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ESTADO DO PIAUÍ

PODER JUDICIÁRIO
COMARCA DE BOM JESUS

AUTOS: 0000194-24.2016.8.18.0111

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA.


CARGO PÚBLICO EFETIVO. FALTA GRAVE.
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR. DEMISSÃO. DESRESPEITO AO
CONTRADITÓRIO. REINTEGRAÇÃO.
1. O ato de demissão do servidor público efetivo,
fundado em falta grave em serviço, deve ser precedido
da instauração de processo administrativo disciplinar,
assegurado o contraditório.
2. Tendo havido desrespeito ao devido processo legal,
com a confusão de fases do procedimento disciplinar, e
ausente a oportunidade de resposta, deve ser anulado o
ato de demissão, com a imediata reintegração do
servidor no cargo anteriormente ocupado.
3. Segurança concedida.

SENTENÇA

Vistos etc.

I – RELATÓRIO
Cuidam os autos de mandado de segurança (fls. 02/16) com pedido liminar,
impetrado por LUZIENE MAIA DE SOUSA GUIMARÃES, devidamente qualificada,
em face de ato praticado pelo PREFEITO DO MUNICÍPIO DE REDENÇÃO DO
GURGUÉIA, igualmente qualificado, no qual pretende ordem anulando sua demissão,
com a consequente reintegração no cargo público anteriormente ocupado.
Com a inicial, vieram os documentos de fls. 17/260, a saber: procuração,
documentos pessoais da impetrante, declaração de hipossuficiência econômica, cópia de
autos de sindicância administrativa, termo de posse, contracheques, diploma, cópia da
Lei Municipal n.º 233/2009, do município de Redenção do Gurguéia, fotos etc.
Em síntese, afirma a impetrante que era professora efetiva da rede municipal
de ensino desde o ano de 1998, tendo sido surpreendida, em junho de 2016, com
notificação expedida pelo Secretário de Administração e Planejamento, comunicando o
ato de sua demissão. O motivo formal alegado nas razões do ato administrativo foi o

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mau uso de recursos públicos destinados à adaptação do Colégio Municipal Maria Luiza
Borges em relação à acessibilidade.
Assevera que a autoridade coatora fez uso de sindicância administrativa,
eivada de diversas irregularidades, para demitir a impetrante, dissimulando a real
finalidade do ato, que seria a perseguição político-partidária. Dentre as irregularidades
apontadas pela impetrante está o desrespeito ao devido processo legal, na dimensão do
contraditório administrativo.
Pugna, por fim, pela concessão dos benefícios da justiça gratuita, pela
reintegração liminar no cargo anteriormente ocupado e, no mérito, pela confirmação da
medida liminar, com a reintegração definitiva.
Liminar e benefício da gratuidade da justiça deferidos, fls. 264/268.
Cientificado do feito o órgão de representação judicial da pessoa jurídica
interessada, este se manifestou às fls. 271/272 afirmando não vislumbrar qualquer
possibilidade de danos ao interesse ou ao erário público, advindos da efetivação da
medida liminar, razão pela qual renunciou expressamente a quaisquer recursos,
impugnações e requerimentos contrários à segurança pleiteada.
Notificada a autoridade coatora, em sede de informações (fls. 274/275),
relatou apenas o cumprimento da medida liminar concedida, com a suspensão do ato de
demissão da impetrante e sua inclusão em folha de pagamento. Com as informações,
vieram os documentos de fls. 276/278, a saber, extratos da folha de pagamento,
referentes aos meses de junho, julho e agosto de 2016, demonstrando a reinclusão da
impetrante.
Aberta vista ao Ministério Público, em parecer de fls. 284/287, opinou
favoravelmente à concessão da segurança, com o reconhecimento da nulidade do ato de
demissão e conseguinte reintegração da impetrante, de forma definitiva, no cargo de
professora da rede municipal.
Vieram-me conclusos os autos.
É o relatório.
Fundamento e decido.

II – FUNDAMENTAÇÃO

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Como especialização do direito de proteção judicial efetiva, o mandado de


segurança destina-se a proteger direito individual ou coletivo líquido e certo contra ato
ou omissão de autoridade pública não amparado por habeas corpus ou habeas data (CF,
art. 5º, LXIX e LXX). Pela própria definição constitucional, o mandado de segurança
tem utilização ampla, abrangente de todo e qualquer direito subjetivo público sem
proteção específica, desde que se logre caracterizar a liquidez e certeza do direito,
materializada na inquestionabilidade de sua existência, na precisa definição de sua
extensão e aptidão para ser exercido no momento da impetração.
O mandado de segurança, na definição de Hely Lopes Meirelles, é

o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica,


órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para
proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por
habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de
autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que
exerça.1

Direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, ou seja, é aquele capaz
de ser comprovado, de plano, por documentação inequívoca. Note-se que o direito é
sempre líquido e certo. A caracterização de imprecisão e incerteza recai sobre os fatos,
que necessitam de comprovação.
No caso vertente, é possível observar, compulsando a robusta prova
documental acostada aos autos, que várias irregularidades foram praticadas.
Primeiramente, a Portaria n.º 76/2015 (fl. 27) abriu sindicância para
apuração de responsabilidade da impetrante, tendo a comissão processante atuado nos
termos do documento de fl. 31, na data de 25.08.2015. À fl. 114 consta nos autos termo
de declaração colhido no Inquérito Administrativo n.º 03/2015, na data de 31.08.2015.
Outrossim, foi juntado aos autos termo de abertura de audiência da
comissão de sindicância (Portaria n.º 76/2015), recomendando às fls. 131/134 a
aplicação de penalidade disciplinar de suspensão pelo prazo de até 30 (trinta) dias.

1
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, habeas data. 18. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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O parecer de fls. 137/138 opina pela extinção e pelo arquivamento do


processo administrativo da Sindicância n.º 03/2015, o que foi acatado pela decisão de
fls. 139.
Após devidamente encerrado e extinto o processo, surge o despacho de fls.
140/141, anulando o último parecer e a decisão que o acompanhou, sendo seguido pela
decisão final, de fls. 142/145, que ordenou a imediata demissão da impetrante.
A verificação destes atos demonstra a violação das normas da Lei Municipal
n. 233/2009, juntada às fls. 188/223.
Os art. 98 et seq., da referida lei, determinam que a sindicância poderá gerar
a instauração de um processo disciplinar. Ademais, o art. 104 impõe que, em eventual
abertura de processo disciplinar, o inquérito administrativo integrará uma de suas fases,
cujo procedimento exige, após tipificada a infração disciplinar, a citação do indiciado
para apresentar defesa escrita, conforme o art. 113, da mesma lei.
Portanto, houve confusão de atos entre a abertura de sindicância e sua
posterior conversão em processo administrativo disciplinar, como se fosse um só
procedimento. Ademais, não consta na própria sequência de atos, apresentada às fls.
177/180, da lavra do impetrado, ter havido a citação da impetrante para apresentar
defesa escrita, conforme exigência do dispositivo acima mencionado.
Outrossim, é possível verificar que, mesmo com o procedimento já decidido
e arquivado, houve reabertura, anulação de atos praticados pelo anterior gestor e a
imposição da penalidade de demissão, em procedimento que passa ao largo das
exigências inerentes ao devido processo administrativo, posto não ter havido nova
oportunidade para apresentação de defesa.
Com efeito, a Constituição da República, em seu art. 5º, LV, preceitua que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;

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É pacífico que o direito à defesa e ao contraditório tem plena aplicação não


apenas em relação aos processos judiciais, mas também em relação aos procedimentos
administrativos de forma geral.
Inclusive, sob a égide da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal
fixou entendimento2 de que os citados princípios são assegurados nos processos
administrativos, tanto em tema de punições disciplinares como de restrição de direitos
em geral.
O princípio do contraditório deve ser compreendido como uma dupla
garantia (sendo que esses dois aspectos do contraditório se implicam mutuamente): a de
participação com influência na formação do resultado e a de não surpresa.
Em primeiro lugar, o contraditório deve ser compreendido como a garantia
que têm as partes de que participarão do procedimento destinado a produzir decisões
que as afetem. Em outras palavras, o resultado do processo deve ser fruto de intenso
debate e da efetiva participação dos interessados, não podendo ser produzido de forma
solitária pelo julgador. Dito de outro modo: não é compatível com o modelo
constitucional do processo que se produza uma decisão que não seja o resultado do
debate efetivado no processo.
A decisão, portanto, precisa ser construída a partir de um debate travado
entre os sujeitos participantes do processo. Qualquer fundamento de decisão precisa ser
submetido ao crivo do contraditório, sendo assegurada oportunidade para que as partes
se manifestem sobre todo e qualquer possível fundamento.
No caso dos autos, como ressaltado linhas acima, após a prolação da decisão
final, o processo foi reaberto, com a anulação de atos já praticados e a inopinada
imposição da penalidade de demissão, não tendo sido oportunizado à impetrante o
exercício do direito de defesa.
Consoante a norma insculpida no art. 2º, da Lei n. 4.717/1965, são
elementos do ato administrativo a competência, a forma, a finalidade, o motivo e o
objeto, de maneira que o vício em qualquer desses componentes gera a invalidade do
ato inquinado.

2
Cf. RE-AgR 527.814/PR, 2ª Turma do STF, Rel. Min. Eros Grau, j. 5-8-2008, DJ de 28-8-2008.

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No que tange especificamente à forma do ato administrativo, não basta a


manifestação da vontade exteriorizada pelo agente; é preciso que seja realizada
conforme as exigências definidas pela lei, que são denominadas formalidades
específicas do ato, cuja ausência gera vício de legalidade, com sua consequente
invalidação. Devem ser respeitadas as formalidades indispensáveis à produção do ato,
dentre elas, a higidez do procedimento que culmina em sua produção.
Nessa linha, precisas são as palavras de Fernanda Marinela 3 que, ao
discorrer acerca da forma do ato administrativo, aduz que:

Em regra, os atos administrativos representam o resultado de um


procedimento administrativo prévio, formado por uma série de atos formais
que levam a um provimento final, observando o princípio constitucional do
devido processo legal. O processo administrativo existe sempre como
instrumento indispensável para o exercício da função administrativa,
considerando que tudo que a Administração Pública faz fica documentado em
um processo. Cada vez que a Administração for tomar uma decisão, executar
uma obra, celebrar um contrato, editar um regulamento, o ato final é sempre
precedido de uma série de atos materiais ou jurídicos, enfim, de tudo o que
for necessário para instruir, preparar e fundamentar o ato final objetivado
(grifos nossos).

Considerando que a forma dos atos administrativos é definida por lei, não se
admite que o administrador deixe de observá-la, sob pena de invalidação do ato por
vício de legalidade.
Em algumas circunstâncias, o defeito de forma representa mera
irregularidade sanável, o que ocorre quando o vício não atinge qualquer esfera de
direito, merecendo, nessa hipótese, a correção pelo instituto da convalidação, todavia, se
o ato interfere nas garantias do administrado, o vício se torna insanável, posto afetar o
ato em seu próprio conteúdo.
É o que sucede no caso dos autos.
Consoante fartamente provado, o ato administrativo de demissão foi
produzido em total descompasso com a legislação de regência, a saber, a Lei Municipal
n. n.º 233/2009, tendo, inclusive, ferido de morte o princípio do devido processo legal,

3
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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na dimensão do contraditório, ao não franquear à impetrante a oportunidade de se


manifestar previamente à aplicação da penalidade de demissão.
Não bastasse isso, há fortes indícios de que a demissão da impetrante se deu
por motivo de perseguição político-partidária, importando desvio de finalidade do ato
impugnado, o que representa, em tese, outro vício impassível de convalidação.
É comezinha a lição pela qual, se o ato administrativo perseguir interesses
ilícitos ou contrários ao interesse coletivo, estará eivado de vício de finalidade,
denominado desvio de finalidade, e deverá ser retirado do ordenamento jurídico.
Com efeito, o ordenamento jurídico não admite a prática de ato travestido de
legalidade, quando, em verdade, o agente o exerce para alcançar uma finalidade diversa
daquela em função da qual lhe foi atribuída a competência exercida.
Ora, tendo o gestor municipal praticado ato administrativo com o objetivo
de perseguir finalidade diversa daquela prevista na norma de competência, seu conteúdo
resta categoricamente maculado, não havendo outro caminho senão a decretação de sua
nulidade absoluta.

III - DISPOSITIVO
Ante o exposto, e pelo mais que dos autos consta, CONCEDO A
SEGURANÇA pleiteada.
Determino à impetrada que promova a reintegração definitiva da impetrante
no cargo anteriormente ocupado, nos moldes postulados na inicial, sob pena de multa
diária, no importe de R$ 1.000,00 (mil reais), até o limite de R$ 10.000,00 (dez mil
reais), sem prejuízo da configuração de crime de desobediência, nos termos do art. 26,
da Lei n.º 12.016/2009 c/c art. 330, do Código Penal.
No mais, dou por extinto o processo, com resolução do mérito.
Não há custas a ressarcir, sendo descabida a imposição de outras verbas.
Oportunamente, superada a fase do recurso voluntário, subam os autos para
reexame necessário.
Expedientes necessários.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.

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Bom Jesus/PI, 24 de julho de 2017.

ELVIO IBSEN BARRETO DE SOUZA COUTINHO


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