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Bahserikow

Centro de Medic
Indígena da Amazôn
concepções e práti
de saúde indíge
wi -
cina Bahserikowi -
Centro de Medicina
nia: Indígena da Amazônia:
concepções e práticas
icas de saúde indígena

ena
JOÃO PAULO LIM A BARRETO
Universidade Federal do Amazonas
Barreto, J. P. L.

BAHSERIKOWI - CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DA


AMAZÔNIA: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE SAÚDE
INDÍGENA
Resumo
Pretende-se neste artigo refletir aspectos de conflitos ontológicos
entre o modelo de conhecimento indígena e o modelo universal
de conhecimento, a partir de uma experiencia desagradável, para
não dizer discriminatória, vivenciada durante o ano de 2009. Por
outro lado, este fato acabou por servir de embião para criação
do Bahserikowi: Centro de Medicina Indígena. A apresentação visa
basicamente refletir como o imaginário construído pelas socieda-
des sobre o “índio”, sobretudo a classe médica, tem uma visão
equivocada sobre conhecimentos e práticas indígenas. O modelo
de conhecimento indígena considera que a doença e saúde não
se restringem ao aspecto biológico. Antes, ao contrário, envol-
vem aspectos cosmopolíticos que condicionam a prática da boa
saúde. Sai, assim, do entendimento restrito de algo biológico e
conecta o indivíduo numa teia de relações com outros seres, com
os waimahsã, com os animais, os especialistas, com seus parentes
e outras pessoas.
Palavras-chave: Bahsserikowi, Biomedicina, Bahsese

BAHSERIKOWI - INDIGENOUS MEDICINE CENTER OF THE


AMAZON: INDIGENOUS HEALTH CONCEPTIONS AND
PRACTICES
Abstract
This manuscript intends to reflect on aspects of ontological
conflicts between the indigenous knowledge model and the
universal knowledge model, based on an unpleasant, not to
mention discriminatory, experience during 2009. On the other
hand, this fact served as an inspiration for the creation of
Bahserikowi: Indigenous Medicine Center. The presentation
aims, basically, to reflect on how the imaginary constructed by
societies about the “Indian”, especially the medical class, has a
misconception about indigenous knowledge and practices. The
indigenous knowledge model considers that disease and health
are not restricted to the biological aspect. Rather, on the contrary,

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

they involve cosmopolitical aspects which condition the practice


of good health. It, thus, comes out of the restricted understanding
of something biological and it connects the individual in a net of
relations with other beings, with the waimahsã, with the animals,
the specialists, with their relatives and other people.
Keywords: Bahsserikowi, biomedicine, Bahsese.

BAHSERIKOWI – CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DE LA


AMAZONIA: CONCEPCIONES Y PRÁCTICAS DE SALUD
INDÍGENA
Resumen
Este artículo pretende reflejar aspectos de conflictos ontológicos
entre el modelo de conocimiento indígena y el modelo universal
de conocimiento, a partir de una experiencia desagradable, por
no decir discriminatoria, vivenciada durante el año 2009. Por otro
lado, este hecho terminó sirviendo de embrión para la creación
del Bahserikowi: Centro de Medicina Indígena. La presentación
básicamente considera cómo el imaginario construido por las
sociedades sobre el “indio”, sobre todo la clase media, tiene una
visión equivocada sobre conocimientos y prácticas indígenas. El
modelo de conocimiento indígena considera que la enfermedad
y la salud no se restringen al aspecto biológico. Al contrario,
involucra aspectos cosmopolíticos que condicionan la práctica
de la buena salud. Se sale, así, del entendimiento restringido de
algo biológico y conecta al individuo en una red de relaciones con
otros seres, con los waimahsã, con los animales, los especialistas,
con sus parientes y otras personas.
Palabras clave: Bahsserikowi, Biomedicina, Bahsese.

João Paulo Lima Barreto1


jplbarreto@gmail.com

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Barreto, J. P. L.

Este artigo discute basicamente confli- com a colaboração de jovens indíge-


tos entre modelos biomédicos e conce- nas Ivan Barreto, Cleofa Barreto, Jo-
ções de doenças e práticas de saúde a sivan Barreto, da etnia Yepamahsã e da
partir da perspetiva indígena na região jovem indígena Carla Fernandes, da
do Alto Rio Negro/AM. O objetivo etnia Dessana. O centro conta com a
é apontar como o modo de pensar a parceria da Coordenação das Organi-
doença é também o modo de pensar zações Indígenas da Amazônia Brasi-
o equilíbrio e desequilíbrio do cosmos, leira (Coiab), do Núcleo de Estudo da
portanto não tendo como pressupos- Amazônia Indígena (NEAI/UFAM),
to a noção de indivíduo e os limites de além do apoio da agência de comuni-
espaços físicos ou corpos meramente cação Amazônia Real.
orgânicos. A partir dessa discussão, a A iniciativa é fruto de experiências
intenção é problematizar políticas pú- pessoais e familiares ao longo de doze
blicas de saúde prestadas aos povos anos, algumas negativas e outras posi-
indígenas e o lugar dos especialistas tivas, no confronto entre o modelo de
indígenas em processos de cura, com conhecimentos indígenas e a ciência,
foco na implementação do Centro de sobretudo com o modelo de tratamen-
Medicina Indígena da Amazônia, se- to de saúde biomédico. Muitos concei-
diado na cidade de Manaus2. tos criados pela ciência para entender
Como capital do Estado do Amazonas, ou “desvendar” o sistema de conheci-
Manaus concentra a maior diversida- mentos indígenas produziram um ima-
de de povos indígenas como Arapas- ginário distorcido e muito distante das
so, Apurinã, Baniwa, Bará, Barassana, concepções indígenas. Por exemplo, o
Baré, Deni, Dessano, Hupda, Itana, pajé costuma ser imaginado como um
Jamamadi, Yanomami, Yskarino, Kam- velhinho que tem poder de transitar
beba, Kokama, Kanamari, Karapãna, entre o universo dos deuses ou dos
Korubo, Kubeo, Satere-Maué, Man- mortos, que conversa com os animais,
chineri, Mati, Maraguá, Marubo, Mira- plantas ou minerais para adquirir po-
nha, Mirititapuia, Munduruku, Mura, deres sobrenaturais. É um imaginário
Piratapuya, Tariano, Tikuna, Tukano, muito exotizante que a mídia ou os
Tuyuka, Way-way e Wanano, Maraguá livros didáticos, além da própria ci-
que somam, segundo estimativa da ência, difunde na sociedade não indí-
FUNAI de Manaus, uma população de gena. Dessa forma, conceitos como
30 mil indivíduos aproximadamente. mito, religião, xamanismo, maloca,
O Centro de Medicina Indígena da benzimento, magia e feitiçaria têm con-
Amazônia foi fundado no dia 06 de duzido a um imaginário equivocado
junho de 2017, por minha iniciati- e distanciado das epistemologias pro-
va, como membro do povo Yepamah- priamente indígenas.
sã (Tukano), e com apoio dos Kumuã A estrutura do texto inicia com um
(pajés) Manoel Lima, da etnia Tuyuca, acontecimento que motivou a criação
Ovídio Lemos Barreto, e José Maria do centro, para então aprofundar con-
Barreto, ambos da etnia Yepamahsã, e cepções indígenas sobre o cosmos e

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

seus habitantes, assim como a forma- Amazonas – UEA. Com a notícia da


ção e atuação de especialistas em curas amputação do pé da minha sobrinha,
entre os yepamahsã. fui ao encontro do meu irmão. Deses-
perado, ele relatava os fatos e falava da
pressão e ameaça que a assistente so-
A BIOMEDICINA NA FACA cial e a equipe médica faziam para ele
consentir a amputação, dizendo que a
A criação do Bahserikowi está em co-
filha dele morreria em menos de três
nexão com o episódio que aconteceu
dias caso não fosse realizado tal pro-
com minha família, em especial com
cedimento. Meu irmão buscava forças
minha sobrinha. Um acontecimento
para convencer os médicos de que
que, infelizmente, está longe de ser um
aquilo não era necessário, e sugeria rea-
fato isolado. Muitos casos semelhantes
lizar um tratamento à base do bahsese e
têm acontecido nos hospitais de Ma-
naus, com os pacientes indígenas. ervas medicinais.

Em janeiro de 2009, minha sobrinha Antes disso, porém, fomos consultar


Luciane Trurriyo Barreto, encaminha- nossos especialistas kumuã yepamahsã
da pelo DSEI do município de São (Tukano). Dois eram meus tios, ou-
Gabriel da Cachoeira e acompanhada tro meu pai. Eles nos garantiam que
de seu pai José Maria Barreto, veio à não era necessário amputar naquele
capital do Amazonas para tratamento, momento, era preciso recorrer ao tra-
depois de ser picada por uma cobra. tamento com bahsese e plantas medici-
Apresentando grave estado de saúde, nais, que eles mesmos garantiam fazer.
logo foi internada. Passados dois dias, Estavam certos também que tais pro-
meu irmão, José Maria, me ligou deses- cedimentos, no entanto, não excluíam
perado do hospital, me dizendo que os o tratamento médico, que deveria con-
médicos tinham decidido amputar o pé tinuar, mas sem amputação.
da minha sobrinha. O diagnóstico do Com a garantia dada pelos nossos es-
médico considerava que a situação era pecialistas, partimos para dialogar com
grave e que o pé ferido estava necro- os médicos do hospital. Nossa propos-
sando muito rapidamente, e essa situa- ta foi imediatamente rejeitada, e a de-
ção colocava em risco a vida da meni- cisão pela amputação do pé de minha
na. Meu irmão me falava também que sobrinha foi mantida. Instalou-se aí um
os médicos já estavam fazendo “cirur- grande conflito entre nós e os médicos.
gia vascular”, e que toda pele da palma Fomos acusados, dentre outras coisas,
do pé tinha sido retirada. Isso causava de obstruir o trabalho médico. Meu
desespero tanto dela quanto do seu pai. irmão foi ameaçado de ser denuncia-
Nessa época, eu estava para concluir o do ao Conselho Tutelar pela assistente
curso de graduação em Filosofia pela social do hospital e pela Casa de Assis-
Universidade Federal do Amazonas tência Social ao Índio - CASAI.
- UFAM, e ao mesmo tempo cursava Corríamos contra o tempo para adiar
Direito na Universidade do Estado a data de amputação, pois estávamos

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Barreto, J. P. L.

decididos a lutar para que o tratamento A partir desse momento nossa luta
com bahese e plantas medicinais fosse passou a ser a retirada de minha so-
realizado juntamente com os procedi- brinha do hospital. Confesso que não
mentos da medicina. Passamos a mo- foi fácil, pois o tempo todo a equipe
bilizar o Ministério Público Federal, médica ameaçava nos processar e sus-
e o fato passou a repercutir na mídia. tentava a necessidade de fazer a ampu-
Exigimos outra reunião com a equipe tação. Após vários dias, finalmente reti-
médica. Nesse meio tempo, meu irmão ramos a menina do hospital e levamos
levava remédio à base de planta medi- para a Casa de Apoio do município de
cinal e bahsese escondidos dos médicos São Gabriel da Cachoeira. Lá ela teve
para a menina no hospital. acompanhamento e tratamento dos
Diante da grande repercussão nos kumuã, à base de bahsese e ervas medici-
nais, sem interromper os medicamen-
meios de comunicação de massa, a
tos, que ficaram sob supervisão de uma
equipe médica do hospital aceitou
técnica de enfermagem.
realizar mais uma reunião conosco.
Achávamos, com isso, que estava ga- Com a repercussão do fato na mídia,
rantido o tratamento conjunto, mas uma equipe de outro hospital público
não foi o que aconteceu. Na sala de decidiu convidar-nos para uma con-
reunião, num lado sentou-se a equipe versa. Durante a reunião, nossos es-
médica, e, no outro, sentamos nós e pecialistas tiveram oportunidade de
nossos especialistas. O chefe da equi- apresentar suas técnicas e formas de
pe médica, sem muita conversa, de tratamento à base de bahsese e plan-
modo raivoso e arrogante, dirigiu-se tas medicinais. Num diálogo bastante
a meu pai perguntando: por que o se- sincero, levando em conta os riscos e
nhor acha que não deve amputar o pé probabilidades de sucesso, foi feito um
de sua neta? acordo formal para o tratamento con-
junto. Com tal acordo, a menina foi
Meu pai, sem falar bem o português,
internada no hospital. Assim, todas as
começou a responder, dizendo que do
vezes em que as enfermeiras faziam o
ponto de vista dele, como kumu, o pé
curativo no pé de minha sobrinha, os
de sua neta não estava necrosado, pois
kumuã entravam com procedimentos
a cor roxa do pé era uma reação do
de bahsese.
sangue com o veneno da cobra. O mé-
dico, visivelmente irritado, interrom- Como resultado desse esforço, o pé
peu a fala de meu pai, e esmurrando da minha sobrinha não foi amputado,
na mesa disse – “eu estudei oito anos perdendo apenas alguns movimentos
para ter autoridade para decidir o que é como consequência. Hoje ela vive na
que melhor para um paciente, enquan- comunidade/aldeia São Domingos
to o senhor (com muito respeito), não Sávio, no Rio Tiquié, alto Rio Negro,
frequentou um dia sequer a medicina”. longe da cidade e dos médicos.
Dizendo isso se retirou, levando consi- No conflito ontológico entre nós e os
go toda a equipe. médicos estava em jogo os conceitos

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

formatados acerca dos nossos conhe- Foi com isso, e é com isso em men-
cimentos indígenas, falsos e vagamente te que criamos o Centro de Medicina
formados ou conhecidos por eles. As- Indígena da Amazônia na cidade de
sim, os médicos do hospital, carrega- Manaus. Um lugar onde queremos co-
dos de um imaginário sobre pajelança e locar isso em prática, valorizando os
não sei o que mais, achavam que os ku- especialistas que exercem este ofício,
muã entrariam no hospital adornados na maioria das vezes alheios e à mar-
de cocares, com colares de dentes de gem da sociedade como um todo, mui-
onças, pintados, cantando e dançando tas vezes atendendo o mesmo público,
sob som de tambores e maracás. os mesmos pacientes que o um hospi-
As concepções indígenas de doença tal atende. Esse quadro é bastante real
e saúde não se restringem ao aspec- em Manaus e seus municípios, sobre-
to biológico. Esse é o ponto. Antes o tudo no município de São Gabriel da
contrário, envolvem aspectos cosmo- Cachoeira, onde a maioria é indígena.
políticos que condicionam a prática da Com a iniciativa, em nenhum momen-
boa saúde. Sai, assim, do entendimento to queremos colocar em questão o
restrito de algo biológico e conecta o modelo oficial de tratamento de saúde.
indivíduo numa teia de relações com Queremos simplesmente oferecer a
outros seres, com os waimahsã, com os oportunidade para as pessoas que acre-
animais, os especialistas, com seus pa- ditam que a saúde perpassa por outras
rentes e outras pessoas. vias de tratamentos terem também o
Da nossa parte, partimos da ideia de direito de os acessar. Assim, o Centro
que é preciso somar esforços e dar de Medicina Indígena é mais uma op-
visibilidade às concepções, técnicas e ção, um canal que possibilita ao públi-
práticas de tratamento de saúde desen- co uma opção de tratamento por vias
volvido pelos especialistas indígenas de tecnologias indígenas baseadas em
yai, kumuã e baya, doravante chamados outros parâmetros que não os da me-
de pajés, no mesmo nível do valor mé- dicina ocidental.
dico. A proposta é ter o Centro como um
O fato que aconteceu com minha so- espaço de circuito de especialistas indí-
brinha Luciane foi minha maior ins- genas de todos os povos. Mas no mo-
piração e incentivo para a criação do mento não temos recurso financeiro
Centro de Medicina Indígena da Ama- para criar essa política. Já tivemos ma-
zônia. Sua luta e nossa luta, contrapon- nifestação dos Yanomami, dos Apurinã
do a biomedicina, colocando nossas e Marubo para vir passar um período
concepções e práticas na mesa de ne- no Centro atendendo as pessoas. Mas
gociação e no mesmo nível de “valor”, isso implica em ter recurso financeiro
trouxe um resultado muito positivo, e para trazê-los e manter eles na cidade
nos convenceu definitivamente de que e no centro, o que no momento não
era importante ampliar essa luta e nos- temos condições, entretanto logo pre-
sos valores/conhecimentos indígenas. tendemos alcançar esse objetivo.

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Barreto, J. P. L.

Aqueles que buscam tratamento costu- Fizemos parceria com uma associa-
mam ficar direito no Centro. Mas há ção apurinã, de Tapauá, para forne-
casos que os Kumuã fazem atendimen- cerem remédio à base de vegetais e
to domiciliar, desde que a pessoa inte- animais. Essa associação já vinha
ressada ofereça estrutura, pois ainda desenvolvendo os remédios há mais
não temos condição para transporte de de 20 anos, com o acompanhamento
especialistas e estrutura em geral. Não da UFAM. Em todos os remédios há
temos nenhum projeto ou vínculo com data de “fabricação” e data de venci-
poder público para disponibilizar o mento, o que achamos muito impor-
atendimento gratuito aos interessados. tante para dar segurança às pessoas.
Mantemos os especialistas com taxa Mas nosso projeto é criar viveiros,
que cobramos com os tratamentos das plantar e produzir farmacopeia indí-
pessoas. gena. Entretanto, há remédios feitos
à base de plantas que é de domínio
A ajuda de custo aos especialistas e de alguém, neste caso somente solici-
aos jovens indígenas colaboradores é tamos seu fornecimento sem aquela
dividida de acordo com a arrecadação pessoa revele seu segredo. Tudo isso
mensal. E também o mantimento da está em discussão e experimentação
equipe com transporte, alimentação e nesses quatros meses de existência
pagamento de água, energia, material do Centro.
de limpeza, material de expedientes
O Centro não se restringe apenas à
etc. Assim não se tem salário fixo.
consulta e tratamento de saúde, sen-
Nesses quatro meses de “funciona- do também um lugar dinamizador
mento” do Centro, já passaram mais e incentivador de novos centros de
de 500 pessoas pelo centro, indígenas medicina indígena em outras regiões
e não-indígenas, na maioria mulheres, do Brasil. Dito de modo bastante su-
de faixa etária de 30 a 50 anos de ida- cinto, a iniciativa quer contrapor a
de. Estamos num prédio localizado no política de dependência química dos
centro histórico da cidade, com duas povos indígenas imposta pela polí-
salas de consultas e de tratamento. tica de tratamento de saúde oficial,
Temos colabores como atendentes e promovendo um debate sobre outras
intérpretes. O protocolo é seguido de formas de tratamento e concepções
diagnóstico, análise de complexidade sobre saúde.
da doença, tempo de tratamento, res- Neste sentido, o Bahserikowi visa, de
trições alimentares e sexuais em alguns forma ampla, constituir um espaço de
casos e acompanhamento. Há duas diálogo com outros saberes, sejam eles
principais formas de tratamentos: bah- indígenas ou não, a fim de promover
sese (benzimento) e uso de plantas me- o intercâmbio cultural e a produção
dicinais. Ambas não produzem efeitos de conhecimento na área da saúde e
colaterais. As pessoas se surpreendem outros campos. Na concepção indí-
porque não encontram equipamentos gena existe uma distinção muito clara
sofisticados nas salas de consultas. daquelas doenças que a biomedicina

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

pode resolver, sobretudo com siste- Biologia, Medicina, Enfermagem etc.


ma de cirurgias e outras doenças que Essa organização em campos de co-
somente os especialistas indígenas po- nhecimentos específicos nada mais é
dem fazer tratamento (cura). Nesse do que o desejo de controlar e separar
sentido, os dois conhecimentos podem fenômenos sociais e naturais, de modo
atuar conjuntamente. a agenciá-los para o benefício político,
Como antropólogo yepamahsu (tukano), econômico e social.
sou idealizador do Centro e busco ar- Entre os povos do Alto Rio Negro,
ticular politicamente e divulgar a expe- conhecer o mundo significa necessa-
riência da implantação do Centro em riamente estabelecer relações cosmo-
todos os níveis nas associações indíge- políticas, sem dividi-las em relações
nas, nas universidades, nas escolas e na sociais e meio natural. Consideramos
mídia, promovendo debate e diálogo que todos os “ambientes” dos espaços
entre a biomedicina e conhecimentos aquáticos, terra/floresta e aéreo3 são
indígenas. Também sou pesquisador e habitados por outros seres humanos,
faço exercício de pensar o pensamento denominados de waimahsã, na língua ye-
indígena, com objetivo de fundamen- pamahsã, que doravante são traduzidos
tar teoricamente as concepções e téc- como espíritos. Essa noção de espaços
nicas de tratamento de doenças a partir mais inclusiva está articulada com bah-
de epistemologias indígenas. Articular sese (benzimentos) e a interação dos hu-
parcerias também faz parte do meu
manos como waimahsã, habitantes dos
trabalho, além de incentivar diretamen-
respectivos “ambientes”.
te os jovens e especialistas envolvidos
no Centro. A “tradição intelectual” indígena, de
ver, de pensar e de organizar o mundo,
os seres e as coisas, de relacionar, de
COSMOPOLÍTICAS DO CONHECI- manipular e perceber as mudanças, está
MENTO ancorada numa epistemologia que não
é aquela que aprendemos nas escolas
Existem vários modos de explicar, en- e nas universidades convencionais. Ela
tender, organizar e manipular o mun-
está ancorada na cosmologia e na cos-
do, que designamos como conhecimento.
mopolítica, que são a base de conheci-
A ciência, como conhecimento que se
mento e fio condutor de pensamento e
pretende universal, organiza a realidade
das práticas indígenas. Para novas gera-
em três grandes reinos, isto é, o reino
ções são transmitidas de maneira orga-
animal, reino vegetal e reino mineral.
nizada e sistemática como “teorias de
Cada reino, por sua vez, é organizado
conhecimentos” pelos seus detentores,
em campos de conhecimentos especí-
ficos, como ciências humanas, ciências conhecidos como yai, kumu ou baya.
exatas e ciências biológicas, e são arti- A relação cosmopolítica, portanto, é
culados em disciplinas como Sociolo- um dos princípios básicos para bem vi-
gia, Antropologia, História, Geografia, ver na concepção dos yepamahsã. Man-
Direito, Física, Química, Geologia, ter uma relação harmoniosa com os

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Barreto, J. P. L.

waimahsã, seres que habitam em todos tais, animais, minerais, da temperatura,


os espaços cósmicos, que são donos chuva, noite, dia etc.
dos lugares e responsáveis pelos ani- Eles [waimahsã] só podem ser vistos
mais, vegetais, minerais e temperatura por um especialista, isto é, yai ou
do mundo terrestre é uma necessidade kumu, conhecidos como xamãs. Es-
para manter em equilíbrio social e am- ses seres são, por fim, a própria ex-
biental. tensão humana, devendo sua exis-
tência e reprodução ao fenômeno
Assim, os yepamahsã têm noção clara de do devir, isto é, a continuidade da
espaço aquático, espaço terra/floresta vida após a morte, sendo assim a
e espaço aéreo, que por sua vez estão origem e o destino dos humanos,
subdivididos em espaços menores, seu início e seu fim. É com estes
dos quais podem ser entendidos como waimahsã habitantes de diferentes
ambientes. Mais do que espaços de ambientes que os especialistas in-
concentração de determinados obje- dígenas se comunicam e adquirem
tos, seja vegetal, animal ou mineral, os conhecimentos (Barreto 2013).
ambientes são definidos e identifica- Assim, todos os “ambientes” do cos-
dos como bahsakawiseri (casas) de wai- mos são habitados por humanos. O
mahsã, tal qual como as moradas dos bem viver dos humanos, sem doença
humanos. Assim, uma cachoeira, uma ou estar bem de saúde, depende da
corredeira, um lago, uma serra, uma interação e comunicação como esses
floresta de terra firme, um buritizal, ou humanos. Caso não ocorra a comu-
caranazal, um barreiro, dentre outros, nicação com esses donos dos lugares,
é identificado e organizado como bah- que são ao mesmo tempo responsáveis
sakawiseri (casas) de waimahsã. pelos bichos e as coisas, eles podem
Quem são os waimahsã? A tarefa de deferir conflitos sociais, surtos de do-
definir ou traduzir os waimahsã é bas- enças, escassez de recursos naturais e
tante complexa. Uma parte, de acordo desequilíbrio ambiental como formas
com o kumu Ovídio Lemos Barreto, do de vinganças. Por essa razão, para o
povo yepamahsã, conta que nos tempos usufruto de qualquer recurso natural
de surgimento, todos os humanos es- ou para ocupação de espaço pelos hu-
tavam sob condição de waimahsã. Sob manos, é preciso primeiro comunicar-
esta condição que fizeram a longa via- -se com esses sujeitos sob mediação
gem de surgimento de humanos. En- dos especialistas yai, kumu ou baya.
tretanto, no destino final, na passagem Em relação aos humanos, waimahsã são
de condição de waimahsã para a condi- também detentores de conhecimentos
ção de humanos, alguns grupos foram primários de kihti-ukuse (narrativas mí-
preteridos pelo demiurgo Yepa-oãku, ticas), bahsese (conjuntos de benzimen-
mas passaram a habitar nos “ambien- tos) e bahsmori (conjuntos de rituais e
tes” de todos os espaços do cosmo, práticas sociais). O acesso e aquisição
com as mesmas qualidades e capacida- de tais conhecimentos pelos humanos
des dos humanos para serem responsá- se dá principalmente durante o perí-
veis e guardiões das coisas, como vege- odo de formação, momento em que

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

os neófitos são conectados ao domí- resultado das tramas sociais vivencia-


nio ou às moradas de waimahsã, pelo das pelos demiurgos e responsáveis
yai formador, utilizando os elementos pela origem do mundo, dos seres, das
kahpi ou wiõ (rapé), como elementos coisas, das paisagens (das serras, das
agenciadores. Os professores dos hu- cachoeiras, das corredeiras, da flo-
manos são os waimahsã. Estes possuem resta/vegetação). Bahsesse5 é quando
uma estrutura de ensino bastante so- o kihti-uhkusse é utilizado pelos ku-
fisticado, tanto quanto o laboratório. muã para comunicação e interação
Os humanos necessariamente devem com os waimahsã, assepsia de alimen-
interagir e manter a comunicação com tos e habilidade de invocar elementos
os waimahsã para aquisição de conheci- e princípios curativos, contidos nos
mentos. tipos de vegetais, animais e minerais. Já
Bahsamori6 é quando o kihti-uhkusse é
Dessa forma, o equilíbrio e desequilí-
acessado para composição musical du-
brio do cosmos, seja ambiental, social
rantes as festas de dabucuri, que envol-
e de doenças perpassa necessariamente
vem os cantos, danças, instrumentos
nas relações entre essas categorias de
musicais, práticas agrícolas, práticas de
pessoas, a saber: waimahsã e humanos,
caça e pesca, etc.
que estão conectados num sistema de
interdependência, em que cada catego- Ainda de acordo com nossa pesquisa
ria tem seu tipo específico de conhe- coletiva sobre conhecimentos os in-
cimentos e pode atuar indistintamente. dígenas, podemos dividir as causas de
doenças entre aquelas causadas pelos
ataques de Waimhasã; aquelas causadas
DOENÇAS, TRATAMENTOS E CURAS pela alimentação; doenças autoprovo-
cativas e sonhos; e por fim agressões
O exercício de reflexividade antropoló- interpessoais ou feitiçaria.
gica feito por nós indígenas yepamahsã,
Como comentado, os ambientes são
do Núcleo de Estudo da Amazônia
considerados casas de waimahsã, que
Indígena – NEAI, em conjunto com
são responsáveis pelos recursos natu-
os antropólogos não-indígenas e pro-
rais de seu entorno e aos animais que
fessores, fez-nos concluir que o sis-
circulam nos ambientes. Para utilizar
tema de conhecimento yepamhasã está
tais recursos, os humanos necessaria-
ancorado em três grandes conceitos
mente devem negociar com os waimah-
abstratos: Kihti-ukuse, Bahsese e Bahsamo-
sã, caso contrário esses seres deferem
ri4, a partir dos quais podem ser organi-
ataques contra a pessoa, utilizando os
zados campos de conhecimentos mais meios como picada de cobra, acidente
específicos. Em nossa equipe de pes- fatal e doenças que podem ser mortais.
quisadores desenvolvemos uma obra Para circular nos ambientes, os huma-
intitulada Omerõ, que está no prelo, em nos devem pedir licença desses donos
que os tematizamos. dos lugares, sobretudo nos momentos
Resumidamente, Kihti-uhkusse é o con- mais vulneráveis da vida, como no pe-
junto de narrativas míticas que são o ríodo de gestação, menstruação, etc. O

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Barreto, J. P. L.

mais importante bahsero (benzimento) no sangue, no estômago, no fígado,


é o wetidareró, para estas situações. no coração, nas veias, na pele e na car-
Wetidarero é uma arte de comunicação ne, seesãse, as gorduras invisivelmente
com os humanos invisíveis, formula- impregnadas, fazem surgir e aparecer
do pelo especialista, com o objetivo àquelas kamib k (feridas e infecções
de evitar os ataques dos waimahsã, es- dermatológicas) que podem vir a se-
pecialmente naqueles momentos mais rem incuráveis. De mesma forma,
vulneráveis, e quando as pessoas se o consumo e a ingestão de frutas
deslocam para os diferentes lugares da roça ou do mato consideradas
(habitação de waimahsã) para a prática sek ose (oleosas e gordurosas) como
de pesca, caça e coleta. Os elementos açaí, patauá, buriti, umari, inajá, ucu-
utilizados como veículo de comuni- qui, cunuri, uacu, provocam também
cação nesses casos são o cigarro ou o este fenômeno de seesãse impregnação
urucum. das gorduras e causam kamib k .
Outra fonte de doenças são os alimen- Outra recomendação importante é a
tos, seja animal, vegetal e frutas. Toda moderação no consumo de p õbaase
comida é portadora em potencial de (assados) e tãbaase (assados ou enterra-
doenças, pois são carregadas de mi- dos na brasa embrulhados com folhas)
crorganismo capazes de atacar a saú- que pode causar, além do kamib k
de humana. Para isso, as frutas devem visto como nos casos precitados, uma
passar por processo de assepsia feito série de omeperi b s se (distúrbios audi-
por meio de bahsese (benzimento) pelo tivos), wisisé (salivação excessiva notur-
kumu (pajé). na), dipetisé (palidez excessiva), p apetisé
(emagrecimento), dimehã (obesidade),
Essa categoria é chamada pelos Tuka- kematise (sonhos estranhos), witõda
no de Baábokasé (doenças causadas pelo uhsé (“queima da massa encefálica”) e
alimento). Isso ocorre no consumo matisé (loucura).
waik rã (animais), wai (peixes) e yok
d hka (vegetal). Por exemplo, con- Outra forma de causa de doenças é au-
sumir baá\baáse (comida\alimentos) toprovocação do corpo, sobretudo nas
depois de momentos senviveis e de mulheres. No período de sua menstru-
maior vulnerabilidade como após uso ação ou gestação, a mulher pode con-
de plumas, de resguardo pré ou pós- trair doenças. Para evitar as complica-
-parto, após terem visto e terem conta- ções as mulheres devem se submeter à
to com miriã (jurupari). Uma das reco- prevenção, adotar dieta, adotar certos
mendações principais é de moderação comportamentos específicos e ficar
no consumo de certos alimentos que sob cuidados do kumu.
contem certos elementos, como peixes As doenças do descuido poder ser do
e carnes de caça, que contêm muita útero, doenças do fígado, da mama, da
sé (gordura), metafisicamente estas garganta, feridas e coceiras no corpo,
gorduras ficam impregnadas ( see- além de doenças como fogo selvagem.
sãse) no corpo da pessoa que ingeriu: A mais grave pode ser a gestação de

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criança deficiente. Além disso, podem O yai, kumu e baya são como detentores
ter dificuldade de ter parto natural. de Bahsese. Para efetuar tratamento,
Para tudo isso tem bahsese (benzimen- antes de tomar qualquer providência,
tos) específicos. os especialistas, primeiro fazem diag-
Há ainda doenças que são causadas por nósticos através de séries de pergun-
agressões interpessoais, vulgarmente tas. O objetivo é descobrir exatamen-
conhecido de feitiçaria. seró pehtise é te a origem e causa da doença. Feito
um assunto complexo e delicado, de o diagnóstico, lança mão dos bahsese
modo que mesmo aqueles que sabem especifico para curar aquela doença.
e tem conhecimentos não estão dis- Os elementos utilizados podem variar
postos a contar, comunicar, comentar entre tabaco, breu (enzima vegetal),
e informar os não-especialistas sobre o água, chá e outros como perfume, gel
tema, para não revelar como se formula etc. Como dito acima, bahsese é habili-
e faz esta categoria avessa do conjunto dade de invocar elementos e princípios
dos bahsese, mas se limitam em indicar curativos, contidos nos tipos de vege-
o que acontece com a vítima e possí- tais, animais e minerais sobre os ele-
veis sintomas. Nesse sentido, quase to- mentos para ser tratado o paciente.
dos conhecem as doenças provocadas Já a utilização de plantas medicinais
por seró pehtise, mas nem todos conhe- na atenção à saúde que pode ser vege-
cem o tratamento e a cura, somente tal da mata e planta do quintal. Não é
alguns especialistas. Os especialistas qualquer pessoa que domina as plantas.
afirmam que a pessoa com habilidade Isso também requer formação, conhe-
de agressão por meio dos bahsese, tem cimento e habilidade para manipular a
uma vida curta, na medida em que, o planta para ter poder de cura de doen-
agressor pode ser atingido com weopeose ças.
e bia doase (“antidoto de feitiçaria”) de Os especialistas yai, kumu ou baya são
sua própria agressão. humanos e quase demiurgos, pois pau-
tam-se como extensão de demiurgos,
seres que deram origem à plataforma
OS ESPECIALISTAS YEPAMAHSÃ
terrestre, floresta, rios, animais, vege-
Nas sociedades indígenas do alto Rio tais e minerais. Os demiurgos também
Negro existem três categorias de es- deram origem aos waimahsã e humanos
pecialistas, yai, kumu e baya, que são como sua extensão de vida, dotando-
agenciadores cósmicos e cosmopolíti- -lhes de capacidades e costumes es-
cos. São sujeitos que passaram por uma pecíficos. Foi por meio de bahsese que
rigorosa formação e treinamentos, sob os demiurgos fizeram surgir todas as
orientação de especialista formador. coisas. Assim, aquele que domina kihti-
Conectando no domínio de waimahsã, -ukuse-bahsese-bahsemori possui capacida-
adquiriram kihti-ukuse, bahsese e bahsa- de de recriar, reorganizar o cosmos e
mori, conhecimentos considerados fun- manipular suas partículas para o bem
damentais para a existência humana. ou para o mal.

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Barreto, J. P. L.

O nome adotado pela pessoa é funda- mes yepamahsã, que por sua vez
mental para se tornar especialista, pois vão ser dados de acordo com as
traz a presença da potência criadora e potencialidades e características
mantenedora de tudo quanto há, ou inerentes a criança (calma, agi-
tação), sendo anunciado de Yepa
seja, kihti-ukuse-bahsese-bahsemori. O do-
Oãku para o especialista. No ato
mínio desses conhecimentos coloca o
de dar o nome no momento do
especialista no patamar de recriador, heriporã bahsese, a criança não só
mantenedor ou destruidor, tal qual está interligada a estrutura cos-
como os demiurgos versados nas nar- mológica yepamahsã, como tam-
rativas míticas. Outro fator importante bém, adquire o seu õmero, que
da nominação é sua capacidade de in- por sua vez é um fragmento do
serir a pessoa na estrutura cosmológica omerõ do próprio Yepa Oãku. Isso
e cosmopolítica, além de conferir entre possibilita aos Yepamahsã acionar
seus pares uma função social. Dito de os diferentes tipos de bahsese,
outra forma, o nome é omerõ (força), podendo assim interagir com os
uma potência que pode ser desenvol- waimahsã e também com os seus
semelhantes. Assim, o nome
vida pela pessoa para ser bom espe-
dado a partir do heriporã bahse-
cialista. se é o próprio omerõ. Acerca do
[Omerõ] está intimamente rela- omerõ designado como potência
cionado ao conjunto dos bahsese da mente e também como for-
e aos modos de ação do especia- ça que o especialista mantém no
lista yepamahsã: kumu, yaí, baya e seu corpo, refere-se a essa força
bahseg ʉ . Omerõ diz respeito a for- direcionada para realização do
ça do coração, força da mente e bahsero. O õmero localiza-se na
também a força que o especia- porta da boca do especialista,
lista mantém no seu corpo para com essa força juntamente com
então lançar mão dos bahsese. A a intencionalidade do especia-
origem dessa força (capacidade lista, a utilização das narrativas,
de criar ou destruir) está direta- das classificações e também do
mente ligada a Buhpo, sendo que murupu ukuse, o sopro adquire
este é considerado o próprio os atributos de cura e de comu-
omerõ. Desse modo, essa força nicação entre os Yepamahsã e os
existe desde da origem dos Yepa- waimahsã e comunicação dos hu-
mahsã narrada no conjunto dos manos entre si. (Omerõ et alli
kihti ukuse. A potência do õmero 2016. no prelo).
no coração está relacionada ao
Na teoria, toda pessoa yepamahsu
ato de realizar o bahsero de co-
ração do recém-nascido (heripo-
(singular) tem potencialidade de ser
rã bahsese), que consiste na co- especialista, mas isso tem preço. Tra-
municação do especialista com dicionalmente, o cuidado do corpo
Yepa Oãku para que seja lançado para ser especialista começa logo
mão do nome da criança. Este após o parto, a criança recém-nascida
nome é extraído de um repertó- é cercada de cuidados pelos seus pais
rio conhecido e fechado de no- que se sujeitam a severas regras e in-

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

terdições. Nesse período, a criança os waimahsã se fundamenta no in-


recém-nascida depende da conduta tercâmbio recíproco de vitalidade.
dos pais para que os waimahsã não os Se o intercâmbio for violado, pode
agridam. acontecer o desequilíbrio social,
Quando passa essa fase, o cuidado político, econômico e ambiental.
passa a ser pessoal, com a reclusão Para isso, os especialistas aparecem
como o principal meio de comuni-
e um rigoroso regime de controle
cação com os seres de diferentes
alimentar e sexual, além de subme-
domínios e espaços.
ter ao acompanhamento do yai mais
experiente. Depois dessa investida, é Portanto, o desequilíbrio é entendido
ativado o poder, a força, o omerõ. Isso como um conjunto de manifestações
conecta a pessoa definitivamente na “anormais” que compromete negati-
estrutura cosmológica e cosmopolíti- vamente a organização cosmológica
ca, isto é, ao domínio dos demiurgos e cosmopolítica, afetando a vida so-
e dos waimahsã, com os quais passa a cial, política, econômica e ambiental.
se comunicar e interagir. Tal desequilíbrio pode se manifestar
sob formas de surtos de doenças,
O investimento do corpo é a base acidentes de grandes proporções,
para ser bom especialista. O corpo conflitos sociais, guerras, nascimen-
é preparado com investimentos de to de muitas crianças com deficiência
adereços que não são visíveis a pes- física ou mental, grandes impactos de
soas comuns. Essas são condições fenômenos naturais, escassez de re-
para expandir-se para qualidade de cursos naturais, desequilíbrio de bio-
“original”, próximo aos demiurgos indicadores, entre outros fenômenos
e waimahsã, se tornando pessoa com anormais.
força de invocar elementos e princí-
Uma vez, no ano de 2016, meu pai,
pios curativos, contidos nos tipos de
Ovídio Lemos Barreto, a convite de
vegetais, animais e minerais para tra-
uma equipe de médicos dermatologis-
tar as doenças, de modo a transfor-
tas do Hospital Tropical, participou do
mar determinados elementos (água,
tratamento de dois pacientes indígenas
tabaco, enzima vegetal, entre outros)
durante um mês. Nesse período que
em agentes protetivos e curativos,
freqüentava os ambientes do hospital,
além da habilidade de provocar os fe-
ele olhava para alguns pacientes, so-
nômenos naturais como raios e tro-
bretudo as mulheres, e logo dizia que
voadas e usar qualidades de animais
a doença era conseqüência de ataque
para determinadas finalidades.
dos waimahsã, ou conseqüência de ali-
Outra função do especialista é pro- mentação, que por descuidos durante
mover diálogo constante com os seus momentos de maior vulnerabili-
seres waimahsã visando manter o dade de vida, como período de mens-
cosmos equilibrado, com condições truação, de gravidez ou pós-parto, teria
habitáveis aos seres humanos. As- circulado nos ambientes estranhos sem
sim, a relação entre os humanos e proteção ou se alimentado sem fazer

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Barreto, J. P. L.

bahsese. O kumu Ovídio Barreto fazia bahsese de diarréias, para dor de ca-
diagnóstico do paciente só ao vê-lo. beça, dor de barriga, dor de dentes,
Partindo da noção de contaminação, ia dores musculares etc.
relacionando as doenças com o modo
Os especialistas também podem ser
de vida do paciente.
acionados para “infernizar” a vida de
O “mundo” dos waimahsã é o “la- seus desafetos, podendo provocar a
boratório”, a verdadeira escola dos aceleração de partículas para atacar ou
humanos, um espaço onde os neófi- contra-atacar, por exemplo, ao invocar
tos adquirem conhecimentos, treina- raios e trovoadas de grande intensida-
mentos, técnicas de diagnósticos e de de sobre uma casa ou sobre uma pes-
cura de doenças, antes de exercer o
soa. Podem também acionar os bichos,
oficio entre seus pares. Assim, dife-
sobretudo as cobras venenosas, para
rentemente da noção antropológica
atacar um inimigo. Outra possibilidade
comum de que os especialistas são
de ação do especialista é o uso de “rou-
sujeitos que tem capacidade ou dom
de se comunicar com os deuses ou pa” (sutiró) de predadores para certas
com os mortos, eles são líderes espi- finalidades.
rituais, guardiões de conhecimentos, Minha experiência pessoal foi ter
além de serem formadores de novos meu avô paterno, yai, chamado Pon-
especialistas. Acionam os kihti-ukuse, ciano yai, como interlocutor quando
bahsese e bahsamori para resolver pro- era “adolescente”. Ele me contava
blemas cotidianas, seja para cura de suas aventuras de especialista e como
enfermidades ou para a reorganiza- acionava as partículas ou fenômenos
ção do cosmos, mantendo interlocu- naturais para atacar seus desafetos.
ção com os waimahsã dos domínios Assim fez até estar à beira de sua
aquático, terra/floresta e aéreo, para morte. Atualmente tenho meu pai, o
que suas forças estejam em equilíbrio. kumu Ovídio Lemos Barreto, como
No cotidiano, os especialistas são seu sucessor. Outro 8kumu é meu tio,
requisitados para várias finalidades, Manoel Lima, Tuyuca, e o meu irmão
sobretudo para elaborar os bahsese José Maria Barreto está a caminho
de cura de doenças, para o bahsese de se tornar kumu. Os três atuam no
de proteção contra os ataques dos Bahserikowi´i.
waimahsã, para o bahsese de primeiro
banho pós-parto, para o bahsese de O centro acabou de ser inaugurado
proteção da moça durante a primeira e ainda não sabemos como será seu
menstruação, para o bahsese de prote- futuro, mas nossa intenção é que ele
ção da casa, da família, do trabalho possa fortalecer os conhecimentos in-
e contra o ataque dos inimigos. São dígenas nos conflitos ontológicos com
acionados ainda para a elaboração a medicina, mas fortalecendo também
de bahsese de assepsia de alimentos7, as alianças possíveis para tratamentos
para o bahsese de feridas, para bahsese que possam articular essas diferentes
de doenças do seio (mama), para o formas de curar e viver.

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Bahserikowi - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

NOTAS conhecimentos Yepamahsã (tukano) (no


prelo).
1
Indígena do povo Yepamahsã (Tuka-
no), nascido na aldeia São Domingos, no
5
Bahsese foi trabalhado pelo Dagoberto
município de São Gabriel da Cachoeira Azevedo (Tukano) em 2016, na disser-
(AM). Graduado em Filosofia, Mestre tação de Mestrado, com uma riqueza de
e Doutorando em Antropologia Social detalhes sobre os conjuntos de bahsese
pelo programa de Pós-Graduação em (benzimentos) acionados pelos especia-
Antropologia Social da Universidade Fe- listas indígenas nas suas experiências co-
deral do Amazonas. Pesquisador do Nú- tidianas, seja para comunicar com os se-
cleo de Estudos da Amazônia Indígena res que habitam nos domínios da terra/
(NEAI) e Idealizador do Centro de Me- floresta, a assepsia de alimentos e bahsese
dicina Indígena. para acionar princípios curativos e pro-
tetivos.
2
Quero agradecer ao Professor Gilton
Mendes dos Santos e a Professora Valéria
6
Bahsamori foi trabalhado pelo Gabriel
Macedo pelo apoio e incentivo para es- Sodré Maia (Tukano) em 2016, na disser-
crever este texto. Trocas de idéias e suas tação de Mestrado, no qual trata das prá-
sugestões foram fundamentais para a cons- ticas sociais dos povos indígenas do Alto
trução do texto. Rio Negro as práticas sociais, doravante
denominados de rituais, acompanhando o
3
A concepção de organização de espaços calendário cosmológicos e seus bioindica-
cósmicos, como espaço aquático, terra/ dores. Mostrando que as práticas sociais
floresta e aéreo foi em minha Dissertação são meios de atualização e circulação de
de Mestrado (autor 2013). Nesse trabalho, conhecimentos.
apenas o espaço aquático foi trabalhado
com detalhes, como base para a discus-
7
Para os povos indígenas do alto Rio Ne-
são da presença dos waimahsã no universo gro, todos os alimentos - frutas, peixes,
aquático. Posteriormente, o espaço terra/ caça, até mesmo a água são tidos como
floresta foi trabalhado por Dagoberto veículos de doenças que necessariamente
Azevedo (2016) e o espaço aéreo por Ga- devem passar pela assepsia para neutralizar
briel Maia (2016). o potencial de causar as doenças.
4
Um exercício de reflexividade coletiva
de um grupo de estudantes indígenas
de pós-graduação em Antropologia So-
cial, no âmbito do projeto Rios e Redes, REFERÊNCIAS
desenvolvidos pelo Núcleo de Estudo
da Amazônia Indígena-NEAI, permitiu Azevedo, D.L. 2016. Forma e Conteúdo do
conceituar os conhecimentos Tukano em Bahsese Yepamahsã (Tukano): Fragmentos
três grandes campos de conhecimentos, Do Espaço Di´Ta/Nuhku (Terra/Flores-
que são Kihti-ukuse, bahsese e bahsamori, ta). Dissertação de Mestrado, Antropolo-
doravante denominamos de trindade gia Social, Universidade Federal do Ama-
por razão de ser uma coisa indivisível do zonas, Manaus-AM.
ponto de vista dos especialistas indíge- Barreto, João Paulo Lima. 2013. Wai-Mah-
nas Tukano. O resultado dessa pesquisa sã: Peixes e Humanos - um ensaio de An-
conjunto vai ser publicado com o Título: tropologia Indígena. Manaus, dissertação
OMERÕ - Constituição e circulação dos de mestrado/PPGAS – UFAM.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (2): 594 - 612, 2017 611


Barreto, J. P. L.

Maia, G.S. 2016. Bahsamori: o tempo, as


estações e as etiquetas sociais dos Yepa-
mahsã (tukano). Dissertação de Mestrado,
Antropologia Social, Universidade Federal
do Amazonas, Manaus-AM.
OMERÕ, 2015 - Constituição e circulação
dos conhecimentos Yepamahsã (tukano)
(no prelo).

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