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9 R.

Baccarelli

Avaliação motora na neuropatia

Na hanseníase a lesão dos nervos peri- paciente ainda não apresenta queixas. Contudo
féricos é a causa mais freqüente das incapa- a avaliação motora não deve ser excluída, uma
cidades que se verificam na face, mãos e pés. vez que os resultados obtidos não só informam
Seguramente a principal razão para a ocorrência sobre a ocorrência da lesão e a evolução do
das complicações sensitivo-motoras que se quadro neural, mas também norteiam a
observam são as neurites não diagnosticadas e programação dos exercícios terapêuticos.
não tratadas, que passam completamente Freqüentemente a avaliação motora auxilia no
despercebidas pela equipe de saúde e pelo diagnóstico da hanseníase e no diagnóstico
próprio doente, ao longo do tratamento da diferencial com outras patologias.
doença. A avaliação motora baseia-se na
É preciso enfatizar que, do ponto de vista exploração da força muscular, a partir da
do paciente, estar clinicamente curado palpação da unidade músculo-tendinosa durante
representa muito pouco, se as incapacidades e o movimento, verificação da amplitude de
deformidades continuarem a progredir, pois movimento e da capacidade de oposição à força
nelas reside o estigma da hanseníase. da gravidade e à resistência manual. A aplicação
Mas como detectar o início da lesão neu- do método requer o conhecimento preciso da
ral? Como avaliar os efeitos da terapêutica sobre função muscular, além dos fatores que
a neurites? Estas questões reforçam a interferem nos resultados da avaliação, tais
necessidade de introduzir, nos programas de como sexo, idade, mão dominante, atividade
controle da doença, métodos simplificados de profissional, variações anatômicas, movimentos
avaliação da função motora e sensitiva, que de substituição, vantagens mecânicas, presença
auxiliam a identificar, rápida e precocemente, o de dor, entre outros. Descrições detalhadas da
comprometimento neural e a monitorar o execução desse procedimento e outros fatores
resultado do tratamento conservador ou relacionados são encontradas em várias obras
cirúrgico. (DANIELS & WORTHINGHAM, 1975;
Os testes de força muscular são consi- ARVELLO, 1978; KENDALL, KENDALL &
derados de valor confiável para avaliar a função WADSWORTH, 1979; ARVELLO, 1980).
neural, embora dependam do compro- O Conselho Britânico de Pesquisa
metimento de um mínimo de 30% de fibras Médica introduziu, em 1943, um sistema de
musculares(NAAFS & DAGNE, 1977). Alguns graduação de força muscular (OMER, 1981),
métodos de avaliação de sensibilidade têm modificado por GOODWIN(1968), os quais
demonstrado ser mais sensíveis, à medida que reproduzimos a seguir, de forma combinada:
detectam pequenas perdas, mesmo quando o
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ESCALA DE GRADUAÇÃO DE FORÇA MUSCULAR

Grau Descrição

0 Sem evidência de contração muscular.


1 Evidência de contração muscular, sem movimento articular.
2 Amplitude de movimento incompleta.
3 Amplitude de movimento completa contra a gravidade.
4 Amplitude de movimento completa contra a gravidade e resistência manual sub-máxima.
5 Amplitude de movimento completa contra a gravidade e resistência manual máxima.

PRINCIPAIS MÚSCULOS A Palpação: região lateral do segundo


SEREM AVALIADOS metacarpiano
Resistência: é aplicada na região lateral do
Para identificar a presença do com- dedo indicador, em direção à adução (Fig. 9.2)
prometimento neural na hanseníase, um
número mínimo de músculos deve ser avaliado Músculo: abdutor do quinto dedo
rotineiramente. Esses testes, por serem Inervação: ulnar
Ação: abdução do quinto dedo
voluntários, ou seja, dependerem da cooperação Teste: o paciente é solicitado a abduzir o
do paciente, devem ser precedidos de quinto dedo, enquanto mantém a falange
explicações sobre a finalidade do procedimento proximal em discreta flexão e as demais
e a forma de execução. A seguir descreveremos estendidas Palpação: região medial do quinto
brevemente a inervação, ação e teste dos metacarpiano
principais músculos a serem avaliados: Resistência: é aplicada na região medial do
quinto dedo em direção à adução (Fig. 9.3)
Músculo: orbicular do olho
Inervação: facial Músculo: flexor profundo do quinto dedo
Ação: fechamento palpebral Inervação: ulnar
Teste: o paciente é solicitado a fechar o olho Ação: flexão da falange distal do quinto dedo
Palpação: região palpebral Teste: o paciente é solicitado a fletir a falange
Resistência: é aplicada nas pálpebras superior distal do quinto dedo, enquanto o examinador
e inferior, no sentido de afastá-las (Fig. 9.1) bloqueia as falanges proximal e medial em
extensão
Músculo: primeiro interósseo dorsal
Palpação: região ântero-medial do antebraço
Inervação: ulnar
Resistência: é aplicada na polpa da falange
Ação: abdução do dedo indicador
distal do quinto dedo, em direção à extensão
Teste: o paciente é solicitado a abduzir o dedo
(Fig. 9.4)
indicador, enquanto mantém a falange proximal
em discreta flexão, as demais estendidas e o
polegar em relaxamento Músculo: flexor ulnar do carpo
Fig. 9.1 Músculo orbicular dos olhos Fig. 9.2 Músculo primeiro interósseo dorsal

Inervação: ulnar Resistência: é aplicada na borda radial do


Ação: desvio ulnar e flexão do carpo polegar, em direção à adução (Fig. 9.7)
Teste: o paciente é solicitado a flexionar e
desviar o carpo no sentido ulnar Músculo: extensor radial curto do carpo.
Palpação: região ântero-medial do antebraço Inervação: radial
Resistência: é aplicada na região hipotenar em Ação: flexão dorsal (extensão) do punho
direção à extensão e desvio radial da mão (Fig.Teste: o paciente é solicitado a dorsiflexionar o
9.5) punho, enquanto mantém os dedos em flexão
Palpação: região póstero-lateral do antebraço
Músculo: lumbrical e interósseo do quinto dedo Resistência: é aplicada na região dorsal do
Inervação: ulnar punho, em direção à flexão (Fig. 9.8)
Ação: flexão da metacarpofalangeana e extensão
das interfalangeanas do quinto dedo Músculo: extensor dos dedos
Teste: o paciente é solicitado a flexionar a Inervação: radial
metacarpofalangeana e estender as interfa- Ação: extensão das falanges proximais do
langeanas do quinto dedo segundo ao quinto dedos
Palpação: região do quarto espaço interósseo Teste: o paciente é solicitado a estender as
Resistência: é aplicada na região palmar da falanges proximais, enquanto mantém as demais
interfalangeana proximal em direção à extensão falanges em relaxamento
(Fig. 9.6) Palpação: região posterior do antebraço
Músculo: abdutor curto do polegar Resistência: é aplicada na região dorsal da
Inervação: mediano falange proximal de cada dedo, em direção à
Ação: abdução do polegar flexão (Fig. 9.9)
Teste: o paciente é solicitado a abduzir o polegar
em ângulo reto com a superfície palmar da mão Músculo: extensor longo do polegar
Palpação: região lateral do primeiro meta- Inervação: radial
carpiano
88 Cirurgia Reparadora e Reabilitação em Hanseníase

Ação: extensão da talange distal do polegar Músculo: extensor comum dos dedos Inervação:
Teste: o paciente é solicitado a estender a fibular profundo (r. tibial anterior)
falange distal do polegar Ação: extensão das falanges proximais do
Palpação: região posterior do antebraço segundo ao quinto dedos
Resistência: é aplicada na região dorsal da Teste: o paciente é solicitado a estender os dedos,
falange distal do polegar, em direção A flexão enquanto mantém o tornozelo em ângulo reto
(Fig. 9.10) Palpação: região anterior da perna Resistência: é
aplicada no dorso das falanges proximais dos
Músculo: tibial anterior dedos, em direção à flexão (Fig. 9.13)
Inervação: fibular profundo (r. tibial anterior)
Ação: flexão dorsal do pé Músculo: extensor longo do hálux
Teste: o paciente é solicitado a dorsiflexionar o Inervação: fibular profundo (tibial anterior)
pé, enquanto mantém os extensores do hálux e Ação: extensão do hálux
dedos em relaxamento Teste: o paciente é solicitado a estender o hálux,
Palpação: região ântero-lateral da perna enquanto mantém o tornozelo em ângulo reto
Resistência: é aplicada na região dorsal do pé, Palpação: região anterior da perna Resistência: é
em direção à flexão plantar (Fig. 9.11) aplicada no dorso do hálux, em direção à flexão
(Fig. 9.14)
Músculo: fibular longo e curto Músculo: flexor curto do hálux
Inervação: fibular superficial (r. músculo Inervação: tibial
cutâneo) Ação: flexão da falange proximal
Ação: eversão do pé Teste: o paciente é solicitado a flexionar a
Teste: o paciente é solicitado a everter o pé falange proximal do hálux
Palpação: região lateral da perna Palpação: região plantar do primeiro
Resistência: é aplicada na borda lateral do pé, metatarsiano
em direção à inversão (Fig. 9.12) Resistência: é aplicada na região plantar da

Fig. 9.3 Músculo abdutor do quinto dedo Fig. 9.4 Músculo flexor profundo do quinto dedo
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90 Cirurgia Reparadora e Reabilitação em Hanseníase

falange proximal do hálux, em direção à aplicar força de oposição aos movimentos.


extensão (Fig. 9.15) A duração e a severidade do compro-
metimento neural são fatores de grande influ-
Músculo: abdutor do hálux ência sobre os resultados do tratamento.
Inervação: tibial Somente os casos com alterações recentes têm
Ação: abdução do hálux expectativa de melhora. O fato do teste de
Teste: o paciente é solicitado a flexionar a força muscular poder ser realizado em pouco
falange proximal do hálux tempo, ser de fácil repetibilidade e dispensar o
Palpação: região medial do primeiro uso de equipamento reforça a importância de
metatarsiano incluí-lo entre os exames de rotina nos
Resistência: é aplicada na região lateral do programas de controle da hanseníase. Os
hálux em direção à adução (Fig. 9.16) resultados obtidos a cada avaliação, quando
Dentre todos os testes, o exame do anotados em colunas paralelas, ocupam pouco
músculo abdutor do hálux é o que costuma tra- espaço e facilitam a análise da evolução do
zer maior dificuldade de execução e de avalia- quadro neural ao longo dos anos.
ção. A incapacidade de realizar a abdução dos No que se refere à freqüência das
dedos do pé é comum entre as pessoas normais, avaliações, sejam elas motoras ou de outra
devido ao uso de calçados (FRITSCHI, 1987). natureza, é recomendável que todos os paci-
Em geral a avaliação de rotina dos entes sejam examinados no momento do início
músculos mencionados é suficiente para iden- do tratamento. A partir daí as reavaliações
tificar o comprometimento motor e monitorar o devem ser realizadas sempre que o paciente
resultado do tratamento das neurites que referir dor, parestesia, diminuição da sensi-
ocorrem com maior freqüência na hanseníase. bilidade ou da força muscular e, regularmente,
No entanto a inclusão de outros músculos pode a cada duas ou três semanas, nos casos em
ser necessária em casos de diagnóstico duvi- tratamento para neurite ou reação.
doso, neurites hansênicas excepcionalmente De uma forma geral é recomendável rever
observadas, investigação cientifica e programa todos os pacientes a cada seis meses
de cirurgia reparadora. Em contrapartida, em (BRANDSMA, 1981) e no momento da alta. Nos
serviços que não contam com a presença de serviços em que a demanda é grande ou há
profissionais especializados, a realização dos limitação de recursos humanos, pode-se priorizar
testes de força muscular pode ser reduzida a o atendimento aos pacientes com maior risco em
três: fechamento palpebral; posição intrínseca relação à ocorrência de neurites e reações.
dos dedos e oponência do polegar acompanha- É preciso enfatizar que reavaliações
da de flexão dorsal do punho; dorsiflexão do pé anuais não permitem detectar neurites "silen-
em conjunto com o afastamento dos dedos do ciosas" a tempo de se obterem resultados
pé entre si. Evidentemente, desde que apresen- satisfatórios com o tratamento. Além disso as
tem boa coordenação motora, mesmo aqueles vantagens do contato periódico com o paciente
pacientes que já apresentam comprometimento podem ser ampliadas. Essas oportunidades são
motor inicial não terão dificuldade em executar excelentes para esclarecer o paciente sobre os
esses testes. Por essa razão é indispensável primeiros sinais e sintomas da lesão dos nervos
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periféricos, sobre as situações que necessitam de Esse tipo de atenção ao paciente e à sua
tratamento urgente e discutir os cuidados mais problemática aumentam sua motivação para
adequados para a prevenção de incapacidades. adotar o tratamento indicado.

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