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UMA PERSPECTIVA PRAGMÁTICA DA ÉTICA

Daniel de Resende Travessoni1

RESUMO: A realidade pragmática do direito não se reduz a apenas as atividades


técnicas; há também um sentido ético-pragmático presente em toda conduta que,
por sua vez, constitui a realidade jurídica. Compreender a realidade do direito exige
do investigador compreender a eticidade de todo agir concreto. É possível ter uma
compreensão pragmática da ética. A análise de Ludwig Wittgenstein oferece um
modelo inicial para a compreensão da pragmaticidade da ética. Essa análise é
baseada na compreensão de Wittgenstein a respeito da linguagem. É possível inferir
que, em termos pragmáticos, os sentidos éticos, normativos e fáticos fazem parte da
realidade jurídica. Tais sentidos são interdependentes.

Palavras-chave: realidade pragmática; direito; multiplicidade da experiência jurídica,


ética, Charles Sanders Peirce, análise pragmática da ética, Ludwig Wittgenstein,
linguagem.

ABSTRACT: The Law’s pragmatic reality is not reduced by technics; there is a


pragmatic-ethic sense in all behavior that, it self, constitutes the Law’s reality. To
understand the Law’s reality the investigator needs to understand the ethicity
presents in all concret action. It is possible to have a pragmatic understand about
ethics. The Ludwig Wittgenstein analyses offers a enough start model to understand
the Ethic’s pragmaticity. This analyses is based on the Wittgenstein’s understanding
about the language. It´s possible concludes that, in pragmatic terms, the ethic, the
normative and the fact senses constitute the juridic reality; these senses are
interdependents.

Key-words: pragmatic reality; Law; multiplicity of juridic’s experience; ethics; Charles


Sanders Peirce; pragmatic’s analisys of ethics; Ludwig Wittgenstein.

1. INTRODUÇÃO.

Ao se perguntar pelo sentido pragmático da conduta do indivíduo, o investigador


poderia se limitar a identifica a experiência exclusivamente técnica? De maneira
semelhante, em relação ao âmbito das atividades jurídicas (ou em relação ao âmbito

1
Especialista em Filosofia (2006) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais, Mestre em Direito (2009) pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais. Advogado, Funcionário Público e Professor de Direito da Faculdade Batista
de Minas Gerais.
da realidade jurídica), o sentido pragmático da conduta do indivíduo se restringiria à
experiência técnica?

Ao se falar em experiência técnica2, pretende-se referir a um conjunto de


procedimentos realizados com a finalidade de bem executar uma ação que, por sua
vez, resultará em préstimos para si e para terceiros. Nesse sentido, para solucionar
problemas de determinada natureza, o profissional deverá conduzir-se de acordo
com regras técnicas. Ou seja, para desempenhar adequadamente as suas
atividades, o profissional executa procedimentos especializados tendo-se em vista
modelos de comportamento destinados a oportunizar atos úteis. Tal é o caso em
relação a, por exemplo, médicos-cirurgiões, a pilotos de aeronaves, a astrofísicos e,
necessariamente, a operadores do direito.

Ora, se se entende por “pragmático”3 aquilo que é próprio da ação (ou da conduta)
do indivíduo, ação que é concretizada de acordo com um plano razoavelmente
executável no afã de alcançar resultados mensuráveis e profícuos, seria comum
supor que os investigadores analisem a totalidade das atividades técnico-jurídicas
(legislativa, processual, etc.) como a principal experiência da dimensão pragmática
do direito.

Entretanto, tal suposição levará o investigador ao equívoco na medida em que


negligenciar a diversidade da realidade do direito. Em todas as atividades
legislativas, em todas as atividades jurisdicionais, etc, o profissional do direito está a
concretizar (ou não) valores. É o caso também em relação ao leigo: qualquer
conduta que vier a efetuar e que tenha efeitos jurídicos, o não-profissional do direito
torna presente uma ação moral ou uma ação imoral4.

2
De fato, a partir de sua etiologia, pode-se sugerir que a expressão “técnica” signifique o saber-fazer
algo, ou seja, o deter a capacidade de executar com precisão determinadas tarefas cujos resultados
são úteis.
3
A expressão “pragmático” é uma derivação da palavra grega “pragma” que, de acordo com a
tradição que tem em Charles Pearce (1839 – 1914) e William James (1842 – 1910) seus Fouding
Fathers, significa “ação” e, enquanto tal, a conduta finalística e proveitosa que o agente efetua, sejam
quais forem os fins e sejam quais forem os proveitos que o agente estipula para si.
4
No presente trabalho as convencionais e tradicionais distinções entre ética e moral não serão
adotadas em absoluto. Para todos os efeitos, moral e ética (e os adjetivos derivados das respectivas
expressões) serão considerados termos sinônimos e, assim, se referirão à realidade valorativa, à
ordem concreta do certo e do errado, enfim, à experiência do bem e do mal que abrange ao todo da
existência humana. Além do mais, ao se falar em valores, ter-se-á em vista valores morais ou valores
A realidade pragmática do direito não se reduz ao exercício de atividades
especializadas ou atividade técnico-jurídicas. Para bem compreender a realidade
jurídica, é necessário compreender que toda experiência jurídica está imbuída de
eticidade, isto é, que toda experiência jurídica é constituída de um sentido ético-
pragmático5.

Se bem que a experiência ética não se restringe a apenas a realidade jurídica: pode-
se pensar na concretude da eticidade nas atividades científicas, nas atividades
econômicas, nas atividades políticas, nas atividades religiosas, nas atividades
artísticas, entre outras. Portanto, para tentar demonstrar a eticidade da realidade
pragmática do direito será necessário, antes de tudo, demonstrar que toda e
qualquer atuação do indivíduo é constituída também por um sentido ético – que toda
a experiência pragmática do humano é moral ou imoral.

É natural que se pergunte: que é a ética? Ou, de modo mais, preciso, qual é o
significado pragmático da ética? Ou seja, há algum sentido em se afirmar que a ética
é pragmaticamente concretizada? Assim, o presente trabalho acadêmico pretende
oferecer mais do que uma análise relativa à eticidade presente em toda a realidade
jurídica; antes, tem como objetivo demonstrar que a eticidade perpassa a toda a
experiência da ação individual.

A fim de tentar propor uma análise da eticidade sob um parâmetro pragmático e,


mais do que isso, a fim de propor uma análise da experiência ética em sua
expressão pragmática é razoável utilizar dos argumentos de um entre aqueles que,
sendo participante da comunidade dos investigadores dos problemas éticos, tenha
proposto (ou, pelo menos, tenha contribuído) para a construção de modelos de
análise pragmáticos.

Para tentar executar uma análise pragmática da ética seria natural escolher um
entre os autores norte-americanos, pais do método pragmático. No entanto, houve
europeus que tiveram um papel relevante na proposição de uma perspectiva

éticos.
5
Pode-se dizer também: a realidade pragmática do direito não é constituída apenas por valores de
matriz utilitária, mas de valores de cunho moral ou ético.
analítico-pragmática, influenciando, inclusive, a escola filosófica norte-americana. A
obra do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951) oferece uma curiosa contribuição
à compreensão dos caminhos abertos pela filosofia contemporânea e pela tradição
pragmaticista.

Apesar de ter concentrado seus esforços na investigação de problemas relacionados


à linguagem, ao pensamento, à própria filosofia, os escritos do filósofo vienense
trataram em alguma medida de temas correlatos à filosofia do direito, quais sejam,
as noções de ética e de justiça, obviamente em menor medida se comparada aos
assuntos privilegiados pelo Círculo de Viena e pela Filosofia Analítica inglesa –
conhecimento, ciência, semântica, entre outros.

O que se pretende é fazer uma pequena apresentação de um escrito do filósofo de


1929 oferecido à comunidade acadêmica de Oxford, “Lecture on Ethics”. Essa
pequena apresentação tem por finalidade delinear a perspectiva peculiar de
tratamento filosófico adotada por Wittgenstein, fornecendo uma breve noção
daquele, chame-se assim, ao modus operandi tratamento filosófico inaugurado
então há cerca de três décadas e que iria modificar profundamente a compreensão
da própria filosofia.

Um comentário ainda é necessário: a tradição dos estudos éticos e ético-jurídicos é


extensa e densa; até mesmo os estudos originados da obra de Wittgenstein são de
grande monta. Nesse sentido, o trabalho presente não tem a pretensão de realizar
novas investigações ético-filosóficas ou propor novas interpretações a respeito dos
estudos éticos produzidos por Wittgenstein; trata-se de um modesto trabalho de
filosofia jurídica destinado a analisar a experiência ética e a experiência ético-jurídica
a partir de uma leitura da Lecture produzida por Wittgenstein sem a realização de
uma investigação filosófica mais densa visto que o trabalho se destina a um público
de acadêmicos do direito e de juristas.

2. DO MÉTODO PRAGMATICISTA DE ANÁLISE.

Antes de tratar da análise da ética, é preciso entender que a proposta de


Wittgenstein e os demais modelos de análise pragmáticos não foram propostos
enquanto instrumentos derivados de uma teoria pragmática; de fato, o pragmatismo
não foi concebido como um modelo teórico senão como um modelo metodológico
(ou, pelo menos, como um conjunto de argumentos utilizados para instituir um
padrão metodológico de análise de problemas de ordens diversas).

Segundo Charles Peirce, o pragmatismo pode ser entendido como uma máxima
para o agir científico e, assim, para a obtenção do conhecimento:

“Considerar os efeitos práticos que possam pensar-se como produzidos pelo


objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos é a concepção do
objeto.
(...)
Mas qual é o objetivo do pragmatismo? Que é que se espera dele? (...) O que
se deseja, então, é um método capaz de determinar o verdadeiro sentido de
qualquer conceito, doutrina, proposição, palavra, ou outro tipo de signo”
(PEIRCE: 1983, pg. 7-8).

Portanto, ao adotar o procedimento de análise segundo a máxima pragmaticista, o


investigador não se está a adotar modelo teórico do Pragmatismo. Em todo o caso,
ao se adotar o referido procedimento, o investigador adere aos pressupostos que o
estruturam; não será equívoco, pois, em afirmar a existência de uma atitude
pragmática (ou uma atitude pragmaticista) por parte do investigador ao afirmar que,
para realizar qualquer atividade de cunho científico, importa esclarecer quais são os
efeitos práticos que resultarão dos esquemas cognitivos construídos.

Se bem que é verdade identificar uma “atitude pragmaticista”, pode-se afirmar por
consequência uma perspectiva também pragmaticista, perspectiva essa constituída
por pressupostos empiristas, naturalistas e anti-metafísicas presentes na concepção
pragmática de método de investigação6. Como se argumentará a seguir, Ludwig
Wittgenstein adota uma atitude e assim uma perspectiva pragmaticista ao fazer uma
análise da ética.

6
Embora o próprio Charles Peirce se declarasse um realista há filósofos contemporâneos que se
opõe ao realismo “clássico” de Peirce, como é o caso de Richard Rorty (1931 – 2007).
3. A LINGUAGEM SEGUNDO WITTGENSTEIN.

No final da década de 1920, o filósofo vienense Ludwig Wittgenstein já encontrava-


se distanciado, em certa extensão, do ethos filosófico que o unira a Gotlob Frege
(1848 – 1925), a Bertrand Russell (1872 – 1970) e aos membros do Círculo de
Viena, porquanto estava gradativamente deixando de lado uma perspectiva
“essencialista” e, assim, gradativamente, concebendo uma perspectiva
pragmaticista. Qual seria a causa dessa mudança? A conclusão de que não haveria
uma ligação essencial (ou necessária) entre a linguagem e o mundo. Para se
entender a análise que Wittgenstein propôs fazer da ética é imprescindível, pois,
compreender, ainda que de maneira breve, o seu entendimento a respeito da
linguagem.

Em poucas palavras, segundo o entendimento essencialista de Wittgenstein (o que


coincide com a chamada primeira fase do pensamento do filósofo), tudo o que
poderia ser concebido enquanto pensamento, poderia também ser articulado de
maneira linguística – ou ser articulado enquanto linguagem. Esta, portanto, não seria
apenas um meio de expressão da intelecção do indivíduo (entre outros meios
disponíveis), mas a experiência na qual o indivíduo conhece o que há. A linguagem
permitiria, pois, ao sujeito conhecer o mundo.

Nesse sentido, toda e qualquer atividade intelectiva, inclusive o empreendimento


científico (fossem as ciências físicas, fossem as ciências de natureza sociais), se
efetuaria enquanto atividade de linguagem. Portanto, segundo o entendimento
wittgensteiniano, o limite de tudo o que é possível de ser conhecido encontrar-se-ia
dentro dos limites daquilo que pode ser representado linguisticamente

Mas, alguém poderia indagar, como é possível que a linguagem permitiria ao sujeito
conhecer? Wittgenstein entendia que cognoscibilidade ensejada pela linguagem
seria baseada na existência de um vínculo lógico (ou uma relação de necessidade,
ou uma ligação essencial) entre a estrutura da linguagem em geral e a realidade,
qual seja, a representatividade ou a capacidade da linguagem representar o que há.
Essa representatividade seria inerente à linguagem, independente de quem a
praticasse e quando a praticasse. Assim, o conhecimento se aperfeiçoaria na
medida em que o sujeito se apropriasse de uma linguagem mais adequada ao real
(ou de representações linguísticas mais próximas à estrutura do real).

A partir da década de 1920, Wittgenstein passará a revisar a sua perspectiva


essencialista da linguagem. Como? Grosso modo, o filósofo passou a considerar a
maneira como, na experiência concreta (histórica e interindividual), os indivíduos
desenvolvem e vivenciam a linguagem. Seria a partir das vivências intersubjetivas
(ou “públicas”) dos indivíduos que a linguagem viria a ser construída (as maneiras
como os símbolos serão convencionalmente concebidos e utilizados no afã de,
expressando convencionalmente as ocorrências, alcançarem finalidades as mais
diversas), e não a partir de uma estrutura previamente dada a toda atividade
linguística.

Pode-se afirmar que Wittgenstein passou a entender que as experiências de vida


preponderam na constituição da linguagem – a linguagem se conforma aos modos
de vida, ou antes, a linguagem é formada a partir de modos diversificados de vida.

“Nagel diz corretamente que o ponto de vista de Wittgenstein acerca de como


o pensamento é possível ‘implica claramente que qualquer pensamento que
possamos ter de uma realidade independente da mente precisa permanecer
no interior dos limites estabelecidos por nossa forma de vida’”. (RORTY,
2004, pg. 85)

Assim, a prática eficaz da linguagem seria o resultado da adequada observância, por


parte dos sujeitos envolvidos, de padrões de comportamento linguísticos (padrões
de comportamento baseados em regras de conduta linguísticas). Essa afirmativa
wittgensteiniana é de suma importância porquanto delimita a estrutura funcional da
linguagem a um modelo pragmático-normativo: só haveria um desempenho
linguístico eficaz na medida em que os sujeitos observassem regras de
comportamento linguístico. Em consequência de tais afirmações, Wittgenstein
inferiria que a prática da linguagem seria semelhante à prática de um determinado
jogo qualquer.

É importante esclarecer: Wittgenstein não propôs uma crítica cética à possibilidade


do conhecimento; entretanto, passou a sustentar que o conhecimento não seria o
resultado simples do aperfeiçoamento das representações que a linguagem enseja,
mas seria fruto do desenvolvimento de interações linguísticas que o sujeito mantém
junto a outros indivíduos. Nesse sentido, a conhecimento seria função da adaptação
da linguagem dos indivíduos a finalidades concretas: a interação dos indivíduos
entre si e a interação dos indivíduos com o mundo do qual fariam parte. Nesse afã
de obter resultados profícuos em suas atuações, os indivíduos desenvolveriam
padrões de comportamento linguísticos; assim, o conhecer seria o resultado também
de observar adequadamente regras de conduta linguística. Para conhecer algo é
preciso que o sujeito compreenda e aja de acordo com as regras da linguagem cujo
objeto seja aquele algo.

Essa nova perspectiva importa em um tratamento próprio para a tentativa de


compressão da experiência ética. Essa compreensão é reflexo do seu entendimento
geral a respeito da cognoscibilidade do que há e, portanto, de seu entendimento do
funcionamento da linguagem. Por conseguinte, a compreensão da ética na primeira
fase do pensamento de Wittgenstein importou na proposição de um modelo
essencialista7; por outro lado, em sua segunda fase, Wittgenstein irá elaborar uma
análise pragmática da ética, como se verá adiante.

4. A ANÁLISE WITTGENSTEINIANA DA ÉTICA.

Em 1929 Wittgenstein apresentou uma Lecture na qual propôs tratar da ética e o fez
a partir da análise da experiência da linguagem (e, em última análise, da linguagem
que pretende abranger a experiência ética). O filósofo vienense inicia seu texto com
a afirmativa de que, embora a noção de ética se refira ao estudo de valores –
valores de caráter essencial (ou “valores absolutos”), a linguagem não seria capaz
de significar tais noções, isto é, significar noções de valores universais (ou bens
universais) – ou: não faria sentido falar em valores universais.

Se a linguagem é a atividade em que o indivíduo realiza a cognição (ou, pelo menos,

7
Ou “místico” segundo especialistas na obra de Wittgenstein. Em todo o caso, o tratamento da ética
na primeira fase do pensamento do filósofo de Viena não é objeto deste trabalho. Vide PINTO, 1997,
Loyola.
a cognição em seu modo de ser completo, à guisa do raciocínio – H. Arendt dizia
que o pensamento é o diálogo silencioso do homem consigo mesmo), uma vez que
a linguagem não fosse capaz de propiciar a compreensão do que seria um ou mais
valores (universais), a linguagem também teria restrições em propiciar a
compreensão do que seria a ética (de acordo com a noção “essencialista”). Como,
então, alguém poderia tentar a experiência ética dos indivíduos, visto que é inegável
que os indivíduos vivenciem uma tal experiência? Isto é, qual seria o único sentido
plausível para se compreender a ética?

Toda expressão de natureza ética (i.e., toda expressão de natureza prescritiva:


“fulano deve agir desta maneira, ciclano não deve se comportar daquele modo”, “se
queres ser justo proceda-se assim”, “ame ao teu próximo como a ti mesmo”, e todo
juízo de caráter ético como “o comportamento de beltrano é injusto ou mal”, etc.)
pode ser tratada à guisa de expressões fáticas ou à guisa de um discurso descritivo.
Para se compreender o que alguém faz no momento em que pronuncia uma
expressão de natureza ética é necessário descrever o seu comportamento. Nesse
sentido, a experiência ética seria analisada em termos “pragmáticos”8, ou seja, a
experiência ética poderia ser compreendida enquanto o comportar-se de acordo com
finalidades postas pelo agente – ações concretizadas segundo desígnios propostos
pelo indivíduo. Valores poderiam ser descritos enquanto modelos teleológicos de
comportamento.

Esse comportamento, afirma Wittgenstein, na medida em que se concretiza em dado


acontecer histórico-espacial, exibe seu caráter teleológico e seu caráter prático-
comportamental; a ética, pois, se referiria à investigação a respeito de quais são as
finalidades adequadas em vista das quais os indivíduos devem agir para efetuar. O
âmbito da ética seria tratado da seguinte maneira:

“Now instead of saying ‘Ethics is the enquiry into what is good’ I could have
said Ethics is the enquiry into what is valuable, or, into what is really
important, or I could have said Ethics is the enquiry into the meaning of life, or

8
Observe-se que Wittgenstein não utiliza esse adjetivo (“pragmático”) em momento algum de seu
texto; em todo o caso, o filósofo vienense pretende se referir à dimensão do comportamento,
pretende se referir à experiência ativa, enfim, pretende se referir à facticidade do comportamento do
indivíduo.
into what makes life worth living, or into the right way of living. I believe if you
look at all these phrases you will get a rough idea as to what is that Ethics is
concerned with”. (WITTGENSTEIN, 1929, Galilean Library)

Além do mais, Wittgenstein afirma que o que é válido (ou o que é digno para
realizar) é, ao mesmo tempo, um motivo para o agir; por outro lado, o agir também é
um evento que influencia a construção do que vem a se tornar válido. Essa interação
se faz ao longo da marcha histórica tanto dos indivíduos quanto da comunidade que
aqueles compõem.

Essa abertura para a (ou melhor, esse modo de ser da) experiência histórica em
relação à vida humana e ao seu instrumental linguístico dá ensejo à compreensão
de que a totalidade das vivências está articulada com a casualidade (ou com a
experiência da casualidade, como a experiência daquilo que não é necessário).
Decerto, aludindo ainda à obra de sua primeira fase, Tractatus Logicu-Philosophicus,
Wittgenstein sustentava que o mundo é a totalidade dos fatos, fatos esses que são
sempre casuais (ou não-necessários – é dizer, eventos que ocorrem mas que
poderiam não ter ocorrido). Portanto, Wittgenstein pôde concluir que as ações
efetuadas em busca de escopos (isto é, ações éticas), em toda a sua dimensão
também seriam casuais. Tanto a estipulação de uma meta comportamental quanto o
efetuá-la estariam sujeitos à medidas de casualidade presentes a toda experiência
histórica.

Nesse sentido, Wittgenstein propôs em sua Lecture que o valor estaria ligado à
medida de sucesso vivenciada pelo indivíduo, isto é, o bem estaria posto na
capacidade de certas ações alcançarem finalidades escolhidas pelos agentes, na
escolha dos meios comportamentais mais adequados para a efetivação das metas
perseguidas9. No entanto, se se levar a argumentação até ultimas consequências,
Wittgenstein certamente redundaria em um subjetivismo e em um solipsismo
indesejados (perspectivas deixadas de lado em virtude de sua crítica “pragmática”
às suas concepções iniciais).

9
Essa inferência de Wittgenstein se aproxima das lições de William James a respeito do que este
sustentava significar o valor de verdade. Vide JAMES, 1982, Abril Cultural.
Na verdade, as metas almejadas pelos agentes seriam justificadas desde de que
pudessem ser razoavelmente aceitas pelos demais (ou por um número significativo)
de membros da comunidade; com isso, Wittgenstein afirma mais uma vez
dependência da linguagem e da linguagem utilizada na experiência ética à interação
dos indivíduos em suas vivências histórico-intersubjetivas.

No entanto, não se pode negar que muitos indivíduos sustentam que os valores
vinculam a todos. Filósofos, ministros religiosos, juristas, militares, médicos, donas
de casa, poetas, etc, enfim muitos indivíduos entendem e agem como se
determinados valores fossem absolutos. Como tratar, pois, as pretensões à
universalidade dos valores e, assim, as pretensões de universalidade de
determinados comportamentos éticos? Segundo Wittgenstein, as tentativas de
atribuição de predicados universais a certos modos de ser ético seriam o resultado
de uma compreensão descurada do funcionamento da linguagem e, em última
análise, uma compreensão inadequada da própria experiência ética. Quando
submetidas a uma análise “pragmática”, os indivíduos se limitariam a compreender
as vivências éticas enquanto ações finalísticas ou teleológicas.

Portanto, afirmativas que sustentassem a universalidade de certas vivências éticas


seriam afirmativas sem sentido. Em todo caso, Wittgenstein entendia que essas
tentativas de atribuição de universalidade a preceitos éticos seriam motivadas por
afetos e sentimentos semelhantes às vivências estéticas e às vivências religiosas
visto que os agentes aspirariam um contato essencial entre uma realidade além-
mundo (e, portanto, além da possibilidade de articular em linguagem articulável, os
significados de uma realidade de tal natureza), diferente da realidade concreta que
seria casual e em constante mudança (porquanto as condutas, os anseios e as
metas dos indivíduos se encontram em contínua alteração):

“For all I wanted to do with them was just to go beyond the world and that is to
say beyond significant language”. (WITTGENSTEIN, 1929, Galilean Library)

O filósofo vienense entende que, mesmo que as vivências de caráter ético, estético
e religioso pudessem ser compreendidas enquanto complexas experiências místico-
intuitivas, elas poderiam ser adequadamente compreendidas por meio de uma
análise pragmática dos usos das expressões linguísticas (expressões e juízos de
natureza ética, estética e religiosa) em discussão. Essa análise implicaria na
demonstração dos limites linguísticos (nos limites do que é dizível) e, portanto, dos
limites práticos do que significa agir de maneira ética, estética e religiosa:

“My whole tendency is, I believe, the tendency of all men who ever tried to
write or talk about Ethics or Religion was to run against the boundaries of
language”. (WITTGENSTEIN, 1929, Galilean Library)

Alguém poderia observar a proximidade da análise da experiência ético-linguística


de Wittgenstein em relação aos herdeiros dos filósofos utilitaristas, tal como B.
Williams, para os quais o bom estaria incorporado em práticas prolíficas em produzir
resultados adequados às aspirações intersubjetivas10.

5. CONSEQUÊNCIAS.

À vista tanto dos pressupostos do método pragmático quanto da análise


wittgensteiniana, é possível que o leitor chegue a algumas conclusões? É razoável
afirmar que sim. Em primeiro lugar, se o comportamento ético do indivíduo é uma
espécie de comportamento de acordo com fins, a experiência humana é em toda a
sua extensão uma experiência ética. Ora, todo indivíduo está invariavelmente a agir
em vista de escopos os mais variados; ao mesmo tempo, o seu agir é avaliado (por
si e por seus pares) segundo os escopos e o modo como se comporta para alcançá-
los.

Esse modo de compreender a eticidade do comportamento do indivíduo é, ademais,


relevante para compreender a eticidade presente em toda a experiência jurídica:
toda norma de direito é posta com o objetivo de ordenar comportamentos (de

10
Aspirações intersubjetivas estipuladas a partir de consensos formados ao longo de uma dada
tradição cultural, se bem que se afastam do pragmatismo (e não da análise da linguagem) já que
sustentam uma instância a amparar aqueles consensos de modo que funcione como um fundamento
a uma série de caracteres ético-naturais.
maneira que os indivíduos possam agir de determinados modos que lhes sejam
mais satisfatórios, que lhes sejam mais razoáveis, enfim, que lhes sejam
convenientes)

Ora, uma norma jurídica é um padrão de comportamento exigível e, assim, implica


em um dever-ser (ou em um dever de agir), não importa qual seja a matéria tratada
pela norma: civil, tributária, trabalhista, penal, etc. Esse dever é posto para que os
indivíduos o realizem; se assim o fazem, eles atingem as finalidades para as quais a
norma foi posta, por exemplo, respeitar a propriedade de outrem, não interferir na
liberdade de opinião de terceiro, limitar a intervenção do Estado nas escolhas
familiares, recolher uma determinada quantia (e nada mais do que essa quantia) aos
cofres públicos, cumprir com as obrigações do contrato, entre outros.

Entretanto, há um grave problema em tentar compreender a eticidade do agir (e a


eticidade presente na experiência jurídica) enquanto uma espécie atributo
teleológico da ação. Se é verdade que a ação do indivíduo é uma ação finalística,
também é verdade que a ação do indivíduo é considerada como uma ação
eticamente aceitável ou uma ação eticamente reprovável (seja o objetivo da ação
eticamente aceitável ou eticamente reprovável).

Assim, em segundo lugar, pode-se concluir que a análise que faz Wittgenstein
resulta em um reducionismo visto que reduz o sentido ético da ação a uma espécie
de sentido finalístico ou teleológico do ação. Quando alguém pronuncia um juízo
moral ou pronuncia uma prescrição não pretende apenas que determinada situação
venha a ser concretizada por meio de certas ações, mas que essas mesmas ações
se concretizem por si mesmas (já que essas ações são desejadas em si porquanto
são portadoras de um sentido de aceitabilidade e de exigibilidade; enfim, porquanto
são moralmente exigíveis)

O fato de alguém se apresentar e agir como um profissional exige, enquanto tal, que
esse alguém se recorde que ele “professa” um conjunto de padrões de correção
pertinentes ao desempenho de suas atividades especializadas e, ao mesmo tempo,
que ele “professa” um conjunto de padrões técnicos aos quais está sujeito para bem
executar os seus serviços.

Ocorre que sua conduta profissional não está vinculada apenas a padrões de ordem
técnica; enquanto profissional o indivíduo também responde por efetuar condutas
eticamente aceitáveis enquanto indivíduo, enquanto membro de um grupo mais
abrangente de indivíduos. Nesse sentido, se alguém pretende ser um profissional do
direito não poderá contornar a conclusão de que, em sua prática cotidiana, suas
condutas resultam na concretização (ou na não-concretização) de modelos
valorativos (ou de padrões de moralidade).

Tais padrões de moralidade (ou padrões éticos) não se limitam a significar a mera
adequação da ação a medidas de funcionalidade ou à mera eficácia do ato praticado
em relação ao resultado técnico almejado: o comportamento, por exemplo, de um
advogado não deve ser apenas tecnicamente eficaz mas (assim os indivíduos o
exigem) deve ser eticamente aceitável.

Portanto, os fins almejados na ação não se restringem ao resultado funcional,


também se referem à concretização do que é bom (ou do que é correto); de maneira
semelhante, ao se fazer um juízo (de natureza ética) a respeito de determinada
conduta de um profissional, a linguagem se refere a algo a mais do que os efeitos
técnicos do procedimento realizado pelo indivíduo, a linguagem se refere à
concretização (ou não) de uma medida de moralidade.

O mesmo pode ser dito a respeito do ordenamento jurídico: uma determinada norma
de direito civil que exige todos os demais indivíduos se abstenham de interferir na
propriedade imóvel de certa pessoa; é indiscutível a medida de funcionalidade
existente nas normas que tutelam a propriedade imobiliária; por outro lado, o abster-
se de interferir na propriedade de outrem é eticamente aceitável – aliás, é
eticamente exigível. Há pois uma medida de eticidade presente a todo o momento
nas condutas abrangidas pelas normas constituintes do ordenamento jurídico. Essa
medida de eticidade se vivencia em cada comportamento juridicamente relevante do
indivíduo.
Por conseguinte, a realidade pragmática do direito não se limita à mera tecnicidade,
há ao menos outro sentido dessa realidade pragmática do direito, o sentido ético.
Essa pluralidade de sentidos (o técnico-funcional, por um lado, e o ético, por outro)
permitem evocar às lições de Reale, para quem o direito se faz em uma realidade
tridimensional (uma realidade de fato, de valor e de norma) e cujas dimensões
encontram-se ao mesmo tempo presentes na experiência concreta dos indivíduos.

A realidade pragmática do direito é, pois, constituída também por seu modo de ser
pragmático-valorativo na medida em que os indivíduos ensejam condutas em
conformidade ou em desconformidade com preceitos éticos. Para ser mais preciso,
seria mais conveniente afirmar que a realidade pragmática do direito detém uma
efetiva eticidade uma vez que, como se espera ter podido demonstrar, cada
comportamento implica na concretização de certa medida do que é eticamente
aceitável ou do que é eticamente reprovável.

Sem pretender apelar para um anacronismo evidente, é razoável identificar nos


ensinos dos jurisconsultos romanos (que não detinham, por óbvio, o método
pragmático) a compreensão de que a eticidade (ou a moralidade) perpassa o todo
da realidade jurídica na medida em que uma determinada conduta, mesmo que
adequada a certo comando normativo, não necessariamente seria considerada
moralmente correta.11

6. BIBLIOGRAFIA

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