sonhar em ser mãe agora, Otávio! Que ódio desse seu pau
gostoso, destruidor de paz! Vou me lavar!

Fiz mais uma careta.

Pai de três? Mais um menino? Meu e de Juliana? Ia ser lindo.


Preciso ver outro nome bíblico com um bom significado... Caramba! Ainda
é cedo.

Ouvi o barulho do chuveiro sendo ligado, ainda sem saber o que fazer
para ajudá-la.
De vez em quando eu a ouvia falar com voz aflita: “Pai do céu, me
ajude” e “Misericórdia”. Quase sempre nessa ordem.

A sensação do corpo quente e gostoso de Juliana ainda estava em mim,


e ainda estava meio sonolento, apesar de aturdido com o que houve.

Sentei-me na cama.

Estava meio lento, tentando pensar em tudo o que aconteceu, quando a


cabeça de Juliana apareceu de fora do banheiro, com um ar raivoso,
censurando-me.
— O que está fazendo aí parado?

— Eu... estou esperando você...

— Vai comprar minha pílula do dia seguinte! Corre! Preciso de você


aqui o mais ligeiro possível!
Jesus! Eu tinha ficado lá, perplexo, realmente. Na verdade, tinha virado
um idiota narcotizado.

— Tá bem, tá bem, estou indo. Desculpe, pequena. Não sei o que deu
em mim. Acho que estou em choque.

— Em choque ou não, vá me providenciar esse bendito desse


comprimido! Quanto antes tomar, mais chance de efeito!

Atarantado, fui pelado na direção do banheiro do quarto ao lado para


me limpar. Voltei com os gritos do Bah, que apareceu no corredor e me
pegou naquela situação.
Entrei rapidamente e respirei fundo atrás da porta.

— Otávio! — Juliana gritou e recebi uma peça de roupa no peito.


— Já vou, já vou — resmunguei, vestindo a perna da calça antes de
deixar o quarto para comprar a tal da pílula.

Felizmente, tínhamos uma farmácia mais próxima. Fui todo desgrenhado


mesmo comprar.
Já na volta, encontrei Juliana sentada na poltrona no meu quarto, usando
meu roupão e minhas enormes pantufas

Ela roía as unhas. Apertou meu coração vê-la desesperada.

— Achou?

— Sim, pequena. — Mostrei o pacotinho com o remédio e o copo com


água que peguei na cozinha.

— Graças a Deus! — Deu um suspiro de alívio em seguida tomou o


remédio.

— Quero que faça seus exames de sangue para ter certeza da minha
palavra, mas garanto que não tenho doença... Não além do que você
descobriu e está aqui. — Acertei o indicador na minha têmpora.

— Quando foi a última vez que você fez sexo? — ela perguntou
enquanto tirava o copo da boca.
— Bem... — Fui alargar a gola, mas percebi que meu peito estava nu.
— Tem um bom tempo, fique tranquila.

— Quanto, Otávio?

— Porra! Você precisa de tanta exposição? — ela confirmou, acenando


com a cabeça. — A Tailândia ainda morava por aqui, pequena, é isso. Eu
estava em um maldito celibatário de bocetas. Primeiro porque não queria um
problema fora de casa, depois porque só queria você — falei a verdade e
tive a leve impressão de que ela estava sorrindo por dentro.

— Fiz muito sexo no Uruguai — disse essa merda com tranquilidade e


um rosnado escapou da minha boca. — Mas nunca ocorreu acidentes...
Otávio, vai funcionar, não vai? — me perguntou num fio de voz.

Ela continuou a me fitar com alívio, e sorri, tentando confortá-la.


Peguei sua mão e beijei, depois fiquei a acariciando.

— Claro que vai. Tudo vai ficar bem e tudo vai dar certo.

Meu papel era confortá-la. Com bebê ou sem bebê, eu estaria ao seu
lado e providenciaria que tudo ocorresse sempre bem. Papel do homem era
esse: cuidar e amparar.

Quando Juliana sorriu parecendo descansada e segura, meu coração


ficou feliz.
“Só existe uma maneira de conhecer o amor verdadeiro:
experimentando, vivendo e construindo.

Você quer sentir algo novo e sublime com essas crianças, quer formar
uma família com o Otávio?

Pense com calma. Use seu coração e sua mente. Só você pode decidir.

Pediu minha opinião, mas prefiro dar minha bênção e, como


aconteceu comigo, desejar que você seja feliz nas mãos de seu homem.

Que ele te ame com proteção e respeito, apesar das diferenças de


personalidade, posições e todos os defeitos. Foi assim comigo, Ana, em um
salto, quando eu mais precisava. E está funcionando muito bem. Hoje amo
meu marido e a vida que ele dá à nossa filha e a mim também. Você merece
a vida de rainha que ele pode te dar, Juliana.”
Foram essas as palavras que ouvi de Madalena quando liguei para falar
da minha nova relação com Otávio e o acidente com a camisinha.

Madalena acalmou o meu coração agitado. Ela sempre fazia isso.

Agora eu me sentia leve, entrando no final do almoço, com um bolo nas


mãos e um grupo de funcionários, todos com chapéus de festa na cabeça,
parabenizando o pequeno Noah, que batia palmas em sua cadeira de
alimentação e exibia um sorriso fofo e desdentado.

O primeiro aninho era uma data muito importante. Manteríamos boas


lembranças guardadas e ele teria registros felizes. Já me sentia parte da vida
deles, e foi culpa do Otávio eu ter ousado tanto.

— Parabéns, bebezinho, sapeca.

Coloquei o bolo na frente de Noah e suas duas mãos seguraram a


cobertura. Todos sorriram e Otávio me lançou um olhar de devoção.

— Ma. Ma. Ma... — Noah murmurou enquanto lambia as mãos.

— Você é o mais esperto de todos, Noah — acusei-o docemente e o


menino sorriu, batendo os dois dentes na gengiva e fazendo uma careta
engraçada. — Ah, neném arteiro! — Pressionei sua bochecha com um beijo
caloroso.

— Ferdinando veio me buscar e trouxe o presente de Noah — disse


Adriana, levantando-se da mesa com o celular na mão. — Vou levar Noah
rápido para ver o vovô. Já volto para comer o bolo.

Olhei para Otávio e avaliei seu rosto. Algo nas palavras de sua mãe o
desagradou, porque ele ficou mais carrancudo do que o normal.

— Por que o avô não entra na casa? — perguntei, mas todos ficaram em
silêncio. — Oxe, qual é o problema, minha gente? — Mais silêncio. —
Você! — Apontei para o segurança de terno preto que segurava fitas com
balões de festa. — Me diga o motivo.
— Eu...? — O homem olhou para o patrão e seu pomo-de-adão subiu e
desceu. — Só vim pelo bolo, senhora. Com todo respeito, não sei de nada.

— Leve ele logo, mãe — Otávio disse, pouco resignado, deixando as


costas caírem desleixadas na cadeira acolchoada.

— Também vou! — falei decidida. — E vou levar um pedacinho de


bolo para o bichinho. — Tentei ser rápida. — Ele é muito velho de perto?
Nunca aparece nas redes. Só vejo Adriana. Tu já viu ele ao vivo? —
perguntei para a funcionária, que negou com a cabeça. — Não viu ou não é
velho? — Ela fez o mesmo gesto e olhou para Otávio. — Tenho que
adivinhar tudo, é? Misericórdia! Por que tanta cisma com o homem? —
Separei uma fatia média. — Não vou levar muito. De repente, ele tem
diabetes ou prisão de ventre.

Enchi as pessoas de perguntas, mas entendi que não iriam responder


nada na frente do chefe. Eles tinham um respeito imenso por Otávio. Era
visível que todos dançavam com a música dada.

Coloquei um garfo no prato e segui os passos avançados de Adriana.

— Meu pai não se dá bem com o vovô — confidenciou Thiago, vindo


ao meu lado. — Eles brigaram quando o papai era jovem. Agora eles não
brigam mais, mas nunca se olham ou falam. Eles não dizem nada. Nem coisas
feias nem palavras com sentimentos. Nada.

— Toda hora descubro algo novo por aqui... — disparei, caminhando


rapidamente pelo gramado do jardim.

— Você pode curar essa raiva deles? — perguntou Thiago e eu fiz uma
careta.

— Docinho, ninguém pode curar nossas feridas, a não ser nós mesmos.

— Mas você fez meu pai sair rápido do quarto e sempre o deixa
sorrindo. Eu vejo os olhos dele com muito sentimento quando você está
perto.
Arfei, encantada com tanta fofura e afeto. Tão comovida, senti meu
coração pular uma batida a cada palavra dita pelo pequeno.

— Seu pai é um homem apaixonado e motivado, Thi, por isso ele está
trabalhando duro nisso... Seu avô? — perguntei do portão, vendo o homem
alto, forte e de cabelos grisalhos, que estava encostado em um carrão,
recebeu Noah dos braços de Adriana e começou a mimá-lo.

De perto, fora das fotos sérias que estamparam uma matéria da


Forbes[22], no ano passado, e naquele traje esportivo, ele parecia muito com
Otávio. A mesma postura atlética e fisionomia.

Dúvidas sobre o futuro? Eu nem sabia mais o que era isso.

— Sim, é ele. Vovô! Vovô! — Thiago correu e abraçou as pernas do


coroa charmoso.

— Ferdinando, esta é a Juliana, namorada do nosso Otávio — Adriana


me apresentou.

Sorri um pouco embaraçada.

— Oi, seu Ferdinando. Trouxe um pedaço de bolo para você. Tu Gosta?

Adriana pegou Noah e o homem tirou o prato das minhas mãos. Com os
olhos semicerrados, ele me avaliou.

— Otávio não anda esmagando você? — ele perguntou e recebeu uma


advertência da mulher.

— Não, mas ainda estamos aprendendo a lidar com muitas coisas. —


Sorri, mas ele ficou sério, então meu sorriso minguou.

— Eu conheço sua família? — perguntou, cortando e levando um


pedaço de bolo à boca.
— Não tenho família de sangue ou sobrenome famoso. Mas sou irmã de
coração da esposa de Roberto Venturelli.

— A aeromoça? — Ergueu uma das sobrancelhas e comeu outro pedaço


do bolo.

— Ela é piloto agora. Er... ela já era piloto, mas agora está exercendo a
profissão.

— E você? Está fazendo o que da vida?

— Ferdinando! — exclamou Adriana.

— Não, tudo bem, Adriana. Sou maquiadora profissional e


influenciadora digital, Seu Ferdinando.

— Quantos seguidores na internet? — ele perguntou, movendo o garfo


preguiçosamente e levando mais bolo para a boca.

— Quase 1 milhão. Postava meus trabalhos de maquiagem quando


trabalhava em um famoso salão fora do Brasil. Por isso cresci tanto. Meu
público é orgânico e quase 100% feminino — me gabei, sorrindo
nervosamente e ele calou-se, pressionando a colher no resto do bolo.

— Adriana, consiga contatos de marcas e um bom assessor para sua


nora — ele disse afiado, antes de devorar o que sobrou do bolo.

— Oxente! Seu Ferdinando, tá doido, homi? Acabei de chegar, seu filho


e eu ainda estamos começando...

Ele me interrompeu:

— Entenda uma coisa, se Otávio te convidou para a vida dele é porque


já está planejando um futuro. Se ele decide algo, ele não desiste até que
realize. Consegue entender como funciona aqui, Juliana?

— E o senhor vai me ajudar assim de graça? — indaguei surpresa,


sentindo uma sensação de realização me inundando.
— Se a minha nora trabalha na internet ou qualquer outra coisa que não
seja a minha concorrência, ela será a melhor e a mais cara da área. Simples
assim! — concluiu, raspando a calda que escorreu nas bordas do prato e
lambendo a colher.

— Homem de Deus! Já pensou se eu não trouxesse esse bendito bolo?


— perguntei retoricamente. — Não pense que vou recusar, seu Ferdinando.
Não recuso nada. — Balancei a mão, chamando-o. — Venha, vamos entrar e
conversar no sofá. A casa não é minha, mas eles estão me dando muita
liberdade por aqui.

— Isso, venha vovô! O pai está feliz hoje — disse Thiago,


encorajando-o.

— Otávio teve uma crise ontem, não vou agitá-lo. Mas podemos
combinar um jantar com você e as crianças, lá em casa. — Me devolveu o
prato vazio e virou para o neto. — Agora vem com o vovô, Noah. — Ele
recuperou a criança e começou a brincar com ela e se abaixou para ficar na
altura de Thiago.

— Sei que está curiosa, mas vou deixar Otávio conversar com você, no
momento dele. Ajude-o a ser gentil consigo mesmo quando decidir expor o
passado — disse Adriana, olhando para mim. — Enquanto isso, farei com
que tudo seja feito para você explodir na internet. Ferdinando é exigente e
encontrou uma nova forma de agradar ao filho — sussurrou a última frase. —
Espere o melhor.

— Estou bestinha, Adriana! — exclamei, eufórica — Há muito tempo


que penso no que vou fazer da vida e agora todos vocês aparecem e...
Obrigada por tudo. Não sei como agradecer...

Eu a abracei, nem um pouco arrependida por estar deixando de lado


meus medos para vivenciar o novo.

— Se você não tinha família, agora você tem uma muito intensa. Essa
explosão de espontaneidade e boa dose de bagunça é tudo que meu filho
precisa para ser feliz de novo, dentro de sua zona de conforto, longe dos
gatilhos do mundo lá fora. Se o aceitar com sinceridade, terá a gratidão
eterna do seu sogro e a minha também, Juliana.

Nos braços da minha sogra me senti acolhida, e desejei que o problema


de Otávio com seu Ferdinando não fosse tão grave e indigno de perdão. Eu
não queria ficar desapontada com meu sogro generoso. Bastava o filho mau-
caráter que ele tinha.
Durante aquelas semanas, fiz muitas fotos em um estúdio e gravei meus
conteúdos da parceria com a Venturelle. As fotos profissionais foram
presentes dos meus sogros. Também tive reunião com a assessora que eles
me conseguiram. Ela estava fechando algumas parcerias grandes e na
próxima semana meu perfil estaria com uma nova cara.

Naquela noite de sábado, participei de um evento de maquiagem e


Otávio foi me buscar pertinho das onze horas da noite. Agora ele estava
sentado na cama, nu da cintura para cima, vendo minhas fotos editadas pelo
fotógrafo e reclamando dos efeitos do Photoshop.

Não entendia nada do assunto, mas eu gostava de vê-lo envolvido com


minhas coisas. Não nego.
Eu ainda estava um pouco perdida na intensidade do nosso
relacionamento fugaz, mas suas promessas, sua paixão e tudo que ele
colocava à minha disposição, acalmava minha mente e afastava todas as
preocupações que até recentemente transformavam meus sonhos em
pesadelos.

— Gusmão também pode vir de vez? — indaguei, sentada ao lado de


Otávio e abrindo o hidratante para cuidar de minhas pernas.

Meu gatinho agora estava dormindo na cama king size de um dos


quartos de hóspedes.

— Desde que não fique aqui no quarto, empatando nossas fodas —


Otávio disse preguiçoso, largando o celular para cheirar meu pescoço.

— Otávio... Quero perguntar uma coisa, mas não quero que me evite,
por tocar no assunto. Só não responda e estará tudo bem. — Continuei
hidratando minhas pernas e ele começou a enrolar meus cachos soltos na
ponta do dedo.

— Tem coisas, pequena, que apenas devemos deixar esquecidas. —


Seu sussurro saiu em um tom de voz rouco e triste.

Eu suspirei frustrada.

— Quando o passado nos afeta diretamente, Otávio, é preciso revirá-lo,


justamente para alcançarmos a cura.

— Dani estava de férias na França, com os pais, e foi a um evento de


moda. No caminho de volta, ela cochilou ao volante e parou de sorrir. Ela se
foi quando estava longe de mim, mas horas antes tínhamos conversado ao
telefone e eu disse que a amava.

Disse tudo sem olhar nos meus olhos e parei por um momento,
refletindo suas palavras. Não era isso que eu queria saber, mas senti o
impacto de sua tristeza.

— Entendo sua tristeza toda vez que fala sobre ela. Sinto muito que
tenha sido assim. — Peguei sua mão esquerda e beijei demoradamente,
atraindo sua atenção para mim. Suspirando devagar, acrescentei: — Vou
cuidar para que Thiago cresça sabendo que ela era uma mulher generosa e
carinhosa, que amou vocês com tudo que ela tinha.

— Vai cuidar dele sempre, Juliana? Como uma mãe de verdade? —


Otávio perguntou, sua voz carregada de sentimento. Assenti com a cabeça e
lágrimas nadaram em meus olhos. — Sou um homem muito sortudo.

Otávio beijou minha mão e me chamou para mais perto, depois beijou
meu rosto e selou os lábios na minha boca.

— Também estou querendo saber do avô dos meninos... — emendei,


enquanto ele me beijava, então seu corpo ficou imóvel.

Ele me afastou com cuidado, seu olhar fixo no meu, como se estivesse
tentando desvendar meus pensamentos.

— O que ele te disse? — perguntou.

— Nada — respondi. — Seu Ferdinando não me disse nada, mas eu vi


culpa nos olhos dele. O que aconteceu com vocês?

— É muito complicado, Juliana... — ele disse isso e descansou as


costas na cabeceira da cama.

— Seu Ferdinando foi muito gentil comigo, Otávio. Ele não me olhou
torto por causa da minha pele e status social. Não me abalo, mas vi pessoas
serem cruéis por tão pouco, especialmente algumas madames que visitavam
o salão... Me sinto no paraíso com todos vocês. Seus pais o educaram a esse
respeito e, certamente, também tiveram uma educação adequada. Eu preciso
pisar em ovos com ele? Preciso ter cuidado? Diga-me antes de me apegar.
Porque eu já te respeito muito.

— Eu tinha dezesseis anos quando meus pais receberam o diagnóstico


correto da minha doença — Otávio sussurrou e, de olhos baixos, respirou
fundo. — Estava em uma fase difícil de adaptação aos novos medicamentos.
Um desastre ambulante...
— Sim, bebê. Me conte tudo. Alivie seu fardo — o encorajei, juntando
nossas mãos novamente.

— Minha mãe estava grávida — ele começou e me senti triste na


primeira frase. — Doze semanas de gravidez de risco, e simplesmente não
podia sair do quarto. Eu ia vê-la todos os dias, mas ficava na porta, porque
João Paulo me disse que eu ia fazê-la perder o bebê, que era minha culpa ela
estar tão doente. Saber disso, que era verdade, estava me deixando
desorientado. Eu... eu estava oscilando muito, mesmo longe dos surtos. Não
queria que minha mãe sofresse mais... — Otávio ficou em silêncio por um
tempo e eu beijei suas mãos e esperei até que ele voltasse ao assunto.

“João Paulo estava comigo o tempo todo, dizia que eu precisava relaxar
para que a mamãe não perdesse o bebê. Fiquei triste por mamãe, mas feliz
por ele não estar mais me provocando. Então, ele trouxe alguns cigarros e
fumamos juntos no jardim. No dia seguinte, ele me trouxe bebida e maconha,
e... Eu surtei, Juliana. A mistura de drogas e remédios me fez quebrar toda a
casa. Não tenho essa consciência, mas eles dizem que ninguém poderia me
segurar. — Otávio respirou fundo e, em silêncio, sequei seus olhos com os
polegares. Quando juntei nossas mãos, ele continuou: — Eu caí no chão. Eu
me lembro disso. Pela minha visão periférica, vi minha mãe descendo as
escadas, muito fraca, tropeçando nos últimos degraus... Ela caiu Juliana, mas
já estava perdendo o bebê. Eu já tinha acabado com a vida dele. Lembro que
meu pai chegou na sala com o João Paulo, viu minha mãe sendo levada pelos
funcionários, olhou para mim no chão e avançou com tudo. Ele nunca
levantou a voz para mim, ele me protegeu de tudo, ele era meu melhor amigo.
Mas ele me atacou como se eu fosse um saco de boxe e me quebrou inteiro.
Por fora e principalmente por dentro. Fui levado ao hospital inconsciente,
passei quinze dias em observação e quase um ano sem dizer uma palavra. Eu
não voltei para a casa deles. Fui morar sozinho com alguns funcionários
separados pela minha mãe. Ela cuidou de tudo enquanto eu estava na
faculdade. Aí o Roberto fez a empresa decolar e eu fui trabalhar com ele.
Nunca mais precisei do meu pai, nunca o aceitei perto de mim. Proibi de me
mencionar como filho por aí. Eu não queria me envolver em nada sobre ele.
João Paulo disse que eu tinha empurrado a mamãe da escada, ele acreditou,
me bateu com muita raiva e veio me pedir perdão no hospital, mas eu não o
perdoei. Ele tentou muitas vezes, mas nunca vou perdoar, assim como não me
perdoou pela vida do meu irmão bebê... É isso. Foi o que aconteceu. Agora
você sabe.”

— Eu sinto muito... sinto tanto, Otávio. — Eu o abracei com força e só


consegui soltar os soluços.

— Minha mãe nunca pôde dar à luz outra criança. Ela não teve o prazer
de ter um filho saudável, sem problemas. Teve que se contentar com um filho
doente e um psicopata.

— Shhhh... Não se torture tanto, querido, não faça isso. Sua mãe te ama
do jeito que você é. Ela tem tanto orgulho de você, dos lindos netos, do
homem forte e poderoso que se tornou. — Beijei seu rosto inúmeras vezes e
esperei sua respiração parar para descansar minha cabeça em seu coração.

— Você não precisa ter medo. Ele não vai machucar você. Ele está te
bajulando para chegar até a mim.

— Sim eu entendi. Vamos esquecer isso agora.

— Ele disse que ia me proteger de tudo, Juliana, e me quebrou por


dentro. Eu nunca vou machucar meus filhos.

— Nunca — afirmei. — Você é um bom homem, um excelente pai e o


namorado mais fofo e gostoso que já tive.

— Não sou o seu primeiro, pequena?

— Sim, mas não importa. Você será o único.

— Ter você aqui significa muito para minha cabeça, corpo e coração...

— Shhhh, vamos deitar juntos, agora. Você enrolando meu cabelo e eu


sentindo seu cheiro.

— Sem sexo?

— Hoje não, querido. Hoje precisamos de carinho e respiração leve.


Fechei os olhos, mas não dormi bem naquela noite. Todas as vezes que
acordava, o encontrava dormindo, então fazia orações, pedindo que um dia
ele estivesse livre de todas as dores.
Duas semanas se passaram desde que dormi pela primeira vez na casa de
Otávio.

Alguns dias desde que ele foi buscar minhas coisas e as coisas de Gusmão
no apartamento.

Acolhida e amada, foi assim que me senti com cada olhar de esperança que
recebia, seja do Otávio, dos filhos ou mesmo dos funcionários.

Sentia-me feliz por ter perdido minhas frágeis convicções com Otávio.
Tudo parecia mais sólido agora.

Ele estabilizava minha vida e eu bagunçava a dele. Uma boa e deliciosa


bagunça.

— ... sim, tão gostoso que dói. — Ofegante e suada, respondi à ousada
pergunta que Otávio me fez.
Ele estava sentado na beira da cama, com minhas costas contra o peito, todo
entalado dentro de mim e pulsando forte. A palma da sua mão esquerda estava na
minha garganta, os dedos da outra mão brincavam com o meu clitóris num
carinho caloroso, após uma sessão de prazer mais intenso.

— Quero dormir? — Seus dentes arranharam minha orelha e eu mordi meu


lábio, sacudindo minha bunda, puxando um silvo de sua garganta. — Juliana...

Otávio riu e quase me sufocou quando encerrou os movimentos de rotação


para acertar dois tapas no nervo exposto do meu clitóris.

— Oh... por favor! — implorei na cegueira do prazer e ele estapeou meu


clitóris com uma sequência tão deliciosa que me deixou travada. Em transe,
fechei os olhos e senti-me esvair em um gozo intenso, tão intenso que espirrou
em mim, nele, em tudo.

— Você... é muito perfeita!

Otávio gemeu contra a minha nuca e caiu de costas na cama, então juntei os
joelhos, rebolei devagar e quiquei forte, comprimindo-o para gozar novamente.
Ele veio com tudo. Me segurou com as duas mãos e levantou meu corpo, alto o
suficiente para me chicotear profundamente, soltando um uivo alto e animalesco.
Fiquei tão tonta que tombei, e só não caí no chão, porque seu braço forte cruzou
minha cintura e puxou para trás.

— Droga, não vou conseguir levantar amanhã e você é a única culpada —


dramatizou, deitando-se na cama.

Exausta, me virei, sorrindo satisfeita, deixando-o aos poucos, sentindo um


grande vazio ocupar seu lugar.

Caí de bruços ao lado dele e em minutos adormeci na mesma posição.


O sol já estava alto quando ouvi uma batida forte na porta do quarto,
levantei-me atordoada, tropecei no cobertor e caí de bunda no tapete.

— Quem é? — Otávio gritou, já amarrando o cordão no pijama.

— Chefe... — A voz do outro lado era de um dos seguranças da casa. —


Desculpe incomodá-lo, mas o assessor pessoal de seu pai ligou para o nosso
número de emergência. — Otávio largou o cordão e se aproximou da porta.

— Fale — meu homem ordenou.

— Seus pais estão no hospital, e seu irmão está na sala de cirurgia.


Atiraram nas costas dele durante a madrugada. Eu sinto muito.

— Porra! — Otávio liberou um sopro e colocou as mãos na cabeça.

— Otávio, tenha calma. — Levantei-me pisando em meus calcanhares,


dolorida com o resultado da madrugada agitada.

Otávio me evitou e entrou no banheiro, então o segui até o box. Foi quando
ele socou a parede de azulejo com tanta força que tive certeza de que seus dedos
haviam se quebrado.

— Shhhh, querido. — Entrei na frente dele, a pressão do chuveiro morno


caindo na minha cabeça. — Não deve ser tão grave.

Otávio desviou os olhos dos meus olhos e chorou no fluxo da água,


xingando o irmão e dizendo coisas lindas sobre a infância deles.

Talvez ele o amasse de alguma forma no meio de tanta dor, ou talvez fosse a
conexão profunda de seu sangue falando mais alto.

Peguei o sabonete, lavei o corpo dele e me cuidei. Otávio ficou calado o


tempo todo, mas me abraçou com uma força de aço e beijou minha testa quando
eu disse que tudo ficaria bem.
Em quarenta minutos chegamos ao hospital. Adriana estava desolada em
uma sala privada, com a cabeça apoiada no marido.

Ao nos aproximarmos, os dois se levantaram e minha sogra se jogou nos


braços de Otávio e soluçou em seu peito e o filho teve que levá-la de volta para
o sofá.

— Pelo que sabemos, a Tailana voltou ao apartamento de João Paulo ontem


à noite. Os vizinhos ouviram seus gritos durante a madrugada, mas ninguém se
envolveu. Horas depois, eles ouviram os dois disparos e chamaram a polícia.
Meu filho machucou a mulher o máximo que pôde, sem saída, ela fez o que fez —
Seu Ferdinando, totalmente abatido, me disse em voz alta, enquanto olhava de
esguelha para o segundo filho. Ele queria explicar diretamente para Otávio.

— Eu perguntei tanto, tanto. Ela disse que estava tudo bem, que só
precisava de um tempo... — Adriana lamentou, soluçando aos prantos. — Meu
filho nunca machucou uma mulher antes... — Continuou clamando e eu abaixei a
cabeça, sentindo os olhos de Otávio queimar em meu corpo.

— Você está bem? — Ferdinando perguntou, com a mão no meu ombro,


apoiando-me.

— Fiquei tonta de repente — respondi baixinho.

— Vem aqui, pequena — Otávio chamou e recebi o apoio do meu sogro


para chegar ao sofá. Sentei-me do outro lado de Otávio e sua mão livre passou
pelas minhas costas para alcançar a curva da minha cintura. — Quer um pouco
de água? — ele perguntou indagou e neguei com a cabeça

— A Tailana está grávida e não perdeu o bebê, apesar de toda a situação —


disse seu Ferdinando, novamente olhando enviesado para o filho, que praguejou.
— Ela está sendo atendida em outro hospital e está algemada. Devido à
trajetória dos projéteis, será difícil reivindicar a legítima defesa.
Independentemente de qualquer situação, nós cuidaremos da criança.

A cirurgia demorou muitas horas para ser concluída. Eu estava exausta,


sonolenta e um pouco confusa. Otávio queria me levar para casa, mas fiz questão
de ficar com ele.

Uma enfermeira já tinha avisado, mas só naquela hora o prontuário estava


sendo divulgado.

Do sofá eu vi Adriana afundar o rosto no peito do marido e Otávio seguir


anestesiado até a parede mais próxima, onde socou com força.

Levantei-me e avancei até ele, tudo ao redor de meus olhos escureceu e eu


tombei minha cabeça no peito do meu homem.

— O que aconteceu, Otávio? — Minha voz saiu exausta.

Soltando um suspiro louco, Otávio segurou meu queixo com a mão, um


toque protetor e gentil que contrariava seu verdadeiro nervosismo.

— Meu irmão ... A lesão atingiu o nível da coluna cervical. Está com perda
total dos movimentos dos quatro membros e esse médico está dizendo à minha
mãe que é irreversível... Juliana? Pequena o que você tem? Porra!

De repente, o chão desapareceu embaixo de mim e a escuridão total tomou


conta dos meus olhos.
— Ela precisa tomar vitaminas. Certamente está anêmica. Vou providenciar
os melhores médicos para acompanhá-la. — A voz rouca e chorosa de Seu
Ferdinando veio de perto.

Eu não tinha desmaiado todo esse tempo. Otávio ficou muitas horas comigo
no hospital, esperando o resultado dos exames de sangue. A grande quantidade
de soro que injetaram em minha veia me deixou lenta e com muito sono, então
adormeci na confortável cadeira de couro.

— Posso cuidar da minha família. Vá ficar com a mãe. Ela está precisando
de você agora. — A voz veio do meu Otávio. Totalmente arisco, ele discutia
com seu pai.

— Sua mãe tomou um calmante e apenas dormiu.

— Se está preocupado com minha mulher, é só esperar ela acordar sem me


ensinar a cuidar dos meus. Sempre cuidei de tudo sozinho.

Sim, seria um longo caminho para eles, mas aquele episódio difícil serviu
para fazer com que se olhassem nos olhos. Não era um bom relacionamento, mas
agora havia discussões, pelo menos.

Nunca os pressionaria, eram sentimentos muito íntimos, mas nada me


impedia de esperar pela leveza da alma do meu homem.

— O médico falou sobre a saúde do meu neto? — Seu Ferdinando comentou


e me deixou alerta.

Noah? Thiago? Senhor, por favor, proteja-os, roguei em pensamento.

— Noah...? — consegui dizer e em menos de um segundo a respiração de


Otávio atingiu meu rosto.
— Juliana... Isso, pequena, acorde. Estou tão aflito aqui, sem seus olhos
abertos.

— Thiago...? — Abri uma linha fina entre as pálpebras e tentei me


acostumar com a iluminação forte. A minha cabeça latejava, uma dor leve, mas
persistente. — E os meninos, Otávio?

— Estão jantando. Acabei de falar com o Thiago. — Lábios perfeitos


tocaram minha testa. — Recebi o resultado dos exames e estou esperando
terminar esse soro para te levar para casa. Você ficou desidratada. Precisa repor
líquidos, glicose, eletrólitos e outras merdas benéficas que faltam.

— Minha cabeça está doendo... Como está sua mãe agora?

— Dormindo sob a influência de um calmante — respondeu meu sogro,


atrás de Otávio, olhando-me fixamente. — João Paulo ainda não acordou. Ela
pediu para descansar até que ele acordasse. Ela ainda não sabe que você está
grávida...

— Inferno de intromissão!

— Perdão, filho, perdão, estou agitado. O dia não está sendo fácil!

E me vi perdendo a consciência antes de expressar qualquer reação


proporcional ao meu choque.

Quando meus olhos se abriram novamente, encontrei Otávio de cabeça


baixa, sentado no braço da poltrona ao lado dele, uma mão agarrada à minha, a
outra, a enfaixada, acariciando meu abdômen.

Olhei naquela direção por um longo intervalo de segundos e deixei as


lágrimas rolarem pela minha bochecha. Tudo estava acontecendo tão rápido, tão
inesperado...

Havia uma criança na minha barriga, sendo alimentada por nutrientes do


meu sangue e quinze dias atrás, ela dava os primeiros passos para a vida.

Havia tanta informação na minha cabeça... Minha vida, que nunca foi
tranquila, no bom sentido, foi se transformando em uma intensidade infinita.
— Otávio... — murmurei baixinho, e vi sua cabeça erguer-se e seus olhos
aquecerem os meus.

— Pequena, pílula do dia seguinte é uma furada — foi a primeira coisa que
ele me disse e eu segurei o soluço na garganta. — Não, não chore. Estamos
juntos e tudo vai ficar bem.

— Estou... com medo... — sussurrei, tentando evitar que minha voz


tremesse. Eu sabia que precisava ficar calma.

— Não fique, eu cuido de tudo. — Ele beijou meus dedos entrelaçados com
sua mão. — Não vai interferir na sua vida, nas suas coisas. Eu cuido dele. Eu sei
como cuidar.

— Não. Não vou deixar meu bebê por nada... Eu vou cuidar dele. — Essa
foi a certeza mais vívida em minha mente agitada.

— Vamos cuidar dele juntos, Juliana. Eu, você e nossos três filhos para
sempre. — Otávio beijou minha mão novamente e vi lágrimas em seus olhos. —
Ele terá um nome bíblico, assim como Thiago e Noah. E quero você
oficialmente. Com testemunhas, bênçãos e tudo a que temos direito.

— Você... Você está me pedindo em casamento, Otávio?

Ele colocou as mãos com cuidado no meu rosto e disse:

— Sim. Eu quero casar com você. Você quer se casar comigo?

— Vão dizer que estou dando o golpe da barriga. — Liberei um sorriso


fraco, sem conseguir processar aquela nova realidade.

— Você é minha, Juliana, e eu sou seu. Quero todas as evidências,


incluindo nosso anel no dedo. Quero tudo.

Sua respiração engatou, seus olhos incrivelmente verdes vibraram e eu


engoli antes de sussurrar suavemente:

— Sim... aceito casar com o pai dos meus filhos. Aceito levar nossa família
adiante, aceito a felicidade ao seu lado.
O silêncio reinou por um momento, então ele sorriu e trouxe seus lábios
quentes aos meus, dando-me a certeza de que seríamos felizes pelo resto de
nossas vidas.
Um ano e meio depois

— Obrigada — agradeci ao motorista, que sempre me buscava na


faculdade, e saí do carro, seguindo pelo gramado, em direção à porta da
minha casa.

Há alguns meses eu não dirigia à noite.

Cuidadoso, Otávio temia que, devido à correria diária, eu adormecesse


ao volante.

Há cinco meses, eu dividia meu tempo entre estudos de marketing, o


primeiro curso em que queria me formar, meu trabalho nas redes sociais, que
crescia a cada dia, minha bela nova realidade de mãe de três filhos e meu
marido, que era um verdadeiro homão da porra, levando em consideração
sua atitude, conduta, firmeza, coragem e o essencial: meu tesão de todos os
dias.

As dificuldades não eram nem comparadas aos frutos que colhíamos.

Em nossa casa havia amor, união e momentos de bagunça para


aproveitar a infância de nossos filhos.

As crises de Otávio eram quase inexistentes e a gente não bebia mais.


Decidimos que éramos melhores sóbrios. O álcool nunca nos fez bem.

Ele continuava sendo Diretor Financeiro do grupo Venturelli, empresa


que ajudou seu amigo a criar. Seus investimentos individuais dobraram de
valor desde o ano passado. Meu homem sabia exatamente o que fazer para
dobrar nossa riqueza, estudou para isso e continuava sendo um dos melhores
em sua área.

Dentro de casa, deixei meus livros e mochilas no escritório e subi as


escadas. O silêncio indicava que todos estavam dormindo.

Ótimo, assim a mamãe iria descansar depois de um banho quente.

Subi as escadas sonhando com isso.

Tirei as sandálias no corredor e passei pelo quarto das crianças.


Ambos estavam vazios e presumi onde eles estavam.

Empurrei a porta do quarto, entrei e, em silêncio, admirei a bela cena


em minha cama.

Meu pequeno Noah estava atravessado aos pés da cama, Otávio no


meio, Thiago aninhado ao lado dele e minha mais nova, a cabelinhos
dourados, dormia serenamente no peito do pai. Sem mencionar Gusmão, que
cochilava no tapete da cabeceira da cama.

— Chegou... Chegou cedo... — Otávio murmurou preguiçosamente,


levantando-se com cuidado e carregando nossa filha no peito.
— Você acha que conseguimos levar todos sem eles acordarem? — eu
perguntei em um sussurro.

— Toma a Maria. — Recebi um selinho em meus lábios. — Eu cuido


dos meninos e do gato.

— Ohw... Own... Own... — Maria soltou seu choro sonolento e a acolhi


com ternura.

— Shh... Shh... mamãe está aqui, meu amor...

Beijei os dedinhos pálidos da minha garotinha e saí para o corredor.


Enquanto Otávio carregava nossos meninos para o quarto, eu andava de um
lado para o outro, cantarolando bem baixinho a música que ela gostava:

Minhoca, minhoca,

me dá uma beijoca...

não dou, não dou,

não dou, não dou, não dou!

Minhoco, minhoco...

Cê tem de ser bom moço...

Pois, não sou obrigada a ser desrespeitada![23]

— Ela dormiu? — Otávio perguntou, agora puxando o tapete felpudo de


dentro do quarto. Gusmão não teve dignidade de abrir os olhos e sair de
cima.

— Dormiu. Vou colocá-la no berço. — Caminhei na direção dele. —


Ela bebeu todo o leite, né?
— Tudo e mais um pouco — o pai respondeu quando passei por ele e
entrei no quarto de nossa filha. — Vou te esperar no banho — ele disse lá de
fora, enquanto eu arrumava minha princesinha em seu berço.

Voltei e o encontrei no banheiro, preparando um banho relaxante na


banheira. Ele sabia como me paparicar, especialmente quando me via
exausta, e nós dois estávamos salvos assim. Exaustos e felizes na mesma
proporção.

— Estava pensando que deveríamos viajar — disse ele, quando


percebeu que eu o estava observando da porta. — Não só nós dois, não
podemos fazer isso agora, mas a nossa família, incluindo o seu gato. O que
você acha de algum lugar da Europa? É verão lá, as crianças e suas babás
vão gostar...

Sorri feliz com a iniciativa. Eu sabia o quão difícil era para ele ter que
desistir de suas viagens por medo de ter crises em um novo ambiente.

Isso, meu amor. Nós somos a sua casa.

— Hum... As férias do semestre estão chegando. — Aproximei-me dele


e enlacei seu pescoço. — Sim, acho uma ideia maravilhosa. Você já
conversou com o Thiago?

— Não. Queria saber de você primeiro.

— Você pode preparar tudo, então. — Esfreguei meu nariz em seu


peito, querendo chamego.

— Você está com muito sono? — ele perguntou, puxando minha camisa
e tirando-a do meu pescoço.

— Estou... Me dá um banho...? — murmurei dengosa, enquanto ele


abria o zíper da minha calça e lutava para passar o tecido pela curva do meu
quadril.

— Dou tudo o que você quiser, pequena. — Beijou a frente da minha


calcinha e continuou a correr o tecido pelas minhas pernas.
— Você vai entrar comigo? — Sorri com as duas mãos no ar e levantei
os pés para sair do aperto das calças.

— Hoje, é só você — ele disse enquanto se levantava, beijava meus


lábios com calma e seus longos dedos deslizavam sobre o tecido da minha
calcinha, afundando e dividindo o tecido de algodão.

— Ah, eu te amo, marido... — Tive que confessar e minha mão esperta


mergulhou no cós do moletom dele e o achou robusto, assumindo sua forma
gloriosa.

— Como eu amo você, mulher.

Nossos lábios se encontram satisfeitos.

Otávio me amou.

Eu o amei.

Ao longo de toda nossa vida maravilhosa.


Isabela, 16 anos

— Ele é tão lindo, não é, Bela? — perguntou Vitória, minha irmã, em


sua doce voz angelical.

Estávamos em um evento de premiação para empresas inovadoras, com


a presença das principais personalidades e lideranças do setor privado
brasileiro. Nosso pai estava no palco, se preparando para uma rápida
palestra motivacional de quinze minutos, antes que os troféus fossem
entregues.

O homem a quem minha irmã se referia era Thiago Parisotto, filho da


nossa madrinha Nana.

Há dois anos e meio, aos dezoito anos, ele foi estudar economia em
uma universidade gaúcha. Desde então, vimo-nos muito pouco e, para falar a
verdade, evitei-o na maior parte das vezes que visitava São Paulo. Eu
odiava ser chamada de pirralha e ele parecia não saber que eu tinha um
nome.
Sim, ele ficava mais perfeito a cada respiração, e estar tão apaixonada
me deixava com raiva, especialmente naquele momento.

— Aquela loira... O Noah ou a Maria te falaram sobre ela, Vivi? —


perguntei, tentando não soar tão afetada, embora meu peito estivesse se
partindo em pequenos pedaços.

— Não é alguém que ele encontrou aqui, Bela?

Não. Eles chegaram juntos.

Não se pegaram nem nada, mas os olhares que trocaram revelaram


coisas que eu ainda não sabia muito sobre. Ou talvez fosse o ciúme
sabotando a minha sanidade.

— Vivi, fica um pouco com a mamãe, amor, vou tomar um pouco de ar


no jardim — arfei, realmente precisando disso.
— Papai me disse para não desgrudar de você, Bela. Ele me fez
prometer...

— Vai ser rápido. Fique com a mamãe, Vivi. Nosso pai está tão
envolvido com o evento que nem notará — Beijei o rosto da minha boneca
de porcelana de 10 anos. — Só vou respirar um pouco. Volto antes que eles
percebam.

— Só vou poder ficar quieta até eles perguntarem, então volte antes
disso, tá bem?

— Sim, Vivi. Será rápido, meu amor. Vai logo.

Então ela foi. Alcançou a mamãe e eu estabilizei meus calcanhares e


segui na direção da área externa.

No jardim havia alguns bancos de cimento, entre refletores, árvores


decorativas e um gramado bem aparado. Sentei-me e inclinei minha cabeça
para o céu coberto por uma fina camada de nuvens.
Respirei fundo, tentando o meu melhor para não sentir ciúmes dele, mas
eu sentia...

— Pirralha...? — O som daquela voz atingiu o fundo do meu peito e fez


meu pulso bater na garganta. Eu virei meu rosto e ele já estava vindo. Meu
Thiago. Sozinho. Lindo naquele traje de alfaiataria com elementos
despojados.

— Oi, menino chato...

Ele sorriu. Um sorriso lindo de derreter alma.

— Vi quando você saiu... Esperando alguém, Belinha?

— Um amigo — blefei.

— Tio Roberto sabe disso?

— Sou adolescente, e os adolescentes quebram as regras, Thiago! —


Meu tom saiu áspero e vi aquela sobrancelha ousada se arquear em
observação. — Droga, Thiago, volte para a festa e me deixe em paz!

— Você está com raiva de mim, pequenina?

— Estou. Você está aqui, prestes a atrapalhar uma das minhas


travessuras... E não me chame de pequenina. Tenho dezesseis anos e já uso
bojo tamanho “M”.

O calor tomou conta do meu rosto quando terminei aquela frase, tudo
piorou quando ele olhou na direção do meu busto e franziu o cenho.

Todo o sangue do meu corpo estava sendo drenado, eu podia sentir.

— Isabela ... Você vem comigo! — Ele pegou minha mão em uma
rajada. — O seu lugar é ao lado da sua mãe, irmã e crianças da festa!

— Você é insuportável, sabia, Thiago? — Puxei minha mão e me sentei


novamente. — Aparece assim, sem avisar, finge que não existo a noite toda e
agora quer mandar em mim? Vá desfilar com sua acompanhante e me deixe
em paz!

— Estou te observando desde que entrei na festa, mas você é moleca


demais para perceber e entender isso! — O tom sincero me chamou a
atenção, paralisou-me, então engoli em seco e fitei um ponto qualquer à
minha frente. — Venha, eu vou te levar.

Ele estendeu a mão para mim.

Olhei para aquela mão grande, para o homem tão crescido, que dava
dois de mim, apesar de apenas cinco anos de diferença, e uma ansiedade
quente explodiu em meu estômago.

— Você foi estudar no Rio Grande do Sul, agora estou de viagem


marcada para estudar na Europa... — soltei e vi uma linha de expressão se
formando entre sua sobrancelha, e ele puxou a mão que estava parada no ar.

— Como? — Ele se sentou nos calcanhares, bem na minha frente. —


Como assim? Europa, Isabela?

— É... Vou morar com meu avô. Já estou matriculada em alguns cursos
em Lisboa e em breve serei aluna da Faculdade de Belas-Artes. É uma
experiência cultural única, Thiago, e estou querendo aprender mais...

— Seu pai concorda com isso? Ele vivia dizendo que você seria a
futura CEO da Venturelli...

— Sim, ele concordou.

— Não tentou impedir você por ser tão novinha? — Fez uma careta de
desgosto.

— Meu pai só quer me ver realizada. Ele sempre alimentou meus


sonhos.

— E os caprichos também — Thiago completou, sério. — Ele só pode


estar ficando louco de soltar você lá fora. Sozinha, perfeita e vulnerável.
Como ele vai conseguir pregar o olho à noite? Acredito que ele não pensou
tudo isso.

— Não sou mais criança, Thiago. Só você que não vê. Cresci quando
você estava longe, agora vou virar uma mulher adulta, independente e
profissional lá fora.

— Porra! Adulta? Lá fora? — murmurou como se meditasse no assunto.

— Totalmente lá fora — completei e ele fixou em meus olhos.

— Quando você estiver para voltar, toda perfeita, vou te buscar no


aeroporto. Podemos combinar assim?

— Não sei se volto, vai depender de como as coisas correrem por lá.

— Você é uma pirralha muito decidida, Belinha. Isso é bom, mas


também é uma droga.

— Decidida sim, pirralha, não — sussurrei quase sem fôlego e segurei


seu lindo rosto em minhas mãos. — Se eu te fizer um pedido, você acha que
consegue realizar?

— Conheço você e suas exigências há treze anos, então não. Eu não


posso pegar nenhuma estrela no céu para dar a você.

Eu ri, ele continuou sério.

— Vou ficar muito tempo longe, Thi, algumas das minhas primeiras
experiências vão acontecer lá. Certamente vou me apaixonar e...

— Porra nenhuma!

— Escute, Thi ... Você pode me ajudar com algo? Você pode beijar
minha boca pela primeira vez? Assim eu posso lembrar que foi com carinho
e... Com o cara que eu queria que acontecesse.

Sorrindo meio surpreso, ele beijou minha mão.


— Isabela, eu sou um homem, pequenina, e você tem dezesseis anos.
Dois anos ainda me impedem de fazer isso, então vou ficar devendo isso a
você, tudo bem? — ele explicou com os olhos na minha boca e eu suspirei
um pouco frustrada, mas mordi a polpa do meu lábio como uma última
tentativa e observei seu pomo-de-adão subir e descer. — Dane-se! Essa
honra é minha!

Ele pegou minha mão e se levantou, levando-me dali, para uma espécie
de labirinto que enfeitava o meio do jardim, e em poucos segundos minhas
costas estavam encostadas na parede gramada daquele lugar.

— Espero que você nunca se esqueça disso — sussurrou, sem fôlego.

Ficamos nos olhando em silêncio, então ele beijou minhas bochechas


suavemente, por cima dos meus olhos, escorregou até seu queixo e esfregou
sua boca diretamente na minha, permitindo que nossas respirações se
fundissem enquanto ele fazia isso.

— Thiago... — Sua mão entrou no meu cabelo atrás do meu pescoço e


eu senti um forte puxão em algum lugar na parte inferior parte do meu
abdômen. — Não vou esquecer você... Me beija.

Ele me beijou. E foi a sensação mais incrível da minha vida. Um


momento único, que atrapalhou parte dos meus planos.

Quando voltei, anos depois, Thiago não era mais o mesmo homem,
assim como eu não era mais a mesma garota que ele chamava de pirralha. No
entanto, a chama daquele momento mágico em nosso passado, que estava
adormecida em nós, reacendeu, e veio amadurecida, profunda e
transformadora.
Minha enorme gratidão a: Christine King e Crys Carvalho, por todo
amor, carinho e apoio e por segurar minha mão em situações que me deixam
ansiosa; Lidiane Mastello por ser parceira e por se apaixonar por Belinha,
Noah e Thiago; Jack, por finalizar o arquivo com um tempinho tão curto;
minhas queridas leitoras que foram pacientes e esperaram seis meses, e
respeitaram todos os meus momentos, vocês são maravilhosas, meninas; e,
por fim, Otávio, Juliana, Noah, Thiago, Gusmão, Belinha, Madalena e
Roberto. Espero encontrar todos vocês em breve!
Um pai para o meu bebê

SINOPSE
Joshua Torrente, criador de porcos e responsável pelo comércio
intensivo para países da América Latina, é um homem solitário, ríspido no
trato e extremamente prático. Para receber uma herança a qual lhe é de
direito, Joshua precisa encontrar uma esposa urgente. Serve qualquer uma,
desde que não se enfie em sua cama, seja discreta e mantenha distância dos
seus negócios.

Yuna está grávida de um homem cruel. Para proteger sua família e o


bebê indesejado que insiste pela vida, a executiva deixará a cidade grande
para ser esposa de um empresário rural que ela nunca viu na vida. Agora, a
coreana precisa ser rápida e seduzir o esposo antes que ele perceba sua
gestação e lhe negue proteção. No entanto, se infiltrar na vida do homem
turrão não será uma tarefa fácil.

Um pai para o meu bebê é uma releitura da canção “O cravo brigou


com a rosa” do compositor Villa Lobos.
Acompanhe dois capítulos de A filha do CEO:

“Limpe suas próprias feridas.

Chore calado e desabafe com as paredes.

Não suje as mulheres e as crianças com suas tragédias. Suporte em


sigilo. Resolva-se em silêncio. E mesmo que demore, saia quando estiver
forte outra vez. Vai ficar tudo bem. Sempre fica.”

Autor desconhecido.

A segunda sinfonia de Beethoven estourou no suporte da esteira


ergométrica, fazendo-me desligar o aparelho subitamente, errar o passo e
quase ir ao chão.
Inferno!

Tirei três segundos para me recompor e, enquanto segurava firme no


aparelho de ginástica, fitei o celular, que exibia o alerta de uma inoportuna
chamada de vídeo e a imagem da minha assistente executiva com o seu
irritante sinal de coração coreano.

Era um péssimo momento para qualquer ser vivente entrar em contato.


Aquela mulher, mais do que ninguém, sabia disso. Até pensei em ignorá-la,
mas minha razão tomou a frente quando cogitei ter ocorrido um episódio
grave na empresa.

— A Venturelli pegou fogo, Yuna? — Forcei um tom equilibrado. —


Yuna?

Arqueei uma sobrancelha ao perceber os olhos estreitos concentrados


na nudez do meu peito. Não era como se eu me importasse em receber aquele
tipo de olhar, mas Yuna era a minha mascote com lâmpada na cabeça. Eu não
estava disposto a perder minha mascote por ter revirado os vestidos dela.

— Ah, não, nada de… fogo. — Sacudiu a cabeça, como se estivesse


recuperando a imagem familiar do homem cujo corpo estava sempre coberto
por trajes de alfaiataria. — Eu que estou preocupada.

— Algum imprevisto interno? — indaguei, sossegado quanto a isso,


pois eu checava os canais de comunicação do grupo a cada cinco horas. Os
relatórios de vendas e quebras dos dias anteriores também já haviam sido
analisados e, como sempre, estavam satisfatórios.

— Está tudo certo na empresa, Roberto, inclusive estou quase de


saída. Acontece que passei aqui na cantina e fiquei sabendo que você
agrediu um dos seguranças na quinta-feira e por motivo banal. Você
viajou e não me deixou ciente…

— Já resolvi a situação — interrompi. — Se for só isso, pode seguir


seu caminho e descansar sossegada.
— Você não acha melhor sondar o rapaz e eliminar qualquer brecha
de escândalos ou…

— Repito: tudo resolvido, Yuna!

Puxei a toalha do aparelho ao lado para secar o suor do meu rosto.

Definitivamente, não me orgulhava de atitudes impetuosas no ambiente


de trabalho. Até assinaria uma bela justa causa se eu não fosse o próprio
CEO fundador do grupo.

Não que fosse uma justificativa madura para ter quebrado o nariz do
meu funcionário, mas acontece que os dias turvos estavam me fazendo perder
o controle diante de situações rotineiras e isso mexia com o ego foda que
construí ao longo de trinta e seis anos.

Você é forte, líder, exemplo para um grande time. Reaja! Eu dizia a


mim mesmo, mas nada estagnava a terrível dor que massacrava a minha alma
desde que me vi sem dona Edite Venturelli, minha mãe, meu único laço
sanguíneo, que mesmo lutando com determinação, acabou perdendo a batalha
contra uma enfermidade incurável.

Era difícil de acreditar que há alguns meses ela estava ali, exercitando-
se, rindo, abraçando os empregados e dançando com eles, sem saber que
dentro dela existia um tic tac devastador.

Agora, dezoito dias depois de seu último suspiro, a casa de veraneio


estava vazia. Apenas eu, o luto e a solidão ocupavam o ambiente que, por
muito tempo, foi o nosso refúgio.

— Não quero ser insistente, Roberto — dei-me conta de que a mulher


ainda estava na linha —, mas sei que está vivendo os piores dias da sua
vida e me preocupo com a sua estabilidade emocional. Todos aqui estão
preocupados. Seu comportamento nunca beirou à delinquência, no
entanto…

— Se estivessem trabalhando, não sobraria tempo para preocupações


desnecessárias! Por que é tão difícil de entender que preciso da porra de um
tempo sozinho?

— T-tudo bem… Não vou mais interromper. — A voz da coreana


estremeceu. — A única intenção é ajudar.

Suspirei sem paciência, ciente de que do outro lado estava uma mulher
sensível e tão competente que eu tinha delegado a ela uma estreita brecha da
minha vida pessoal.

— Está tudo dentro do meu controle, Yuna — blefei, forçando um tom


amável. — Só preciso de um tempo para colocar a minha cabeça em ordem e
viver um pouco mais desse luto que destruiu o meu pedaço de humanidade.

— Tudo bem. Você já se alimentou hoje? — perguntou, as bochechas


pálidas ganhando um tom avermelhado de puro constrangimento. — Vou
marcar uma terapia para você.

— Não há necessidade. — Suspirei impaciente, querendo permanecer


isolado, escondendo minhas inabilidades do mundo. — Obrigado pela
preocupação, querida, agora vá para casa e fique longe de álcool. Me ligue
apenas se surgir alguma eventualidade na Venturelli.

Desliguei a tela do celular e desci da esteira sem olhar para trás,


direcionando meus pés para a minha suíte.

A casa de cento e oitenta metros quadrados em arquitetura moderna e


aconchego rústico, situada na extremidade nordeste da Ilha de Tinharé, na
Bahia, foi o meu primeiro imóvel adquirido com lucros da Venturelli.
Pertencia à minha mãe. Um presente que planejei na adolescência, quando
ela, mãe solo, desdobrava-se em três para dar aulas particulares em todos os
dias da semana, incluindo feriados, a fim de pagar meus estudos fora do
Brasil.

Ainda no corredor, afrouxei o cordão da minha calça e a puxei para


fora das coxas. Antes de alcançar a porta do quarto, a campainha da casa foi
acionada com uma insistência tão descontrolada que pensei ter abalado o
microfone do meu implante auditivo.
Voei nervoso na direção da sala, recompus minha calça no caminho,
bati na parede e cheguei ofegante ao destino.

— Inferno! — reclamei antes de alcançar a porta. Quando a puxei,


deparei-me com um casal de desocupados escapando pela rampa. Eles
atravessaram a rua de paralelepípedo, correndo na direção de um bug velho.

— Desgraçados! Vai apertar a campainha do inferno ou vem aqui que


aperto para vocês! — gritei, vendo o casal escapar, fazendo uma barulheira
infernal.

— Bavo, munto bavo. Rum! Mamãe não dosta.

Ouvi uma reclamação infantil e engoli em seco, sentindo uma força


estranha travar meus músculos no lugar.

Tenso e irritado, investiguei o vulto pelo reflexo.

Traje rosado, triciclo infantil, urso velho na cestinha dianteira,


brigadeiro gigante nas costas e bochechas…

Maldição! Abandonaram uma menina na minha porta!

Olhei para os dois lados e recuei sorrateiramente, atravessando a


divisa da porta, pronto para fingir não ter visto nada.

— É dejhenho? — murmurou o pequeno ser desconhecido, trazendo


dois dedos gordos na direção das minhas tatuagens.

— Shi! Fique aí!

Dei outra investigada no perímetro.

— Uau, munto dejhenho.

Evitando olhá-la diretamente, manobrei e empurrei o carrinho de três


rodas com o peito do pé, presenciando minúsculas sandálias trabalharem
ligeiramente nos pedais do veículo infantil.
— Eles vão voltar para buscar você. Fique aí. — Estacionei o triciclo
fora da varanda. — Merda de filhos da mãe irresponsáveis!

Deixei a criatura na grama e voltei para dentro de casa, soltando


xingamentos, lembrando-me do episódio de anos atrás, quando uma digital
influencer pistoleira tentou me aplicar o golpe da barriga e provocou um
alvoroço desgraçado nas redes sociais.

Entrei no meu quarto já nu e joguei a calça perto da porta. Fui direto


para o banho e, enquanto a água naturalmente morna acalentava meus
músculos exaustos pelo excesso de exercícios físicos, meu subconsciente
tentou me acusar.

A criança ficou sozinha.

Firmei minhas palmas no azulejo, sentindo uma inquietação fora do


comum atravessar o meu peito.

Não é minha responsabilidade, retruquei, respirando calmamente e


engolindo um pouco de água.

A imagem da criança sendo levada por um maníaco, traficantes de


órgãos ou qualquer coisa do gênero assombrou meus pensamentos ao ponto
de a culpa pesar sobre minhas costas.

— Ah, merda!

Agoniado, desliguei o registro e deixei o banheiro para entrar no


quarto, pingando água no assoalho. Puxei a primeira bermuda do guarda-
roupa e corri nu até a sala, onde me guardei na bermuda antes de abrir a
porta. Vi o pequeno corpo de bruços no final da rampa de grama e ouvi seu
pranto engasgado, misturados a gritos do que parecia ser “mamãe”.
Embalado pela terrível nuvem de culpa, praticamente saltei os três
metros que nos separavam.

— Ei, como veio parar aqui, menina? — Consegui dizer antes de virá-
la e ser atingido por um choque de surpresa que estremeceu cada parte do
meu corpo.
Que porra era aquela?

Com olhos arregalados e coração acelerado, desabei sentado na grama,


fitando esferas enormes e negras, um nariz minúsculo que liberava bolhas de
secreção e mãos gordas estendidas, pedindo algum tipo de ajuda que eu não
era capaz de oferecer no momento por estar paralisado.

Quando? Obriguei meu cérebro a trabalhar nas possibilidades.

Era novinha, certamente nascida depois do escândalo que me fez


recorrer a um procedimento de esterilização e proteger minhas sementes
para uma futura barriga de aluguel na Ucrânia.

Não era possível ser minha, mas qual outra explicação para ter uma
pequena cópia da minha mãe diante dos meus olhos? Reencarnação?

A ideia de abandonar o ceticismo não soou tão estranha, mas meu


cérebro contra-atacou com dados exatos. A menina à minha frente estava
longe de ter dezoito dias.

— Memédio… — A bochechuda arrebitou o lábio inferior e liberou um


soluço.

Me… médio?

Era bom não ser uma pista, porque eu não fazia ideia do que se tratava.

— Oi? — indaguei, vendo-a levantar uma das sandálias na minha


direção. — Er… Ahn… É uma sandália muito bonita. Rosa com duas tiras
e… combina com o seu vestido.

Maldição! De repente, eu era um idiota. Pela primeira vez, estava


nervoso na frente de uma mulher. Um projeto de mulher que, por alguma
razão, tinha os meus olhos.

— Dodói de Beinha. — Soluçou com os lábios trêmulos e a perna


erguida.
Assustado diante dos olhos familiares, segurei a sandalinha que
liberava um cheiro incrível de goma de mascar e fiz uma rápida conferência,
encontrando o motivo do choro no centro da base pálida do joelho esquerdo.

Não era nada grandioso, contudo, eliminava uma linha de secreção


vermelha aguada, que escorria na direção da minúscula panturrilha e passava
sobre um sinal amarronzado, idêntico ao que eu carregava desde o
nascimento.
Ela é minha?

Meu coração debateu feito um louco dentro do peito.

Era necessário estar em um nível elevado de confiança para não usar


proteção em uma transa e, mesmo nunca me envolvendo emocionalmente
com as mulheres que estiveram em minha cama, a evidência da falha estava
escrita em cada traço da criança.

Sim, ela é minha!

Não percebi quando aconteceu, mas no momento seguinte, a pequena


estava em volta dos meus braços, sentindo o tremor das minhas mãos em
seus cabelos, soluçando na curva do meu pescoço e infiltrando seu cheiro de
colônia infantil em minhas narinas.

— Um potinho de memédio, tem? — indagou.

Acomodei-a sentada sobre minhas pernas e passei a mão no rosto


molhado, ficando mais surpreso com cada traço de semelhança.

— Oi, bebê. — Ela tinha muitos dentes na boca para ser considerada
uma bebê, mas foda-se, pois segundo o processamento do meu cérebro, o
bolinho choroso não passava de uma bebezinha recém-chegada.

Era minha!

— Memédio no dodói de Beinha.


— O seu… — Parei antes de testar a nova palavra. — O seu dodói está
muito forte?

Afastei os cabelos pretinhos que alcançavam a curva do ombro. Era


assombroso, mas até o comprimento e a textura fina dos cabelos lembravam
os da minha mãe.

— Beinha munto felida. Ai!

— Onde está a sua mãe? — Passei meus polegares nos olhos da menina
e afastei mais da umidade excessiva. — Quem trouxe você?

— Juiede não dosta de Beinha.

Não entendi claramente, mas consegui maldizer a tal Juiede.

— Esse é o nome da sua mãe, bebê?

— Mamãe não dosta de Juiede.

— Sua mãe não gosta? — Analisei a informação que não me ajudava


em nada.
— Uma apidade[24] no papel.

— O quê, menina?

— Dento da bochila na tosta de Beinha. — Ela bateu as mãos na alça


grossa da mochila com uma esperteza surpreendente.

— Posso ver a sua mochila?


— Rum! Bochila de Beinha! — resmungou com a fisionomia de menina
brava e finalizou com um soluço, o choro já se esvaindo.

— Não, bebê. Não vou pegar sua mochila. Só quero ver o conteúdo, o
que tem aí dentro. Pistas sobre você, entende?

— Bochila de Beinha! Tudo! — Cerrou o pequeno punho e escorregou


para fora do meu colo, engatinhando até o triciclo, deixando o joelho ferido
longe do chão.

Quando virou o pequeno veículo e se apoiou nele para se levantar,


dando sinais de que estava bem, dei-me conta de que prendia a respiração. A
preocupação inesperada deu os primeiros sinais.

— Que loucura é essa? — Puxei uma longa respiração e pendi meu


corpo para trás, deitando minha cabeça na grama e olhando para o céu tão
azul quanto a água do mar que enfeitava o meu quintal. — Mãe, não brinca
comigo, mulher!

Gargalhei nervoso, lembrando-me dos momentos em que dona Edite


criava mil possibilidades a fim de requerer um neto.

Na remota possiblidade, eu não estava mais sozinho no mundo. Existia


uma herdeira do meu sangue antes mesmo de acionar a agência de
maternidade por substituição na Ucrânia. Merda! Sem planejamento, com
uma mãe golpista, ou o que fosse, era problema. Isso não se encaixava na
minha ideia de família.

— Juiede fez uma apidade pra bocê.

Um papel pousou sobre meu rosto. Depois de apanhá-lo, sentei-me


rapidamente para checar o conteúdo.

A Roberto Venturelli

Você não se lembra de mim, pois fui apenas uma distração casual,
mas acredite, sou a mãe da sua filha.
Não procurei você antes, pois sou muito orgulhosa e acredito
fielmente nos meus poderes de Mulher-Maravilha. Mas quer saber? Não
dá mais para segurar tudo sozinha. Isabela tem um pai e ele precisa
assumir responsabilidades.

Por enquanto, você só precisa ficar com a menina por alguns dias.
Vou buscá-la a qualquer momento e esteja pronto para cumprir suas
obrigações financeiras.
Isabela é saudável, mas a deixe longe de gelados e doces.

PREPARE O BOLSO!
Atenciosamente, Madalena Bianca, mãe de Isabela, sua filha.

Olhei assustado para a criança, que agora retirava pequenas xícaras


cor-de-rosa de dentro da mochila em formato de brigadeiro e organizava
sobre a grama.

Isabela?

— Porra! — exclamei com as mãos na cabeça.

— Poorra? — A menina reproduziu em tom de curiosidade antes de


erguer uma das xícaras e beber uma boa quantidade de vento. — Poorra é
munto legal.

— Não, não pode, neném!


Abracei a pequena pelo meio da cintura e levei-a para dentro de casa.
Desorientado, tropecei no degrau da porta e por pouco não derrubei a
criança.

Inferno! Mil vezes inferno!


“Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular.”

Brucutus

— Uau… — A bebê suspirou quando entramos na sala, o corpo frágil


dividido por um de meus braços.

— Fica aqui. — Acomodei a criança sobre o sofá e praticamente corri


os nove metros que separava a sala da academia.

Uma parte do meu cérebro dizia para não me importar com a origem de
Isabela e denunciar a genitora por abandono de incapaz; a outra, alertava-me
sobre os riscos de levar o assunto adiante sem saber exatamente com quem
estava lidando.

Para começar, eu só precisava jogar “Madalena Bianca” nas principais


redes sociais e torcer para encontrar menos de uma centena delas.
Alcancei o aparelho celular e saí da academia em passos largos. Ainda
no corredor principal, minha pele captou ruídos tempestuosos que, ao serem
enviados ao processador interno dos meus ouvidos defeituosos, fizeram
meus pés criarem asas.

Cheguei sem fôlego, com o coração pulando, e não senti muito alívio
quando encontrei a criança encolhida no canto do sofá, observando os cacos
de uma rara porcelana chinesa espalhados no assoalho.

— Caramba! Só saí por um minuto! — Excedi-me, zangado com a


desordem e com o perigo que ela se colocou ao mexer naquilo.

— Beinha é quiança.

A menina fungou e uniu as mãos sobre o colo. Os lábios miúdos


tremeram e os olhos negros encheram-se de lágrimas. Vê-la segurando o
choro trouxe um nó angustiante para minha garganta.

Eram os meus olhos, caramba!

Tão durona, graciosa e invasora.

Não, eu não podia deixar aquele ser tão minúsculo me persuadir


facilmente. Era um prejuízo financeiro e ela precisava assumir as
consequências dos atos desde cedo. Uma boa advertência verbal não fazia
mal, apenas educava futuros grandes homens e mulheres.

— Pupupa… — disse com os lábios trêmulos, desmanchando meus


argumentos ao associar o murmúrio a um pedido de desculpa.

Não é possível! Controle-se, Roberto. Na possibilidade de ser sua


filha, ela precisa ser bem educada desde cedo.

— O vaso… — Limpei a garganta para afastar o tom de completa


rendição. — O vaso escorregou sozinho?

Ela negou, movendo o pescoço de um lado a outro.


— Beinha não consiguiu ver e quebou — murmurou entre o choro
mudo, cobrindo a testa com a mão, culpando-se. — Beinha
não dosta de tastigo… Que tisteza.

Era quase impossível compreender a doce linguagem, mas também era


inegável estar diante de uma boa negociadora. Perguntei-me se já estudava,
se conhecia os números e as letras, se estava se preparando para o futuro…

Porra! Era só uma bebê! Uma com grandes chances de carregar o DNA
Venturelli.

— Está tudo bem. Foi só um vaso de… cem mil dólares. Vou lá dentro
pegar a vassoura para limpar essa sujeira. Não se levante daí, certo? Não
pode sair do sofá, entendeu? Não estou bravo com você.

— Totufome[25]. A dabiga de Beinha munto de vento.

Não entendi o que quis dizer, mas fiquei hipnotizado com a força do
olhar expressivo.

— Quantos anos você tem, menina?

— Um, dos, tês… — Ela fez a conta nos dedos e ergueu-os na minha
direção.

Fascinante e esperta.

Eu precisava de uma prova concreta da paternidade, mas as evidências


físicas eram reais demais para acreditar se tratar apenas de um golpe.

— O meu nome é Roberto. Alguém já te falou sobre mim? —


interroguei.

— Bebeto… — Bateu o minúsculo indicador contra a têmpora. —


Bebeto, não.

— Sua mãe, ela… — Firmei o indicador e polegar contra meus olhos e


reorganizei as ideias, livrando-me da vontade de apertar as bochechas
polpudas. — Como é a mamãe?
Além de irresponsável. Julguei em pensamento.

— Monita.

— Bonita?

— Munto celoza… — Franziu o pequeno nariz.

— Cheirosa?

— Tetê gande. O neite cabô. Beinha tudo na boca. É deíssa…

Cristo, preciso de uma ajuda confiável.

Abri o aplicativo de mensagem instantânea do celular e fiz uma


chamada de vídeo para o meu diretor de tecnologia.

— Fala, Roberto! — José falou descontraído do outro lado da tela.

— Está sozinho? — indaguei, vendo-o sentado na poltrona de sua sala,


na sede da Venturelli em São Paulo.

Meus líderes costumavam deixar a empresa depois das duas da tarde


durante os sábados.

— Estou. Aconteceu alguma coisa? — Vi linhas de expressão se


formarem na testa do meu amigo de infância.

— Deixaram uma criança aqui, na porta da casa de veraneio —


despejei a informação.

— Ê, barril da porra[26]! Já chamou a polícia?

— Zé, é uma menina de três anos. E não duvide, é dona Edite


Venturelli esculpida em carrara[27].

— Beto, você não está bem, pode ser impressão sua. Sua cabeça está
recriando a imagem da sua mãe. Por que não entra em contato com a
agência lá na Ucrânia e inicia o processo da gestação por substituição, do
jeito que você planejou, sem genitora por perto? Ter um filho, alguém para
se apegar, vai te fortalecer.

— Para, estou bem! É só uma fase. — Interrompi a ladainha que


promovia qualquer nota de minhas fraquezas. — Quanto a menina, é mesmo
minha imagem e semelhança.

— Certo — concordou meio incrédulo. — Você não é vasectomizado?

— Sou. E não consigo entender o motivo para tanta semelhança.

— Então, você, provavelmente, rodou na jante [28]


antes ou durante a
quarentena do procedimento.

Repuxei meus cabelos do couro cabeludo. Eu não conseguia me


lembrar, mas era a única explicação.

— Sempre fui cuidadoso, Zé.

— Roberto, pensa com calma. — Zé estreitou os olhos, prestes a


iniciar uma de suas resenhas. — Uma pegada diferente, um desvio de
percurso, hein? Aquela chave de coxa bem reforçada, apenas alguns
segundos de animação, couro duro na carne macia. É mais gostosinho,
admita.

Soltei um palavrão e vi olhinhos negros e curiosos me espiando. Ela


era muito nova para entender certos assuntos, então não vi problema em falar
abertamente.

— Preciso encontrar a genitora, Zé, dar o que ela deseja em troca da


guarda e mandá-la para bem longe.

— Entra aí e fecha a porta. Roberto teve uma filha. Acabou de


descobrir. Abandonaram a menina na porta dele. — Ouvi meu amigo
passar a informação em questão de segundos, sem autorização.

— Quem está aí? — protestei.


— É o Otávio, fica tranquilo. — Zé sorriu despreocupado, como se
não tivéssemos um problema para destrinchar. — Senta aí, amigão. Tomou a
camomila? Está melhor?

Ouvi Otávio, um grande amigo e diretor financeiro da Venturelli,


resmungar ao fundo.

— Vou precisar de sua ajuda, Zé. Madalena Bianca é a única


informação que tenho da mãe.

— Me deixa ver a criança. — O pedido veio de Zé.

— Agora não. Ela é muito pequena e está assustada. Chorou, rolou na


grama e foi deixada com um desconhecido.

— E assim nasce um pai possessivo — zombou o bastardo. — A


menina tem sotaque baiano?

— Ela mal conhece as palavras. Tem sotaque de bebê. — Deitei minha


cabeça no encosto do estofado, sentindo como se um peso gigante estivesse
caindo sobre minhas costas. — Vou te enviar a senha e usuário do
monitoramento remoto. Você consegue acessar as imagens do DVR através
do aplicativo?

— Essa pergunta me ofende, Betô — Zé ralhou. — Mas o serviço vai


custar caro. Cinco acarajés da praça, completos e com bastante pimenta.
Melhor trazer sete. Agora que Marcela está comendo por dois, vai me
persuadir até ficar com os meus.

Já passava das treze horas. Só naquele momento meu estômago


reclamou por comida.

— Veja o que consegue encontrar. Quem deixou a menina estava em um


bug velho. Foi agora há pouco. Não faz vinte minutos.

— Ah, ela é tão fofinha. Cadê a princesinha do tio? — Ouvi a voz


infantilizada do meu amigo e levei os olhos para o aparelho jogado sobre
meu colo. A menina estava com o rosto na frente da tela. — Parece mesmo
com o sacana. Veja isso, Otávio!
— Têlo vê minha mamãe.

— Olha, ela quer a mamãe — Zé paparicou. — Você não está mais


sozinho, Otávio. Logo estaremos todos trocando fraldas.

— Mais uma pobrezinha abandonada por uma cadela irresponsável.


Se prepara para viver em um inferno! — Ouvi meu diretor financeiro
resmungar suas próprias frustrações pessoais.

— O seu amigo está arrotando brasa. A ex-mulher esteve aqui mais


cedo e botou para foder com ele. Um bafafá da porra. — Zé jogou os olhos
para a lateral esquerda e ouvi alguns xingamentos do cara ao seu lado.

Otávio estava passando por um processo de separação exaustivo que o


deixava cada dia mais ácido.

— Vai para casa, Otávio! — aconselhei e apenas ouvi um baque na


porta.
— Ele foi. O que me deixa preocupado. — Zé tomou uma respiração
profunda e assumiu o semblante preocupado. Era um brincalhão, mas tinha
um coração capaz de caber o mundo. — Retorno quando descobrir algo.
Vou tentar acompanhá-lo.

— Sigilo absoluto sobre a menina. Além de vocês, absolutamente


ninguém deve saber.

Desliguei o telefone e me senti desconfortável diante da força dos olhos


que me fitavam de perto.

— Tem papá?

Um sorriso angelical pintou nos lábios em formato de coração e suas


pequenas mãos envolveram o ventre, evidenciando braços com dobrinhas de
gordura. Foi estranho, mas confesso que tive vontade de afundar minhas
narinas naquelas ondinhas.

— Menina, vamos combinar assim: eu não sei quem você é, mas por
alguma razão que ainda desconheço, não temos apenas olhos idênticos. Vou
cuidar do seu joelho, limpar essa desordem e tentar descobrir a sua origem.
Enquanto isso, fique sentada aqui e não toque em nada. Quietinha, estamos
entendidos? — Tentei uma negociação clara.

— A dabiga de Beinha pecisa… — Apertou a barriga e friccionou os


olhos. — Munto de vento. Ai!

— Fome? Você está com fome, é isso?

— Nenhum papá na dabiga de Beinha. — Continuou com os olhos


fechados.

— Fome. Certo! Vamos para a cozinha. — Peguei a menina no colo e


dei a volta nos estilhaços do chão. — O que você quer comer?

— Um papá bem gande.

— Pão?

— Papá! Pão, não.

Que merda é papá?

— Pera? — Segui tentando entendê-la. — Melancia, banana…

— Na-na-não, Bebeto. Papá de caninha, roz, carrão, beaba,


cenoula… Munta caninha no papá. Deíssa.

Que criatura terrivelmente cativante.

Eu não tinha como me lembrar de todas as mulheres que estiveram em


minha cama, era como procurar uma agulha no palheiro, mas se a menina
fosse realmente minha, seria fácil requerer a guarda unilateral e mantê-la sob
meus cuidados.

Uma mãe irresponsável, capaz de entregar a filha nas mãos de um


desconhecido, não poderia ser boa influência. Seria um grande problema
mantê-la por perto.
***

Respirei fundo depois de uma maratona na cozinha e levei os pratos


feitos na direção da mesa de madeira rústica.

Minha cabeça fervia na missão de recordar o momento que resultou na


criança sentada à minha mesa. Com o joelho já limpo e protegido por uma
pomada antisséptica, a menina sacudia os minúsculos pés para frente e para
trás, brincando com biscoitos depois de ter petiscado alguns deles.

Minha… filha.

— Sua comida — anunciei, afastando os biscoitos para acomodar o


prato com porções trituradas de verduras cozidas, carne de panela, arroz e
feijão. Um preparo rápido que se encaixava no pedido da recém-chegada. —
Está tudo certo? — indaguei ao encará-la de relance.

— Uma bedé petena! — disse em tom de ordenança, os olhos quase


nivelados ao tampo da mesa.

— O que é bedé? — Reprimi um pequeno suspiro e acomodei meu


prato sobre a mesa, ao lado dela.

— Bedé… — Apontou para os talheres de inox. — Boca de Beinha


munto petena. Bedé gande — explicou, expondo suas jabuticabas brilhantes,
fazendo-me compreender a exigência.

— Santo Deus!

Larguei meu prato e fui procurar a bendita colher pequena em um dos


armários. Peguei a primeira que encontrei no suporte e, quando voltei para a
mesa, ouvi meu celular alarmar na outra ponta do móvel. Avancei sobre ele
na esperança de ser José com novidades. Era ele.

— Oi, Zé! Encontrou alguma coisa? — Entreguei a colher para a


menina e despenquei na cadeira. Estava cansado mental e fisicamente.
— Que voz grogue é essa, Betô? Estou preocupado com você, irmão.
Vem para São Paulo. Traz a menina que resolvemos tudo aqui.

— Está tudo sob controle, Zé — menti. Como estaria? — A bebê que


estava faminta. Como dispensei os funcionários ontem, tive que me virar na
cozinha. Encontrou alguma coisa nas imagens?
— Inacreditável! — Zé implicou do outro lado da linha, fazendo-me
rolar os olhos sem paciência. — Roberto Venturelli esquentando a barriga
no fogão para alimentar sua possível criança. A molequinha já chegou
tirando você da zona de conforto, caro fodão de coração singular.

— Encontrou alguma coisa relevante ou não? — Mudei o olhar para a


bebê, que fracassava na tentativa de levar o alimento para a boca.

— Nada, irmão.

— Como “nada”? Viu as duas câmeras frontais?

— As duas pegaram o bug, mas o motorista se escondeu atrás de um


boné e óculos de sol. E a morena, de corpo muito sarado por sinal, usou a
bolsa para camuflar o rosto.

— Cadela golpista! Certamente vai vender o escândalo para algum site


de fofoca. — Diminuí o tom e continuei preso na ação da menina, que agora
mastigava toda animada por ter conseguido algum resultado com a colher.

— Mas já comecei buscas por Madalena Bianca no Instagram.


Encontrei trinta e cinco perfis. Já enviei solicitação para os privados e
vou observar os abertos agora. Te envio fotos com links em breve.

— Preciso providenciar um teste de DNA, Zé. Conhece alguma clínica


confiável aí em São Paulo?

— Não, mas Marcela tem contato com médicos de confiança.

— Contou a ela?

— É quase impossível esconder algo de Marcela, Betô.


— Que porra, Zé! — Exaltei-me e bati a mão no tampo da mesa,
ouvindo um resmungo infantil quando uma pequena porção de comida
escapou da colher.

— Ela ficou empolgada com a notícia da nova herdeira Venturelli.


Está emotiva. Já comprou presente na internet e a zorra toda. Fica
tranquilo, cara, ela não vai passar nada para Madame Zero-nove.

Uma porra!

Marcela, a esposa de José, embora fosse uma amiga de confiança, teve


a má sorte de nascer de uma erva-daninha conhecida como Madame Zero-
nove, que há muitos anos ganhava a vida expondo famosos na internet.
Inclusive eu que, mesmo discreto, fui alvo de inverdades e ataques virtuais
no episódio do golpe da barriga.

Madame Zero-nove me odiava, pois contra-ataquei judicialmente na


época e, além de receber uma gorda indenização, consegui, com a ajuda de
Zé, derrubar seu principal canal de notícias, o mesmo que hoje ultrapassa a
marca de dez milhões de seguidores.

— O que menos preciso é lidar com exposição agora, caramba!


Afastei meu prato e apoiei o cotovelo na mesa, friccionando o
indicador e polegar contra os olhos, sentindo a cabeça latejar continuamente.

— Marcela jamais passaria nenhuma informação adiante — Zé


rebateu, defendendo a esposa, que era discreta, porém, ingênua e
constantemente explorada pela mãe. — Até porque você acaba com a velha
e ela sabe que eu tomaria à frente mais uma vez.

— Certo. Me liga se descobrir algo. Vou cuidar da menina agora e na


sequência procurar no Facebook.

Encerrei a ligação e coloquei o aparelho celular sobre a mesa.

— Munto deíssa esse papá… — Ouvi a menina resmungar, toda


lambuzada de comida. Tinha abóbora até próximo aos cílios.
Era inacreditável que ela estivesse tranquila ao lado de um
desconhecido. Poderia ser qualquer pessoa no meu lugar, inclusive um
malfeitor sem escrúpulos. Por certo, vivia à toa, a pobrezinha. Negligenciada
por três anos nas mãos de uma genitora leviana.

— Vem aqui, menina. — Mergulhei minhas mãos em suas axilas e a


trouxe para o meu colo. — Você se sujou toda, me deixa ajudar.

Removi a sujeira de seu rosto com a própria colher, dispensei a


lambança no canto do prato e reabasteci a boca faminta.

Isabela estava suada, precisando de um bom banho e roupas limpas.


Mesmo não me sentindo confortável para realizar aquela tarefa, daria o meu
melhor para deixá-la apresentável.

— Hum… — Liberou um ruído expressivo, saboreando a comida como


se fosse uma grande preciosidade. — Beinha, tudo — disse antes de deixar
a boca em uma posição estratégica, provavelmente esperando outra porção.

Peguei-me sorrindo ao encará-la. Isabela era bela. Nenhum outro nome


cairia tão bem. Pensei em minha mãe naquele momento, na felicidade que
seria saber da existência de uma neta, um desejo que não realizei durante sua
vida, mas prometi nos últimos suspiros.

— Você chegou no momento mais vulnerável da minha vida, bebê. —


Coloquei a comida na boca dela e deixei um beijo em seus cabelos
bagunçados. — Você também pensa que está muito cedo para nos
apegarmos?

— Vunelável? — indagou, envolvida com a comida, sem saber o peso


das minhas palavras.

— Você não faz ideia, bebê. Será complicado lidar com mais um vazio
se isso não passar de um golpe para ferrar com minha vida.
Deixei outro beijo nos cabelos dela, rindo da minha patética carência
afetiva.
— Goope é munto legal — a bebê afirmou, como se estivesse saindo
de uma silenciosa análise.

Definitivamente, era necessário selecionar palavras certas na frente


daquela pequena mente em desenvolvimento.

Minha filha.

Reabasteci a colher e, naquele momento, a tela do celular acendeu na


interface do aplicativo, exibindo a foto de Isabela abraçada a uma… galinha.
Sim, uma poedeira bastante robusta que me fez salivar instantaneamente ao
me recordar dos pirões caipiras feitos por minha mãe.

— Nenélope… Dainha de Beinha! — a pequena murmurou, apontando


para o aparelho sobre a mesa. — Oh, Nenélope,
Beinha gaudar um potinho de papá pá bocê. Um pato munto gande.

Engoli em seco antes de colocar a criança no chão e me afastar com o


aparelho diante dos meus olhos. Era alguém da família. Tive certeza disso e
não demorei a verificar.
Continue lendo aqui
Pry Olivier é uma autora baiana de comédia romântica e romance
policial. Seu principal objetivo é levar mensagens positivas para os
corações e mostrar que o remédio para qualquer ferida é o amor.

Redes sociais da autora:

Instagram:
https://www.instagram.com/pryolivier_/

Grupo de leitoras:

https://www.facebook.com/groups/350173628819378/?ref=share

Wattpad:

https://my.w.tt/0HJaOYtwUab

Outros livros da autora

https://amzn.to/3fg85NO

[1]
Você demorou, querida.
[2]
Lágrimas.

[3]
Pescoço.
[4]
Cansada.
[5]
Gíria do interior baiano — Pessoa com um olho parecido com uma bola de gude. Pode ser pela
coloração, por ser um olho grande, ou por ser um olho bonito, com aparência de vidro colorido.
[6]
Com licença.
[7]
Comigo.
[8]
Gostoso.
[9]
Bravinho.
[10]
Ditado Baiano
Pote de água de barro
Rudia é uma corda, pano ou almofada em círculo, que a pessoa coloca na cabeça para acomodar o peso
que se carrega.

— Se você não aguenta carregar o pote de água, nem adianta colocar a rudia na cabeça.

[11]
Linguagem baianês: Vai pra porra!

[12]
Linguagem baianês: fique longe disso
[13]
É uma pessoa que tudo que vê quer.
[14]
Encaracolada.
[15]
A Marvel Comics é uma editora norte-americana de mídias relacionadas. Hoje a Marvel Comics é
considerada a maior editora de histórias em quadrinhos do mundo. Em 2009, a The Walt Disney
Company, adquiriu a Marvel Entertainment, a empresa mãe da Marvel.

[16]
Discaradinho.
[17]
Comeu.
[18]
Coitada.
[19]

Também conhecida como Cordilheira do Jura, a região faz fronteira com França, Suíça e Alemanha.
Atualmente a região do Jura possui cerca de 80 mil habitantes, que se dividem entre 122 pequenas
cidades. A paisagem é repleta de fazendas que formam cenários únicos. Ao todo, são cerca de 1.800
quilômetros quadrados para serem apreciados. Essa é a região que inspirou o clássico “Jurassic Park” e
atrai visitantes em todas as estações do ano com as suas incríveis particularidades.

[20]
O diagnóstico da TEI ainda é puramente clínico.

[21]
Trecho da música Umbrella da cantora Rihanna (feat. Jay-Z)

Tradução:

“Você tem meu coração


E nós nunca estaremos distantes
Você pode estar nas revistas
Mas você ainda será minha estrela
Querido, pois no escuro
Não dá para ver os carros brilhantes
E é aí que você precisa de mim
Com você eu sempre compartilharei

Porque
Quando o sol brilha, nós brilhamos juntos
Te disse que estaria aqui para sempre
Disse que sempre seria sua amiga
E o que eu jurei eu vou cumprir até o fim
Agora que está chovendo mais do que nunca
Saiba que ainda teremos um ao outro
Você pode ficar debaixo do meu guarda-chuva.”
Você pode ficar debaixo do meu guarda-chuva

Chuva, chuva, eh, eh, eh


Debaixo do meu guarda-chuva
Chuva, chuva, eh, eh, eh
Debaixo do meu guarda-chuva
Chuva, chuva, eh, eh, eh
Debaixo do meu guarda-chuva
Chuva, chuva, eh, eh, eh, eh, eh, eh”

[22]
A mais conceituada revista de negócios e economia do mundo.

[23]
Música “Minhoca” Versão adaptada pela autora do livro.

[24]
“Atividade”. Para algumas crianças, na primeira fase escolar, todo papel rabiscado vira uma
atividade.

[25]
“Estou com fome”.
[26]
“Que tenso”. Gíria baiana.
[27]
Carrara é um mármore italiano, muito usado para fazer estátuas e bustos. Estas esculturas ficavam
muito parecidas com a pessoa em questão. Por isso, quando duas pessoas eram muito parecidas, dizia-
se que uma parecia ter sido “esculpida em carrara”.

[28]
Transou sem camisinha.

Você também pode gostar