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Narrativas

organizacionais em
adesão à luta
antirracista: uma análise
sociossemiótica
Seminário apresentado ao módulo
Interações da disciplina Pensamento
Comunicacional

Aluna: Adrielle Ferreira


Introdução
O posicionamento em defesa da diversidade e inclusão está cada vez mais presente nos
discursos organizacionais. Causas sociais levantadas de forma legítima por grupos minoritários -
pela população negra na luta antirracista; pelas pessoas pertencentes ao movimento LGBTQIA+
no combate à homofobia; pelas mulheres na busca da equidade de gênero; pelas pessoas com
deficiência que lutam pelo respeito e para que sejam vistas para além da sua deficiência; entre
outros – são cooptadas pelas organizações e investidas da aura da responsabilidade social, sob a
promessa de tornarem as empresas mais inovadoras, competitivas e valorizadas pelo mercado.
Diversidade racial em pauta
Se até 2020 havia uma distribuição da pauta entre várias diversidades, especialmente atreladas
a datas específicas que rememoram momentos importantes das lutas dos grupos minoritários, a
partir de maio daquele ano, a pauta antirracista inflama as narrativas em circulação. Um
movimento que começa na sociedade civil e chega também às organizações, demonstrando o
seu apoio à pauta.

O assassinato de George Floyd, um homem negro vítima de uma violenta abordagem policial, foi
o acontecimento catalisador dessa movimentação, objeto que se propõe analisar nesse trabalho
pelo olhar da sociossemiótica. (LANDOWSKI, 2014)
Para Eric Landowski (2014), “a sociossemiótica se propõe
como uma teoria da produção e da apreensão do sentido
em ato” (p.12).

Produção e Em sua acepção, a sociossemiótica “inscreve-se no

apreensão do
prolongamento da semiótica standard” (p.12). Landowski
mantém a perspectiva dos regimes interacionais da

sentido em ato «operação», ou ação programada sobre as coisas, e a


«manipulação», entre sujeitos, definidos pela semiótica
standard, e adiciona dois novos regimes complementares,
“respectivamente fundados sobre um princípio de
sensibilidade e um princípio de aleatoriedade: aqueles do
«ajustamento» e do «assentimento» ou acidente” (p. 14).
Na obra Interações Arriscadas, Landowski (2014)
desenvolve um modelo interacional que descreve a
passagem de um regime a outro, substituindo as linhas
retas do quadrado semiótico clássico por um percurso
O percurso elíptico, que se “desenrolará em dois tempos: primeiro, a
partir da zona do acidente rumo à manipulação e, dali,
interacional seguindo até o regime da programação, ponto de chegada
provisório. (...) Daí um segundo movimento, que
conduzirá desta vez da programação ao ajustamento, e
finalmente, para fechar o circuito, do ajustamento de
novo ao regime do acaso e do acidente.” (p. 81)
Programação Acidente
Princípio da regularidade Princípio da aleatoriedade
Fazer-advir Fazer sobrevir

Constelação
Constelação da aventura
da prudência

Manipulação Ajustamento
Princípio da intencionalidade Princípio da sensibilidade
Fazer-querer Fazer-sentir

Diagrama 1 [adaptado pela autora] apresentado em Interações Arriscadas, Landowski, 2014, p. 80.
O objeto em análise neste trabalho – as narrativas
organizacionais em adesão à luta antirracista – traça um
percurso interacional que articula os regimes em
configurações distintas ao diagrama original de
Landowski: parte de uma programação (a abordagem
policial), que resulta em um acidente (o assassinato de
Construindo George Floyd). Este por sua vez reverbera na esfera social

percursos
e se manifesta em um regime de ajustamento (as
manifestações nas ruas e redes sociais sob o coro

alternativos #blacklivesmatter), que chega às organizações que se


apropriam da narrativa e desenvolvem estratégias para se
posicionarem a favor do movimento.

A esse percurso, aplica-se a propriedade sintáxica da


recursividade que, segundo Landowski, “abre um leque de
percursos possíveis ao mesmo tempo que multiplica as
possibilidades de sua interpretação.” (2014, p. 89)
1º ato: da
programação
ao acidente
A abordagem do policial Derek Chauvin é da ordem da programação, seguindo um script padrão que
usa da violência para neutralizar um indivíduo que se apresenta como uma ameaça. O policial atendia
a um chamado, que partiu da denúncia de um lojista sob a queixa de receber um pagamento com o
uso de dinheiro falso.

Assumindo o papel temático de agente de segurança, treinado para agir com força física e violência.
George Floyd foi a vítima de sua abordagem, um homem negro, desarmado, alvo da denúncia do
lojista.

Visto como uma ameaça, Floyd é imobilizado com força desproporcional, desumanizado aos olhos do
policial, que não enxerga o sujeito, mas uma ameaça que precisa ser neutralizada, eliminada. De tão
focado em sua programação, Derek ignora as súplicas de Floyd durante a abordagem, que repetiu
inúmeras vezes não conseguir respirar.
A atuação de Derek se inscreve na forma de uma motivação consensual, “que se limita a acompanhar a
realização de programas de comportamento socialmente regulados.” (p. 41)

Uma programação que, nitidamente, fugiu ao controle, que não foi racionalizada, que cai no âmbito do
sem sentido e eleva o risco da interação, resultando no acidente fatal: após 8 minutos e 46 segundos
com seus joelhos posicionados sobre o pescoço de George Floyd, o mesmo é levado à óbito por asfixia.

Uma morte que poderia ter sido evitada se Derek tivesse questionado por um momento que fosse as
razões da sua programação.
2º ato: do
acidente ao
ajustamento
Uma programação que fugiu ao controle de seu executor e resultou em um acidente: a morte de
George Floyd, um homem negro assassinado por um policial. Um acontecimento trágico, da ordem do
acaso, fundado no regime da aleatoriedade, que reverberou a partir de um vídeo publicado nas redes
sociais, filmado por uma adolescente que passava no local no momento exato da abordagem.

O vídeo em poucas horas se tornou um viral, que movimentou multidões às ruas (físicas e virtuais) a
clamar por justiça pela morte de George Floyd.

Uma ação movida pelo fazer-sentir, na qual sujeitos se uniram em torno de uma dor que reverbera de
forma coletiva: a violência contra corpos negros, que são vítimas diárias do racismo estrutural e
institucional. A dor de Floyd é a mesma dor de tantos outros e se converte em símbolo do movimento
negro naquele momento.
Um acontecimento que resgatou o movimento #blacklivesmatter, ou sua tradução
#vidasnegrasimportam, que inundou as redes sociais, esteve presente nos cartazes das manifestações,
se disseminando rapidamente como que por contágio.

Interações de competência estésica, corpos unidos em torno de um sentimento comum a todos.


“Corpos que sentem e corpos sentidos.” (2014, p. 51)

Uma sensibilidade perceptiva, que permite aos sujeitos em interação “experimentar pelos sentidos as
variações do mundo exterior, sentir modulações internas que afetam os estados do corpo próprio,
interpretar o conjunto dessas soluções de continuidade em termos de sensações diferenciadas que
fazem por si mesmas sentido.” (2014, p. 52)
Publicação da
Ambev, disponível
na página oficial
do LinkedIn

3º ato: do
ajustamento à
estratégia
Publicação da
Vivo, disponível
na página oficial
do LinkedIn
Pressionadas pelas manifestações sociais, organizações
também aderem ao coro e desenvolvem narrativas em
prol ao movimento antirracista.

Numa primeira análise, pode-se caracterizar como um


movimento da ordem do ajustamento reativo, uma
resposta às demandas sociais.

Mas logo se converte ao regime da manipulação. As


mensagens das organizações analisadas – Vivo, Ambev e
Suzano –, embora tragam em sua superfície a leitura
primária do fazer-sentir, no fundo pretendem fazer-crer
que são socialmente responsáveis em suas ações, como
pode-se observar nas próximas páginas.
Publicação da Vivo, disponível na página oficial do
LinkedIn

Nesta legenda, a Vivo (Telefônica Brasil) começa


conjugando um fazer-sentir ao “expressar repúdio aos
casos de racismo no Brasil e no mundo” e rapidamente se
converte ao fazer-crer, ao “reafirmar seu compromisso
com a promoção da igualdade racial” e “chamar atenção
para a necessidade urgente de ações afirmativas e
intencionais”, deixando subentendido que a organização
já assume esse compromisso em suas práticas.

Foi a única organização, entre as três analisadas, que faz


menção direta ao #vidasnegrasimportam.
A Ambev não faz menção ao #vidasnegrasimportam, mas
segue a mesma lógica. Parte de um fazer-sentir, ao
reconhecer que “o que temos feito até agora não é
suficiente”, que logo se converte em fazer-crer, se
colocando como parte da mudança.

Estabelece de forma explícita quais serão as medidas


tomadas para transformar a cultura organizacional e
assegurar a maior representatividade racial em sua
estrutura, numa promessa de transgredir o simples
posicionar-se, fazendo mudanças de ordem prática.

Publicação da Ambev, disponível na página oficial do LinkedIn


A Suzano se posiciona de forma indireta, sem citar o
#vidasnegrasimportam. A empresa usa o momento como
uma oportunidade de reafirmar seu compromisso com a
diversidade de maneira geral, mensagem que aparecem
em primeiro plano no texto “Acreditamos que cultivar a
diversidade nos fortalece”.

Na legenda, ao mencionar “Num momento em que a


sociedade reflete sobre a temática racial globalmente”,
resgata brevemente um fazer-sentir, mas que logo dá
lugar ao fazer-crer ao falar de si – “entendemos que é
importante reconhecer onde estamos e o que temos feito
a respeito” – também menciona a meta atrelada a esse
compromisso – “objetivo de alcançar 30% de negros na
liderança até 2025”.
Publicação da Suzano,
disponível na página
oficial do LinkedIn
Nos três textos analisados, é possível verificar que as organizações atuam como actantes-manipuladores e
sua mensagem se destina a múltiplos destinadores:

1. A sociedade civil, em resposta às suas demandas, demonstrando os atributos de uma empresa


socialmente responsável, que se preocupa com a pauta antirracista e se responsabiliza pela
mudança;
2. Os acionistas e investidores, que valorizam a postura ética/responsável que impacta nos resultados
financeiros e de imagem/reputação;
3. Profissionais negros(as), a quem esperam convencer que a empresa é um lugar onde serão acolhidos
em sua diferença, onde sua identidade será valorizada e respeitada.
Em todas as situações analisadas, os argumentos partem de uma manipulação que usa da lisonja, com o
objetivo de convencer o(s) destinador(es) dos atributos positivos da organização ao se posicionar em
favor da pauta antirracista, regido portanto pela intencionalidade.

Em última instância, é possível inferir que o objetivo final da manipulação é estabelecer uma nova
regularidade ao mercado, assumindo ações afirmativas como uma estratégia padrão e necessária para
atração de profissionais negros para seus quadros funcionais.

Neste ponto, se instaura a indagação: a mobilização das organizações em torno da pauta realmente é um
compromisso com a mudança ou apenas uma resposta direcionada ao momento social em que foi
publicada? Uma lacuna para a qual ainda não temos uma resposta fácil, mas que certamente é um ótimo
ponto a ser investigado.
Resumo do percurso interacional proposto na análise

Programação Ajustamento
- Policial age conforme princípio da - Corpos se unem física e virtualmente e
regularidade compartilham uma dor comum
- Papel temático: agente de segurança - Experiência estésica, atribuindo novos
- Assume um alto risco e perde o controle da sentidos à tragédia
ação programada - Regime da sensibilidade

Manipulação Acidente
- A morte de George Floyd, consequência
- Motivação decisória: organizações se
de uma programação fora de controle
comprometem com a mudança
- Da ordem da probabilidade matemática,
- Fazer o outro crer na sua competência:
uma vez que poderia ter sido evitada
socialmente responsável
- Fundada na aleatoriedade, um papel
- Ação fundada na intencionalidade e, em
catastrófico
uma análise, para instaurar uma nova
programação
Referências
LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014.

LANDOWSKI, Eric. Sociossemiótica: uma teoria geral do sentido. Galáxia (São Paulo, Online), n. 27, p. 10-20, jun. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014119609

Acreditamos que cultivar a diversidade nos fortalece. Publicação disponível na página oficial do LinkedIn da Suzano.
https://www.linkedin.com/posts/suzano_o-tema-da-diversidade-e-inclus%C3%A3o-tem-feito-activity-6675080672534634496-
6BYw?utm_source=linkedin_share&utm_medium=member_desktop_web

Histórias vozes. Vidas negras importam. Publicação disponível na página oficial do LinkedIn da Vivo (Telefônica Brasil).
https://www.linkedin.com/posts/vivo-telefonicabr_vidasnegrasimportam-pracegover-activity-6673719708711165952-
yJKA?utm_source=linkedin_share&utm_medium=member_desktop_web

O que temos feito até agora não é suficiente. Publicação disponível na página oficial do LinkedIn da Ambev.
https://www.linkedin.com/posts/ambev_vidasnegrasimportam-activity-6674050902376230912-
fxuf?utm_source=linkedin_share&utm_medium=member_desktop_web

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