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Aula 02.02.

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 Um dos conceitos da psicologia que mais desperta curiosidade de leigos


certamente é o de personalidade. É bastante comum encontrar em
músicas, filmes, novelas e reportagens na mídia, referências ao conceito
de personalidade e à sua avaliação de maneira informal e ingênua
(realizada por um não especialista). Expressões como “Elis Regina tem
personalidade forte”, “Meu chefe não tem personalidade”, “Acredito que
a depressão da minha amiga está relacionada à sua personalidade
fraca”, “Meu amigo é extremamente agressivo, rude e egoísta” são
exemplos desses usos.
 Para os leigos, personalidade parece se referir a algo da constituição de
um indivíduo que pode evocar reações positivas e negativas nos outros
e que, geralmente, está relacionada a uma dicotomia (forte/fraca,
boa/ruim, ter/não ter personalidade). O interesse dos leigos pela
personalidade parece estar associado à observação de que as
diferenças entre as pessoas são importantes para entender como elas
irão se comportar e responder a um sem-número de situações e
contextos.
 Portanto, avaliar a personalidade de alguém se torna fundamental na
concepção do leigo para predizer respostas específicas e interagir com o
outro adequadamente. Para os profissionais e pesquisadores no campo
das ciências psicológicas, a compreensão e a avaliação da
personalidade são habilidades que têm, também, importância ímpar.
 Um dos principais pontos deste artigo concentra-se em apresentar ao
profissional psicólogo as possibilidades que a avaliação da
personalidade, baseada em evidências científicas, poderá trazer para a
sua atuação no contexto da clínica e da saúde.
É importante destacar que a seleção dos instrumentos e das problemáticas específicas para
serem abordadas neste artigo são um recorte feito pelos autores, que não representa a
totalidade das aplicações e da instrumentação disponível na área. Não se pretende, portanto,
esgotar o assunto, mas aguçar o interesse para essa temática e apontar direções ao clínico, que
possam ser úteis em sua prática.

 OBJETIVOS
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de
 
 conceituar a avaliação da personalidade e compreender os seus contextos de aplicação;
 explicar os tipos de procedimentos e instrumentos utilizados na avaliação da
personalidade, cientificamente embasados, e diferenciá-los;
 reconhecer as possibilidades e as limitações da avaliação da personalidade na clínica
infantil, bem como os desafios de utilizar instrumentos para essa faixa etária;
 reconhecer as possibilidades e as limitações da avaliação da personalidade, bem como
seu valor preditivo para contextos de saúde física e mental, que são, na atualidade, tidos
como desafios;
 descrever como a personalidade se associa ao planejamento, à adesão e à resistência
ao tratamento psicoterápico.
 
 ESQUEMA CONCEITUAL

 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
A avaliação da personalidade, como estudada e praticada atualmente, é fruto
de uma longa história que parte do reconhecimento de que as pessoas se
diferem na forma como pensam, sentem e se comportam, e esse
reconhecimento das diferenças individuais em personalidade é quase tão
antigo quanto a civilização.1
A partir da constituição da psicologia como ciência, no final do século XIX e
início do século XX, os métodos de avaliação da personalidade começaram a
mudar gradualmente para observações empiricamente embasadas,
demonstrando uma preocupação maior com a efetividade de alguns métodos
em relação a outros. Pode-se citar a publicação do primeiro instrumento de
autorrelato (sujeito avaliando a si mesmo) para avaliação da personalidade, em
1919, por Robert Woodworth, representando uma mudança importante nos
métodos de se avaliar a personalidade ao introduzir as avaliações via
autorrelato na prática profissional e no contexto de pesquisa, com impacto na
forma como se avalia a personalidade nos dias atuais. 2
Contudo, foi somente na década de 1920 que a avaliação da personalidade
ganhou o ímpeto necessário para se constituir como um campo de atuação e
pesquisa no contexto da psicologia. Grande parte desse ímpeto foi decorrente
do surgimento de teorias da personalidade, como a psicanálise de Sigmund
Freud, a teoria das necessidades básicas de Abraham Maslow e a teoria
dos traços de Gordon Allport,1 entre outros exemplos.
Ademais, a necessidade de expansão dos serviços de saúde mental para
atendimento aos militares combatentes na Segunda Guerra Mundial e aos
veteranos do pós-guerra tornou favorável o contexto para o desenvolvimento
de medidas e da implantação de serviços que incluíssem a avaliação da
personalidade como parte dos procedimentos de atendimento. Nesse período
(de 1920 a 1940), foram desenvolvidos os principais instrumentos de avaliação
da personalidade, tanto os tradicionalmente conhecidos como projetivos quanto
os conhecidos como objetivos.3
Entre os anos 1950 e 1970, houve uma expansão da psicologia clínica mais
voltada para o desenvolvimento da psicoterapia e de várias modalidades de
intervenção psicoterápica, o que suplantou o investimento em instrumentos
de medida.3
A partir das décadas seguintes até os dias atuais, retomou-se o interesse pela
avaliação da personalidade em decorrência das contribuições e dos avanços
oferecidos pelas abordagens de traço ao estudo da personalidade, em
especial, do modelo dos cinco grandes fatores (CGF), e da maior atenção
dada ao estabelecimento de critérios para a construção de instrumentos
confiáveis e válidos e da diversificação dos contextos de aplicação desses e de
outros métodos de avaliação.4

A avaliação da personalidade pode ser entendida como um conjunto de procedimentos


empregados pelo profissional psicólogo com o intuito de identificar semelhanças e diferenças
entre as pessoas em suas características. 5
Na psicologia, há diferentes maneiras de se conceituar a personalidade,
trazendo como consequência diferentes formas de se entender os
componentes da personalidade e a melhor maneira de acesso a eles. Neste
artigo, entende-se personalidade como um sistema no qual as tendências
inatas (traços) são moldadas pelo ambiente social (família, cultura) para a
construção daquilo que torna o sujeito único. 4
Com base na definição admitida neste artigo, é possível trabalhar com o
pressuposto de que a personalidade humana é composta por aspectos mais
básicos, mais estáveis e mais consistentes e que sofrem grande influência de
fatores biológicos, os chamados traços de personalidade, conforme
esquematizado no Quadro 1.
Quadro 1
TRAÇOS UNIVERSALMENTE ACEITOS PARA DESCREVER A PERSONALIDADE HUMANA

Traço Características
Neuroticismo Refere-se à reatividade emocional do indivíduo, às tendências para
(instabilidade emocional) a preocupação e o humor negativo.
Extroversão Pode estar associada à exploração da abordagem ativa do
ambiente, inclusive o social, envolvendo energia, dominância,
gregarismo e emoções positivas.
Amabilidade Refere-se à qualidade da orientação interpessoal e envolve
altruísmo, empatia, cordialidade e sinceridade.
Abertura a experiências Descreve a profundidade, a complexidade e a qualidade da vida
mental e experiencial do indivíduo.
Conscienciosidade Relaciona-se ao direcionamento às metas, à autodisciplina, à
organização e à eficiência.
Fonte: Adaptado de Mansur-Alves e Saldanha-Silva (2017).6
Os traços de personalidade são relativamente independentes entre si (ou seja, ao descrever um,
não se está descrevendo o outro) e são dimensões, o que significa que as pessoas variam em
graus ou em quantidades que possuem de cada um dos cinco traços básicos. 4,6
Além dos traços, a teoria dos cinco fatores de personalidade advoga que a
personalidade é composta também por outros aspectos, diretamente
relacionados aos traços básicos, mas mais susceptíveis à influência do
ambiente, sendo inclusive reflexo da interação entre as tendências básicas das
pessoas e o ambiente que as rodeia. Os aspectos são conhecidos de maneira
mais genérica como adaptações características, referindo-se4,6
 
 ao autoconceito;
 aos esquemas pessoais;
 às crenças individuais;
 aos valores pessoais;
 às atitudes individuais.

Avaliar a personalidade, diferentemente de testar a personalidade, implica em conduzir um


processo compreensivo que engloba a consideração de seus diferentes componentes, partindo
de variadas fontes de informação (observação, entrevistas, testes situacionais, medidas de
autorrelato e informação baseada no relato de terceiros) e apresentando como resultado um
conjunto de recomendações e conclusões acerca da pessoa avaliada. 5

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