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Através de "Os Maias", é possível retratar a "miséria portuguesa" dos finais do século XIX.
De facto, o subtítulo "Episódios da Vida Romântica" remete para uma crónica social que descreve os
ambientes da alta sociedade lisboeta, sob a forma de caricatura, focalizada pela visão de Carlos e
completada pela visão de Craft e Ega.
Assim, no "Episódio do Jantar no Hotel Central", desfilam as principais figuras e problemas da vida
política, social e cultural. Através de uma estratégia naturalista, critica-se Portugal, personagem coletiva,
representada pelas várias personagens que percorrem o romance. São ainda postos em confr onto o
ultrarromantismo e o naturalismo, representados por Alencar e Ega, respetivamente. Assim, pode -se
constatar ainda uma censura à crítica literária em Portugal, que é feita à base de ataques pessoais e de
agressões físicas.
No "Episódio da Corrida de Cavalos", desmascara-se a aparência e o verniz postiço de uma sociedade que
se pretende cosmopolita e civilizada. De facto, faz-se uma crítica ao provincianismo da capital que
pretende imitar o "chic" do "lá fora".
Além disso, denuncia-se ainda o jornalismo incompetente e venal (episódio do jornal "A Tarde"), a
política económico-financeira ruinosa, que arrastava Portugal para a bancarrota, e a educação
tradicional portuguesa, representada por Pedro da Maia e Eusebiozinho.
Em conclusão, podemos dizer que, aliada à história de uma família que percorre três gerações, surge-nos
a caracterização de uma sociedade decadente, que se irá refletir, forçosamente, no destino da família
Maia.
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O jantar no Hotel Central II
Ega gritou sofregamente pela «receita». Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionária
constante; nas vésperas de se lançarem os empréstimos haver duzentos maganões decididos que
caíssem à pancada na municipal e quebrassem os candeeiros com vivas à República; telegrafar isto em
letras bem gordas para os jornais de Paris, de Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados,
assustar o brasileiro, e a bancarrota estalava. Somente, como ele disse, isto não convinha a ninguém.
Então Ega protestou com veemência. Como não convinha a ninguém? Ora essa! Era justamente o
que convinha a todos! À bancarrota seguia-se uma revolução, evidentemente. […]
— Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.
Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen, com aquele sorriso indulgente de homem superior
que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apenas «um dos paradoxos do nosso Ega». Mas o Ega
falava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta
de independência. Um receio tão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a do
Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só
trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em deixar
cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal. Sem contar as
alianças que teríamos a troco das colónias — das colónias que só nos servem, como a prata de família
aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise… Não havia perigo; o que nos
aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sova tremenda,
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pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a Galiza estendida
até ao Douro…
E enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via ele a salvação do país nessa catástrofe
que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heróis, berço dos
Egas…
Agora, num rumor animado, discutia-se a invasão. Ah, podia-se fazer uma bela resistência! Cohen
afiançava o dinheiro. Armas, artilharia, iam comprar-se à América — e Craft ofereceu logo a sua
coleção de espadas do século XVI.