Você está na página 1de 40

Supremo Tribunal Federal

Ementa e Acórdão

Inteiro Teor do Acórdão - Página 1 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES


RECTE.(S) : JOSÉ REGINALDO DA SILVA CORDEIRO
RECTE.(S) : CLEITON CAVALCANTE
ADV.(A/S) : EDILSON MONTEIRO DE ALBUQUERQUE NETO
RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO
CEARÁ

Penal e Processual Penal. 2. Júri. 3. Pronúncia e standard probatório: a


decisão de pronúncia requer uma preponderância de provas, produzidas
em juízo, que sustentem a tese acusatória, nos termos do art. 414, CPP. 4.
Inadmissibilidade in dubio pro societate: além de não possuir amparo
normativo, tal preceito ocasiona equívocos e desfoca o critério sobre o
standard probatório necessário para a pronúncia.
5. Valoração racional da prova: embora inexistam critérios de
valoração rigidamente definidos na lei, o juízo sobre fatos deve ser
orientado por critérios de lógica e racionalidade, pois a valoração racional
da prova é imposta pelo direito à prova (art. 5º, LV, CF) e pelo dever de
motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF). 6. Critérios de valoração
utilizados no caso concreto: em lugar de testemunhas presenciais que
foram ouvidas em juízo, deu-se maior valor a relato obtido somente na
fase preliminar e a testemunha não presencial, que, não submetidos ao
contraditório em juízo, não podem ser considerados elementos com força
probatória suficiente para atestar a preponderância de provas
incriminatórias.
7. Dúvida e impronúncia: diante de um estado de dúvida, em que há
uma preponderância de provas no sentido da não participação dos
acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor
força probatória, impõe-se a impronúncia dos imputados, o que não
impede a reabertura do processo em caso de provas novas (art. 414,
parágrafo único, CPP). Primazia da presunção de inocência (art. 5º, LVII,
CF e art. 8.2, CADH).

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 974D-9275-2482-2E6A e senha F31C-9EE2-DE7F-BF53
Supremo Tribunal Federal
Ementa e Acórdão

Inteiro Teor do Acórdão - Página 2 de 40

ARE 1067392 / CE

8. Função da pronúncia: a primeira fase do procedimento do Júri


consolida um filtro processual, que busca impedir o envio de casos sem
um lastro probatório mínimo da acusação, de modo a se limitar o poder
punitivo estatal em respeito aos direitos fundamentais.
9. Inexistência de violação à soberania dos veredictos: ainda que a
Carta Magna preveja a existência do Tribunal do Júri e busque assegurar
a efetividade de suas decisões, por exemplo ao limitar a sua possibilidade
de alteração em recurso, a lógica do sistema bifásico é inerente à
estruturação de um procedimento de júri compatível com o respeito aos
direitos fundamentais e a um processo penal adequado às premissas do
Estado democrático de Direito.
10. Negativa de seguimento ao Agravo em Recurso Extraordinário.
Habeas corpus concedido de ofício para restabelecer a decisão de
impronúncia proferida pelo juízo de primeiro grau, nos termos do voto
do relator.
AC ÓRDÃ O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do
Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do
Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata de
julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar
seguimento ao agravo. Prosseguindo no julgamento, por maioria de
votos, conceder, de ofício a ordem, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 26 de março de 2019.
Ministro GILMAR MENDES
Relator
Documento assinado digitalmente

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 974D-9275-2482-2E6A e senha F31C-9EE2-DE7F-BF53
Supremo Tribunal Federal
Relatório

Inteiro Teor do Acórdão - Página 3 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES


RECTE.(S) : JOSÉ REGINALDO DA SILVA CORDEIRO
RECTE.(S) : CLEITON CAVALCANTE
ADV.(A/S) : EDILSON MONTEIRO DE ALBUQUERQUE NETO
RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO
CEARÁ

RE LAT Ó RI O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Trata-se de


agravo contra decisão de inadmissibilidade de recurso extraordinário,
que impugna acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.
Consta dos autos que os réus foram denunciados pela suposta
prática do delito descrito no artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV, do Código
Penal, pois, em 28.6.2008, teriam agredido a vítima José Romário Lira de
Oliveira com chutes, pontapés e mediante o uso de um instrumento
contundente, ocasionando, posteriormente, o seu óbito no hospital.
Após regular trâmite da instrução, os requerentes foram
impronunciados pelo juízo de primeiro grau, nos termos do artigo 414 do
CPP. (eDOC14)
Irresignado, o Ministério Público interpôs apelação criminal no
TJ/CE requerendo, em suma, a pronúncia dos acusados.
O recurso restou provido nos termos da ementa que transcrevo no
que interessa:

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO


QUALIFICADO. IMPRONÚNCIA. APELAÇÃO CRIME.
RECURSO MINISTERIAL. PLEITO DE PRONÚNCIA.
CABIMENTO. PRESENÇA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS
DE AUTORIA. IMPOSIÇÃO DE SUBMISSÃO DAS TESES AO

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 01FB-1A26-B112-FA7E e senha 1008-F2D1-FDCD-FC02
Supremo Tribunal Federal
Relatório

Inteiro Teor do Acórdão - Página 4 de 40

ARE 1067392 / CE

TRIBUNAL DO JÚRI. Recurso conhecido e provido.


1. Segundo determina o art. 414 do Código de Processo
Penal: ‘Não se convencendo da materialidade do fato ou da
existência de indícios suficientes de autoria ou de participação,
o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado’.
2. Assim, para que o réu seja pronunciado, basta a prova
da materialidade e indícios de autoria, cabendo ao Corpo de
Sentença Examinar o mérito, ou seja, a tese mais adequada a
prova coligida aos autos, segundo sua íntima convicção. No
caso, o Magistrado impronunciou os recorridos valorando a
prova, afastando o princípio in dubio pro societate. Dessa forma,
impõe-se o acolhimento do recurso ministerial para reformar a
decisão, pronunciando-se os recorridos nos termos do art. 121,
§2º, I, III e IV do Estatuto Penal Punitivo”. (eDOC 23, p. 3)

Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados. Eis a


ementa:

“PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE


DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO
QUALIFICADO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO.
DESCABIMENTO. VÍCIO AUSENTE. PRETENSÃO DE
REDISCUSSÃO DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. Súmula 18
do TJCE. Embargos conhecidos e rejeitados.
1. O decisum embargado enfrentou devidamente as
questões fáticas trazidas aos autos, com fundamentação
necessária ao deslinde da matéria, inexistente, portanto, as
alegadas omissões.
2. Os aclaratórios, cujo objetivo é a integração da decisão
embargada, não servem como meio de rediscussão da matéria
já julgada (Súmula 18 do TJCE).
3. Embargos declaratórios conhecidos e rejeitados”.
(eDOC 25)

Daí a interposição do recurso extraordinário, que se fundamenta no


art. 102, III, “a”, do texto constitucional, sustentando a repercussão geral

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 01FB-1A26-B112-FA7E e senha 1008-F2D1-FDCD-FC02
Supremo Tribunal Federal
Relatório

Inteiro Teor do Acórdão - Página 5 de 40

ARE 1067392 / CE

da matéria tratada nos autos. Alega, em síntese, a fragilidade das provas


colhidas durante a instrução aptas a ensejarem a pronúncia dos réus e a
inconstitucionalidade do referido princípio in dubio pro societate.
Inadmitido na origem com base nas Súmulas 284 e 279 do STF, foi
interposto o agravo pela defesa.
A Procuradoria Geral da República apresentou parecer no sentido
do não conhecimento do ARE. (eDoc 36)
É o relatório.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 01FB-1A26-B112-FA7E e senha 1008-F2D1-FDCD-FC02
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 6 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Como relatado,


trata-se de agravo contra decisão de inadmissibilidade de recurso
extraordinário, que impugna acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará, em que se reformou a decisão de impronúncia do juízo de
primeiro grau para pronunciar os pacientes, com fundamento no
princípio do in dubio pro societate.

Inicialmente, considerando tratar-se de um agravo em Recurso


Extraordinário, em um juízo de âmbito recursal neste Supremo Tribunal
Federal, creio que, em uma análise preliminar, seria possível aventar a
aplicação da Súmula 279 deste STF para negar seguimento ao recurso.
Contudo, este é um caso que demonstra claramente os efeitos
problemáticos ocasionados pela construção do in dubio pro societate
como critério de decisão para o juízo de pronúncia no Júri. Embora
existam precedentes deste Supremo Tribunal Federal no sentido de uma
aplicação sem maiores cautelas de tal princípio, inclusive de minha
relatoria, creio que esta é situação que carece de atenta análise.

1. Descrição do caso concreto a partir das decisões dos juízos


ordinários: critérios para a valoração racional do lastro probatório

Na decisão do juízo de primeiro grau, houve a pronúncia do


acusado Bruno Oliveira e a impronúncia dos imputados José Reginaldo e
Cleiton, aqui pacientes.
Conforme assentado pelo julgador quanto aos impronunciados, “não
vislumbro nos autos qualquer indício de autoria do crime ora perpetrado que
possa ser atribuída aos referidos réus”, pois as testemunhas presenciais não
os viram chutando ou arremessando pedras na vítima.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 7 de 40

ARE 1067392 / CE

Ressalta ainda que “todas as testemunhas oculares afirmam que não


viram os réus agredirem a vítima, de forma que sobre elas não pairam sequer
indícios de autoria” (eDOC 14, p. 4). Assim, “o simples fato dos denunciados
(José Reginaldo e Cleiton Cavalcante) terem corrido atrás da vítima não indica
sua adesão à conduta do corréu Bruno”, sob pena de se caracterizar uma
inadmissível responsabilização objetiva em Direito Penal (eDOC 14, p. 5).
Para tanto, reproduz trechos dos depoimentos de seis testemunhas
presenciais: Nilton Silva, Lyner Santos, Whemerson Costa, Ernande Lira,
Ana Clécia Silva e Antônio Silva (eDOC 14, p. 3-4):

“(...) Que identifica Bruno, presente nesta sala, como o


autor do homicídio: (...) que não sabe dizer se os outros réus
participaram do crime pois só conhece Bruno (... ) (Depoimento
de Nilton César Pereira da Silva, fls. 115/116)

(...) que presenciou em dado momento o acusado Bruno


pegar uma pedra de calçada e jogar na vitima atingindo sua
“nuca”; (...)que dentre as pessoas que surgiram no local,
estavam Cleiton. Wellington e Reginaldo, que nessa ocasião o
depoente presenciou a pessoa do Cleiton passar o cassetete nas
partes íntimas da vítima, enquanto a pessoa de Wellington
pegou a faca que a vítima portava; (...) que em momento algum
presenciou o réu Reginaldo tocar o corpo da vítima; (...) que em
nenhum momento Cleiton pisou na cabeça da vítima; (...) que
após a vítima cair com a pedrada, nenhum dos réus agrediu a
vítima; que nenhum dos réus chutou a vítima; que quando a
vítima caiu no solo ficou imóvel, tendo Cleiton passado o
cassetete no mesmo no intuito de saber se estava se
movimentando; (...) que acredita que o único responsável pela
morte da vítima foi o acusado Bruno (...) (Testemunha ocular
Lyner Teixeira dos Santos, fls. 117/118)

(...) que enquanto a vítima estava prostrada no chão não


chegou a ver ninguém mexer em seu corpo; que não viu
nenhum dos réus fazer qualquer coisa contra a vítima; (...) que
pelos comentários na cidade o autor do crime foi o Bruno(...)

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 8 de 40

ARE 1067392 / CE

(Testemunha Whemerson Sousa Costa, fs. 132)

(...) que não presenciou nenhum dos seguranças baterem


na vítima (...) (Testemunha Ernade Soares Lira, fls. 133)

(...) Que o Cleiton tocou os testículos da vítima com o


cassetete; que acredita que o réu agiu desta forma em virtude
da vítima está ameaçando verbalmente os réus, dizendo:
‘quando eu ficar bom vou matar vocês’; que o Cleiton ao tocar
os testículos da vítima não o fez com violência (...) (Testemunha
Ana Clécia Pereira da Silva, fls. 134)

(...) que presenciou o momento em que a vítima foi


atingida por uma pedrada; (...) que confirma que enquanto a
vítima estava no solo não foi agredida por nenhum dos réus (...)
que confirma que em momento algum a vítima foi agredida
com chutes e pontapés (...) (Testemunha Antônio Waldênio
Araújo da Silva, fls. 139)”

O julgador afirma que os únicos relatos que incriminam Bruno e José


Reginaldo são de Aclailton da Silva, da mãe e da esposa da vítima, mas
nenhum deles presenciou efetivamente os fatos.
Nesse sentido, atesta: “não vislumbro a autoria conferida aos réus na
denúncia, pois entendimento contrário seria privilegiar o depoimento de pessoas
que não presenciaram o crime em detrimento das testemunhas oculares”, de
modo que “é imperativo, em um raciocínio lógico, que a testemunha que
presenciou os fatos possa descrever com mais fidedignidade os
acontecimentos do que aquela que tomou conhecimento dos fatos por
ouvir dizer (testemunha de 2º grau)” (eDOC 14, p. 4-5).

Conforme os termos da decisão do Tribunal de Justiça no juízo de


apelação sobre a impronúncia, fundamentou-se o provimento do recurso
do MP nos seguintes elementos:

“A genitora da vítima, senhora Maria Dalva Sores Lira, ao

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 9 de 40

ARE 1067392 / CE

depor em Juízo assim afirmou:

‘Que no hospital em Fortaleza seu filho afirmou


que tinham muitas pessoas correndo atrás dele e atirando
pedras; que o mesmo disse que o principal foi Bruno; que
afirmou também que Cleiton e Reginaldo arremessaram
pedras; que disse ainda que a pedrada que o deixou
paralisado foi arremessada por Bruno, que a vítima não
disse que havia motivado a confusão; que haviam sinais
de várias pedradas na cabeça da vítima; que a vítima
sequer deixava mexer em sua cabeça porque doía muito;
que que a vítima informou ainda que escutou na hora me
que disseram: vamos matá-lo; que acredita que quem
disse isso foram os três réus’.

Tal depoimento veio a corroborar o envolvimento dos réus


mencionados nas declarações da testemunha Antonio
Wellignton Simão de Oliveira arrolada na exordial, mas
ouvida somente perante a autoridade policial. Embora a
testemunha tenha afirmado que não viu quem jogou as
pedras (...)

A testemunha Lyner Teixeira dos Santos (fl. 117) declarou


que estavam no local Reginaldo, Wellington e Cleiton e que
Reginaldo ‘não tocou na vítima’, ao afirmar esse fato, se
contradisse com o seu testemunho prestado perante a
autoridade policial e até com o próprio réu”. (eDOC 23, p. 5-11)

Como visto das razões do Tribunal de Justiça, em lugar de


testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo, deu-se maior valor
a relatos obtidos somente na fase preliminar, os quais, não submetidos ao
contraditório em juízo, não podem ser considerados elementos com
força probatória razoável.
Além disso, o juízo recursal deu preponderância também a um
testemunho de ouvir-dizer, a mãe da vítima, que teria ouvido suas
declarações no hospital antes de falecer. Sem dúvidas, diferentemente do

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 10 de 40

ARE 1067392 / CE

sistema estadunidense, não há uma vedação de admissibilidade de tal


elemento no ordenamento brasileiro. Contudo, igualmente inegável que
uma declaração de alguém que não presenciou os fatos, mas somente
ouviu o relato de outra pessoa, tem menor força probatória do que outras
testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo.

2. Da necessidade de uma teoria de valoração racional da prova


penal

A “reconstrução dos fatos” passados é um ponto fundamental do


processo penal, considerando-se a sua função de verificar a acusação
imputada a partir do lastro probatório produzido nos autos. Contudo, o
momento da valoração na formação da decisão judicial carece de maior
atenção da doutrina e da jurisprudência. (KNIJNIK, Danilo. A prova nos
juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 6)

Superada a primazia da teoria da prova tarifada, em que o julgador


ficava vinculado a critérios de valoração abstratamente fixados na lei,
houve a consolidação do sistema de “livre convencimento motivado”,
determinando que “a eficácia de cada prova para a determinação dos fatos seja
estabelecida caso a caso, seguindo critérios não predeterminados, discricionários e
flexíveis, baseados essencialmente em pressupostos racionais”. (TARUFFO,
Michele. La prueba de los hechos. Trotta, 2011. p. 387, tradução livre)

Contudo, saindo de um sistema em que os critérios eram totalmente


vinculados, passou-se para um modelo de “livre convencimento”, em que
uma pretensa liberdade do julgador ocasionou total abertura à
discricionariedade no juízo de fatos. Segundo Michele Taruffo, “o uso
degenerativo que às vezes se faz desse princípio abre caminho para a legitimação
da arbitrariedade subjetiva do juiz ou, no melhor dos casos, a uma
discricionariedade que não se submete a critérios e pressupostos” (Ibidem, p. 398,
tradução livre).

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 11 de 40

ARE 1067392 / CE

Diante disso, fortalece-se a necessidade de uma teoria racionalista


da prova, em que, embora inexistam critérios de valoração rigidamente
definidos na lei, o juízo sobre fatos deva ser orientado por critérios de
lógica e racionalidade, podendo ser controlado em âmbito recursal
ordinário. (FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la
prueba. Marcial Pons, 2007. p. 64) Para tanto, a valoração racional da
prova impõe-se constitucionalmente, a partir do direito à prova (art. 5º,
LV, CF) e do dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF).

Um pressuposto fundamental para a adoção de uma teoria


racionalista da prova é a definição de standards probatórios, denominados
“modelos de constatação” por Knijnik. (KNIJNIK, Danilo. A prova nos
juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 37)

Trata-se de níveis de convencimento ou de certeza, que determinam


o critério para que se autorize e legitime o proferimento de decisão em
determinado sentido. E o ponto central é que o atendimento a tal standard
deve ser controlável intersubjetivamente.

3. Do standard probatório para a decisão de pronúncia e a


incongruência do in dubio pro societate

Em seu acórdão, o TJ consignou que “a decisão vergastada trouxe


argumentos plausíveis a absolvição dos apelados”, mas também afirmou que
“ali se admitiu que havia outros elementos que apontavam para a culpabilidade
dos réus”, reconhecendo assim claramente uma situação de dúvida.
Entretanto, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro
grau, formada a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em
juízo os quais afastaram a participação dos pacientes nas agressões, o TJ
optou por dar maior valor a depoimento de ouvir-dizer e declarações
prestadas na fase investigatória e não reiteradas em juízo com respeito ao
contraditório.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 12 de 40

ARE 1067392 / CE

Ou seja, diante de um estado de dúvida, em que há uma


preponderância de provas no sentido da não participação dos acusados
nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor força
probatória, o Tribunal optou por alterar a decisão de primeiro grau e
pronunciar os imputados.
Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada
ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de
não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o
completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova.
Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio
pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento
do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia. Diante,
disso, afirma-se na doutrina que:

“Ao se delimitar a análise da legitimidade do in dubio pro


societate no espaço atual do direito brasileiro não há como
sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela
absoluta ausência de previsão legal desse brocardo e, ainda,
pela ausência de qualquer princípio ou regra orientadora que
lhe confira suporte político-jurídico de modo a ensejar a sua
aplicação; a segunda razão se dá em face da existência expressa
da presunção de inocência no ordenamento constitucional
brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo
o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus
da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência
probatória”. (NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: valoração
da prova e limites à motivação. Dissertação de Mestrado,
Universidade de São Paulo, 2012. p. 215)

Nesse sentido, em crítica à aceitação de um in dubio pro societate,


afirma-se que “não se pode admitir que juízes pactuem com acusações
infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela
Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o
Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento
nesse complexo ritual judiciário”. (LOPES JR., Aury. Direito processual

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 13 de 40

ARE 1067392 / CE

penal. Saraiva, 2018. p. 799)


Assim, ressalta-se que “com a adoção do in dubio pro societate, o
Judiciário se distancia de seu papel de órgão contramajoritário, no contexto
democrático e constitucional, perdendo a posição de guardião último dos direitos
fundamentais”. (DIAS, Paulo T. F. A decisão de pronúncia baseada no in
dubio pro societate. EMais, 2018. p. 202)

A questão aqui em debate, em realidade, deve ser resolvida a partir


da teoria da prova no processo penal, em uma vertente cognitivista, que
acarreta critérios racionais para valoração da prova e standards
probatórios a serem atendidos para legitimação da decisão judicial sobre
fatos.
Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da
dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de
um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência
de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja,
requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim
dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
Conforme o art. 414 do CPP, “não se convencendo da materialidade do
fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz,
fundamentadamente, impronunciará o acusado”. Nos termos assentados pela
doutrina:

“Não se exige, pois, que haja certeza de autoria. Bastará a


existência de elementos de convicção que permitam ao juiz
concluir, com bom grau de probabilidade, que foi o acusado o
autor do delito. Isso não se confunde, obviamente, com o in
dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução para o
caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto
de vista do convencimento judicial, não se identificam com a
certeza, mas com a probabilidade. Quando a lei exige para uma
medida qualquer que existam ‘indícios de autoria’, não é
preciso que haja certeza da autoria, mas é necessário que o juiz
esteja convencido de que estes ‘indícios’ estão presentes. Se

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 14 de 40

ARE 1067392 / CE

houver dúvida quanto à existência dos ‘indícios suficientes de


autoria’, o juiz deve impronunciar o acusado, como
consequência inafastável do in dubio pro reo”. (BADARÓ,
Gustavo H. Ônus da prova no processo penal, RT, 2004. p. 390-
391)

Na doutrina específica, afirma-se, inclusive, que o standard


probatório para a pronúncia deve ser mais elevado do que a
“preponderância de provas”:

“Vislumbrando-se o espaço existente entre os standards de


preponderância da prova e o da prova além da dúvida
razoável, i. e., entre a mera probabilidade e a prova plena,
respectivamente, vê-se que o critério de probabilidade proposta
pelo standard da prova clara e convincente atende ao juízo
pretendido com a decisão”. (NOGUEIRA, Rafael Fecury.
Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação.
Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 178)

Como visto, neste caso concreto, conforme reconhecido pelo juízo de


primeiro grau e também em conformidade com os argumentos aportados
pelo Tribunal, há uma preponderância de provas no sentido da não
participação dos imputados José Reginaldo e Cleiton nas agressões que
ocasionaram o falecimento da vítima.
Ainda que se considere os elementos indicados para justificar a
pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de
um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e
absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida
sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio
pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF),
convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no
ordenamento brasileiro.

4. A função da decisão de pronúncia e a não violação à soberania

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 15 de 40

ARE 1067392 / CE

dos veredictos

O procedimento do Júri, conforme regulado pelo CPP brasileiro,


adota um sistema bifásico. Primeiramente, há uma etapa em que um juiz
togado realiza a instrução, com produção de provas em contraditório,
findando em uma decisão intermediária entre quatro possibilidades:
pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação (arts. 413-
421, CPP). O acusado, então, somente será remetido para a segunda fase,
em que efetivamente ocorrerá um juízo por jurados leigos, se houver a
sua pronúncia.
Tal sistemática busca estabelecer um mecanismo de verificação dos
fatos imputados criminalmente pela acusação em que um julgador
togado, técnico e com conhecimentos em Direito, analisa a acusação e as
provas produzidas para determinar se há base mínima para autorizar o
juízo pelos jurados leigos.
Ou seja, reconhece-se que o julgamento leigo, ainda que represente
uma abertura para o exercício democrático e a manifestação do povo na
justiça criminal, ocasiona riscos em razão da falta de conhecimentos
jurídicos e da ausência do dever de motivação do veredicto.
Diante disso, são estabelecidos mecanismos para reduzir tais riscos
de arbitrariedades e, um deles, sem dúvidas, é a necessidade de uma
análise prévia do caso por um juiz togado, que condiciona o envio do
processo ao Tribunal do Júri.
Portanto, a primeira fase do procedimento do Júri consolida um
filtro processual, que busca impedir o envio de casos sem um lastro
probatório mínimo da acusação, de modo a se limitar o poder punitivo
estatal em respeito aos direitos fundamentais. Assim, “como despacho
saneador que é, a pronúncia deve desempenhar uma função garantidora, evitando
que o acusado seja submetido a um julgamento injusto e garantindo ao Estado
exercer o jus puniendi”. (AQUINO, Álvaro A. A função garantidora da
pronúncia. Lumen Juris, 2004. p. 114)

Desse modo, tal sistemática não acarreta qualquer violação ao

10

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. GILMAR MENDES

Inteiro Teor do Acórdão - Página 16 de 40

ARE 1067392 / CE

princípio da soberania dos veredictos, imposto constitucionalmente (art.


5º, XXXVIII, c, CF). Ainda que a Carta Magna preveja a existência do
Tribunal do Júri e busque assegurar a efetividade de suas decisões, por
exemplo ao limitar a sua possibilidade de alteração em recurso, a lógica
do sistema bifásico é inerente à estruturação de um procedimento de júri
compatível com o respeito aos direitos fundamentais e a um processo
penal adequado às premissas do Estado democrático de Direito, em que o
poder punitivo deve ser limitado para que tenha legitimidade.
Por fim, importante destacar que a decisão de impronúncia não
impede o oferecimento de nova denúncia, se surgirem novas provas.
Nos termos do art. 414, parágrafo único, do CPP, “enquanto não ocorrer a
extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se
houver prova nova”.

5. Dispositivo

Diante do exposto, nego provimento ao recurso.


Contudo, pelos fundamentos expostos, concedo, de ofício, a ordem
de habeas corpus, para restabelecer a sentença de impronúncia em
relação aos imputados José Reginaldo da Silva Cordeiro e Cleiton
Cavalcante, nada impedindo, nos termos do art. 414, parágrafo único, do
CPP, que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, seja
formulada nova denúncia com relação a esses recorrentes.

É como voto.

11

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 2D17-F4EF-CBDC-34BD e senha 3B2E-C2F2-A4D0-7E6F
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. EDSON FACHIN

Inteiro Teor do Acórdão - Página 17 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

VOTO
O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN - Senhor Presidente,
eminentes Pares, eminente Ministro Gilmar Mendes, que traz o voto que,
na antessala, preambularmente, supera a inadmissibilidade do recurso
extraordinário como assentada pelo Tribunal de Justiça do Estado -
inadmissibilidade essa que gerou o agravo em sede do recurso
extraordinário.
Nesse ponto, Senhor Presidente, estou acompanhando Sua
Excelência por entender que a matéria vertida no recurso extraordinário
foi ferida, foi examinada, pela decisão recorrida, ou seja, o tema central
aqui é o inc. XXXVIII do art. 5º da Constituição Federal que diz respeito a
instituição do Júri.
E isso está na decisão recorrida e é objeto do recurso extraordinário.
Portanto, entendo que é a hipótese de reconhecer que o agravo não só é
tempestivo como admissível, mas que, em meu modo de ver, deve
propiciar com o seu conhecimento e provimento para admitir e, a partir
daí, apreciarmos aqui as razões do recurso extraordinário.
Portanto, até essa parte eu estou de acompanhando o que está na
antessala do voto do eminente Ministro-Relator que, obviamente, não
havia necessidade de explicitar essa antessala porque Sua Excelência já
chancelou não apenas o provimento do recurso extraordinário como
também a concessão de habeas corpus de ofício. E, nesta parte, peço vênia
para exarar compreensão em sentido diverso pela razão seguinte.
Em verdade, na hipótese concreta em que há a imputação de crime
doloso contra a vida, portanto, trata-se de homicídio, efetivamente na
primeira fase, ou seja, no rito do Júri na fase em que se encontrava o feito,
o juiz de primeiro grau exarou uma sentença não pronunciando, mas esta
decisão foi revista por um Juízo colegiado, portanto também por um
Juízo colegiado de magistrados togados, e o Tribunal deliberou pela
pronúncia dos acusados.
Aqui, há - nada obstante o estado de dúvida ao qual o Ministro

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 69DE-61F1-2E37-1B26 e senha 91C8-2D18-9A3F-8134
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. EDSON FACHIN

Inteiro Teor do Acórdão - Página 18 de 40

ARE 1067392 / CE

Gilmar, como sempre, escorreitamente, se referiu -, diante do Juízo


colegiado de segundo grau, a afirmação segundo a qual esse estado de
dúvida tem um indício mínimo de materialidade e de autoria que deve
ser, ao fim e ao cabo, solvido pela instituição do Júri, tal como o previsto
no inciso antes referido por mim, e que se encontra no art. 5º da
Constituição Federal.
Deste modo, a questão está em que aqui há uma sentença, ou melhor
dizendo, aqui há uma decisão de pronúncia, tomada pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Ceará. Essa decisão de pronúncia levou em conta a
presença de justa causa no plano de indícios mínimos, ou seja, nada
obstante as dúvidas ainda presentes e nada obstante a não pronúncia do
juiz sentenciante de primeiro grau, o Juízo colegiado operou a pronúncia
daqueles em face dos quais se imputava a prática do homicídio.
Com todas as vênias, não me parece tratar-se de um exame de
imputações infundadas que certamente não devem merecer o
acolhimento para o efeito da submissão ao exame do Júri. Trata-se,
todavia, em meu modo de ver, do reconhecimento por um Juízo
colegiado de segundo grau de que é o Júri o locus, o juízo competente
para dirimir estas dúvidas. Nada obstante a ausência de um acervo
probatório consistente - e esse acervo consistente somente daria ensejo,
eventualmente, a uma condenação -, o Tribunal, em meu modo de ver,
reconheceu que há um acervo mínimo a levar o feito para apreciação pelo
Tribunal do Júri. É nesse contexto que entendo a incidência do brocardo
in dubio pro societate.
Aliás, me permito lembrar, da relatoria do saudoso Ministro
Menezes Direito, o julgamento no Recurso Extraordinário 540.999,
oriundo do Estado de São Paulo, cujo resultado restou publicado em
19/06/2008. Da lavra do saudoso Ministro, encontra-se afirmação, nesse
julgamento, segundo a qual a aplicação do brocardo in dubio pro societate
pautada nesse juízo de probabilidade da autoria destina-se, em última
análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao
Tribunal do Júri. Como, aliás, também já reconheceu o Ministro Gilmar
Mendes, há diversos precedentes nesta mesma linha, embora Sua

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 69DE-61F1-2E37-1B26 e senha 91C8-2D18-9A3F-8134
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. EDSON FACHIN

Inteiro Teor do Acórdão - Página 19 de 40

ARE 1067392 / CE

Excelência tenha revisitado a matéria diante da teorização que trouxe à


colação à luz do caso concreto sobre a produção e a configuração da
prova. Aliás, como sempre, na companhia de autores de nomeada quer
no Brasil, quer na Itália, como o ilustre processualista professor Michele
Taruffo.
Entretanto, no meu modo de ver, Senhor Presidente - e peço vênia ao
eminente Ministro Gilmar Mendes -, o Tribunal, ao acolher o recurso do
Ministério Público, emitiu um juízo de pronúncia. Caso contrário, se
assim não fosse, se toda revisão levada a efeito por um Juízo colegiado de
segundo grau sobre uma sentença de impronúncia não pudesse ser
considerada como válida e efetiva para remessa ao Tribunal do Júri, nós
teríamos que a decisão da impronúncia de primeiro grau seria
insuscetível de qualquer recurso. Ou suscetível de recurso, mas
insuscetível de qualquer transformação.
Portanto, com base nessa percepção, embora entenda admissível o
extraordinário, porque a matéria é mesmo de índole constitucional, estou,
na conclusão, votando em sentido diverso de Sua Excelência o eminente
Ministro-Relator, para negar provimento ao recurso extraordinário.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 69DE-61F1-2E37-1B26 e senha 91C8-2D18-9A3F-8134
Supremo Tribunal Federal
Esclarecimento

Inteiro Teor do Acórdão - Página 20 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

ESCLARECIMENTO
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) -
Presidente, só para deixar claro que estou chamando a atenção, tendo em
vista os marcos constitucionais e legais. É que, no caso, para delimitar a
questão, as provas que o juiz de primeiro grau apresentou e utilizou são
as ligadas às testemunhas oculares. O Tribunal se socorre do in dubio pro
societate para se valer de testemunhas de ouvir dizer. Eu não excluo, claro,
a possibilidade de o Tribunal, eventualmente, determinar a pronúncia.
Para isso existe, inclusive, o recurso, que é o instrumento de controle.
O caso me chamou a atenção exatamente por conta da invocação do
in dubio pro societate como um argumento de reforço num caso em que o
juiz da causa, que pronunciou aquele que entendeu ser de fato o autor do
homicídio, também entendeu que essas pessoas outras sequer
participaram do ato que lhes era imputado.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 0700-9430-11DE-CD72 e senha C8C6-1606-BD54-B409
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CÁRMEN LÚCIA

Inteiro Teor do Acórdão - Página 21 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

VOTO

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Presidente, em


primeiro lugar, eu louvo o voto tão profundamente e muito bem escrito
pelo Ministro Gilmar Mendes, do qual, entretanto, peço vênia para
divergir, na linha, em parte, do que afirma o Ministro Edson Fachin.
Tenho que, se fosse para prover, seria apenas o agravo, considerando
exatamente que o recurso extraordinário teria que se submeter ao
reconhecimento da repercussão geral, se fosse o caso, que até parece
realmente haver; teria que se submeter ao processo formal de
reconhecimento da repercussão geral, e, de toda sorte, ainda que se
afirmasse sobre a questão da valoração das provas apresentadas, tenho
para mim que, pelo menos nesta fase, não é o caso de superação como
aqui exposto.
Reafirmo a importância do tema, mas o Princípio do "In Dubio pro
Societate" é a partir de indícios, que foram aproveitados exatamente pelo
Tribunal de Justiça do Ceará. E, portanto, não se pode desconhecer que
houve a aferição da sua existência e da sua conformação, não apenas com
a legislação, mas, principalmente, com o que vem sendo a jurisprudência
exatamente no sentido de permitir que sejam eles suficientes para que se
tenha a atuação do Júri, que é o soberano para decidir sobre a suficiência
como prova e não como conjunto de indícios.
Como disse, Senhor Presidente, não me animo a desfazer ou a
superar uma jurisprudência que vem exatamente para permitir uma
melhor, um maior aprofundamento do que é necessário para que se tenha
um julgamento e principalmente uma absolvição ou condenação, mas
pelo órgão competente, constitucionalmente estabelecido, que é o Júri. E
tenho que, neste caso, houve a impronúncia pelo juízo, mas houve a
análise e julgamento da matéria pelo Tribunal de Justiça.
Portanto, não tem aqui nenhuma manifesta ilegalidade, nenhuma
teratologia que me levasse a conceder de ofício a ordem proposta pelo

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código C287-D7B8-4C6C-5D97 e senha 8900-D464-A8FC-CCF1
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CÁRMEN LÚCIA

Inteiro Teor do Acórdão - Página 22 de 40

ARE 1067392 / CE

Ministro-Relator.
Razão pela qual, Senhor Presidente, como disse, pedindo vênia,
divirjo para acompanhar, nessa parte, o Ministro Edson Fachin, que
iniciou a divergência.
É como voto.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código C287-D7B8-4C6C-5D97 e senha 8900-D464-A8FC-CCF1
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 23 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Cabe louvar, antes de


mais nada, Senhor Presidente, o belíssimo voto que o Ministro GILMAR
MENDES acaba de proferir, ferindo um tema que se mostra
extremamente delicado e impregnado de inquestionável relevo.

Antes de examinar a questão pertinente à concessão “ex officio” de


ordem de “habeas corpus”, entendo necessário estabelecer premissas que
considero essenciais à formulação de meu voto, especialmente em face
da situação de evidente conflituosidade que se instaura entre o poder
acusatório do Estado, de um lado, e a pretensão de liberdade do acusado,
de outro.

O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus,


de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo
Tribunal Federal não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular se
manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas
que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo,
na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor
de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir
reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.

Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso –


resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo –
há de ser uma reação pautada por regras e princípios que viabilizem a
instauração de persecução penal, perante juízes isentos, imparciais e
independentes, em bases que autorizem a compreensão de que o
processo penal representa fundamental garantia instrumental de qualquer
réu, em cujo favor – é o que impõe a própria Constituição da República –

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 24 de 40

ARE 1067392 / CE

devem ser assegurados todos os meios e recursos inerentes à defesa, sob


pena de nulidade radical dos atos de persecução estatal.

O processo penal figura, desse modo, como exigência constitucional


(“nulla poena sine judicio”) destinada a limitar e a impor contenção à vontade
do Estado, cuja atuação sofre, necessariamente, os condicionamentos que o
ordenamento jurídico impõe aos organismos policiais, ao Ministério
Público e ao Poder Judiciário.

Daí a observação de LUIGI FERRAJOLI (“Direito e Razão”,


traduzido por Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz
Flávio Gomes, p. 91, 4ª ed., 2014, RT), cuja precisa lição – ao discutir a
questão pertinente aos princípios e modelos estruturantes das garantias penais
e processuais penais, notadamente os postulados “da consequencialidade
da pena em relação ao delito”, “da legalidade”, “da necessidade”,
“da lesividade ou da ofensividade do evento delituoso”, “da materialidade
da ação”, “da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal”, “da
jurisdicionalidade”, “da separação entre juiz e acusação (princípio
acusatório)”, “do ônus da prova” e “do contraditório ou da defesa” – põe em
destaque, a partir de tais diretrizes essenciais, dez axiomas que resumem a
fórmula doutrinária do garantismo penal:

“– Nulla poena sine crimine


– Nullum crimen sine lege
– Nulla lex (poenalis) sine necessitate
– Nulla necessitas sine injuria
– Nulla injuria sine actione
– Nulla actio sine culpa
– Nulla culpa sine judicio
– Nullum judicium sine accusatione
– Nulla accusatio sine probatione
– Nulla probatio sine defensione” (grifei)

O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência,


espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 25 de 40

ARE 1067392 / CE

eventuais excessos da maioria, ao menos – é importante acentuar –


enquanto este Supremo Tribunal Federal, sempre fiel e atento aos
postulados que regem a ordem democrática, puder julgar, de modo
independente e imune a indevidas pressões externas, as causas submetidas ao
seu exame e decisão.

É por isso que o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos


fundamentais daqueles que sofrem persecução penal por parte do Estado
deve compor, por tratar-se de questão impregnada do mais alto relevo,
a agenda permanente desta Corte Suprema, incumbida, por efeito de sua
destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de
zelar pelo respeito aos direitos que encontram fundamento legitimador
no próprio estatuto constitucional e nas leis da República.

Com efeito, a necessidade de outorgar-se, em nosso sistema jurídico,


proteção judicial efetiva à cláusula do “due process of law” qualifica-se,
na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material
do Estado Democrático de Direito.

De outro lado, mostra-se relevante ter sempre presente a antiga


advertência, que ainda guarda permanente atualidade, de JOÃO MENDES
DE ALMEIDA JÚNIOR, ilustre Professor das Arcadas e eminente Juiz
deste Supremo Tribunal Federal (“O Processo Criminal Brasileiro”,
vol. I/10-14 e 212-222, 4ª ed., 1959, Freitas Bastos), no sentido de que a
persecução penal, que se rege por estritos padrões normativos, traduz
atividade necessariamente subordinada a limitações de ordem jurídica,
tanto de natureza legal quanto de ordem constitucional, que restringem o
poder do Estado, a significar, desse modo, tal como enfatiza aquele Mestre
da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que o processo penal
só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de
salvaguarda da liberdade jurídica do réu.

É por essa razão que o processo penal condenatório não constitui


nem pode converter-se em instrumento de arbítrio do Estado.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 26 de 40

ARE 1067392 / CE

Ao contrário, ele representa poderoso meio de contenção e de delimitação dos


poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal.
Não exagero ao ressaltar a decisiva importância do processo penal no
contexto das liberdades públicas, pois – insista-se – o Estado, ao delinear
um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, faz do processo penal um
instrumento destinado a inibir a opressão judicial e a neutralizar o abuso
de poder perpetrado por agentes e autoridades estatais.

Daí a corretíssima observação do eminente e saudoso Professor


ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no
Processo Penal Brasileiro”, p. 33/35, item n. 1.4, 2ª ed., 2004, RT),
no sentido de que o processo penal há de ser analisado em sua precípua
condição de “instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado
em geral”, tal como entende, também em autorizado magistério, o saudoso
Professor HÉLIO TORNAGHI (“Instituições de Processo Penal”,
vol. 1/75, 2ª ed., 1977, Saraiva), cuja lição bem destaca a função tutelar do
processo penal:

“A lei processual protege os que são acusados da prática


de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos
processos contra eles instaurados e impedindo que eles sejam
entregues ao arbítrio das autoridades processantes.” (grifei)

Essa mesma percepção a propósito da vocação protetiva do processo


penal, considerado o regime constitucional das liberdades fundamentais
que vigora em nosso País, é também perfilhada por autorizadíssimo
(e contemporâneo) magistério doutrinário, que ressalta a significativa
importância do processo judicial como “garantia dos acusados” (VICENTE
GRECO FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 61/63, item n. 8.3,
11ª ed., 2015, Saraiva; GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ, “Processo
Penal”, p. 37/94, 4ª ed., 2016, RT; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO,
“Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal – Garantismo e
Efetividade”, p. 17/21, 2006, RT; ROGERIO SCHIETTI MACHADO
CRUZ, “Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, 2ª ed., 2013,

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 27 de 40

ARE 1067392 / CE

Atlas; GERALDO PRADO, “Sistema Acusatório – A Conformidade


Constitucional das Leis Processuais Penais”, p. 41/51 e 241/243, 3ª ed.,
2005, Lumen Juris; ANDRÉ NICOLITT, “Manual de Processo Penal”,
p. 111/173, 6ª ed., 2016, RT; AURY LOPES JR., “Direito Processual Penal e
sua Conformidade Constitucional”, p. 171/255, 9ª ed., 2012, Saraiva, v.g.).

Essa é a razão básica que me permite insistir na afirmação de


que a persecução penal – cuja instauração é justificada pela prática
de ato supostamente criminoso – não se projeta nem se exterioriza
como manifestação de absolutismo estatal. De exercício indeclinável,
a “persecutio criminis” sofre os condicionamentos que lhe impõe o
ordenamento jurídico. A tutela da liberdade, nesse contexto, representa
insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado, mesmo
porque – ninguém o ignora – o processo penal qualifica-se como
instrumento de salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais daquele que
é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de persecução penal cuja
prática somente se legitima dentro de um círculo intransponível e
predeterminado pelas restrições fixadas pela própria Constituição da
República, tal como tem entendido a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal:

“O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE


SALVAGUARDA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS
– A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado
coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se
estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à
intangibilidade do ‘jus libertatis’ titularizado pelo réu.
A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal
juridicamente vinculada, por padrões normativos que,
consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações
significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo
penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como
instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.
O processo penal condenatório não é um instrumento de
arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 28 de 40

ARE 1067392 / CE

contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os


órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um
círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se
presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença
condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe
a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-
-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova,
ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais
necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e
de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os
elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.
A própria exigência de processo judicial representa
poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição
ao poder de coerção do Estado. A cláusula ‘nulla poena
sine judicio’ exprime, no plano do processo penal condenatório,
a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.”
(HC 73.338/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Nesse contexto, é de registrar-se – e acentuar-se – o decisivo papel


que desempenha, no âmbito do processo penal condenatório, a garantia
constitucional do devido processo legal, cuja fiel observância condiciona
a legitimidade jurídica dos atos e resoluções emanados do Estado e,
em particular, das decisões de seu Poder Judiciário.

Feitas essas considerações, passo à análise da presente causa. E, ao


fazê-lo, entendo viável a concessão, de ofício, de ordem de “habeas corpus”.

Todos sabemos – e aqui foi dito pelo eminente Ministro Relator –


que o procedimento penal do Júri é complexo, escalonado, bifásico. A sua
primeira fase encontra seu momento culminante na prolação de uma
decisão que conduz, na verdade, a quatro situações jurídico-processuais
distintas. Quando atingimos a etapa do “judicium accusationis”, portanto,
a conclusão do primeiro estágio do procedimento penal escalonado do
Júri, o juiz pode (a) pronunciar o acusado (CPP, art. 413, “caput”),
(b) impronunciar o réu (CPP, art. 414, “caput”), (c) absolver

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 29 de 40

ARE 1067392 / CE

sumariamente o imputado quando presente qualquer das hipóteses a que


se refere o art. 415 do Código de Processo Penal, ou (d) desclassificar
juridicamente o fato delituoso imputado ao réu (CPP, art. 419, “caput”).

Nos termos do art. 413, “caput”, do CPP, ao pronunciar o réu, o


magistrado deve apoiar a sua decisão na certeza da materialidade do fato
delituoso e na existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.
Havendo dúvida quanto à materialidade do fato delituoso ou quanto aos
indícios suficientes de autoria ou de participação, impor-se-á ao juiz um outro
tipo de decisão, que é a impronúncia (CPP, art. 414, “caput”). Poderá,
ainda, o magistrado competente, longe de pronunciar ou de impronunciar,
proceder, desde logo, à absolvição sumária do acusado naquelas hipóteses que
se acham definidas no Código de Processo Penal, notadamente no seu
art. 415, ou seja, quando entender que (a) está provada a inexistência do
fato delituoso, (b) está provado não ser o réu o autor ou partícipe do
fato, (c) o fato investigado não constituir infração penal, ou (d) incidir,
no caso, uma causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. Poderá,
finalmente, ocorrer uma quarta situação processual: o juiz não pronuncia,
o juiz deixa de impronunciar, o magistrado não profere absolvição
sumária, mas pode entender que se impõe a desclassificação jurídica do
fato delituoso em razão de não configurada a existência, p. ex., de um
crime doloso contra a vida, seja ele consumado ou tentado. São essas,
basicamente, quatro situações processuais que podem registrar-se nesse
momento que encerra a primeira fase do procedimento penal bifásico ou
escalonado do Júri.

Não se desconhece, Senhor Presidente, que tanto a jurisprudência


desta Corte (ARE 788.457-AgR/SP, Rel. Min. LUIZ FUX – ARE 1.047.613-
-AgR/DF, Rel. Min. ROSA WEBER – RE 540.999/SP, Rel. Min. MENEZES
DIREITO, v.g.), quanto o magistério jurisprudencial dos Tribunais em
geral (REsp 54.763/DF, Rel. Min. ANSELMO SANTIAGO –
RSE 70000688242/TJRS – RT/TJSP 729/545, v.g.), têm admitido a
aplicação da regra “in dubio pro societate”, para, em face de um estado de

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 30 de 40

ARE 1067392 / CE

dúvida, permitir ao juiz a prolação de decisão de pronúncia contra


determinado acusado.

É certo, no entanto, que essa concepção tem sido criticada por diversos
doutrinadores (RENATO BRASILEIRO DE LIMA, “Manual de Processo
Penal”, p. 1.379/1.380, item n. 7.3, 6ª ed., 2018, JusPODIVM; GUSTAVO
HENRIQUE BADARÓ, “Processo Penal”, p. 675/676, item n. 13.5.4,
5ª ed., 2017, RT; AURY LOPES JR., “Direito Processual Penal”, p. 806/808,
item n. 3.8.2.1.1, 13ª ed., 2016, Saraiva; GUILHERME MADEIRA DEZEM,
“Curso de Processo Penal”, p. 1.041/1.044, item n. 14.14.4.1, 5ª ed., 2019,
RT), que perfilham entendimento no sentido de que, havendo dúvidas quanto
à materialidade delitiva ou quanto à existência de indícios suficientes de autoria
ou de participação, deve prevalecer a presunção constitucional de inocência.

É preciso ressaltar, nesse contexto, que o conceito de presunção de


inocência, notadamente quando examinado na perspectiva do ordenamento
constitucional brasileiro, deve ser considerado nas múltiplas dimensões em
que se projeta, valendo destacar, por expressivas, como registra PAULO S.
P. CALEFFI (“Presunção de Inocência e Execução Provisória da Pena no
Brasil”, p. 24/50, itens ns. 1.2, 1.3 e 1.4, 2017, Lumen Juris), as seguintes
abordagens que esse postulado constitucional enseja: (a) a presunção de
inocência como norma de tratamento, (b) a presunção de inocência como
norma probatória e (c) a presunção de inocência como norma de juízo.

É por essa razão, acentua esse eminente Advogado gaúcho (“op. cit.”,
p. 49, item n. 1.4), que, “(…) desde os primeiros momentos da investigação
preliminar, havendo um juízo de atribuição de conduta criminosa a alguém, o
princípio da presunção de inocência protegerá o imputado com toda a
amplitude exigida pela Constituição, seja como ‘norma de tratamento’, ‘norma
probatória’ ou ‘norma de juízo’ (ou também como ‘regra de fechamento’),
assegurando que tão importante garantia não se torne mera retórica em
nosso cotidiano jurídico” (grifei), a significar, portanto, que o direito
fundamental de ser presumido inocente, nos precisos termos em que vem

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 31 de 40

ARE 1067392 / CE

proclamado e assegurado por nossa Carta Magna, não deve expor-se, sob
pena de frontal transgressão à autoridade da Constituição da República, a
quaisquer “interpretações flexibilizadoras do seu conteúdo e da extensão dos
seus efeitos”.

Vale enfatizar, neste ponto, que o magistério do Supremo Tribunal


Federal, ao apreciar a presunção de inocência como norma probatória, tem
reiteradamente advertido que as acusações penais não se presumem
provadas, pois – como tem reconhecido a jurisprudência desta Corte – o ônus
da prova referente aos fatos constitutivos da imputação penal incumbe,
exclusivamente, a quem acusa, sendo irrelevante, para esse efeito, que se
trate de procedimento penal comum ou que se cuide de procedimento penal
escalonado, como o é o procedimento penal do Júri.

Isso significa que não compete ao réu demonstrar a sua própria


inocência. Ao contrário, cabe ao Ministério Público comprovar, em
plenitude, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a
culpabilidade do acusado e os fatos constitutivos da própria imputação
penal pertinentes à autoria ou à participação, à materialidade do delito
(RTJ 161/264-266, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) e ao nexo etiológico
entre uma dada conduta reputa punível e os resultados danosos dela decorrentes.
Como todos sabemos, é preciso reconhecer – cuide-se de prova meramente
civil ou trate-se, com maior rigor, da prova penal – que incide sobre quem
alega o ônus da provas a respeito e a propósito dos fatos constitutivos do
seu direito (“onus probandi incumbit ei qui dixit, non qui negat”).

É por tal motivo que a presunção de inocência, enquanto limitação


constitucional ao poder do Estado, faz recair sobre o órgão da acusação,
agora de modo muito mais intenso, o ônus substancial da prova, fixando
diretriz a ser indeclinavelmente observada pelo magistrado e pelo
legislador.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 32 de 40

ARE 1067392 / CE

Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo


constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer
comportamento estatal transgressor do dogma segundo o qual não haverá
culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita
(RT 690/390 – RT 698/452-454).

O E. Plenário do Supremo Tribunal Federal, com apoio na presunção


constitucional de inocência – acentuando, portanto, a sua inteira
aplicabilidade à decisão de pronúncia –, formulou juízo negativo de
recepção do § 1º do art. 408 do CPP, na redação anterior à
Lei nº 9.033/1995, no ponto em que mencionada regra legal – hoje
constante do § 1º do art. 413 do CPP, nos termos da Lei nº 11.689/2008 –
determinava que o Juiz, ao pronunciar o acusado no procedimento penal
do Júri, ordenasse o lançamento do nome do réu no rol dos culpados:

“– O lançamento do nome do acusado no rol dos culpados


viola o princípio constitucional que, proclamado pelo art. 5º,
inciso LVII, da Carta Política, consagra, em nosso sistema jurídico, a
presunção ‘juris tantum’ de não-culpabilidade daqueles que figurem
como réus nos processos penais condenatórios.
A norma inscrita no art. 408, § 1º, do CPP – que autoriza o
juiz, na prolação da sentença de pronúncia, a ordenar o
lançamento do nome do réu no rol dos culpados – está derrogada
em face da superveniência de preceito constitucional com ela
materialmente incompatível (CF, art. 5º, LVII).
A expressão legal ‘rol dos culpados’ não tem sentido
polissêmico. Há, pois, de ser entendida como locução designativa
da relação de pessoas já definitivamente condenadas.”
(HC 69.696/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Entendo, na linha do magistério doutrinário e jurisprudencial acima


referido, inteiramente aplicável à decisão de pronúncia o postulado
constitucional que assegura a qualquer pessoa o direito fundamental de
ser presumida inocente, sendo certo, ainda, tal como já referido, que é
incabível qualquer interpretação que esvazie seu conteúdo.

10

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 33 de 40

ARE 1067392 / CE

O fato, Senhor Presidente, é que a insuficiência da prova penal


existente em qualquer procedimento penal não pode legitimar a
formulação de um juízo que importe em restrição à esfera jurídica do
acusado. O estado de dúvida que emerge de um processo penal de
conhecimento, ainda que se trate do procedimento escalonado do Júri,
nessa primeira fase, desautoriza, por completo, qualquer medida de
restrição ao “status libertatis” do acusado. No Direito Positivo brasileiro, a
situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo,
pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos
constitucionais que consagram o Estado Democrático de Direito.

Nem se alegue que a defesa social ficará comprometida na hipótese


de impronúncia fundada em insuficiência probatória, pois, em tal ocorrendo,
o Ministério Público poderá formular outra denúncia, desde que haja
provas substancialmente novas (RTJ 91/831 – RT 540/393 – RT 674/356 –
Pet 2.820-AgR/RN, Rel. Min. CELSO DE MELLO – Súmula 524/STF, v.g.)
e contanto que não se tenha ainda consumado a extinção da punibilidade do
réu.

O que não se revela legítimo é invocar-se a fórmula “in dubio pro


societate” para justificar a decisão de pronúncia, tendo em vista as graves
repercussões dela resultantes, ainda mais se se tiver presente que a
Constituição da República consagrou o dogma da presunção de inocência.

Vale relembrar, neste ponto, a jurisprudência desta Suprema Corte a


respeito do significado e do alcance da presunção constitucional do
estado de inocência, em face de anterior experiência autocrática a que os
cidadãos de nosso País foram expostos sob regime que impôs ao réu, como
sucedeu na vigência do Estado Novo, o ônus de provar a sua própria
inocência, consoante advertiu, em diversos julgados, este Supremo Tribunal
Federal:

“(...) É sempre importante reiterar – na linha do magistério


jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal consagrou na

11

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 34 de 40

ARE 1067392 / CE

matéria – que nenhuma acusação penal se presume provada.


Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe, ao
contrário, ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca,
para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do
acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito
positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo
político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de
pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o
acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de
20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes. ”
(HC 83.947/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Como dizem autores eminentes, a regra do “in dubio pro societate”,


na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se
mostra compatível com regimes de perfil autocrático que absurdamente
preconizam, como acima referido, o primado da ideia de que todos são
culpados até prova em contrário (!?!?), em absoluta desconformidade com a
presunção de inocência que, legitimada pela ideia democrática, tem
prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das
sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito
à dignidade da pessoa humana.

O eminente Professor RENATO BRASILEIRO DE LIMA, ao


comentar o art. 413 do Código de Processo Penal (“Código de Processo
Penal Comentado”, p. 1.154/1.155, item n. 5.1, 2ª ed., 2017, JusPODIVM),
examina uma das dimensões em que se projeta a presunção de inocência,
ministrando a seguinte e pertinente lição:

“5.1. Regra probatória: é muito comum na doutrina a


assertiva de que o princípio aplicável à decisão de pronúncia é
o ‘in dubio pro societate’, ou seja, na dúvida quanto à existência do
crime ou em relação à autoria ou participação, deve o juiz sumariante
pronunciar o acusado. A nosso juízo, tal entendimento interpreta o
art. 413 do CPP. Referido dispositivo dispõe que, para que o
acusado seja pronunciado, o juiz deve estar convencido da

12

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 35 de 40

ARE 1067392 / CE

materialidade do fato e da existência de ‘indícios suficientes de


autoria ou de participação’ (CPP, art. 413 ‘caput’). Ao fazer
remissão ao ‘convencimento da materialidade do fato’, depreende-se
que, em relação à materialidade do delito, deve haver prova
plena de sua ocorrência, ou seja, deve o juiz ter certeza de que
ocorreu um crime doloso contra a vida. Portanto, é
inadmissível a pronúncia do acusado quando o juiz tiver
dúvida em relação à existência material do crime, sendo
descabida a invocação do ‘in dubio pro societate’, na dúvida
quanto à existência do crime. Por sua vez, quando a lei impõe a
presença de ‘indícios suficientes de autoria ou de participação’,
de modo algum está dizendo que o juiz deve pronunciar o
acusado quando tiver dúvida acerca de sua concorrência para
prática delituosa. Na verdade, ao fazer uso da expressão ‘indícios’,
referiu-se o legislador à prova semiplena, ou seja, àquela prova de
valor mais tênue, de menor valor persuasivo. Dessa forma,
conquanto não se exija certeza quanto à autoria para a
pronúncia, tal qual se exige em relação à materialidade do
crime, é necessário um conjunto de provas que autorizem um
juízo de probabilidade de autoria ou um juízo de probabilidade
de participação. Destarte, a nosso ver, havendo dúvidas quanto à
existência do crime ou quanto à presença de ‘indícios
suficientes’, deve o juiz sumariante impronunciar o acusado,
aplicando ‘in dubio pro reo’.” (grifei)

Em uma palavra: se o juiz se convencer de que há prova


inquestionável em torno da materialidade do fato delituoso e de que
existem indícios suficientes de autoria ou de participação,
legitimar-se-á, então, nessa hipótese, a decisão de pronúncia, cujo efeito
processual imediato consistirá em submeter o réu pronunciado a
julgamento perante o Conselho de Sentença.

Se, no entanto, for insuficiente a prova penal produzida pelo


Ministério Público quanto à autoria e/ou à participação do acusado, impor-
-se-á a prolação de sentença de impronúncia, eis que, no modelo

13

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 36 de 40

ARE 1067392 / CE

constitucional do processo penal de perfil democrático, revelar-se-á


incompatível com o texto da Carta Política a utilização da fórmula
autoritária do “in dubio pro societate”.

Importante relembrar, quanto a esse aspecto, um importante acórdão


emanado da colenda Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do HC 81.646/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, de que
destaco da ementa consubstanciadora dessa decisão colegiada o seguinte
e expressivo tópico:

“(...) II. Pronúncia: inadmissibilidade: invocação


descabida do ‘in dubio pro societate’ na dúvida quanto à
existência do crime. (...)” (grifei)

Vale ter presente, no ponto, o correto magistério de GUSTAVO


HENRIQUE BADARÓ (“Processo Penal”, p. 664/665, item n. 13.5.4, 4ª
ed., 2016, RT), que, ao repelir a aplicação do critério do “in dubio pro
societate” na fase da decisão de pronúncia, assim se manifesta:

“Prevalece na doutrina o entendimento de que, se houver


dúvida ao término da primeira fase, o acusado deve ser
pronunciado, posto que a regra de julgamento seria ‘in dubio pro
societate’. Discorda-se de tal entendimento. No tocante à
materialidade, o art. 413, ‘caput’, do CPP estabelece um
critério de certeza: o juiz ‘se convencido’ da existência do crime.
Assim, se houver dúvida se existe ou não prova da ocorrência
do crime, o acusado deverá ser impronunciado. Quanto à
autoria, o requisito legal não exige certeza, mas sim a
probabilidade da autoria delitiva: deve haver ‘indícios
suficientes’ de autoria. É claro que o juiz não precisa ter certeza ou
‘se convencer’ da autoria. No entanto, se estiver em dúvida se
estão ou não presentes os ‘indícios suficientes de autoria’
deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o
requisito legal. Aplica-se, pois, na pronúncia, o ‘in dubio pro
reo’.” (grifei)

14

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. CELSO DE MELLO

Inteiro Teor do Acórdão - Página 37 de 40

ARE 1067392 / CE

Finalmente, diverso não é o magistério de FERNANDO DA COSTA


TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. 2/82,
14ª ed., 2012, Saraiva), que – refletindo o entendimento de ADRIANO
SÉRGIO NUNES BRETAS (“Estigma de Pilatos – Desconstrução do Mito
in dubio pro societate da Pronúncia no Rito do Júri e a sua Repercussão
Jurisprudencial”, 2008, Juruá Editora) – considera inconstitucional a
invocação do “in dubio pro societate” na hipótese de decisão de pronúncia:

“Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera


admissibilidade de acusação e que estando o Juiz em dúvida
aplicar-se-á o princípio do ‘in dubio pro societate’ é
desconhecer que, num País cuja Constituição adota o princípio
da presunção de inocência, torna-se heresia sem nome falar em
‘in dubio pro societate’.” (grifei)

Sendo assim, Senhor Presidente, peço vênia para, embora negando


provimento ao presente recurso, conceder, de ofício, em favor de José
Reginaldo da Silva Cordeiro e de Cleiton Cavalcante, ora agravantes,
ordem de “habeas corpus” para o efeito específico de restabelecer, em
plenitude, a sentença de impronúncia, acompanhando, por isso mesmo, o
primoroso voto proferido pelo eminente Relator.

É o meu voto.

15

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código F370-CE9B-B59C-9CC7 e senha EC17-C8ED-C7C9-D297
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

Inteiro Teor do Acórdão - Página 38 de 40

26/03/2019 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392 CEARÁ

VOTO

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI


(PRESIDENTE) - Eu também entendo que Vossa Excelência, Ministro
Celso de Mello, agora traz à colação uma distinção que me parece
extremamente relevante - a distinção entre a presunção de inocência, que
tem assento constitucional, e o princípio, que não é um princípio, na
verdade, é talvez um adágio forense, in dubio pro societate. Aliás, não há
nenhuma condição de essas duas expressões se ombrearem, porque uma
tem dignidade constitucional e a outra deriva da prática forense,
inclusive, como Vossa Excelência bem assentou, talvez derivada de um
dispositivo do código processual penal já expungido do nosso
ordenamento legal.
Debruçando-se sobre essa matéria, o professor Aury Lopes Júnior
estabelece exatamente o seguinte, quando se invoca a tal da soberania do
júri, que é, sim, algo que consta da nossa Constituição, dizendo que o in
dubio pro societate jamais pode mediante a invocação da soberania do Júri
ter assento para incriminar alguém à míngua de indícios suficientes.
Diz o professor Aury: Por maior que seja o esforço discursivo em
torno da soberania do Júri, tal princípio não consegue dar conta dessa
missão, ou seja, de trazer para dentro dos autos este adágio, essa
expressão, in dubio pro societate.
Diz então o jurista: Não há como aceitar tal expansão da soberania a
ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz
respeito a competência e limites ao poder de revisar as decisões do Júri,
nada tem a ver com a carga probatória.
De outro lado, também, há a lição de Paulo Rangel, para quem “se
há dúvida” - nessa linha que Vossa Excelência colocou e também o
Ministro Gilmar Mendes - “é porque o Ministério Público não logrou
êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da
autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 4BF7-B1E0-D037-4906 e senha 484E-DCEB-A029-B6E5
Supremo Tribunal Federal
Voto - MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

Inteiro Teor do Acórdão - Página 39 de 40

ARE 1067392 / CE

seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o


sistema que impera, lamentavelmente, é o a da íntima convicção”.
E de fato eu acredito que não há nenhuma necessidade, no caso, de
se revolver fatos e provas - o que aliás seria proibido diante do óbice da
Súmula 279 desta Casa. Basta nós nos valermos da sentença de
impronúncia que assenta que não se vislumbra indícios suficientes de
autoria do crime, ora perpretados em face dos recorrentes, na medida em
que testemunhas presenciais não os viram chutando ou arremessando
pedras nas vítimas, sendo que - diz a sentença de pronúncia - “o simples
fato dos denunciados José Reginaldo e Cleiton Cavalcante terem corrido
atrás da vítima não indica sua adesão à conduta do corréu Bruno”.
O TJ do Ceará deu preponderância, inequivocamente, a relatos
colhidos na fase inquisitorial de pessoas que não presenciaram o crime e
deu também muito peso ao testemunho de ouvi dizer, como salientou o
Ministro-Relator, insuficiente a gerar qualquer dúvida fundada sobre a
participação dos recorrentes no crime e submetê-los ao Júri popular.
Por essas razões também singelíssimas, mas incorporando, com a
devida vênia dos votos divergentes, os argumentos do Relator e, agora,
de nosso Decano eu também concedo de ofício a ordem de habeas corpus
para restabelecer a sentença de impronúncia.

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 4BF7-B1E0-D037-4906 e senha 484E-DCEB-A029-B6E5
Supremo Tribunal Federal
Extrato de Ata - 26/03/2019

Inteiro Teor do Acórdão - Página 40 de 40

SEGUNDA TURMA
EXTRATO DE ATA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392


PROCED. : CEARÁ
RELATOR : MIN. GILMAR MENDES
RECTE.(S) : JOSÉ REGINALDO DA SILVA CORDEIRO
RECTE.(S) : CLEITON CAVALCANTE
ADV.(A/S) : EDILSON MONTEIRO DE ALBUQUERQUE NETO (21589/CE)
RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ

Decisão: A Turma, por votação unânime, negou seguimento ao


recurso. Prosseguindo no julgamento, por maioria, concedeu, de
ofício, a ordem de habeas corpus, para restabelecer a sentença de
impronúncia em relação aos imputados José Reginaldo da Silva
Cordeiro e Cleiton Cavalcante, nada impedindo, nos termos do art.
414, parágrafo único, do CPP, que, enquanto não ocorrer a extinção
da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia com relação a
esses recorrentes, tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os
Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. Presidência do Ministro
Ricardo Lewandowski. 2ª Turma, 26.3.2019.

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Presentes


à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes,
Cármen Lúcia e Edson Fachin.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Juliano Baiocchi.

Marcelo Pimentel
Secretário

Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 5B1D-E85A-630A-A89B e senha 4FBF-2AB8-40FE-1816

Você também pode gostar