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Centro de Medic
Indígena da Amazôn
concepções e práti
de saúde indíge
wi -
cina Bahserikowi -
Centro de Medicina
nia: Indígena da Amazônia:
concepções e práticas
icas de saúde indígena
ena
JOÃO PAULO LIM A BARRETO
Universidade Federal do Amazonas
Barreto, J. P. L.
decididos a lutar para que o tratamento A partir desse momento nossa luta
com bahese e plantas medicinais fosse passou a ser a retirada de minha so-
realizado juntamente com os procedi- brinha do hospital. Confesso que não
mentos da medicina. Passamos a mo- foi fácil, pois o tempo todo a equipe
bilizar o Ministério Público Federal, médica ameaçava nos processar e sus-
e o fato passou a repercutir na mídia. tentava a necessidade de fazer a ampu-
Exigimos outra reunião com a equipe tação. Após vários dias, finalmente reti-
médica. Nesse meio tempo, meu irmão ramos a menina do hospital e levamos
levava remédio à base de planta medi- para a Casa de Apoio do município de
cinal e bahsese escondidos dos médicos São Gabriel da Cachoeira. Lá ela teve
para a menina no hospital. acompanhamento e tratamento dos
Diante da grande repercussão nos kumuã, à base de bahsese e ervas medici-
nais, sem interromper os medicamen-
meios de comunicação de massa, a
tos, que ficaram sob supervisão de uma
equipe médica do hospital aceitou
técnica de enfermagem.
realizar mais uma reunião conosco.
Achávamos, com isso, que estava ga- Com a repercussão do fato na mídia,
rantido o tratamento conjunto, mas uma equipe de outro hospital público
não foi o que aconteceu. Na sala de decidiu convidar-nos para uma con-
reunião, num lado sentou-se a equipe versa. Durante a reunião, nossos es-
médica, e, no outro, sentamos nós e pecialistas tiveram oportunidade de
nossos especialistas. O chefe da equi- apresentar suas técnicas e formas de
pe médica, sem muita conversa, de tratamento à base de bahsese e plan-
modo raivoso e arrogante, dirigiu-se tas medicinais. Num diálogo bastante
a meu pai perguntando: por que o se- sincero, levando em conta os riscos e
nhor acha que não deve amputar o pé probabilidades de sucesso, foi feito um
de sua neta? acordo formal para o tratamento con-
junto. Com tal acordo, a menina foi
Meu pai, sem falar bem o português,
internada no hospital. Assim, todas as
começou a responder, dizendo que do
vezes em que as enfermeiras faziam o
ponto de vista dele, como kumu, o pé
curativo no pé de minha sobrinha, os
de sua neta não estava necrosado, pois
kumuã entravam com procedimentos
a cor roxa do pé era uma reação do
de bahsese.
sangue com o veneno da cobra. O mé-
dico, visivelmente irritado, interrom- Como resultado desse esforço, o pé
peu a fala de meu pai, e esmurrando da minha sobrinha não foi amputado,
na mesa disse – “eu estudei oito anos perdendo apenas alguns movimentos
para ter autoridade para decidir o que é como consequência. Hoje ela vive na
que melhor para um paciente, enquan- comunidade/aldeia São Domingos
to o senhor (com muito respeito), não Sávio, no Rio Tiquié, alto Rio Negro,
frequentou um dia sequer a medicina”. longe da cidade e dos médicos.
Dizendo isso se retirou, levando consi- No conflito ontológico entre nós e os
go toda a equipe. médicos estava em jogo os conceitos
formatados acerca dos nossos conhe- Foi com isso, e é com isso em men-
cimentos indígenas, falsos e vagamente te que criamos o Centro de Medicina
formados ou conhecidos por eles. As- Indígena da Amazônia na cidade de
sim, os médicos do hospital, carrega- Manaus. Um lugar onde queremos co-
dos de um imaginário sobre pajelança e locar isso em prática, valorizando os
não sei o que mais, achavam que os ku- especialistas que exercem este ofício,
muã entrariam no hospital adornados na maioria das vezes alheios e à mar-
de cocares, com colares de dentes de gem da sociedade como um todo, mui-
onças, pintados, cantando e dançando tas vezes atendendo o mesmo público,
sob som de tambores e maracás. os mesmos pacientes que o um hospi-
As concepções indígenas de doença tal atende. Esse quadro é bastante real
e saúde não se restringem ao aspec- em Manaus e seus municípios, sobre-
to biológico. Esse é o ponto. Antes o tudo no município de São Gabriel da
contrário, envolvem aspectos cosmo- Cachoeira, onde a maioria é indígena.
políticos que condicionam a prática da Com a iniciativa, em nenhum momen-
boa saúde. Sai, assim, do entendimento to queremos colocar em questão o
restrito de algo biológico e conecta o modelo oficial de tratamento de saúde.
indivíduo numa teia de relações com Queremos simplesmente oferecer a
outros seres, com os waimahsã, com os oportunidade para as pessoas que acre-
animais, os especialistas, com seus pa- ditam que a saúde perpassa por outras
rentes e outras pessoas. vias de tratamentos terem também o
Da nossa parte, partimos da ideia de direito de os acessar. Assim, o Centro
que é preciso somar esforços e dar de Medicina Indígena é mais uma op-
visibilidade às concepções, técnicas e ção, um canal que possibilita ao públi-
práticas de tratamento de saúde desen- co uma opção de tratamento por vias
volvido pelos especialistas indígenas de tecnologias indígenas baseadas em
yai, kumuã e baya, doravante chamados outros parâmetros que não os da me-
de pajés, no mesmo nível do valor mé- dicina ocidental.
dico. A proposta é ter o Centro como um
O fato que aconteceu com minha so- espaço de circuito de especialistas indí-
brinha Luciane foi minha maior ins- genas de todos os povos. Mas no mo-
piração e incentivo para a criação do mento não temos recurso financeiro
Centro de Medicina Indígena da Ama- para criar essa política. Já tivemos ma-
zônia. Sua luta e nossa luta, contrapon- nifestação dos Yanomami, dos Apurinã
do a biomedicina, colocando nossas e Marubo para vir passar um período
concepções e práticas na mesa de ne- no Centro atendendo as pessoas. Mas
gociação e no mesmo nível de “valor”, isso implica em ter recurso financeiro
trouxe um resultado muito positivo, e para trazê-los e manter eles na cidade
nos convenceu definitivamente de que e no centro, o que no momento não
era importante ampliar essa luta e nos- temos condições, entretanto logo pre-
sos valores/conhecimentos indígenas. tendemos alcançar esse objetivo.
Aqueles que buscam tratamento costu- Fizemos parceria com uma associa-
mam ficar direito no Centro. Mas há ção apurinã, de Tapauá, para forne-
casos que os Kumuã fazem atendimen- cerem remédio à base de vegetais e
to domiciliar, desde que a pessoa inte- animais. Essa associação já vinha
ressada ofereça estrutura, pois ainda desenvolvendo os remédios há mais
não temos condição para transporte de de 20 anos, com o acompanhamento
especialistas e estrutura em geral. Não da UFAM. Em todos os remédios há
temos nenhum projeto ou vínculo com data de “fabricação” e data de venci-
poder público para disponibilizar o mento, o que achamos muito impor-
atendimento gratuito aos interessados. tante para dar segurança às pessoas.
Mantemos os especialistas com taxa Mas nosso projeto é criar viveiros,
que cobramos com os tratamentos das plantar e produzir farmacopeia indí-
pessoas. gena. Entretanto, há remédios feitos
à base de plantas que é de domínio
A ajuda de custo aos especialistas e de alguém, neste caso somente solici-
aos jovens indígenas colaboradores é tamos seu fornecimento sem aquela
dividida de acordo com a arrecadação pessoa revele seu segredo. Tudo isso
mensal. E também o mantimento da está em discussão e experimentação
equipe com transporte, alimentação e nesses quatros meses de existência
pagamento de água, energia, material do Centro.
de limpeza, material de expedientes
O Centro não se restringe apenas à
etc. Assim não se tem salário fixo.
consulta e tratamento de saúde, sen-
Nesses quatro meses de “funciona- do também um lugar dinamizador
mento” do Centro, já passaram mais e incentivador de novos centros de
de 500 pessoas pelo centro, indígenas medicina indígena em outras regiões
e não-indígenas, na maioria mulheres, do Brasil. Dito de modo bastante su-
de faixa etária de 30 a 50 anos de ida- cinto, a iniciativa quer contrapor a
de. Estamos num prédio localizado no política de dependência química dos
centro histórico da cidade, com duas povos indígenas imposta pela polí-
salas de consultas e de tratamento. tica de tratamento de saúde oficial,
Temos colabores como atendentes e promovendo um debate sobre outras
intérpretes. O protocolo é seguido de formas de tratamento e concepções
diagnóstico, análise de complexidade sobre saúde.
da doença, tempo de tratamento, res- Neste sentido, o Bahserikowi visa, de
trições alimentares e sexuais em alguns forma ampla, constituir um espaço de
casos e acompanhamento. Há duas diálogo com outros saberes, sejam eles
principais formas de tratamentos: bah- indígenas ou não, a fim de promover
sese (benzimento) e uso de plantas me- o intercâmbio cultural e a produção
dicinais. Ambas não produzem efeitos de conhecimento na área da saúde e
colaterais. As pessoas se surpreendem outros campos. Na concepção indí-
porque não encontram equipamentos gena existe uma distinção muito clara
sofisticados nas salas de consultas. daquelas doenças que a biomedicina
criança deficiente. Além disso, podem O yai, kumu e baya são como detentores
ter dificuldade de ter parto natural. de Bahsese. Para efetuar tratamento,
Para tudo isso tem bahsese (benzimen- antes de tomar qualquer providência,
tos) específicos. os especialistas, primeiro fazem diag-
Há ainda doenças que são causadas por nósticos através de séries de pergun-
agressões interpessoais, vulgarmente tas. O objetivo é descobrir exatamen-
conhecido de feitiçaria. seró pehtise é te a origem e causa da doença. Feito
um assunto complexo e delicado, de o diagnóstico, lança mão dos bahsese
modo que mesmo aqueles que sabem especifico para curar aquela doença.
e tem conhecimentos não estão dis- Os elementos utilizados podem variar
postos a contar, comunicar, comentar entre tabaco, breu (enzima vegetal),
e informar os não-especialistas sobre o água, chá e outros como perfume, gel
tema, para não revelar como se formula etc. Como dito acima, bahsese é habili-
e faz esta categoria avessa do conjunto dade de invocar elementos e princípios
dos bahsese, mas se limitam em indicar curativos, contidos nos tipos de vege-
o que acontece com a vítima e possí- tais, animais e minerais sobre os ele-
veis sintomas. Nesse sentido, quase to- mentos para ser tratado o paciente.
dos conhecem as doenças provocadas Já a utilização de plantas medicinais
por seró pehtise, mas nem todos conhe- na atenção à saúde que pode ser vege-
cem o tratamento e a cura, somente tal da mata e planta do quintal. Não é
alguns especialistas. Os especialistas qualquer pessoa que domina as plantas.
afirmam que a pessoa com habilidade Isso também requer formação, conhe-
de agressão por meio dos bahsese, tem cimento e habilidade para manipular a
uma vida curta, na medida em que, o planta para ter poder de cura de doen-
agressor pode ser atingido com weopeose ças.
e bia doase (“antidoto de feitiçaria”) de Os especialistas yai, kumu ou baya são
sua própria agressão. humanos e quase demiurgos, pois pau-
tam-se como extensão de demiurgos,
seres que deram origem à plataforma
OS ESPECIALISTAS YEPAMAHSÃ
terrestre, floresta, rios, animais, vege-
Nas sociedades indígenas do alto Rio tais e minerais. Os demiurgos também
Negro existem três categorias de es- deram origem aos waimahsã e humanos
pecialistas, yai, kumu e baya, que são como sua extensão de vida, dotando-
agenciadores cósmicos e cosmopolíti- -lhes de capacidades e costumes es-
cos. São sujeitos que passaram por uma pecíficos. Foi por meio de bahsese que
rigorosa formação e treinamentos, sob os demiurgos fizeram surgir todas as
orientação de especialista formador. coisas. Assim, aquele que domina kihti-
Conectando no domínio de waimahsã, -ukuse-bahsese-bahsemori possui capacida-
adquiriram kihti-ukuse, bahsese e bahsa- de de recriar, reorganizar o cosmos e
mori, conhecimentos considerados fun- manipular suas partículas para o bem
damentais para a existência humana. ou para o mal.
O nome adotado pela pessoa é funda- mes yepamahsã, que por sua vez
mental para se tornar especialista, pois vão ser dados de acordo com as
traz a presença da potência criadora e potencialidades e características
mantenedora de tudo quanto há, ou inerentes a criança (calma, agi-
tação), sendo anunciado de Yepa
seja, kihti-ukuse-bahsese-bahsemori. O do-
Oãku para o especialista. No ato
mínio desses conhecimentos coloca o
de dar o nome no momento do
especialista no patamar de recriador, heriporã bahsese, a criança não só
mantenedor ou destruidor, tal qual está interligada a estrutura cos-
como os demiurgos versados nas nar- mológica yepamahsã, como tam-
rativas míticas. Outro fator importante bém, adquire o seu õmero, que
da nominação é sua capacidade de in- por sua vez é um fragmento do
serir a pessoa na estrutura cosmológica omerõ do próprio Yepa Oãku. Isso
e cosmopolítica, além de conferir entre possibilita aos Yepamahsã acionar
seus pares uma função social. Dito de os diferentes tipos de bahsese,
outra forma, o nome é omerõ (força), podendo assim interagir com os
uma potência que pode ser desenvol- waimahsã e também com os seus
semelhantes. Assim, o nome
vida pela pessoa para ser bom espe-
dado a partir do heriporã bahse-
cialista. se é o próprio omerõ. Acerca do
[Omerõ] está intimamente rela- omerõ designado como potência
cionado ao conjunto dos bahsese da mente e também como for-
e aos modos de ação do especia- ça que o especialista mantém no
lista yepamahsã: kumu, yaí, baya e seu corpo, refere-se a essa força
bahseg ʉ . Omerõ diz respeito a for- direcionada para realização do
ça do coração, força da mente e bahsero. O õmero localiza-se na
também a força que o especia- porta da boca do especialista,
lista mantém no seu corpo para com essa força juntamente com
então lançar mão dos bahsese. A a intencionalidade do especia-
origem dessa força (capacidade lista, a utilização das narrativas,
de criar ou destruir) está direta- das classificações e também do
mente ligada a Buhpo, sendo que murupu ukuse, o sopro adquire
este é considerado o próprio os atributos de cura e de comu-
omerõ. Desse modo, essa força nicação entre os Yepamahsã e os
existe desde da origem dos Yepa- waimahsã e comunicação dos hu-
mahsã narrada no conjunto dos manos entre si. (Omerõ et alli
kihti ukuse. A potência do õmero 2016. no prelo).
no coração está relacionada ao
Na teoria, toda pessoa yepamahsu
ato de realizar o bahsero de co-
ração do recém-nascido (heripo-
(singular) tem potencialidade de ser
rã bahsese), que consiste na co- especialista, mas isso tem preço. Tra-
municação do especialista com dicionalmente, o cuidado do corpo
Yepa Oãku para que seja lançado para ser especialista começa logo
mão do nome da criança. Este após o parto, a criança recém-nascida
nome é extraído de um repertó- é cercada de cuidados pelos seus pais
rio conhecido e fechado de no- que se sujeitam a severas regras e in-
bahsese. O kumu Ovídio Barreto fazia bahsese de diarréias, para dor de ca-
diagnóstico do paciente só ao vê-lo. beça, dor de barriga, dor de dentes,
Partindo da noção de contaminação, ia dores musculares etc.
relacionando as doenças com o modo
Os especialistas também podem ser
de vida do paciente.
acionados para “infernizar” a vida de
O “mundo” dos waimahsã é o “la- seus desafetos, podendo provocar a
boratório”, a verdadeira escola dos aceleração de partículas para atacar ou
humanos, um espaço onde os neófi- contra-atacar, por exemplo, ao invocar
tos adquirem conhecimentos, treina- raios e trovoadas de grande intensida-
mentos, técnicas de diagnósticos e de de sobre uma casa ou sobre uma pes-
cura de doenças, antes de exercer o
soa. Podem também acionar os bichos,
oficio entre seus pares. Assim, dife-
sobretudo as cobras venenosas, para
rentemente da noção antropológica
atacar um inimigo. Outra possibilidade
comum de que os especialistas são
de ação do especialista é o uso de “rou-
sujeitos que tem capacidade ou dom
de se comunicar com os deuses ou pa” (sutiró) de predadores para certas
com os mortos, eles são líderes espi- finalidades.
rituais, guardiões de conhecimentos, Minha experiência pessoal foi ter
além de serem formadores de novos meu avô paterno, yai, chamado Pon-
especialistas. Acionam os kihti-ukuse, ciano yai, como interlocutor quando
bahsese e bahsamori para resolver pro- era “adolescente”. Ele me contava
blemas cotidianas, seja para cura de suas aventuras de especialista e como
enfermidades ou para a reorganiza- acionava as partículas ou fenômenos
ção do cosmos, mantendo interlocu- naturais para atacar seus desafetos.
ção com os waimahsã dos domínios Assim fez até estar à beira de sua
aquático, terra/floresta e aéreo, para morte. Atualmente tenho meu pai, o
que suas forças estejam em equilíbrio. kumu Ovídio Lemos Barreto, como
No cotidiano, os especialistas são seu sucessor. Outro 8kumu é meu tio,
requisitados para várias finalidades, Manoel Lima, Tuyuca, e o meu irmão
sobretudo para elaborar os bahsese José Maria Barreto está a caminho
de cura de doenças, para o bahsese de se tornar kumu. Os três atuam no
de proteção contra os ataques dos Bahserikowi´i.
waimahsã, para o bahsese de primeiro
banho pós-parto, para o bahsese de O centro acabou de ser inaugurado
proteção da moça durante a primeira e ainda não sabemos como será seu
menstruação, para o bahsese de prote- futuro, mas nossa intenção é que ele
ção da casa, da família, do trabalho possa fortalecer os conhecimentos in-
e contra o ataque dos inimigos. São dígenas nos conflitos ontológicos com
acionados ainda para a elaboração a medicina, mas fortalecendo também
de bahsese de assepsia de alimentos7, as alianças possíveis para tratamentos
para o bahsese de feridas, para bahsese que possam articular essas diferentes
de doenças do seio (mama), para o formas de curar e viver.