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Resumo
Como se pode definir essa RPM? Pires vai dizer que se trata de um sistema
de pensamento: este compreenderia "todos os discursos filosófico-científicos
(savants) que foram selecionados, estabilizados e generalizados pelo sistema social
em questão" (PIRES, 2004b: 183). Ou seja, um sistema de pensamento é um
conjunto de discursos filosófico-científicos (savants) apropriados por um sistema
social, que funciona, para este, como fonte de cognição em relação ao que ele é
(sua identidade) e quais são suas atribuições. O sistema de pensamento funciona
como um par de lentes, por assim dizer, por meio do qual o sistema social observa o
mundo (incluindo ele próprio), compreende-o e formula suas comunicações. Esse
sistema de pensamento, como já dissemos, é composto de CRIME E SOCIEDADE
discursos filosófico-científicos (savants) que, ainda que não coerentes uns com os
outros, formam no seu conjunto uma unidade.
O sistema de pensamento não é todavia a soma das teorias que o compõem.
Ele está mais para uma "resultante de forças": um conjunto de ideias que não são
sempre convergentes e que não se propõem necessariamente a formar um todo
harmônico, mas que é capaz de no conjunto emanar diretrizes para guiar a ação.
Tentando ver a questão por um outro ângulo, podemos dizer que o sistema
de pensamento é ao mesmo tempo mais e menos que as teorias que o compõem.
Aproveitando os comentários de Morin (1977), diríamos que o sistema é menos que
uma teoria porque ele não tem a coerência lógica das teorias que o compõem. A
racionalidade penal moderna não é capaz de dar uma razão universal e coerente
para se punir, como, por exemplo, as teorias da retribuição e da dissuasão. A razão
punitiva da RPM é o resultado da aglomeração das teorias da pena, que dessa
forma resulta em algo que é menos lógico e menos articulado que suas teorias
consideradas de forma isolada.
Por outro lado, podemos também dizer que a RPM é mais do que as teorias
que a constituem. Morin (1977: 106) dirá dessa forma que "o sistema possui alguma
coisa a mais que seus componentes considerados de forma isolada ou justaposta:
sua organização; a própria unidade global (o 'todo'); as qualidades e propriedades
novas que emergem da organização e da unidade global". O conjunto do sistema de
ideias apresenta "qualidades emergentes" (Morin): uma novidade, uma importância
aumentada, uma força de orientação das decisões (pensando aqui na RPM) que as
teorias isoladas não têm. Podemos ver essas qualidades emergentes em várias
decisões dos tribunais (incluindo alguns de nossos dados empíricos neste trabalho):
alguns operadores do direito têm dificuldade em justificar uma punição
simplesmente com a retribuição ou com a reabilitação, o que faz com que eles
acabem por misturar várias teorias em suas justificações (em que pese as
incompatibilidades entre elas) com o objetivo de apoiar de forma mais efetiva uma
obrigação de causar um sofrimento.
De qualquer forma, deve-se precisar que esta teoria do sistema de
pensamento é aqui uma construção analítica: somos nós, enquanto observadores
externos de certas teorias e ideias, que construímos uma categoria sistêmica a
partir de certos elementos da realidade. Nós vemos uma certa coerência e
pertinência nesse procedimento (que tentaremos justificar ao longo deste trabalho),
pois consideramos que é possível ver, nesse "todo heterogêneo", uma
homogeneidade de conjunto que orienta de forma suficientemente coerente a tarefa
de determinação da pena no sistema de direito criminal.
Era preciso trabalhar com a "névoa", nos traços gerais das transformações,
nos períodos mais longos, para poder ver essas mudanças macro. Acrescenta
ainda, defendendo-se da crítica do "não realismo", da "não concretude" de suas
observações, que:
"Um tipo de racionalidade, uma maneira de pensar, um programa, uma
técnica, um conjunto de esforços racionais e coordenados, objetivos definidos e
perseguidos, instrumentos para alcançá-los etc., tudo isso é real, ainda que isso não
pretende ser a própria 'realidade' (...)" (FOUCAULT, 1980: 34-35). Retornando ao
nosso caso, é preciso dizer que para falar de RPM devemos olhar para a névoa.
Mas, se a névoa pode ser às vezes mais vaga e imprecisa que a poeira, ele nem
por isso é menos real. E acreditamos que essa névoa vai tomar contornos bem
palpáveis quando veremos, logo mais adiante (seção 3), como ela vincula o
raciocínio e a prática dos atores jurídicos quando necessitam justificar uma punição
criminal.
Em resumo, quando falamos de RPM estamos nos referindo a um sistema
bem real que foi selecionado como sistema de pensamento dominante do sistema
de direito criminal. Trata-se desse todo harmonioso do ponto de vista da totalidade,
mas bastante heterogêneo do ponto de vista de suas unidades, que engloba as
teorias da pena e que é dificilmente prescindível quando se trata de justificar uma
pena criminal. A RPM: a) determina o que é e o que não é uma pena, b) determina
para que ela deve servir e qual forma ela deve (ou não deve) tomar para ser
efetivamente uma pena, c) serve de fundamento para o direito de punir e d) serve
para construir um discurso identitário para o sistema de direito criminal. Trata-se do
sistema de pensamento que determina o status, o papel e as possibilidades da
punição no contexto do sistema de direito criminal.
a) o direito de punir
c) a proteção da sociedade
Uma outra ideia presente nas teorias da pena e que parece bastante
enraizada na punição moderna é a concepção que elas têm da proteção da
sociedade pelo penal. Essa concepção implica antes de tudo um raciocínio segundo
o qual deve-se conceber um bem futuro para justificar um mal atual (PIRES, 2004b:
43-44): a imposição do mal concreto, tangível e imediato é justificável pois ela
acarretará um bem futuro e imaterial.
Diferentemente do que acontece em outros ramos do direito, o penal, para
proteger a sociedade, deve convocar a resposta mais contundente. O direito penal,
na concepção da RPM, é o último guardião, a última instância de defesa da
sociedade, e por essa razão ele tem as respostas mais duras. Mas essa concepção
do direito penal, o argumento bastante conhecido da ultima ratio, parece implicar
duas coisas diferentes. A primeira (e aqui se trata de um discurso bastante difuso,
mas que parece carecer de força na prática), é que o penal só pode ser chamado
como último recurso, quando as soluções de outros ramos do direito não são
suficientes, quando a sociedade não pode prescindir do direito penal para resolver
um problema. A segunda, que nos parece bem mais forte teoricamente, é que a
punição do penal, por ser o último instrumento de defesa da sociedade, deve bater
mais forte. Ainda que as duas ideias pareçam fazer parte do discurso do direito
penal atualmente, o segundo nos parece bem mais importante quando pensamos
na forma de proteção da sociedade concebida pelas teorias da pena.
A ideia de proteção da sociedade comporta também uma visão hostil do
infrator (PIRES, 2004b). Este é concebido como o inimigo do grupo, como elemento
a ser excluído. Ele ofendeu um bem caro à socie dade, e o valor desse bem
ofendido deve então se traduzir na quantidade de sofrimento imposta.
Devemos acrescentar, além disso, que a proteção da sociedade concebida
pelas teorias da pena, com sua visão hostil do infrator e sua concepção punitiva da
ultima ratio, contribui com a noção do direito de punir da RPM na sua tarefa de
exclusão de possibilidades alternativas de resolução de conflito. Como para
proteger a sociedade é necessária uma pena certa e aflitiva, encontramos aqui mais
um obstáculo cognitivo para se pensar em alternativas à pena que permitam a
recomposição do vínculo social rompido com o crime. E, por fim, devemos ressaltar
que a concepção da proteção da sociedade na RPM comporta um lado atomista
(PIRES, 2004b): a preocupação das teorias da pena se limita ao indivíduo
transgressor. As consequências para pessoas próximas ao infrator, todos os
problemas decorrentes para terceiros de uma pena etc., não são e não devem ser,
segundo essa concepção, uma preocupação ou um obstáculo para a imposição de
uma pena.
Até este ponto falamos bastante em teorias da pena, explicamos como elas
se combinam numa racionalidade comum que sustenta o edifício da punição
moderna e mencionamos as ideias/meio que elas selecionaram para colocar em
prática sua concepção de punição. Mas ainda não definimos o que são essas
teorias da pena.
Para realizar essa tarefa, vamos dar uma olhada no que Durkheim expõe a
propósito do seu conceito de teorias práticas quando ele se refere ao sistema
pedagógico: "O objetivo delas [das teorias práticas] não é de descrever ou de
explicar o que é ou o que foi, mas de determinar o que deve ser. Elas não são
orientadas nem para o presente, nem para o passado, mas para o futuro. Elas não
se propõem a expressar fielmente as realidades dadas, mas a editar preceitos de
conduta. Elas não nos dizem: 'eis o que existe e o seu porque', mas 'eis o que é
preciso fazer" (DURKHEIM, 1922 [1966]: 67).
Essa definição das teorias práticas é bastante conveniente para explicar as
teorias modernas da pena criminal. Trata-se de teorias que não pretendem explicar
a realidade, mas dizer o que se deve fazer, o que a prática deve ser.
Quando falamos aqui de teorias da pena que constituem a RPM, pensamos
em quatro teorias que parecem constituir o eixo principal para a tomada de decisão
em matéria de punição criminal: a teoria da dissuasão, a teoria da retribuição, a
teoria da denunciação e a teoria da reabilitação."
Resumindo-a de forma bastante breve, podemos dizer que a teoria da
dissuasão defende uma pena que comunique um mal para desencorajar potenciais
criminosos de transgredir a lei ou, se for o caso, para impedir a recidiva daquele que
já transgrediu a norma. A pena deve ser certa e intimidante para que ela possa
cumprir essa função de dissuasão. Além disso, Beccaria, um dos pais da teoria da
dissuasão, vai nos dizer que a pena deve comportar sempre um excedente de
sofrimento em relação ao crime para que ela seja verdadeiramente eficaz.
A teoria da retribuição visa a fazer um mal ao condenado a fim de se fazer
justiça. Só se faz justiça se o transgressor da lei recebe uma resposta do Estado
que seja equivalente ao mal que ele causou. A pena deve sempre existir e deve
sempre ser portadora desse mal/sofrimento, pois somente este tem a possibilidade
de apagar o mal do crime.
A teoria da reabilitação propõe que o indivíduo deva ser punido, que ele sofra
uma consequência negativa pelo ato criminoso, para a seguir passar por uma
intervenção "terapêutica ou educacional" (PIRES, 2008b) com o intuito de ceifar-lhe
o desejo de cometer outros crimes. A teoria da reabilitação pede que o indivíduo
seja "colocado à disposição em um local segregado" e durante um certo tempo para
que ele possa ser punido/tratado.
A teoria da denunciação, por sua vez, defende a ideia de que a pena criminal
deve infligir sofrimento para reafirmar a norma penal. A punição se faz necessária
para mostrar que o comportamento é inaceitável para a sociedade, para orientar o
público sobre o que não é tolerável e para confortá-lo ao mesmo tempo com uma
"resposta" ao ato que coloca problema. Poderíamos também dizer que a teoria da
denunciação "pede à autoridade que expresse a indignação ou a busca [coletiva] da
culpa, pela imposição de uma pena, (...) pois se trata de uma maneira de expressar
energicamente a desaprovação ao crime" (LACHAMBRE, 2008: 4).
Grosso modo, podemos dizer que as teorias da pena são "ensinamentos"
sobre a função de uma pena, sobre o sentido que uma pena deve tomar, que se
destinam a certos atores sociais (especialmente os juízes e os políticos) (PIRES,
2008a: 18).
3. As teorias da pena
N. 1
"É função punitiva apenas, sancionatória. É apenas pagar o mal pelo mal. Para mim,
eu não tenho ilusão com relação a isso" (juiz 3).
Afirmando que ele não tem ilusão, ele se refere aqui a uma “função positiva"
(no sentido de um bem futuro, como propõem os utilitaristas) da pena, ou que a
pena possa "servir" ao que quer que seja. Para ele, trata-se simplesmente de
causar um mal em razão de um mal que foi cometido. Certo da inutilidade das
outras funções da pena, punir se transforma em uma simples questão de não deixar
o mal que foi feito sem resposta: punir é apenas infligir um sofrimento retributivo
para se fazer justiça. Ele não é o único com essa visão kantiana da pena:
N. 2
"Só existe pena se ela for de um caráter negativo de retribuição. Sem ser
negativa ela não é pena. Eu acho que ela tem um caráter retributivo - uma função
retributiva - e uma finalidade preventiva. Então é algo que ela busca, ela nem
precisa atingir isso, mas é um dever ser, ela procura atingir uma finalidade
preventiva que não necessariamente precisa ser atingida. (...)
Função é um alvo em si mesmo; ela [a pena] existe por isso. Então a função
da mesa é ficar numa certa altura e receber coisas em cima, prato, livro pra estudo,
seja o que for. Essa é a própria função, ela é em si mesmo. [Mas] ela pode ter várias
finalidades, além disso. Então a função da pena é retribuir um mal: se ela não for
mal ela não é pena, se ela não estiver retribuindo para a pessoa que praticou o mal,
não é pena. Então isso é a função porque é da própria essência dela. A finalidade é
algo que ela vai buscar atingir, é algo que é externo a ela. (...) Se ela for retributiva
ela é pena, se ela não tiver a finalidade de prevenção, ela continua sendo pena (...)"
(juiz 2).
Esse juiz faz uma interessante distinção entre dois níveis da pena. Um nível
fundamental, intrínseco, e um nível externo. A pena é intrinsecamente um mal; ela
deve fazer mal ao infrator para ser de fato uma pena. Ela pode, no entanto, buscar
outras finalidades, mas o fato que ela não as atinge é, na pior das hipóteses,
lamentável. Mas isso não tira sua legitimidade, seu status e sua função de mal em
si.
Podemos de certa forma afirmar que nessa passagem encontramos a
concepção de pena mais "ontologizada" possível: a pena é assim; não se trata de
uma contingência, de uma possibilidade entre outras ou de uma criação teórica
constantemente atualizada. A RPM parece encontrar um ponto de apoio bastante
importante numa tal concepção: aqui não se pode nem mesmo cogitar em pensar a
pena de forma diferente. Sim, está-se aberto a diversas "finalidades" exógenas,
talvez mesmo algumas que escapem do contexto da RPM. Mas, não nos
enganemos, a pena é uma mal e como tal ela deve fazer sofrer.
Mas a retribuição não é a única teoria da pena atualizada no discurso de nossos
entrevistados. Podemos ver também que outras teorias da pena se fazem
presentes.
Para a teoria da reabilitação (ao menos na sua versão de final do século
XVIII, contemporânea ao nascimento da prisão, e desenvolvida pela escola positiva
italiana), uma pena é um projeto de "reforma" do indivíduo e deve durar o tempo
necessário para que isso se produza. Mas essas incompatibilidades entre uma
pena de reabilitação e uma pena de dissuasão não estão presentes nas reflexões
de nossos entrevistados.
"Superam-se" essas incompatibilidades de face, pois as duas teorias atualizadas
servem para um objetivo final de justificar uma punição “que é necessária". Em
resumo, nossas razões (teorias) acabam por ser num certo sentido menos
importantes: seus enunciados específicos terminam por ser menos pertinentes,
salvo aqueles que pedem uma pena. Elas são, levando o argumento ao extremo,
"intercambiáveis", pois elas todas reafirmam essa necessidade de uma pena se
combinando nessa racionalidade penal que ultrapassa as incompatibilidades
aparentes.