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ISSN 2307-390X

Artigo original

Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no


ensino geral em Moçambique: uma abordagem sociológica
Nelson Casimiro Zavale
Universidade Eduardo Mondlane (UEM)

RESUMO: O presente artigo procura interpretar os princípios epistémicos e sociais subjacentes aos novos currículos
do ensino primário e secundário em Moçambique. A interpretação é feita na base do quadro teórico do realismo
social, particularmente a teoria de diferenciação curricular de Shay. O artigo procura suprir as limitações das
anteriores análises das reformas curriculares em Moçambique, baseadas no realismo social, bem como alargar as
reflexões sobre os fundamentos dos novos currículos, acrescentando uma reflexão sociológica às já existentes
reflexões filosóficas. Metodologicamente, o artigo baseia-se na análise do conteúdo dos planos curriculares do
ensino básico e do ensino secundário geral. O artigo tece três conclusões: primeira, a de que subjazem aos novos
currículos princípios de legitimação curricular que procuram combinar a contextualidade e a verticalidade, ao
agregar formas de conhecimento fortes e fracas em densidade e gravidade semânticas; segunda, a de que essa
combinação orienta-se no sentido de reforçar a contextualidade do conhecimento e reduzir a sua verticalidade;
terceira, a de que subjaz às reformas curriculares um conceito de conhecimento poderoso que vai para além do
conhecimento teórico.
Palavras-chave: currículo do ensino geral, realismo social, sociologia do currículo e do conhecimento, teoria de
diferenciação curricular.

Epistemic and social principles underlying new curriculum reform of general


education in Mozambique: a sociological approach
ABSTRACT: This paper interprets the epistemic and social principles underlying new curriculum reform in primary
and secondary education in Mozambique. The interpretation is based on social realism framework, particularly on
Shay‟s theory of differentiated curriculum. The paper attempts to address the limitations of previous analyses of
curriculum reform in Mozambique, based on social-realism; the paper also attempts to enlarge the available
philosophically-oriented scholarship on curriculum principles in Mozambique, by proposing a sociological
perspective. Methodologically, the paper is based on content analysis of the curriculum documents of primary and
secondary education. Three conclusions are suggested: firstly, that the principles underlying these curriculum
reforms seek to combine contextuality and verticality, by assembling knowledge forms with strong and weak
semantic density and gravity; secondly, that that combination is oriented towards reinforcing contextuality and
reducing verticality of knowledge; thirdly, that the concept of powerful knowledge underlying the reforms goes
beyond theoretical knowledge.
Key-words: curriculum of general education, social-realism, sociology of curriculum and knowledge, theory of
curriculum differentiation.

_______________________________
Correspondência para: (correspondence to:) nelson.casimiro.zavale@gmail.com

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


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NC Zavale

INTRODUÇÃO competências e de modelos centrados no


estudante e na resolução de problemas. O
Desde a independência, os governos
novo paradigma assenta na crítica contra o
africanos procuraram adequar a educação e o
academicismo do ensino e na procura da
currículo escolar às necessidades das
garantia da relevância socioeconómica da
sociedades africanas. Esta pretensão, por
educação em África (SHIZIA e ABDI, 2014;
alguns apelidada de africanização, implicava
HOLMES e MACLEAN, 2009;
a inclusão, na educação formal, de
CHISHOLM e LEYENDECKER, 2008). No
conhecimentos e traços da cultura africana,
ensino primário e secundário, defende-se a
como também a mudança da orientação da
vocacionalização dos curricula, para
escola para servir os interesses
desenvolver competências úteis à economia
socioeconómicos de África, outrora
e às sociedades africanas (LAUGLO, 2009;
negligenciados pelo sistema colonial
LEWI, 2008, VESPOOR, 2008,
(EMEAGWALI e DEI, 2014; SHIZIA,
ATCHOARENA e GASPERINI, 2006;
2014). A intenção de africanização motivou
WOLRD BANK, 2005). Em consequência,
iniciativas de reformas na educação,
reformas curriculares com este pendor foram
particularmente nos curricula. Não obstante
sendo implementadas na educação primária
a euforia inicial, o êxito da africanização
e secundária de quase toda a África
curricular foi condicionado por paradigmas
subsahariana (GAUTHIER, 2013; ANARFI
vigentes na comunidade internacional.
e APPIAH, 2012; TEHIO, 2010).
Shizia (2014, p.117) chega mesmo a sugerir
que as mudanças curriculares em África Em Moçambique, este movimento traduziu-
foram promovidas, sobretudo, pela se na introdução de novos currículos do
comunidade internacional. Após décadas de ensino primário, em 2004, e do ensino
alguma heterogeneidade nas políticas secundário, em 2009. A introdução destes
educativas pós-coloniais, justificada por currículos suscitou estudos sobre a sua
percursos históricos e parceiros natureza e as (im)possibilidades de
internacionais heterogénios nos diversos implementar as inovações curriculares
países africanos i, assiste-se, no pós-1990, a prescritas. A literatura especializada sobre
uma tendência de homogeneização do esta matéria em Moçambique focaliza-se
discurso educacional. Factores como o fim sobre questões ligadas à implementação de
da guerra fria, a globalização neoliberal, o algumas inovações curriculares,
advento da economia do conhecimento, o particularmente o currículo local (BASÍLIO,
estabelecimento do multipartidarismo, a 2012; ALDERUCCIO, 2010; CASTIANO,
implementação dos programas de 2006) e o ensino bilíngue (CHIMBUTANE
reajustamento estrutural e dos planos de e BENSON, 2012; NGUNGA, 2011).
alívio à pobreza fizeram emergir um Existe, igualmente, literatura que procura
discurso tendencialmente uniforme sobre a examinar holisticamente as questões de
educação em África (CHISHOLM e implementação curricular, ora sob forma de
LEYNDERCKER, 2008). Discursos como estudos de caso (GUIBUNDANA, 2014;
Educação para todos e taxas de retorno do GURO e WEBER, 2010), ora sob forma de
investimento educacional ecoaram em estudos encomendados para avaliar todo o
África (UNESCO, 2004; sistema educativo (CAMPOS et al, 2011).
PSCHAROPOULOS, 1994). No entanto, poucos estudos reflectiram sobre
Ao nível curricular, assiste-se à defesa do os princípios subjacentes às reformas
paradigma de educação baseada em curriculares (ver, por exemplo,
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GONÇALVES, 2014; REMANE e AÍPIO, (NSE), como eram conhecidos (YOUNG,


2013; Cross, 2011). Os poucos estudos que 1971; BERNSTEIN, 1971), entraram no
examinaram os fundamentos dos novos debate curricular por duas vias. Por um lado,
currículos fizeram-no sobretudo numa argumentavam que, se a sociologia aspirasse
perspectiva filosófica e focalizaram-se em a ser útil à educação, devia estender o seu
aspectos particulares dessas reformas. Não âmbito de análise. Enquanto continuaria a
existem, regra geral, análises sociológicas, analisar o impacto dos factores sociais, como
exceptuando-se as ainda incipientes análises a estratificação social (BAUDELOT e
de Zavale (2013a e 2013b). Este facto ESTABLET, 1971), a cultura (BOURDIEU
contrasta com a tradição de reflexão & PASSERON, 1970) e a ideologia
sociológica sobre a natureza do currículo e (APPLE, 1990) sobre a educação, a
do conhecimento escolar em outros sociologia devia estudar também o currículo
contextos (MATON, 2013; SHAY, 2012; escolar. Os NSE defendiam que, estudando
YOUNG, 2008; BERNSTEIN, 1971). O apenas a relação entre a estrutura social e o
presente artigo propõe-se a contribuir para a sucesso escolar, a sociologia não abordava a
reflexão sobre os fundamentos das novas função principal da educação: a transmissão
reformas, interpretando sociologicamente os do conhecimento. Por outro lado, os NSE
princípios epistémicos e sociais subjacentes desafiaram a pretensa neutralidade e
aos currículos do ensino primário e objectividade do currículo, defendida pelos
secundário. A contribuição do artigo filósofos da educação. Para os NSE, o
pretende ser dupla. Primeiro, servindo-se da currículo escolar não era neutro; pelo
teoria de diferenciação curricular de Shay contrário, era condicionada pelo contexto
(2012), o artigo revisita criticamente a social. Com influência eclética,
interpretação de Zavale (2013a, 2013b), particularmente a teoria crítica, a sociologia
inspirada no realismo social, sobre a interpretativa de Weber, o interaccionismo
natureza do conhecimento escolar simbólico de Mead, a fenomenologia social
seleccionado nos novos currículos. Segundo, de Schultz e o sócio-construtivismo de
o artigo procura proceder à uma Berger e Luckman, os NSE argumentam que
interpretação holística dos princípios o currículo e conhecimento escolar são
epistémicos e sociais, comparando as construções sociais (YOUNG, 1971;
intencionalidades prescritas nos currículos BERNSTEIN, 1971).
do ensino primário e secundário. Esta tese, conhecida como sócio-
A análise sociológica do currículo: da construtivismo, foi cedo acusada de
origem ao realismo social relativismo radical e igualitarismo
epistemológico, isto é, de tentativa errônea
A análise sociológica do currículo escolar
de igualar todas as formas de conhecimento
remonta à década 1960. Nessa altura, a
e todos os sujeitos cognoscentes (WHITE,
legitimidade da contribuição sociológica no
1975; PRING, 1972). Pring (1972), por
debate curricular era questionada, porque o
exemplo, defendia que as categorias de
currículo era considerado objecto
conhecimento não eram apenas produtos de
privilegiado da filosofia da educação. Os
negociação social, mas relacionadas com
filósofos da educação concebiam o currículo
alguma objectividade, com algo existente na
como uma entidade natural, independente e
realidade circundante. Estas críticas levaram
neutra em relação ao contexto social
à emergência, a partir da década 1990, de
(HIRST, 1969; PHENIX, 1964). Na década
um movimento de revisita do nihilismo e
1970, os Novos Sociólogos da Educação
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relativismo subjacentes ao sócio- social, adstrita ao relativismo. O debate


construtivismo. O próprio Michael Young subjacente a esta dicotomia resultou numa
dedicou extensa obra a esta revisita, mas teoria social alternativa: o realismo social
outros proeminentes teóricos sociais também (MOORE e MULLER, 1999; YOUNG,
se engajaram no empreendimento (YOUNG, 2011, 2008; MOORE, 2013; MATON e
2011, 2008; MATON e MOORE, 2010; MOORE, 2010; WHEELAHAN, 2010,
WHEELAHAN, 2010). 2010).
Young reconheceu que a tese sócio- Realismo social: implicações curriculares
construtivista de que o conhecimento O realismo social advoga a possibilidade de
reflecte relações de poder é problemática, convergência entre o sócio-construtivismo e
porque retira do conhecimento qualquer o realismo a-social, baseando-se em dois
possibilidade de objectividade, ao considerá- fundamentos principais. O primeiro
lo um instrumento político-social, cuja fundamento consiste em considerar que, tal
validade é legitimada pelas diferenças como o sócio-construtivismo reivindica, o
sociais dos sujeitos cognoscentes (YOUNG, conhecimento é social na sua origem: o
2011, p. 11-12; YOUNG, 2008, p.7 ). Para conhecimento é produzido no contexto de
Young, o relativismo socioconstructivista é códigos e práticas sociais, colectivamente
pernicioso e nihilista para o debate sobre o partilhadas por membros da comunidade
currículo. No entanto, Young rejeita a ideia científica (YOUNG, 2008, p. 28-30).
de que as críticas contra o relativismo levem Todavia, o realismo social rejeita o
necessariamente à recuperação duma visão argumento sócio-construtivista de considerar
inocente de conhecimento, particularmente a socialidade do conhecimento como um
da ciência, como uma entidade neutra, a- problema, como conduzindo ao relativismo.
histórica e a-social, defendida pelos Para o realismo social, a socialidade do
positivistas. Para Young, o relativismo e o
conhecimento constitui a base para a sua
positivismo estão parcialmente errados. A objectividade. Como Young afirma “é a base
epistemologia relativista, ao defender que social do conhecimento que lhe confere
todo conhecimento é senão um constructo objectividade e carácter de verdade, daí a
social, ignora a existência de algumas mudança do sócio-construtivismo para o
propriedades epistemológicas que tornam realismo social” (2011, p. 14). O maior
algumas formas de conhecimento com desafio do realismo social, sugerido por
validade universal. A epistemologia Maton e Moore (2010, p. 2) consiste em
positivista, ao apregoar a neutralidade do substituir a disjunção “ou/ou”, implicada na
conhecimento, particularmente científico, polarização, por uma reformulada relação
ignora a natureza social do conhecimento, copulativa “tanto/como”. O realismo social
por ser produto da actividade humana. A reconhece a objectividade no conhecimento,
consequência desta dicotomia, afirma Young mas também a sua socialidade e falibilidade.
(2008, p.25), é a polarização entre a visão O segundo fundamento consiste em
positivista e a visão pós-moderna da ciência. considerar que as formas de conhecimento
À semelhança de Young, outros teóricos disponíveis na sociedade não têm igual valor
sociais, como Maton e Moore (2010, p. 2-3), epistemológico. Por exemplo, as
referiram-se à dicotomia entre a visão propriedades do conhecimento teórico são
decontextualizada e a-social do diferentes das do conhecimento vulgar. O
conhecimento, defendida pelo positivismo, e conhecimento teórico é abstracto; é
a ideia do conhecimento como construção produzido em contextos sociais específicos,
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mas o seu poder explicado transcende esses ocorre num contexto da emergência de um
contextos e a sua validade depende do discurso a favor da vocacionalização e da
acordo na comunidade científica. O busca da relevância socioeconómica da
conhecimento vulgar também é produzido educação em África. Trata-se de um discurso
em contextos sociais específicos, mas o seu promovido por actores da globalização
poder explicativo restringe-se esses neoliberal, mas que também ecoa em
contextos. Esta diferença de propriedades círculos nacionais pró-utilitaristas (Shizia e
entre formas de conhecimento legitima Abdi, 2014; ATCHOARENA e
diferenças de poder heurístico e explicativo. GASPERINI, 2006; WORLD BANK, 2005).
Assim, os realistas-sociais consideram o Em Moçambique, este contexto levou à
conhecimento teórico como mais poderoso reflexões sobre os efeitos do neoliberalismo
do que o conhecimento vulgar (YOUNG, e do utilitarismo económico na educação,
2008). bem como a análises das novas reformas
curriculares. Langa (2012), por exemplo,
Baseando-se nestes dois fundamentos os
defende que o neoliberalismo em
social-realistas reafirmam o lugar
Moçambique levou à mercantilização do
preponderante do conhecimento teórico nos
ensino superior e à consequente
currículos escolares. Esta posição
subalternização ou fraca relação com o
influenciou críticas aos modelos curriculares
saber. Num outro trabalho, Langa (2010)
que ignoram o conhecimento teórico. Young
insurge-se contra a tendência utilitarista de
(2008) criticou as reformas curriculares, que
transformação da universidade em centro de
negligenciam o conhecimento teórico-
combate à pobreza. Todavia, Langa tem
disciplinar, introduzidas na Inglaterra e na
como foco o ensino superior, e não os níveis
África do Sul; Muller (2000) criticou o
inferiores; além disso, não examina
currículo baseado em competências da
empiricamente os curricula, embora se refira
África do Sul; Wheelahan (2010, 2009)
ao saber.
criticou o currículo vocacional da Austrália.
O argumento comum destas críticas consiste Os estudos específicos sobre os novos
em considerar as reformas curriculares, currículos incidem sobre a implementação
inspiradas na globalização neoliberal, como de inovações curriculares específicas, como
incentivando uma noção utilitária de o currículo local (BASÍLIO, 2012;
conhecimento. Esta noção resulta na ALDERUCCIO, 2010; DHORSAN e
tendência de negligenciar o conhecimento CHACUAIO, 2009; CASTIANO, 2006) e o
teórico. As teses social-realistas inspiraram ensino bilíngue no ensino primário
análises sociológicas das reformas (CHIMBUTANE e BENSON, 2012;
curriculares em Moçambique (ZAVALE, NGUNGA, 2011). Existem alguns estudos
2013a, 2013b). que examinam holisticamente o processo de
implementação curricular, através de estudos
A análise social-realista dos currículos de
de caso (GUIBUNDANA, 2014; GURO e
Moçambique neoliberal
WEBER, 2010), e de estudos encomendados
Antes de examinar as análises sociológicas (CAMPOS et al, 2011). Todavia, poucos
social-realistas das reformas curriculares, estudos reflectiram compreensivamente
apresenta-se o contexto da produção sobre os fundamentos subjacentes às
académica em que elas se inserem. reformas curriculares. Os poucos estudos
Conforme referido na introdução, a existentes são filosóficos e limitam-se,
introdução dos novos currículos do ensino igualmente, a aspectos particulares das
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reformas. Por exemplo, Gonçalves (2014), à estrutura do saber escolar eram


luz das teorias marxista e gramsciana, condicionadas pela ideologia socialista. No
examinou aos fundamentos pedagógicos da período neoliberal, os currículos têm sido
introdução de artes e ofícios no ensino ajustados em função da sua capacidade de
primário e das disciplinas profissionalizantes responder às necessidades do mercado e aos
no ensino secundário, tendo questionado as desafios do combate à pobreza. Tanto no
possibilidades da efectivação da ideia de socialismo como no neoliberalismo, as
politecnia. Remane e Alípio (2013), ideologias e forças sociais foram mais
baseando-se na dialéctica, reflectiram sobre poderosas nas decisões curriculares do que a
os fundamentos da introdução da disciplina lógica das disciplinas científicas. Por isso, os
de ciências sociais no ensino secundário, currículos escolares em vigor durante o
sugerindo alguma contrariedade teórica no período socialista tinham marcas socialistas,
enfoque ideológico e na integração como o ensino de conteúdos políticos e dos
curricular. Cross (2011) examinou princípios marxistas-leninistas. De igual
historicamente as transformações da modo, os currículos introduzidos desde
educação moçambicana; porém, além de 2004, particularmente no ensino primário,
histórico, o seu estudo ultrapassa o âmbito secundário e técnico-profissional, tendem a
estritamente curricular. ser flexíveis, interdisciplinares, modulares,
virados à prática, ao mercado e aos desafios
Portanto, os estudos existentes em
do combate à pobreza ii (ZAVALE, 2013a;
Moçambique sobre os fundamentos
2013b).
subjacentes às novas reformas curriculares
são filosóficos e históricos, e focalizam-se Usando o conceito gramsciano de
sobre aspectos particulares dessas reformas. intelectuais orgânicos, Fernandes (2013)
Conforme demonstrado acima, esta situação demonstra a conexão entre a produção
contrasta com a tradição de reflexão científica no Centro de Estudos Africanos e
sociológica sobre o currículo escolar. a legitimação da visão socialista da Frelimo
entre 1975 a 1985. Para Fernandes, “o
Servindo-se das teorizações da sociologia do
trabalho intelectual do CEA tornou-se
currículo e do conhecimento, Zavale (2013a,
subsidiário da configuração socioeconômica
2013b) procura examinar as alterações
do projeto hegemônico frelimista [SIC]”
trazidas aos currículos, em resultado da
(p.36). À semelhança de Fernandes, outros
mudança do paradigma socialista (1975-
pesquisadores demonstraram a relação entre
1990) ao neoliberal (1990 em diante). Zavale
a ideologia socialista e o ensino superior em
interpreta as reformas, com base no sócio-
Moçambique, apresentando exemplos como
constructivismo, realismo a-social e realismo
a criação da Faculdade de Marxismo e
social. Zavale considera que o sócio-
Leninismo (MALOA, 2011; MÁRIO et al,
construtivismo constitui a corrente
2003). Nos níveis inferiores ao universitário,
epistemológica subjacente às opções
a literatura sobre a histórica da educação em
curriculares durante os períodos em que os
Moçambique documenta a relação estreita
paradigmas ideológicos se encontravam em
entre a ideologia dominante e a educação
apogeu: o socialismo (1975-1990) e o
(CROSS, 2011; MONDLANE, 1995;
neoliberalismo (2000 em diante). Em ambos
MAZULA, 1994; POPOV, 1990). Conforme
os casos, os currículos foram ideológica e
afirma Popov “houve relação estreita entre a
socialmente construídos. Durante o
concepção do currículo escolar com a
socialismo, os currículos eram ajustados à
ideologia política do partido Frelimo”
visão marxista-leninista, isto é, a selecção e
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(Popov, 1990, p. 110). O estudo de Cross os currículos de inspiração neoliberal, à


(2011), que abarca os três períodos da semelhança de outros autores sob influência
história moçambicana, nomeadamente social-realista (WHEELAHAN, 2010), é
colonial, socialista e neoliberal, confirma os óbvio: trazer de volta ao currículo o
estudos anteriores sobre a forte influência conhecimento teórico, porque é poderoso.
entre a ideologia e a educação.
Limites do realismo social e recurso à
Ao usar o sócio-construtivismo para Teoria de Diferenciação Curricular
interpretar as opções curriculares vigentes (TDC)
em períodos de forte presença ideológica, A crítica social-realista às reformas
Zavale (2013a e 2013b) reconfirma, numa curriculares contribuiu para reconsiderar o
perspectiva sociológica, as recorrentes lugar do conhecimento teórico no currículo.
análises históricas sobre a relação ideologia- Porém, Shay (2012, p. 4-5) advoga que o
educação-currículo. Quanto ao realismo a- realismo social resultou numa teoria de
social, Zavale (2013a) usa esta corrente para diferenciação do conhecimento e não de
interpretar a natureza dos currículos vigentes diferenciação curricular. O realismo social
entre 1992 (altura da aprovação da lei 6/92 e advoga diferenças entre formas de
revogação da lei 4/83) a 2004 (altura da conhecimento, reafirma o poder do
introdução do novo currículo de ensino conhecimento teórico-conceptual e a
primário, primeira grande reforma curricular necessidade de os currículos lhe atribuírem
pós-1992). Durante este período transitório, lugar privilegiado. Mas o realismo social não
a retirada das marcas socialistas dos teoriza: (i) os princípios subjacentes à
currículos e o não revestimento ainda pelas selecção das diferentes formas de
marcas neoliberais, deixou espaço para que conhecimento para integrarem os diferentes
as disciplinas, com a sua estrutura e tipos de currículos; (ii) o grau em que os
classificação académica, se afirmassem
diferentes currículos necessitam de
como a principal fonte e forma do saber conhecimento teórico; e (iii) a possível
veiculado na escola. Por isso, os currículos diferença do conceito de conhecimento
em vigor neste período, particularmente no poderoso em função dos propósitos do
ensino primário, secundário e técnico- currículo.
profissional, foram sobretudo disciplinares,
rígidos e insulares. Já o realismo social Para ultrapassar esta lacuna, Shay (2012)
constitui a corrente usada para proceder a formula a TDC, expondo os princípios de
crítica das reformas curriculares de legitimação dos diferentes tipos de currículo.
Moçambique pós-colonial. Zavale considera Empiricamente, a TDC de Shay (2012)
que, no Moçambique pós-colonial, as baseia-se na análise da reforma curricular no
reformas curriculares foram inspiradas por ensino superior sul-africano pós-Apartheid.
aquilo que Maton (2013) designou por Em 2004, o governo sul-africano criou a
cegueira epistemológica iii : ou a construção universidade compreensiva, fundindo os
do currículo é dominada pelas forças sócio- currículos profissionais e teóricos. Na sua
contextuais e, nesse caso, é desprovido de análise de 10 cursos com currículo
objectividade a-contextual, ou se baseia no vocacional, profissional e geral, oferecidos
ideal positivista de universalidade do pela universidade compreensiva, Shay
conhecimento, e nesse caso, não consegue concluiu que os cursos tinham, em escalas
responder às demandas sócio-contextuais. O diferentes, conhecimento prático e teórico.
apelo feito por Zavale (2013a, p. 633) para Shay formulou, então, uma teoria sobre os
princípios orientadores da selecção do
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conhecimento para integrar os currículos bernsteiniano diferenciador das estruturas de


vocacional, profissional e geral. A TDC conhecimento. Alguns campos de
considera que diferentes currículos podem conhecimento, como a Economia, têm
ter diferentes bases de legitimação. gramáticas fortes, isto é, possuem uma
sintaxe conceptual explícita que permite
Conceptualmente, a TDC baseia-se nas
fazer descrições empíricas precisas; outras
teorias dos códigos pedagógicos e de
formas de conhecimento, como a
estruturas de conhecimento de Basil
Antropologia, têm gramáticas fracas, por não
Bernstein, e na Teoria dos Códigos de
possuir essa sintaxe conceptual. Para Shay, a
Legitimação (TCL) de Karl Maton. De
relevância da teoria de Bernstein reside no
Bernstein, Shay retém a ideia de que as
facto de tornar inteligíveis as estruturas de
propriedades de conhecimento se alteram
conhecimento nos lugares de produção.
quando o conhecimento transita do lugar da
Ainda assim, para Shay, Bernstein não
sua produção para o lugar da sua
consegue:
recontextualização e transmissão. Assim, o
conhecimento inserido no currículo (ex., o [...] descrever o que acontece
conhecimento do livro escolar de Física) quando o conhecimento é
encontra-se decontextualizado do seu recontextualizado para objectivos
contexto de produção (laboratório ou curriculares. A progressão do
departamento universitário de Física) e conhecimento no lugar de produção
é diferente da progressão no local
recontextualizado para objectivos da sua recontextualização e
pedagógicos (SHAY, 2012, p. 5). Da teoria reprodução. Importa, assim, alargar
de estruturas de conhecimento de Bernstein, a teoria de Bernstein, para
Shay apropria-se da ideia da diferenciação conceptualizar e analisar as relações
entre o conhecimento vulgar e o teórico, internas e externas do conhecimento
bem como da descrição das estruturas do recontextualizado (SHAY, 2012, p.
conhecimento nos lugares de produção. Para 6).
Bernstein (2000, p.157-160), o Para ultrapassar este problema, Shay recorre
conhecimento vulgar e teórico diferem-se à TCL de Maton, particularmente à sua
pela horizontalidade e verticalidade. O dimensão semântica. A semântica de Maton
conhecimento vulgar é contextualmente (2011) descreve a relação entre o significado
fundado e progride horizontalmente, através contido nas proposições de conhecimento e
de acumulação de novas linguagens. O o contexto, incluindo o grau de
conhecimento teórico é descontextualizado e complexidade ou abstracção das proposições
progride hierarquicamente através da de conhecimento. Maton baseia-se em dois
integração do conhecimento prévio em conceitos, nomeadamente o conceitos de
proposições mais gerais. Bernstein defende gravidade semântica (GS) e densidade
que a horizontalidade e a verticalidade semântica (DS). O conceito de GS refere-se
diferenciam, também, estruturas de ao grau em que o significado está
conhecimento das disciplinas académicas. relacionado ao contexto: as proposições de
Algumas disciplinas académicas, como a conhecimento com forte GS encontram-se
Física, são discursos verticais; outras mais relacionadas ao contexto do que as com
disciplinas, particularmente as humanidades, fraca GS; o conceito de DS refere-se ao grau
são discursos horizontais, por progredirem de complexidade ou condensação do
via acumulação de novas linguagens iv . A significado com os símbolos (conceitos,
gramaticalidade constitui outro princípio frases, etc.): quanto mais condensado for o
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significado com os símbolos, mais forte é a constituindo-se em generalizações


densidade semântica (MATON, 2011, p. 65- abstractas (ex. conhecimento
66v, apud SHAY, 2012, p. 6). A GS descreve teórico,). Essas formas de
as relações externas do conhecimento e a conhecimento (ex. Matemática)
DS, as relações internas. A GS e DS revelam resultam em currículos teóricos
o grau de (in) dependência das formas de (SHAY, 2012, p.12);
conhecimento em relação ao contexto, e o 4) formas de conhecimento com fracas
quão essas formas se fundam em conceitos GS e DS não dependem do contexto
ou na experiência. No modelo de Shay, e nem possuem uma sintaxe
inspirado em Maton, a combinação do grau conceptual (ex. conhecimento
da força da GS e DS resulta em quatro genérico). Estas formas de
formas de conhecimento e, conhecimento, fracas em gravidade e
consequentemente, em quatro modelos densidades semânticas, quando
curriculares (SHAY 2012, p. 6-7):
recontextualizadas nos currículos
1) formas de conhecimento com forte genéricos, traduzem-se em
GS e DS são fortemente dependentes habilidades genéricas, como a
do contexto e possuem uma sintaxe capacidade de comunicação, a
conceptual muito complexa (ex. capacidade de trabalhar sob pressão,
conhecimento profissional). Do etc. As habilidades genéricas estão
ponto de vista curricular, os desprovidas de conceitos e não se
currículos do ensino técnico- referem a algum contexto específico.
profissional representam as Conforme mostra a Figura 1, o argumento de
modalidades curriculares com forte Shay é de que o conhecimento integrado no
GS e DS: o currículo profissional currículo é diferente do conhecimento
funda-se no conhecimento
produzido nos lugares de produção. Nos
profissional, em que o conhecimento lugares de produção, o conhecimento pode
teórico é recontextualizado para ser ser teórico (produzido no seio das disciplinas
útil ao contexto (SHAY, 2012, p.13); científicas) prático (produzido pela
2) formas de conhecimento com forte experiência prática) e profissional (adquirido
GS e fraca DS são dependentes do pela experiência profissional). A figura 1
contexto, mas estão desprovidas de mostra as possibilidades curriculares
uma sintaxe conceptual densa (ex. dependendo do tipo de conhecimento
conhecimento prático). Em termos predominantemente recontextualizado no
curriculares, o conhecimento prático currículo. O currículo teórico resulta da
resulta em currículos práticos: estes recontextualização do conhecimento teórico;
resultam da recontextualização do o currículo profissional-vocacional resulta
conhecimento obtido em contextos da recontextualização predominante do
práticos, em princípios orientadores conhecimento teórico e profissional; o
de uma prática informada (SHAY, currículo prático, da recontextualização do
2012, p.11); conhecimento da experiência prática; o
currículo genérico, da recontextualização do
3) formas de conhecimento com fraca
conhecimento genérico (SHAY, 2012,
GS e forte DS possuem uma sintaxe
conceptual complexa, mas não se p.15vi).
referem a nenhum contexto,

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


39
NC Zavale

GS-

Contextos de produção do Conhecimento


conhecimento teórico

Q4-currículo
Q1-currículo teórico (teoria
genérico aplicada)

DS- Contextos de
DS+
recontextualização
Q2- currículo Q3-currículo profissional ou
prático vocacional

Conhecimento Conhecimento
prático /prática
profissional

GS+

FIGURA 1: Representação da teoria de diferenciação curricular de Shay (2012)

O modelo de Shay mostra que diferentes contextualidade e de verticalidade das


formas de conhecimento podem ser sociedades de conhecimento (BARNETT,
integradas no currículo, dependendo do seu 2006; SHAY, 2012). Embora se restrinja aos
tipo e propósito. Se o propósito for a princípios epistémicos, o modelo pode ser
compreensão da realidade, o conhecimento alargado para tornar inteligíveis, igualmente,
teórico pode ser a forma mais apropriada e os princípios sociais. Como a própria SHAY
predominantemente recontextualizada no (2012, p. 14-15) referiu, o seu modelo
currículo; mas, se o propósito for adquirir aborda os princípios epistémicos subjacentes
conhecimento útil à prática profissional, aos currículos, mas é silencioso quanto aos
então a combinação do conhecimento princípios subjectivo-pessoais, sociais e
proveniente das disciplinas científicas e da pedagógicos. O presente artigo procura
prática profissional podem ser preferível. igualmente interpretar as possíveis forças
Assim, o modelo de Shay mostra que, sociais reguladoras das reformas
contrariamente ao que defendiam os social- curriculares, mas não aborda as questões
realistas, o conhecimento poderoso pode pedagógicas. Aliás, a TCL de Maton,
resultar não apenas da integração do alicerce da TDC de Shay, identifica
conhecimento teórico nos diferentes originalmente princípios epistémicos e
modelos curriculares, mas da combinação de sociais de legitimação do conhecimento
diferentes formas de conhecimento, (MATON, 2007).
dependendo dos propósitos dos curricula.
Para o caso de Moçambique, o modelo METODOLOGIA
permite interpretar a forma como as Conforme referido na introdução, o presente
diferentes formas de conhecimento artigo procura interpretar os princípios
disponíveis foram simultaneamente epistémicos e sociais subjacentes aos novos
recontextualizados, em graus diferentes, nas currículos do ensino primário e secundário.
novas reformas curriculares, incluindo as do O artigo procura examinar as seguintes
ensino geral, para lidar com o problema de
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017
40
Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

questões: porquê e que tipo de prescrito e, à segunda dimensão, de currículo


conhecimento vii foi recontextualizado para real e actual (pp. 14-18). Outros autores
integrar os novos currículos? Quais as fontes chamam à dimensão de currículo como
epistémicas e sociais desse conhecimento? plano de intended curriculum e à dimensão
Como esse conhecimento se encontra do currículo como processo de ensino-
estruturado e organizado? Como interpretar aprendizagem, de enacted, experienced ou
a natureza desse conhecimento e as bases learned curriculum (CHANG, 2014). Estas
subjacentes à sua legitimação? distinções ressaltam, pelo menos, três
orientações metodológicas na análise dos
Para examinar estas questões, procedeu-se à
currículos: a primeira versa sobre o plano ou
análise do conteúdo dos planos curriculares
intenções; a segunda sobre o processo de
do ensino básico (PCEB) e ensino
ensino-aprendizagem; e a terceira, sobre o
secundário (PCESG) (MINED/INDE, 2003;
cruzamento de ambos. A opção por uma ou
MEC/INDE, 2007). A escolha de planos
outra depende dos objectivos do estudo e dos
curriculares como unidades analíticas
pressupostos teóricos subjacentes. Ribeiro
baseia-se na conceptualização do currículo.
(1999), por exemplo, centrou a sua reflexão
O conceito de currículo não é consensual na
em torno dos aspectos inerentes à
literatura especializada. Ribeiro (1999), na
“fundamentação, concepção e elaboração
sua revisão da literatura, identificou várias
dos planos de estudo e programas de
concepções típicas do currículo, redutíveis a
ensino”, relegando “os aspectos de
duas dimensões. A primeira identifica o
implementação para trabalhos
currículo com “algo que se visa, com
complementares” (p. 8).
intenção ou objectivo” (p.16). Assim, o
currículo define-se como “plano estruturado Assumindo, portanto, a dimensão de
de ensino aprendizagem, englobando a currículo como plano, procedeu-se à análise
proposta de objectivos, conteúdos e do conteúdo do PCEB e PCESG, em duas
processos” (p.17). Este plano é “anterior à etapas. Na primeira etapa, foram
situação de ensino-aprendizagem, assumindo identificadas as componentes fundamentais
sobre esta um carácter de exigência de um plano curricular. Ribeiro (1999)
prescritiva” (p.16). A segunda dimensão afirma que um plano curricular,
identifica o currículo com “algo que se independentemente do seu modelo, integra
experiencia, com a interação, processo ou as seguintes componentes: contexto e
situação efectiva de ensino-aprendizagem” justificação, o quadro de objectivos e
(p.16). O processo de ensino-aprendizagem finalidades, a selecção e organização de
procura executar o plano. A aprendizagem matérias e conteúdos, a proposta de
efectiva dos estudantes (currículo estratégias de ensino-aprendizagem, a
experienciado/vivido) dependerá das avaliação e a referência a condições de
condições de implementação do plano, da implementação (p. 39-44). A análise de
percepção dos vários implementadores, conteúdo incidiu sobre três destas
particularmente os professores, sobre o componentes, por serem as que explicitam
plano (currículo percepcionado), havendo os fundamentos curriculares. A primeira, o
até a possibilidade de aquisição de contexto e justificação, visa justificar e
aprendizagens não explicitamente prescritas legitimar as decisões tomadas no currículo,
no plano (currículo oculto) (RIBEIRO, 1999, considerando o contexto que o currículo
p. 12-26). Ribeiro (1999) apelida, também, procura servir (p.45). A segunda
à primeira dimensão, de currículo formal ou componente, o quadro de objectivos e

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


41
NC Zavale

finalidades, define a “intencionalidade suas características em termos de DS


fundamental do currículo, a sua direcção (verticalidade) e GS (contextualidade).
última” (p. 41). A terceira componente,
matérias e conteúdos, explicita o tipo de APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E
conteúdos ou conhecimentos seleccionados e DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
organizados, de modo a possibilitar as As Tabelas 1 e 2 mostram que os currículos
aprendizagens e o alcance das do ensino primário e secundário, embora
intencionalidades prescritas (p. 124-144). construídos em anos diferentes, partilham
Na segunda etapa, procedeu-se à análise de princípios e traços estruturais comuns. Em
conteúdo dos planos curriculares, termos de fundamentação curricular, as
considerando as três componentes. Para o tabelas mostram a predominância de duas
contexto e justificação, a análise procurou fontes de legitimação, nomeadamente a
medir a frequência da ocorrência nos planos sociedade e o universo do conhecimento, em
curriculares e na secção relativa ao contexto, detrimento do aluno. A Tabela 1 mostra que,
de termos associados a três fontes de em todo o documento do PCEB, existem 176
legitimação curricular, nomeadamente a termos associados à sociedade, 327 termos
sociedade, o conhecimento e o aluno associados ao conhecimento e 130
(RIBEIRO, 1999, p. 45-75). Para os associados ao aluno, tendência idêntica ao
objectivos ou intencionalidades do currículo, PCESG: 212 associados à sociedade, 526
a análise procurou identificar a orientação associados ao conhecimento e 201 ao aluno.
das intencionalidades, ou seja, se o currículo Note-se o facto de, no PCESG, haver quase
está orientado para a relevância social e o dobro dos termos associados ao
prática (contextualidade, +GS e -DS) ou para conhecimento presentes no PCEB, o que
a aquisição de conhecimento teórico- pode sugerir maior recurso ao conhecimento
conceptual (verticalidade, -GS e +DS); a como fonte de legitimação no ensino
análise procurou identificar, igualmente, a secundário do que ensino básico.
intensidade ou ênfase dada às Nos dois planos, o universo de
intencionalidades curriculares. Para as conhecimento aparenta ser a maior fonte de
matérias e conteúdos, a análise começou por legitimação curricular, mas a análise de
inferir sobre o modelo de organização outros dados específicos chama à prudência.
curricular adoptado (RIBEIRO, 1990, 79- A divisão entre a frequência dos termos
93), se disciplinar (verticalidade, -GS e presentes na secção reservada ao contexto e
+DS), inter, trans ou multisciplinar, ou justificação e a frequência total dos termos
baseado em problemas e funções sociais presentes em todo o documento revela, nos
(contextualidade, +GS e -DS), analisando o dois casos, a predominância da sociedade
espaço que cada componente ocupa nos como fonte de legitimação curricular do que
planos curriculares (sobre o uso de do conhecimento. A Tabela 1 mostra que, no
frequência, orientação, intensidade e espaço PCEB, 51,9 % dos termos associados à
para análise do conteúdo, ver NEUMAN, sociedade estão na secção do contexto e
2011, p. 364). A seguir, procedeu-se à justificação, contra 16,5 % dos termos
identificação do tipo de associados ao conhecimento e 18,6 % dos
conhecimentos/conteúdos seleccionados termos associados ao aluno. Esta é a
para os currículos e à sua classificação, tendência do PCESG (Tabela 2): 41% dos
considerando as suas fontes de produção e as termos associados à sociedade estão na
secção do contexto e justificação, contra
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017
42
Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

23% dos termos associados ao conhecimento currículos estão orientados mais para a
e 21,9% dos termos associados ao aluno. Isto relevância social e prática, do que para a
sugere que a introdução dos currículos é relevância teórico-conceptual. Aliás, em
mais justificada pela necessidade de termos de intensidade, os excertos mostram
responder às demandas societais do que às a preocupação de enfatizar a relevância
do conhecimento e dos alunos. prática, destacando, em itálico, expressões
como “tornar o ensino mais relevante” e
Além disso, a análise da quantidade de
“saber-fazer”.
palavras sinónimas às três fontes revela que,
nos dois casos, há mais sinónimos A combinação da análise dos dados sobre a
associados ao conhecimento (10), à justificação das intencionalidades
sociedade (8) do que ao aluno. Mas uma curriculares, com os dados sobre o espaço
análise sobre a natureza e a frequência com ocupado por cada componente curricular nos
que os sinónimos ocorrem revela uma PCEB e PCESG, permite inferir sobre o
tendência de legitimação do currículo a modelo de organização curricular adoptado.
partir da sociedade. Nos sinónimos A Tabela 1 mostra que, no PCEB, a secção
associados à sociedade, os sinónimos mais do contexto e justificação curricular ocupa
frequentes são os que evocam grupos ou maior espaço, com 16 páginas, mais 10
instituições sociais maiores (ex. cultura, reservadas às inovações que explicitam as
comunidade, país, Moçambique), em intencionalidades curriculares; a secção de
detrimento de grupos sociais menores (ex. estrutura e conteúdos ocupa seis páginas; a
família, aldeia). Nos sinónimos associados secção de avaliação, uma página e a secção
ao conhecimento, note-se a predominância de implementação, 16. Por seu turno, a
do termo disciplina nos dois casos, o que Tabela 2 mostra que, no PCESG, a secção de
sugere que as disciplinas são concebidas estrutura e conteúdos ocupa maior espaço,
como fontes de conhecimento. Porém, uma com 45 páginas, seguida da secção do
análise da natureza e frequência de outros contexto e justificação curricular, com 23
sinónimos da palavra conhecimento revela a páginas, mais 10 reservadas às inovações
orientação requerida ao conhecimento curriculares; a secção de avaliação, uma
disciplinar: as duas tabelas mostram que página e a secção de implementação, nove
termos como competências e habilidades são páginas. O peso relativamente maior dado,
mais frequentes do que palavras como nos dois planos, à justificação, à selecção e
conceito e teoria. Isto sugere que se recorre organização de matérias e conteúdos e às
às disciplinas mais pela possibilidade de condições de implementação, em detrimento
serem fontes de habilidades e de das questões de avaliação, indicia a adopção
competências do que de conceitos e teorias. de um modelo curricular, que procura
associar a contextualidade com a
Portanto, subjaz às decisões curriculares o
verticalidade. Conforme refere Ribeiro
desejo pelo reforço da contextualidade do
(1999, p.39-40), a sobre ou sub-valorização
currículo do que da verticalidade. Esta
das diferentes componentes num plano
hipótese pode ser sustentada analisando,
curricular indicia a adopção, mesmo
igualmente, a orientação e a intensidade dos
implícita, de modelos de organização
objectivos ou intencionalidades presentes
curricular específicos.
nos dois casos. Conforme mostram os
excertos extraídos do PCEB e do PCESG, os

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


43
NC Zavale

TABELA 1: Análise da justificação do PCEB


a) Frequência b) Espaço
Fonte
(com que aparecem termos associados à (que as diferentes componentes ocupam no documento do
Justificação
sociedade, conhecimento e aluno) PCEB)
%
N° N° N°
Termo contx/ Componente curricular
total contx págs.
total
Cultura 58 28 48,3% Contexto e justificação (pp. 7-23) 16
Comunidade 33 22 66,7% Inovações curriculares (pp. 24-34) 10
Sociedade

Conteúdos: estrutura curricular e plano de estudos


País 32 16 50% 6
(pp.36-43)
Sociedade 24 10 41,7% Sistema de avaliação (pp. 47-48) 1
Moçambique 23 12 52,2% Estratégias de implementação (pp. 51-67) 10
Aldeia 2 2 100%
Identidade 4 2 50% c) Orientação (da mensagem em relação aos
conhecimentos a adquirir)
Família 7 3 42,9
Total 176 92 51,9%
Disciplina 122 9 7.4% +Relevância prático-social; - relevância teórico-conceptual
Habilidade 54 12 22.2%

Conhecimento 39 18 46.2% “O principal desafio, que se coloca ao presente currículo, é


tornar o ensino mais relevante, no sentido de formar cidadãos
capazes de contribuir para a melhoria da sua vida, da vida da
Conhecimento

Competências 40 1 2.5%
sua família, da sua comunidade e do país, dentro do espírito
da preservação da unidade nacional, manutenção da paz e
Capacidades 33 5 15.2%
estabilidade nacional, aprofundamento da democracia e
respeito pelos direitos humanos, bem como da preservação
Atitudes 18 5 27.8%
da cultura moçambicana.” (p.7)
Valores 10 4 40.0% d) Intensidade (ênfase ou destaque dado às palavras ou
expressões-chave)
Conceito 6 0 0.0%
Aptidão 3 0 0.0% +Utilidade/Relevância prático-social; - Aquisição de
teorias-conceitos
Teórico/teoria 2 0 0.0%
Total 327 54 16.5% “A maior parte dos conteúdos, que se lecciona na escola, é
Aluno 105 16 15.2% de uma relevância ou utilidade prática insignificante” (p.16).
“Como foi já referido neste documento, o principal desafio
Educando 9 2 22.2% deste currículo é tornar o ensino mais relevante Tendo em
Aluno

Indivíduo 9 1 11.1% conta este princípio, pretende-se que, ao concluir o ensino


básico, o graduado tenha adquirido conhecimentos,
Moçambicano 6 5 83.3%
habilidades e valores que lhe permitam uma inserção efectiva
Aprendente 1 0 0 na sua comunidade e na sociedade em geral” (p. 21)
Total 130 24 18.6%

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


44
Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

TABELA 2: Análise da justificação do PCESG (baseada em MEC/INDE, 2007)


Justificação curricular
a) Frequência b) Espaço
Fonte (com que aparecem termos associados à (que as diferentes componentes ocupam no documento do
Justificação sociedade, conhecimento e aluno) PCESG)
%
N° N° N°
Termo contex/ Componente curricular
total contex págs.
total
Cultura 42 18 42.9% Contexto e justificação (pp. 3-26) 23
Comunidade 52 18 34.6% inovações curriculares (pp. 27-35) 8
Sociedade

Conteúdos: estrutura curricular e plano de estudos


País 32 17 53.1% 45
(pp.35-80)
Sociedade 40 13 32.5% Sistema de avaliação (pp. 80-81) 1
Estratégias de implementação (pp. 82-91) 9
Moçambique 21 10 47.6%

Família 18 9 50.0% c) Orientação (da mensagem em relação aos


Identidade 6 1 16,7% conhecimentos a adquirir)

Aldeia 1 1 100.0%
Total 212 87 41.0% +Relevância prático-social; - relevância teórico-
conceptual
Disciplina 176 14 8.0%
“Neste contexto, o graduado do ESG não desenvolve as
Habilidade 61 15 24.6% competências necessárias para: (i) a inserção no mercado de
trabalho; criação de auto-emprego; (ii) progressão noutros
cursos especializados” ( p. 4) . “A Transformação
Conhecimento 84 25 29.8% Curricular do Ensino Secundário deve concorrer para a
Conhecimento

abertura dos horizontes do jovem em termos de integração


no sector laboral, do desenvolvimento do auto - emprego,
Competências 108 27 25.0% economia doméstica, microprojetos e criação de pequenas
empresas.” (p. 11)
Capacidades 10 3 30.0%

Atitudes 34 14 41.2% d) Intensidade (ênfase ou destaque dado às palavras ou


Valores 30 19 63.3% expressões-chave)
Conceito 15 3 20.0%
Aptidão 0 0 0.0% +Utidade/Relevância prático-social; - Aquisição de
Teórico/teoria 8 2 25.0% teorias-conceitos
Total 526 122 23.2%
Aluno 188 37 19.7%
“Transformação Curricular do ESG “que se centre nas
Educando 0 0 0.0% habilidades para a vida, entrada no mercado de trabalho,
do que apenas para o Ensino Superior” (p. 4). “Neste
Aluno

Indivíduo 3 2 66.7% sentido é necessário que o ESG confira ao jovem um nível


de conhecimentos elevados e o saber fazer necessário à sua
Moçambicano 9 5 55.6% integração social. O ESG deve deixar de ser um mero
corredor de passagem para o Ensino Superior ou
Aprendente 1 0 0.0% corresponder a um simples certificado de “habilitação
Total 201 44 21.9% escolar” com rápida desvalorização” (p.11)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


45
NC Zavale

TABELA 3: Classificação da natureza do conhecimento recontextualizado para o PCEB (baseada


em MINED/INDE, 2003, p.40)
Fonte do
Área Competências a - - + + CP CP
Disciplinas conhecimento CG CT
disciplinar desenvolver DS GS GS DS f r
recontextualizado
Conhecimento da
estrutura gramatical e Academia:
X X 1
regras de funcionamento Linguistas
Línguas: da língua
Português Capacidade de
Sociedade mais
Inglês, Línguas comunicação oral e X X 1
ampla
moçambicanas escrita
Manifestar atitudes
Comunicação e ciências sociais

Sociedade mais
moral e civicamente X X 2
ampla
correctas
Compreender e situar os
acontecimentos no Academia:
espaço e no tempo; historiadores,
X X 2
conhecer e localizar os geógrafos, cientistas
Ciências Sociais
aspectos físico- sociais
(História,
geográfico e económicos
Geografia,
Reconhecer os seus Sociedade mais
Educação Moral X X 3
direitos e deveres ampla
e Cívica,
Respeitar os direitos e
crenças dos outros; Sociedade mais
X X 4
manifestar atitudes de ampla
tolerância e ser solidário
Ter sensibilidade para
Educação apreciar o belo, escutar, Arte: artistas,
X X 1
Musical memorizar, abstrair, músicos
imaginar e criar música
Contar e calcular e
Matemática Academia:
Matemática e Ciências Naturais

aplicar as operações X X 3
matemáticos
matemáticas
Cuidar da saúde e
observar regras de
higiene, Sociedade mais
X X 5
Ciências tercomportamento sexual ampla
Naturais (Física, responsável; conservar o
Biologia, meio ambiente,
Química) Academia:
Interpretar
cientistas/
cientificamente os X X 4
professores de
fenómenos naturais
ciências naturais
Realizar actividades
tecnológicas e práticas

Artes/Ofícios produtivas ( ex. costurar, Arte/profissões:


X X 1
pescar, cozinhar, bordar, artesãos
Actividades

esculpir , cultivar, etc.


Saber desenhar, projectar
Educ. Visual Arte: projectistas X X 2
construções
Praticar actividades
Fisiologia/desporto:
Educação Física físicas, jogos tradicionais X X 3
Educadores físicos
e desportivos
Adquirir conteúdos
locais, relevante para
Currículo local Comunidade local X X 2
uma inserção adequada
na comunidade

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


46
Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

TABELA 4: Classificação da natureza do conhecimento recontextualizado para o PCEB (baseada


em MINED/INDE, 2003, p. 64-69)
Fonte do
Área Competências a - - + +
Disciplinas conhecimento DS GS GS DS
CG CPf CPr CT
disciplinar desenvolver
recontextualizado
Conhecimento da estrutura
Academia:
Línguas: gramatical e regras de X X 1
Linguistas
Português, funcionamento da língua
Inglês, Francês Capacidade de Sociedade mais
X X 1
Línguas comunicação oral e escrita ampla
Comunicação e ciências sociais

moçambicanas Manifestar atitudes moral e Sociedade mais


X X 2
civicamente correctas ampla
Compreender e situar os
Academia:
acontecimentos no espaço
cientistas sociais
e no tempo; conhecer e X X 2
(historiadores,
localizar os aspectos físico-
geógrafos, etc.)
geográfico e económicos
Ciências
Relacionar e problematizar
Sociais
as diferentes formas de
(História,
interpretação do mundo;
Geografia,
usar as diferentes formas Filosofia: filósofos X X 3
Filosofia
de acesso ao conhecimento
na construção da sua visão
do mundo.
Valores: igualdade, Sociedade mais
X X 3
liberdade, Justiça, etc. ampla
Contar, calcular e aplicar Academia:
Matemática X X 4
operações matemáticas matemáticos
Matemática e Ciências

Cuidar da saúde e observar


regras de higiene, ter
Sociedade mais
Naturais

Ciências comportamento sexual X X 4


ampla
Naturais responsável; conservar o
(Física, meio ambiente,
Biologia, Interpretar cientificamente
Química) os fenómenos naturais; Academia: ciências
X X
aplicar os princípios e naturais
conhecimentos científicos
Interpretar a música na sua
forma, vocal e instrumental Arte: artistas,
Artes cénicas X X 1
e sua representação através músicos, actores
Actividades tecnológicas e práticas

da dança e do teatro
Saber desenhar, projectar
Educ. Visual Arte: projectistas X X 2
construções, etc.
Representar com exactidão
Desenho e
objectos de várias
geometria Arte: projectistas X X 3
dimensões; Fazer
descritiva
representações gráficas
Praticar actividades físicas,
Educação Fisiologia/desporto:
jogos tradicionais e X X 4
Física Educadores físicos
desportivos
Desenhar um plano para
Noções de Comércio: pessoas
aproveitar oportunidades
Empreendedor com experiência X X 1
de negócios e obter
ismo prática em negócios
rendimento
(Continua ...)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


47
NC Zavale

(Continuação ...)
Fonte do
Área Competências a - - + +
Disciplinas conhecimento CG CPf CPr CT
disciplinar desenvolver DS GS GS DS
recontextualizado
Aplicar técnicas de Agropecuária:
produção agro- agrónomos/
Agropecuária pecuária e de gestão veterinário; X X 5
de recursos naturais agricultores/
na criadores
Conhecer o
Turismo: agentes
desenvolvimento, os
turísticos/
Turismo produtos e destinos X X 6
especialistas em
turísticos de
turismo
Moçambique;
Introdução à Academia:
Ter noções básicas de
Psico- psicopedagogos e X X 7
docência e didáctica
Pedagogia didácticos
Informática:
TICs Usar TICs X X 8
informáticos

As fontes predominantes de justificação classificação, infere-se sobre os contextos


curricular, nomeadamente a sociedade e o sociais de produção desse conhecimento. As
conhecimento, a orientação do currículo para tabelas mostram que, nos dois casos, quatro
a relevância socioeconómica, o peso dado a formas de conhecimento formam
cada uma das componentes e a análise da recontextualizados nos curricula: o
estrutura curricular e conteúdos conhecimento genérico (CG), o
seleccionados (ver Tabela 3 e 4) permitem conhecimento teórico (CT), o conhecimento
inferir que o modelo curricular adoptado profissional (CPf) e o conhecimento prático
procura combinar a organização curricular (CPr). Os tipos de conhecimento
baseada em áreas de conhecimento, com a recontextualizados permitem inferir sobre os
centrada em funções sociais (RIBEIRO, seus contextos de produção: academia,
1999, p. 83-86). O modelo baseado em áreas sociedade no geral, as artes e profissões, a
de conhecimento agrega, sob forma comunidade local e a experiência prática.
multidisciplinar, conhecimentos de várias Em outras palavras, ao lado do
disciplinas; o modelo baseado em funções conhecimento teórico-disciplinar, foram
sociais selecciona conhecimentos e aptidões recontextualizadas outras formas de
socialmente relevantes. No cruzamento conhecimento.
destes dois modelos, nasce o modelo A análise dessas formas de conhecimento,
baseado em competências, que aspira a em termos de verticalidade (densidade) e
verticalizar os conhecimentos com +GS e – gravidade (contextualidade) revela a
DS e contextualizar os conhecimentos com – tendência da reforma. Combinando as áreas
GS e +DS. de conhecimento, as disciplinas
Considerando as fontes de legitimação e as seleccionadas e, sobretudo, as competências
intencionalidades curriculares analisadas alistadas nos planos dos estudos, constata-se
acima, nas Tabelas 3 e 4, com base na leitura que nos planos de estudos do PCEB, CG,
dos planos dos estudos, apresenta-se a fraco em DS e GS, ocorre 5 vezes; o CPf,
classificação da natureza do conhecimento forte em DS e em GS, ocorre 3 vezes; o CPr,
recontextualizado para os novos currículos, forte em GS e fraco em DS, ocorre 2 vezes;
em termos de DS (verticalidade) e GS e o CT, fraco em GS e forte em DS, ocorre 4
(contextualidade), em função desta vezes. A soma do CPf com o CPr é de 5,
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Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

número superior ao CT. No PCESG, a social e prática do que para a aquisição de


combinação das quatro formas de teorias e conceitos; na análise do modelo de
conhecimento mantém-se, mas com organização curricular, registou-se a procura
tendência para a diminuição do peso do CT e de combinação da interdisciplinaridade com
reforço das outras formas de conhecimento: a funcionalidade social; na análise dos
o CPf ocorre 8 vezes, o CG 5 vezes, o CPr 1 planos de estudos, constata-se maior
vez e o CT, 4 vezes. Isto sugere uma ocorrência combinada de outras formas de
tendência para o reforço da GS ou conhecimento em detrimento do
contextualidade do currículo, em detrimento conhecimento teórico.
da sua DS ou verticalidade. A Figura 2 esquematiza os princípios
Esta tendência parece coerente em todas as epistémicos e sociais subjacentes à selecção
fases da análise dos planos curriculares: na das quatro formas de conhecimento
análise da frequência dos termos, notou-se a recontextualizadas nos novos currículos. A
predominância de duas fontes de possibilidade de contexualizar o
legitimação, a sociedade e o conhecimento, conhecimento vertical e de verticalizar o
mas com a ressalva de que, no conhecimento contextual levou à selecção de
conhecimento, os termos associados a quatro formas de conhecimento, com
teorias e conceitos ocorriam menos do que propriedades diferentes em termos de DS e
os associados a competências e habilidades; de GS e produzidos em diferentes contextos
na análise da intencionalidade, constatou-se sociais: o CT, o CPf, o CPr e o CG.
a orientação do currículo para a relevância

Sociedade mais ampla:


diversos agentes sociais, Academia: académicos especialistas
incluindo a académicos e GS-
de disciplinas ou de campos
os agentes do mercado de interdisciplinares
trabalho

Conhecimento
Conhecimento
genérico teórico
Q4-Currículo
Q1-currículo
genérico teórico

DS- Contexto de
recontextualização DS+
Q2-currículo Q3-currículo profissional
prático
Conhecimento Conhecimento/
prático prática
profissional

Local de trabalho ou
organizações laborais: Associações profissionais:
trabalhadores GS+ Profissionais experientes

FIGURA 2: Representação dos processos epistémicos e sociais envolvidos na recontextualização


curricular (adaptado de Shay, 2012)

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49
NC Zavale

CONCLUSÕES Como estas intencionalidades curriculares


são concretizadas no campo da acção
O presente artigo procurou interpretar os
pedagógica? Como é percebido pelos actores
princípios epistémicos e sociais que
(particularmente professores e alunos) o
legitimam as escolhas feitas nas reformas
conhecimento vertical contextualizado e o
curriculares do ensino básico e secundário.
conhecimento contextual verticalizado?
A análise do conteúdo dos PCEB e PCESG
Como essas formas de conhecimento são
permite tecer três conclusões. A primeira
ensinadas e aprendidas? Que conceitos os
conclusão é de que os novos currículos são
actores têm de conhecimento poderoso?
legitimados por princípios que procuram
Estas e outras questões similares
combinar a contextualidade e a
alimentarão, seguramente, futuras reflexões
verticalidade. Esta combinação consegue-se
sobre as reformas curriculares em
justificando o currículo na base do binómio
Moçambique.
sociedade-conhecimento em detrimento do
aluno e agregando formas de conhecimento
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
fortes e fracas em densidade e gravidade
semânticas. A segunda conclusão é de que a ALDERUCCIO, M. C. An investigation of
combinação do binómio sociedade- global/local dynamics of curriculum
conhecimento, contextualidade-verticalidade transformation in sub‐Saharan Africa with
ou gravidade-densidade não ocorre de forma special reference to the Republic of
equilibrada, mas orienta-se no sentido de Mozambique, Compare. A Journal of
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terceira conclusão, decorrente das duas APPLE, M. Ideology and curriculum.
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poderoso que vai para além do ANARFI, J. K.; APPIAH, E. N. Skills
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teórico, profissional, prático e genérico e ATCHOARENA, D; GASPERINI, L.
funda-se no binómio verticalidade- (Coord.). Education for rural
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Estas conclusões permitem revisitar o BARNETT, M. Vocational knowledge and
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subjacentes a cada forma curricular. O artigo
restringiu-se a analisar o currículo enquanto BASÍLIO, G. O currículo local nas escolas
intenção e plano, não examinou o currículo moçambicanas: estratégias epistemológicas e
como processo de ensino-aprendizagem. metodológicas de construção de saberes
Este é o desafio para pesquisas futuras: locais. Educação e Fronteiras On-Line,

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


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Didactique. Grenoble: La pensée sauvage, Champion, 1975.
1985.

NOTAS
ou menos consensuais entre os membros da
i
comunidade científica e que a progressão de
Ex., Socialismo em Moçambique, Angola; regimes conhecimento nesta disciplina não se opera através do
pro-capitalista na Costa do Marfim, regimes surgimento de paradigmas múltiplos e dispersos, mas
minoritários na África do Sul. através da integração desses novos paradigmas no
ii
Em Moçambique como em quase toda a África, o núcleo teórico já existente. Quanto às estruturas
desafio de combate à pobreza foi acrescentado às horizontais, Bernstein define-as como uma série de
políticas educativas neoliberais nos anos 2000, em linguagens especializadas que contêm igualmente
virtude da reformulação da versão radical do diversos sistemas teórico-conceptuais e
neoliberalismo para uma versão mais moderada. Na metodológicos que nem sempre se enquadram num
versão mais radical e neoclássica, subjacente aos núcleo comum. Por exemplo, as ciências sociais e
programas de reajustamento estrutural dos anos 80, o humanidades progridem não necessariamente porque
neoliberalismo defendia o dogmatismo do mercado e os membros partilham constructos teóricos comuns,
a intervenção minimalista do Estado. Contudo, nos mas porque criam uma multiplicidade de constructos
anos 2000, apercebendo-se das imperfeições do que se propagam horizontalmente.
mercado e dos seus efeitos sociais contraproducentes, v
MATON, K. Theories and things: The semantics of
o neoliberalismo foi reformulado através do chamado disciplinarity. In CHRISTIE, F.; MATON, K. (ed.)
post-Washington consensus, resultando disso a Disciplinarity: Systemic functional and sociological
adopção de estratégias de combate à pobreza perspectives. London: Continuum, 2011, P. 62-84.
absoluta. Estas estratégias prestaram atenção, pelo vi
menos do ponto de vista político e de planificação, Na verdade, apesar desta nova reformulação
aos assuntos sociais, particularmente à educação não- conceptual, o debate sobre o processo de
universitária (com enfoque para os programas de transformações que o conhecimento científico sofre
educação para todos, ensino técnico-profissional e quando recontextualizado no currículo é bem mais
ensino secundário profissionalizante) (CHISHOLM E antigo do que a TDC de Shay. Para se referir à
LEYENDECKER, 2008; BONAL, 2002). adaptabilidade pedagógica do conhecimento
iii científico, Verret (1975) cunhou o conceito de
No original Knowledge blindness transposição didáctica, conceito mais tarde
iv
Bernstein (1999) define uma estrutura de aprimorado e melhorado por Chavellard e Joshua
conhecimento hierárquica ou vertical como estrutura (1982), Chevallard (1985). O argumento subjacente à
hierarquicamente orgnizada coerente, explícita e com transposição didáctica é o de que entre o
princípios sistemáticos. Uma estrutura vertical produz conhecimento científico e o conhecimento escolar
proposições e teorias gerais, através da integração existe uma mediação que molda e transforma o
vertical do conhecimento novo no conhecimento conhecimento científico em conteúdo escolar
prévio e da demonstração de uniformidade e (CHEVALLARD, 1985). De sorte que, o
regularidade em fenómenos aparentemente conhecimento escolar não é o conhecimento
diferentes. Física é um exemplo de estrutura científico original, não é ensinado como foi
hierárquica porque reposa sobre sistemas ou originalmente publicado pelo cientista, e nem é uma
paradigmas teórico-conceptuais e metodológicos mais mera simplificação deste. O conhecimento escolar é

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017


54
Princípios epistémicos e sociais subjacentes à nova reforma curricular no ensino geral em Moçambique

um conhecimento científico transformado, isto é, um formas de conhecimento, e não apenas com o


objeto didáctico. A transposição didáctica manifesta- conhecimento científico. Em outras palavras,
se de maneira mais explícita nos livros didácticos, dependendo das finalidades da educação, os
pois nestes se encontram os conhecimentos a serem currículos escolares podem, além da ciência,
ensinados (CHEVALLARD, 1985). incorporar outras formas de conhecimento, com
características diferentes e estruturas semânticas (GS
Portanto, a TCD de Shay (2013) reforça e expande
e GS) diferenciadas.
este debate sobre a transposição didáctica de duas
vii
formas. Em primeiro lugar, ao trazer a caracterização Sem pretensão de ser exaustivo sobre o debate
bernsteniana das estruturas do conhecimento, isto é, a epistemológico, por tipo de conhecimento referimo-
diferenciação que Basil Bernstein faz entre o nos a grandes formas de conhecimento que a história
conhecimento científico e o conhecimento vulgar, epistemológica universal comumente identifica,
bem como entre estruturas das diferentes disciplinas nomeadamente a mitologia, filosofia, teologia, senso
científicas. Bernstein (2000) distingue o comum e ciência. A diferença entre estas formas de
conhecimento científico do vulgar pela sua conhecimento reside na relação que cada uma
horizontalidade e verticalidade. O conhecimento estabelece entre o sujeito cognoscente e o objecto
vulgar é contextualmente fundado e progride cognoscível, isto é, na maneira como cada uma,
horizontalmente, através de acumulação de novas através de um método específico, interliga o sujeito
linguagens. Isto significa que o conhecimento vulgar ao objecto (LIMA VAZ, 2002). Além destas formas
não possui numa metalinguagem comum partilhada de conhecimento, acrescentamos mais três, que são
pelos sujeitos cognoscentes; pelo contrário, relevantes no contexto educativo, nomeadamente o
caracteriza-se pela confluência de uma diversidade de know-why, know-what e know-how (GARUD,
metalinguagens. Por seu turno, o conhecimento 1997). O know-why, também designado por “know-
científico, sobretudo das chamadas ciências naturais, by-studying” ou conhecimento teórico, refere-se ao
caracteriza-se pela verticalidade e gramaticalidade, conhecimento dos princípios e teorias subjacente ao
isto é, por possuir uma sintaxe conceptual explícita e funcionamento de um objeto; o know-how, ou
comum e, por progredir hierarquicamente através da learning-by-doing, ou conhecimento prático, refere-se
integração do conhecimento prévio em proposições ao processo de acumulação, ao longo do tempo e
mais gerais. Mas Bernstein aponta também diferenças com base na experiência, de conhecimento sobre
entre disciplinas científicas: as chamadas ciências como executar uma tarefa; o know-what, or learning-
sociais e humanidades têm também estruturas de by-using, refere-se ao conhecimento gerado através
conhecimento horizontal, isto é, não possuem uma da interação que os actores estabelecem entre si numa
metalinguagem comum hierárquica, mas uma organização. Estas três formas nem sempre
estrutura horizontal que progride através de funcionam de forma separada, podendo ser
acumulação de uma diversidade de linguagens. combinadas para dar azo a outros tipos de
Portanto, enquanto o conceito da transposição conhecimento. Por exemplo, o conhecimento
didáctica dá conta das transformações que o profissional especializado resulta da combinação do
conhecimento científico sofre para se configurar em know-why, know-how e know-what.
conhecimento escolar, não aborda, todavia, as
diferenças existentes nas estruturas de conhecimento
e forma como essas diferenças podem influenciar o
desenvolvimento curricular.
Em segundo lugar, a TDC acrescenta, ao usar a
semântica de Maton, um modelo que permite
compreender a integração de outras formas de
conhecimento no currículo e não apenas o
conhecimento científico. Enquanto a transposição
didáctica explica as transformações do conhecimento
científico em escolar, trata-se de um conceito
limitado quanto à recontextualização e integração de
outras formas de conhecimento no currículo, tais
como o conhecimento vulgar/geral e conhecimento
prático. O modelo de Shay mostra, portanto, que a
transposição didáctica pode ocorrer com várias
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 1, No 2, pp 31-55, 2017
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