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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

Teoria do Conhecimento III


Professor Dr. Plínio Smith

Fundacionalismo x Coerentismo

Bianca Molinas Guida – 55.008


Filosofia – Vespertino

Guarulhos
2013
Desde Platão o conhecimento é caracterizado como crença justificada e a busca
por um verdadeiro conhecimento justificado nunca cessou. Diversas filosofias surgiram
com teorias do conhecimento, métodos que formulavam critérios para averiguar a
veracidade e justificação de uma crença. Nessa investigação, uma atitude cética não será
surpresa, tendo em vista as inúmeras incertezas e dúvidas quanto aos nossos sentidos e
nossa realidade. Entretanto, nunca será um obstáculo para a continuação da busca pelo
conhecimento.

O chamado Trilema de Agripa provaria a impossibilidade da justificação de algo


perante três pontos: a) regressão ao infinito (uma proposição sempre necessitará de
outra proposição para se justificar, ad infinitum); b) circularidade (justificação de
proposições em círculos: de a segue-se b; de b segue-se c; de c segue-se a; portanto, de
a seguiria-se a, o que significaria que nenhuma proposição foi realmente justificada); c)
hipótese (uma proposição é aleatoriamente escolhida como fundamento para algum
conhecimento, normalmente com base em ideias de auto-justificação da proposição).
Ainda assim, há quem enxergue diferentes modos para um possível
conhecimento justificado. Os da vertente coerentista alegam que a coerência cria a
justificação da crença. Veem nosso conhecimento ao mesmo tempo que, fraco para
servir de fundamento, não tão fraco a ponto de precisar de um. 1 Os principais pontos da
teoria coerentista são os seguintes: a) uma crença é justificada se, e somente se,
pertencer a um sistema de crenças suportado pela coerência; b) não há diferenciação de
tipo epistêmico entre as crenças, todas ocupam um lugar coerente dentro do sistema.
De outro lado, há os fundacionalistas, que defendem uma diferente forma de
adquirir um conhecimento justificado com as seguintes teses: a) existem algumas
crenças chamadas básicas, ou seja, auto-justificadas; b) as crenças básicas são
fundamento direto ou indireto para todas as outras crenças e, somente ocorrerá de uma
crença ser justificada se houver uma crença básica como origem.
Em outras palavras, enquanto o sistema coerentista é dependente de uma
coerência para manter suas crenças igualmente justificadas, no fundacionismo um
conhecimento a priori é necessário para as crenças seguintes, renunciar às crenças
básicas impossibilitaria a justificação de qualquer conhecimento.

1
STEUP, M. Foundation Knowledge. In: Contemporary Debates in Epistemology. Blackwell, 2005. p.
123.
Apesar de expor as teses gerais de cada vertente, existem várias versões de cada
uma. No campo da teoria coerentista da justificação há, por exemplo, o coerentismo
linear e holístico. O linear diz que uma crença a tem justificação em a¹,e a¹ em a², e a²
em an, assim sucessivamente, até que, enfim, obterá sua justificação em a¹. Ou seja,
esse modo cai no problema da circularidade e, portanto, não provaria nenhuma crença
de fato, pois, se a¹ não possui nenhuma garantia de ser verdadeira, assim como nenhuma
das outras crenças que se seguem, como poderão oferecer algum conhecimento?
Já o coerentismo holístico não é linear, e as crenças adquirem sua confiabilidade
de acordo com o papel que desempenham num complexo sistema total de crenças.
Nesse processo, uma crença pode receber suporte de muitas outras crenças, o que não
necessariamente cause um efeito de circularidade, dessa forma, a pode justificar b e,
dentro do sistema, b pode suportar a.
Passando para a vertente fundacionalista, entre as diversas variações, podemos
falar do fundacionismo forte, que define as crenças básicas como infalíveis em seu
conteúdo epistêmico, sendo crenças a priori ou imediatamente justificadas através da
percepção e experiência, únicas responsáveis por garantir todo o fundamento
cognoscitivo; o fundacionismo moderado: acredita na falibilidade das crenças básicas, e
a aceita, devido a sua alta probabilidade de ser verdadeira, ou seja, a inferência de
justificação não é mais necessariamente dedutiva; e o fundacionismo fraco, as crenças
básicas são necessárias, mas não suficientes, necessitando de uma coerência com as
outras crenças para atingir uma justificação adequada.
James van Cleve acredita na coerência como fonte de justificação, entretanto,
não exclui outros métodos. Como fundacionista moderado ainda defende a noção de
crenças básicas e de certos princípios indubitáveis 2 necessários para um fundamento
confiável do conhecimento. Em seu artigo, apresenta e compara duas fórmulas que
calculariam a probabilidade de uma testemunha estar falando a verdade. De acordo com
a fórmula de George Boole3, a verdade seria provável apenas se cada testemunha
possuísse certo grau de credibilidade. A segunda fórmula é de Michael Huemer e
mostraria ser provável a verdade mesmo se nenhuma das testemunhas fosse confiável.
Com a fórmula de Boole a coerência por si só não garante grau nenhum de justificação,
necessitando antes um antecedente – credibilidade –, ou seja, representando um
2
“Here I would like to protest that there are certain principles of logic, at least,that cannot be given up,
because they are framework principles without which coherence could scarcely be defined.” VAN
CLEVE, J. Why Coherence Is not Enough: A Defense of Moderate Foundationalism. In: Contemporary
Debates in Epistemology. Blackwell, 2005. p. 177
3
Ambas as fórmulas presentes no mesmo artigo, p. 172.
argumento fundacionalista, enquanto a fórmula de Huemer apoia que a coerência pode
gerar justificação por si mesma.
Apesar de Van Cleve enxergar a melhor plausibilidade da fórmula coerentista de
Huemer, não acha correto concluir essa vertente epistemológica justificada. Portanto,
para ele, a coerência das crenças e experiências apenas daria boas razões para se
acreditar nelas se antes houvesse um conhecimento fundamental.

A oposição entre essas duas filosofias garante a colocação de diversos problemas


em diversos debates. Catherine Elgin apresenta a teoria coerentista no conjunto de
artigos no livro Contemporary Debates in Epistemology, e mostra-se adepta de um
coerentismo holístico, mas concorda com a articulação entre justificação e coerência, ou
seja, outros tipos de justificação são necessários para complementação, mas apenas
possíveis após a coerência. “... coherence is the source of epistemic justification, not the
ground of truth.”4
Se um fundacionalista evocasse a percepção sensível como um problema no
coerentismo, já que recusaria a coêrencia na experiência imediata, Elgin responderia
que para uma experiência supostamente confiável, nossas percepções ainda devem
manter certa coerência com outros conjuntos de crenças, como, por exemplo, identificar
uma pessoa, as características da pessoa devem estar de acordo com o que se acredita
ser parte da descrição da pessoa. Ou seja, para ela, isso não seria a justificação imediata
de uma crença, mas uma crença justificada através do conjunto sistemático de crenças já
existente. Repare que esse conjunto de crenças cognitivas mantém uma relação
internalista com o sistema, ou seja, essa teoria exige que todos os fatores necessários
para a justificação epistemológica da crença sejam cognitivamente acessíveis ao sujeito
dessa crença. Elgin nega completamente o externalismo, o oposto ao internalismo, que
permite pelo menos alguns dos fatores cognitivos serem externos à perspectiva
cognitiva do sujeito da crença. Para ela, o conteúdo epistêmico da crença está no nosso
entendimento que temos dela.
Os fundacionalistas argumentam contra o sistema de crenças coerentista na
medida em que, para ele [coerentista], se alguém sustenta crenças inconsistentes,
mantendo, portanto, um conjunto incoerente, nenhuma de suas crenças terá justificação,
o que é praticamente impossível, já que quase sempre haverá algum tipo de erro dentro

4
Z. ELGIN, C. Can Beliefs Be Justified through Coherence Alone?: Non-foundationalist Epistemology:
Holism, Coherence, and Tenability. In: Contemporary Debates in Epistemology. Blackwell, 2005. p. 156
do sistema, mas o que não presumiria a total dissolução do sistema. Em outras palavras,
em um coerentismo mais forte, todas as crenças são relevantes para a justificação de
cada uma das crenças. Apesar de o fundacionismo ter seu conhecimento fundado em um
todo de crenças básicas e exigir que o conhecimento tenha origem nelas, não implica
necessariamente na desclassificação de todas as crenças perante a precariedade de
algumas outras.
Na gama de objeções aos coerentistas está a argumentação de que o sistema de
crenças poderia ser alterado para que qualquer crença em questão pudesse ser
coerentemente justificada e fazer parte do sistema. Se um sujeito S acredita em p devido
a p ter coerência com o sistema de crenças que S carrega, então ~p poderia ser
justificada a partir do momento em que estivesse em coerência com o sistema de S.
Logicamente, a objeção não coloca as crenças contraditórias justificadas ao mesmo
tempo, mas apenas objetiva apontar sobre o ajusto arbitrário do sistema. Mas tal objeção
torna-se fraca quando se vê possível dizer em um momento t1 para S que p e, em um
momento t2 que ~p. Ou, se uma crença p é justificada para S, nunca significará que não
poderá significar que ~p para S ou para qualquer outra pessoa.

A teoria fundacionista muitas vezes é atacada, principalmente àqueles do


fundacionismo forte, com argumentações desse tipo: crenças à primeira vista certas e
indubitáveis mostram-se equivocadas, como garantir a infalibilidade de todas as crenças
básicas? Fundacionalistas externalistas, por exemplo, responderiam que a justificação
depende única e exclusivamente da configuração atual do mundo, e assim determinaria
a provável verdade da crença. Mas mais elaborado: como uma crença básica pode
oferecer justificação sem ela precisar de uma; e o que garante o valor epistêmico da
crença básica.
A vertente do fundacionismo fraco não requer a infalibilidade de todas as
crenças básicas, isso não satisfaz muitos críticos perante o fato de não resolver o
problema do regresso epistêmico – ou seja, não há crenças verdadeiramente justificadas.
Já a do moderado apenas aceita crenças básicas como concretas desde que não haja
nada que comprove ou que ponha em dúvida o contrário naquele momento.
Em resumo, os defensores do fundacionismo, portanto, tem que rediscutir o
estatuto das crenças básicas no que se refere ao tipo de justificação que se requer para
elas e ao tipo de relação de justificação entre as crenças básicas e as crenças não-
básicas. O fundacionismo moderado requer que elas tenham alta probabilidade de ser
verdadeiras. O desafio é mostrar como isso é possível.
O coerentismo descarta a experiência imediata como justificação, pois para eles
apenas crenças justificam crenças. Então, como estados mentais poderiam não ser
justificações? Como uma dor de cabeça poderia não justificar a própria dor?
Não obstante, o fundacionismo moderado e o coerentismo, como vê Catherine
Elgin e James van Cleve, podem ter um bom desempenho juntos, já que a coerência
aumentaria significativamente a justificação das crenças em um sistema, mas não só,
são complementares entre si e entre outros.
BIBLIOGRAFIA

STEUP, Matthias & ERNEST, Sosa. Contemporary Debates in Epistemology.


Blakwell, 2005

SOARES, Luisa. O que é conhecimento? Questões de epistemologia. Lisboa,


2004 (Disponível em: http://www.academia.edu/1069584)

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