Você está na página 1de 4

19/10/23, 00:54 Internismo e externismo fundacionalistas

8 DE JANEIRO DE 2006 EPISTEMOLOGIA

Internismo e externismo fundacionalistas


O que são?

Luís Estevinha Rodrigues

A epistemologia é a disciplina filosófica que tenta fornecer respostas para questões


relacionadas com a natureza e possibilidade do conhecimento, prioritariamente as seguintes:
Qual a natureza das nossas crenças? Como podemos sustentar se são verdadeiras? O que
seria necessário e suficiente para justificá-las?

O teor desta última questão obriga-nos a procurar as razões que podem contribuir para
justificar as nossas crenças. Que tipo de razões são essas? Qual a sua origem? Que conteúdo
têm? Por exemplo, que razões tenho para justificar a minha crença de que está a chover?

Internismo e externismo
Estas questões geram ainda outras. Uma das mais salientes é a de saber se é necessário que
eu tenha acesso consciente às razões que permitem justificar as minhas crenças; ou se, pelo
contrário, essas razões podem ser exteriores ao escopo da minha consciência e ainda assim
servir para justificar aquilo em que acredito.

Suponhamos, para ajudar a esclarecer este aspecto, que acredito que está a chover. Tenho,
portanto, uma crença: está a chover. Acredito que está a chover porque fui à janela e vi que
chovia. As razões que contribuem para justificar a minha crença são-me neste caso
fornecidas pela minha experiência sensorial: vi que chovia. Portanto, tenho consciência das
razões que contribuem para justificar a minha crença. Ao contribuírem para justificá-la, essas
razões contribuem para que eu possa pensar que ela é verdadeira.

O internismo epistemológico é a teoria segundo a qual a crença de um agente só poderá estar


justificada se esse agente tiver uma perspectiva da primeira pessoa das razões que
contribuem para essa justificação, isto é, se tiver acesso consciente a essas razões. Claro que
as razões têm também que ser boas razões, quer dizer, razões suficientes, ou a crença não
estará de modo algum justificada, independentemente de haver ou não acesso consciente a
elas. Mas isso já é outro problema1.

Poderiam no entanto existir boas razões para justificar a minha crença e eu não ter
consciência delas. Se assim for, somos tentados a dizer que também nesse caso a minha
crença estaria justificada por essas razões, apesar de eu não ter consciência delas.

Um exemplo pode ajudar a perceber esta possibilidade. Suponhamos que estou numa
biblioteca sem janelas mas com um excelente isolamento acústico. Nessa situação, em que
não disponho de qualquer experiência sensorial que respeite aos factos que ocorrem fora da
biblioteca, acredito que está a chover porque vejo entrar na biblioteca um aluno bastante

https://criticanarede.com/epi_internismo.html 1/4
19/10/23, 00:54 Internismo e externismo fundacionalistas

molhado. Porém, embora esteja de facto a chover na rua, o que faz a minha crença ser
verdadeira2, o aluno não se molhou por ter estado à chuva, mas sim por ter sido praxado por
veteranos que despejaram sobre ele uns valentes baldes de água3. Portanto, a razão de que
tenho consciência e que uso para justificar a minha crença não serve para o fazer; pois o
aluno está molhado não por ter estado à chuva mas sim por ter sido praxado daquela maneira
que referimos. Apesar disso, existe uma razão que serviria para justificar a minha crença,
mas da qual não tenho consciência. Essa razão, que eu desconheço por completo, é que um
sistema de nuvens de baixa altitude, densamente carregadas de água, deslocou-se para a zona
onde está situada a biblioteca, fazendo chover abundantemente nessa zona no momento em
que tenho a crença. Será que nesta situação, em que não tenho consciência das razões
correctas para justificar a minha crença, ela está justificada?

O internista defende que a minha crença de que está a chover, apesar de verdadeira, não está
realmente justificada — pois as razões a que tenho acesso da perspectiva da primeira pessoa
para a justificar e a considerar verdadeira não são as razões indicadas para o fazer. Será esta
posição do internista correcta? O defensor do externismo afirma que não.

O externismo epistemológico é a teoria segundo a qual uma crença está justificada desde que
o processo ou as razões que contribuem para a sua justificação permitam afirmar,
principalmente por serem correctos ou fiáveis, que a crença é verdadeira, independentemente
do agente da crença ter ou não ter consciência do processo ou das razões que contribuíram
para essa justificação. Aceitando o posicionamento do externista, a crença que tive na
biblioteca estava de alguma forma justificada, apesar de eu não ter consciência das razões
que faziam com que estivesse justificada.

Porquê fundacionalistas?
A expressão “fundacionalista” deriva da palavra “fundação” e refere-se aos fundamentos ou
alicerces do conhecimento. O fundacionalista defende que há um conjunto de crenças básicas
que não necessitam de estar apoiadas em quaisquer outras crenças, daí terem o estatuto de
crenças fundacionais. Sobre este conjunto de crenças básicas apoia-se um outro conjunto de
crenças, não-básicas e não-fundacionais, que constituem o conhecimento. Mas por que
precisamos de crenças básicas? Eis a resposta tradicional:

Suponhamos que temos algumas crenças sobre estados de coisas no mundo. Para que essas
crenças possam ser consideradas conhecimento têm que estar justificadas e ser verdadeiras;
correcto? Então, como vimos acima, têm de existir boas razões, razões suficientes para
apoiar as justificações das nossas crenças. Só talvez dessa forma podemos aceitar que as
crenças que alimentamos são verdadeiras. Mas como podemos afirmar que essas razões são
suficientes? Podemos se, e só se, tivermos crenças justificadas e verdadeiras de que essas
razões são suficientes. Logo, precisamos de novas justificações e, consequentemente, de
novas razões para apoiar essas justificações. Mas, se assim é, então a sequência de crenças,
justificações e razões nunca mais acaba — pois para cada justificação são sempre necessárias
novas razões que precisamos de justificar.

Onde pára a regressão (ou retrocesso) nesta sequência aparentemente interminável que
acabei de referir? A tradição filosófica costuma expor as três possibilidades:

1. A sequência acaba numa crença básica para a qual não existe qualquer razão ou justificação
disponível; deixando em aberto a questão de se saber se essa crença e todas as que dela

https://criticanarede.com/epi_internismo.html 2/4
19/10/23, 00:54 Internismo e externismo fundacionalistas

dependem estão justificadas.


2. A sequência acaba numa crença básica que é justificada por uma qualquer crença pertencente à
própria sequência4.
3. A sequência acaba numa crença básica que não necessita de ulterior justificação (razões
condicionais ou inferenciais suplementares) por conseguir autojustificar-se e assim adquirir o
estatuto de crença fundacional5.

Os defensores do fundacionalismo descartam normalmente 1 e 2 pelo facto de serem


hipóteses que conduzem ao cepticismo. Com mais ou menos variações, 3 é a hipótese por
eles adoptada e explorada. A ideia é a de que existe um conjunto de crenças básicas que têm
a propriedade de se justificarem a si próprias (ou são justificadas por qualquer outra coisa
que nem são crenças nem razões, por exemplo, a autoevidência, a intuição, a percepção
directa — realismo perceptual — ou a memória), ganhando por isso a capacidade de
sustentarem o corpo de crenças que constitui o conhecimento.

Assim, o internismo fundacionalista é a teoria segundo a qual há crenças fundacionais que


servem para sustentar o corpo de crenças que constitui o conhecimento, e que os factores ou
razões (em sentido lato) que contribuem para a justificação dessas crenças (e de uma larga
maioria das não-fundacionais) têm de ser acedidas da perspectiva da primeira pessoa; isto é,
o agente dessas crenças tem de ter consciência dessas razões e desses factores (ou processos).
O externismo fundacionalista sugere quase a mesma coisa que o internismo fundacionalista.
A principal diferença entre estas duas teorias consiste nisto: no caso do externismo
fundacionalista, o agente não necessita de ter consciência das razões que podem contribuir
para a justificação das suas crenças.

Existem argumentos interessantes a favor e contra as duas teorias. Existe também quem
defenda que as posições são compatíveis ou se complementam. As duas teorias parecem
isoladamente insuficientes para sustentar uma concepção sólida do que é necessário para a
justificação epistémica. Deixo no entanto este problema para uma próxima ocasião.

Luís Estevinha Rodrigues

Notas
1. Há ainda outro problema que importa referir a respeito desta questão: o problema da diferença
entre ter acesso às razões que podem contribuir para a justificação da crença e o acesso às razões
pelas quais essas razões são eficazes no sentido de justificar a crença. Para desenvolver o tema,
consultar Alston, William P. (1998). “Internalism and Externalism in Epistemology”. In E. Craig
(org.), Routledge Encyclopedia of Philosophy. London: Routledge,
http://www.rep.routledge.com/article/P028.
2. Outra questão que se coloca neste ponto é saber se uma crença verdadeira pode contar como
conhecimento mesmo não estando justificada. Neste lote de crenças incluem-se principalmente
aquelas em que o agente “acerta na verdade” por acaso ou sorte, não possuindo contudo
qualquer justificação plausível para a sua crença. Não sendo também uma questão pacífica, há
no entanto uma forte intuição, além de argumentos plausíveis a apoiá-la, que apontam para a
impossibilidade de uma crença verdadeira poder contar como conhecimento sem estar
acompanhada de uma sólida justificação. Para desenvolver esta discussão, ver Bonjour, L. e
Sosa, E., Epistemic Justification, pp. 103-105.
3. Este exemplo não mostra uma crença falsa justificada. O problema não é esse, nem é isso que
está em jogo. O exemplo mostra uma crença verdadeira, cujas razões que poderiam contribuir
para a sua justificação não estão sob o alcance cognitivo do agente da crença. Poder-se-ia então

https://criticanarede.com/epi_internismo.html 3/4
19/10/23, 00:54 Internismo e externismo fundacionalistas

talvez objectar que, precisamente por causa disso, a crença não está realmente justificada. É uma
possibilidade admitida por alguns filósofos que defendem o internismo, mas muito controversa.
Embora referindo-a, não vou discuti-la aqui. Quem quiser desenvolver o assunto pode consultar
Dancy, J., Epistemologia Contemporânea, pp. 39-69, 161–172, ou Bonjour, L. e Sosa, E.,
Epistemic Justification, pp. 6-85.
4. Esta é a posição dos defensores da teoria coerentista da justificação. Eles defendem que as
crenças podem suportar-se e justificar-se mutuamente desde que sejam consistentes entre si e
contribuam para a coerência do sistema de crenças em que estão inseridas. Sendo assim,
afirmam que não há necessidade de crenças fundacionais para que haja conhecimento. Contudo,
esta teoria sofre de muitos problemas e são-lhe normalmente colocadas muitas objecções. Sobre
este assunto ver Dancy, J., op. cit., p. 161 ss.; Bonjour, L. e Sosa, E., op. cit. pp. 53 ss. (secção
“A Version of Internalist Foundationalism”).
5. Bonjour propõe uma alternativa interessante a estas três hipóteses em Epistemic Justification.
Não posso discuti-la aqui, mas é basicamente a seguinte: uma crença de 2.ª ordem, que diga
respeito ao conteúdo de uma crença empírica subordinada de 1.ª ordem, é justificada pela
consciência intrínseca (do agente da crença) no conteúdo da crença de 1.ª ordem. Assim, a
crença de 2.ª ordem adquire o estatuto de fundacional sem recorrer a mais nada que não seja a
consciência de um conteúdo proposicional e assertivo de uma crença de 1.ª ordem. A solução
tem um carácter internista e fundacionalista, mas parece-me claramente circular (como qualquer
solução internista). Cf. Bonjour, L., op. cit., p. 61 ss.

Copyright © 2023 criticanarede.com


ISSN 1749-8457

https://criticanarede.com/epi_internismo.html 4/4

Você também pode gostar