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Introdução
As questões ligadas aos processos sociohistóricos e lingüísticos que mo
delaram o português brasileiro nos levam a refletir sobre o contato dos mi
lhões de africanos que aqui conviveram com a população nativa indígena e
com o elemento colonizador português. Um dos primeiros fatores a se levar
em consideração ao analisar a ecologia lingüística caracterizadora do Brasil
colonial é, sem dúvida, o multilingüismo. Sabe-se que aqui abundavam lín
guas nativas, apesar de ser mais comum ouvirmos falar de línguas tupis e de
uma eventual coiné, a língua geral. Ademais, sabemos que o português qui-
nhentista para cá trazido não era uniforme e padronizado. Se hoje Portugal,
apesar da pequena extensão territorial, apresenta uma variedade de dialetos
distintos, maior ainda eram essas variações no seu período pós-arcaico - foi esse
JMATERíAL BXcTusTvdl o momento de formação de uma língua padrão portuguesa; quando a litera
jRAS;^ DE PROFESSORES| tura escrita nessa língua começava a se firmar e quando os primeiros compên
lOAíA: rSO , dios gramaticais foram escritos. Adicionem-se às línguas indígenas e diale-
Ribeiro de Mello, Helíana. Portuguêspadrão, português nâo-padrão... Para ahistória do português brasileiro. Novos estudos, p. 341-58, 2002.
tos portugueses europeus uma enorme gama de línguas africanas e tem-se estratégias de uso do pronome lembrete, dentre outras.2 Já o PP caracteriza-se
um panorama da situação lingüística do Brasil no início do seu período por ser uma modalidade predominantemente utilizada nos contextos de
colonial. Agrande questão a se nos colocar é: como, a partir de um contex interação formal, por exemplo, em meios acadêmicos, por uma parcela da
to lingüístico tão complexo, desenvolveu-se osupra-dialeto da língua por população que indubitavelmente teve acesso à educação formal e que está fa
tuguesa que hoje chamamos de português brasileiro?1 miliarizada com o texto escrito. Não há, em verdade, um corte abrupto entre
PNP e PP; o que se notam são gradações de marcas lingüísticas, o que atribui
Neste trabalho, será desenvolvida uma hipótese para o desenvolvi
uma característica de um qunsi-continuiun entre uma variedade dialetal e ou
mento do português brasileiro, levando-se em conta a interação de fatores
tra. Salienta-se, então, que existem variedades intermediárias entre o se pode
sócio-históricos e suas implicações no âmbito da mudança lingüística. O ria denominar de amostras prototípicas de PNP e PP.
guia dessa análise é a crença de que "a história de uma língua é uma função
da história de seus falantes, e não um fenômeno independente que pode
ser estudado em detalhes sem menção ao contexto social em que está inse Adiscussão ora proposta concerne sobretudo aformação do PNP por
rido (Thomason and Kaufman, 19SS:4) que, a partir dele, traços gramaticais foram espraiados para o PP, como de fato
écostumeiro na transmissão de marcas vernáculas para variedades lingüísti-
cas-padrão.
Arcabouço teórico
Seguindo aliteratura que trata de mudança econtato lingüísticos, dois
quadros se colocam no estudo da formação do PNP, quais sejam:
Antes de ser iniciada a análise que ora se propõe, explicitar-se-á o que (1) mudanças lingüísticas intra-sistêmica e deriva (fatores internos);
se entende por português brasileiro padtão (PP) e português brasileiro não-
(2) inovações induzidas pelo contato lingüístico (fatores intersistêmicos).
padtão (PNP). O PNP compreende aqueles dialetos falados pela massa po
pulacional que pouco ou nenhum acesso teve à educação escolar. Esse dialeto
pode também ser utilizado por pessoas que apesar de dominarem variedades Thomason e Kaufman (1988:9), referindo-se a processos de mudança
dialetais padrão, se expressam em PNP em contextos relaxados, íntimos, fa lingüística, indicam que:
miliares etc. No PNP observam-se características como: redução do paradigma
de concordância verbal, marcação de concordância de número no primeiro Os fatores mais importantes nos processos de mudança lingüística são aderiva, i.c.,
elemento do SN, predominância de construções analíticas (por exemplo, a tendências internas de uma dada língua para mudar em certas direções, em conse
quasi-passiva em lugar de passivas sintéticas), relativas cortadoras e com qüência de desequilíbrios estruturais, c interferências dialetais [...] cestrangeiras.
[Tradução minha, HRM]
1Entenda-se aqui português brasileiro como unia supra-categoria que abarca uma variedade Conferir Mello (1997) para uma descrição aprofundada dos traços gramaticais que caracteri
zam o PNP.
dialetal extensa, incluindo aí dialetos regionais c sociais.
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RlBEIRO DE MELLO, Heliana. Portuguêspadrão, português não-padrão... Para a história do português brasileiro. Novos estudos, p. 341-58, 2002.
Aprimeira hipótese contempla tendências internas presentes em diale güística. Portanto, normalmente o que se faz é descartarem-se os idioletos,
tos portugueses, incluindo-se aí variedades arcaicas, além de inovações, sim quando encontrados, e enfocar-se umaamostragem que seconsidere represen
plificações emudanças que ocorrem espontaneamente em todas as línguas ao tativa da comunidade lingüística em estudo. Mas não se pode esquecer que a
longo do processo de sua transmissão pelos seus falantes. Asegunda hipótese deriva é conseqüência justamente da escolha, por parte da comunidade lin
SRj
diz respeito aos possíveis efeitos acarretados por situações de contato lingüísti güística, de formas que terão preponderância sobre outrasdentro de umaeco
Kg
co, ouseja, empréstimos, transmissão incompleta ecrioulizaçáo. Os dois qua m logia de variabilidade lingüística.
dros teóricos não são mutuamente excludentes, uma vezque mesmo em situ
Sabe-se que havia uma variedade considerável de dialetos regionais em
ações radicais, como as deformação de línguas crioulas, observa-se a interação
Portugal, quando dacolonização do Brasil. Entretanto, os estudos comparati
de fatores intra e intersistêmicos, que resultam na formação de um novo siste
vos feitos entreo PNP e o PA (português arcaico) têm que, necessariamente,
ma lingüístico, com certas características que não são encontradas nem em seu
ser baseados em dados escritos do último - e aí, de fato, não sabemos o quanto
superstrato nem em seu substrato. Os tipos de hibridização lingüística que
estaremos perdendo em termos das variabilidades idoletais e regionais. Entre
resultam de situações de contato raramente podem ser caracterizados por um
tanto, como parâmetros genéricos, tem-se sugerido que muitos dos traços
sistema binário. Uma abordagem mais flexível, que permita falar sobre fenô
. diferenciadores do PNP são de fato resultado de tendências evolutivas não
menos radiais e gradativos, tende a prover respostas mais plausíveis para as
j apenas do PA, mas de línguas cronologicamente antengjes.a_esser'eorrro~o-
questões propostas neste trabalho. W- \Ja^irrwI^entre esses traços, Naro e Scherre (1993) estudam a deleção do —s de
final de palavra, que além de ter conseqüências puramente fonológicas no
PNP, afetam processos sintáticos como concordância de número no SN. Já
Tendências evolutivas internas do português arcaico Guy (1981: 134) afirma que não há indícios de que esse processo estivesse em
andamento no PA.
A deriva é de todos os processo de mudança lingüística o mais bem es
tudado. Apesar disso, muitas dúvidas quanto aos mecanismos que levam àsua (; No âmbito de seus inventários fonéticos, o PNP e o PA parecem diferir
aplicação permanecem. Como visto acima, Thomason e Kaufman (1988: 9) i; quanto ao número de consoantes e na qualidade de algumas vogais.3 Um dos
afirmam ser a deriva um processo de correção de desequilíbrios estruturais >fenômenos fonológicos mais interessantes do PNP, quando comparado ao que
o- v
numa dada língua. Entretanto, aque exatamente aqueles autores se referem ao M
; se conhece do PA, é encontrado na simplificação daestrutura silábica, especi tf
fazer essa asserção não fica claro. Tampouco esclarecem oque seria uma língua almente no que diz respeito à quebra degrupos consonantais pela inserção de
estruturalmente balanceada. O que se sabe é que a deriva é implementada ao | vogais e apagaríiento deconsoantes. Entretanto, um dosprocessos fonológicos
longo do tempo, em uma dada língua, por meio do uso da mesma pelos seus | que aparentemente já estavam em andamento no PA e que se manifesta no
falantes, nos processos de comunicação emarcação de identidade social.
No estudo da mudança lingüística, a maior dificuldade que se encon
tra, ao se tentar avaliar um período remoto na história de uma língua, éafalta
3O inventário fonético do PA é limitado às deduções que se fazem a partir das amostras de
de dados associados à variabilidade intrínseca de qualquer comunidade lin- textos escritos pertinentesaos séculos XIV e XV.
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Nivelamento dialetal
PNP é a desnalazação dasvogais átonas emsílabas finais. Esse processo desen
cadeia uma maior homogenização morfológica no paradigma verbal, no qual O fenômeno de nivelamento dialetal pode serobservado em situações
se encontram formas como compru < compr-u < compram. deimigração em larga escala, como a ocorrida com os portugueses nos séculos
Por outro lado, não encontrei evidências, nos dados consultados, que de colonização do Brasil (Hock, 1986: 470).
confirmassem a afirmação de Naro e Scherre (1993: 444) sobre a possível O nivelamento dialetal podeser comparado à formação de uma coiné,
origem fonológica no PA para o apagamento de -s de sílaba final, que como uma vez que ambos os processos são definidos como a desregionalização de
indicado acima afetao paradigma de concordância de número noSN do PNP. dialetos ou línguas regionais; o que daria origema uma modalidade lingüística
Dentre ostraçosmorfossintáticos quejáseencontravam no PA e que se que serve como veículo para a comunicação supra-regional.
manifestam no PNP estão: o uso do verbo terem sentido existencial (ex.:Tem Portugal, sendo um país tipicamente europeu, apesar da sua reduzida
ladrão demais aqui), ao invés do verbo haver (ex.: Há muitos estudantes na área demográfica, foi e continua sendo um manancial de riqueza dialetal. A
sala); o uso da preposição em com sentido locativo (ex.: Estou em casa) e história da língua portuguesa é bastante longa, tendo sua origem em dialetos
direcional (ex.: Vou em casa); o uso da preposiçãopara ao invés de a e uso de que se desenvolveram a partir do latim ibérico dos séculos VI a XII (Melo,
orações ativas com sujeito indeterminado substituindo construções passivas. 1981:91).
No paradigma verbal nota-se o uso do pretérito imperfeito pelo futuro do No século XII Portugal tornou-se independentee a língua denominada
pretérito e do presente pelo futuro do indicativo. galego-português se alastrou para o sul do Rio Minho, influenciando as lín
^_ Outros fenômenos gramaticais que se notam como possivelmente re guas regionais, que se evolveram para dialetos portugueses. No século XVI,
sultantes de deriva são: o uso de pronomes nominativos em função de objetos •Üw : quando a colonização do Brasil foi iniciada, já havia vários dialetos portugue
e construções relativas com pronome lembrete. Ambos apareceram muito es ses bem estabelecidos. Com a emigração massiva para o Brasil, falantes de
- /
poradicamente nos dados consultados, e aparentemente ocorriam em contex •&::-.
diferentes dialetos portugueses, que anteriormente haviam vivido em regiões
tos enfáticos. Uma possível explicação para a sua ocorrência em PNP seria o distintas em seu país de origem, subtamente se viram em uma situação de
fato de os portugueses terem utilizado construções enfáticas ao se comunica contato próximo. As fidelidades dialetais e padrões de comunição anteriores
* I rem com falantes de outraslínguas numa tentativa de facilitar asua comunica tornaram-se, então, menos importantes, e os colonizadores tiveram de adap
lL ção. Com o uso e o tempo, estas construções teriam perdido seu tom enfático tar-se a novas situações comunicativas.
M
e entrado para o uso corrente da língua. De acordo com Hock (1986: 470), nessas cirscunstâncias
Da discussão acima conclui-se que, sem dúvida, o processo de deriva
exerceu um papel importante na formação do PNP. Aseguir, serão discutidos (...Imudanças que eliminam diferenças muito marcadas entre diferentes falantes
são favorecidas, uma vez que estas facilitam acomunicação ea interação. O resulta
outros caminhos percorridos pela língua emsuagênese.
do é uma língua dialctalmcnte muito mais homogênea. Os efeitos da emigração,
então, assemelham-se àqueles daeliminação dediferenças dialetais ocasionada pela
expansão de uma língua padrão, supra-regional, cm detrimento de dialetos locais.
[Tradução minha, HRM]
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UA
Para a história doportuguês brasileiro. Novos estudos, p. 341-58, 2002.
RIBEIRO DE MELLO, Heliana. Português padrão, português não-padrão...
Há três áreas dialetais principais em Portugal: o Norte, o Centro eoSul co, administrativo e econômico do país. A pressão para que os africanos e os
(Cintra, 1983: 145). Os dialetos do Sul, como por exemplo, o do Alantejo, indígenas adquirissem o português era intensa, poisera essa a política oficial
gozam de um prestígio considerável já há mais ou menos cinco séculos; os do estado. De qualquerforma, o multilingüismo não foi tolerado, oficialmen
dialetos oficialmente padrões de Lisboa e Coimbra pertencem a esse grupo. te, por um tempo muito longo, como ficou demonstrado pelo decreto que
Entretanto, Cintra (1983) eMelo (1981) notam que a maioria dos colonizadores proibia o uso da língua geral (Silva Neto, 1963: 59). Entretanto, apesar das
portugueses vieram do Norte. Mas, curiosamente, o PNP se parece mais com políticas oficiais, a dinâmica entre os diferentes grupos populacionais é que
dialetos do Sul que com os do Norte, exceto pela monotongação de [ei] -> [e] em última instância determinou ascondições parao desenvolvimento do PNP.
e[ou]-> [o] (Cintra, 1983: 33). Este fato talvez seja resultante de um possível Em termos estritamente lingüísticos, alguns dos fatores condicionado-
conhecimento, por parte dos imigrantes portugueses vindos do Norte, da va res nas situações de contato serão discutidos a seguir. Primeiramente, uma
riedade dialetal do Sul em adição ao seu próprio dialeto. distinção fundamental entre transmissão normal e transmissão imperfeita. A
O efeito genérico do nivelamento dialetal português no Brasil foi o primeira preserva a língua geneticamente, mesmo que haja mudanças resul
desenvolvimento de um autêntico dialeto brasileiro, que não passou pelas ino tantes de contato. Já a segunda resulta na formação de línguas novas, mistas,
vações que se alastraram em Portugal após o pico da emigração para o Brasil como é o caso das línguas crioulas. Apesar de algumas mudanças, que emer
gem docontato lingüístico brando, serem semelhantes a algumas características
(Williams, 1962).
de línguas crioulas, os processos lingüísticos envolvidos nessas duas situações
têm diferenças básicas, uma vez que uma ruptura na transmissão leva à emer
gência deum sistema lingüístico radicalmente reestruturado, cuja origem gene- '
Contato lingüístico tica não podeser totalmente traçada de volta a uma única língua ancestral.
Nesta seção serão analisadas as diferentes formas pelas quais as línguas De acordo com Thomason e Kaufman (1988), mudanças resultantes
faladas no Brasil colonial podem ter-se afetado pelo contato mútuo, levando à do contato lingüístico podem ocorrer em qualquer nível de um dado sistema
morte de algumas (no caso de línguas africanas ede muitas línguas ameríndias) lingüístico, uma vez que aparentemente não háqualquer constrição que efeti
e ao firme estabelecimento do PNP. vamente regule o tipo demudança que uma dada língua possa sofrer. Aqueles
O primeiro ponto ase notar na discussão sobre contato lingüístico é autores concluem que nenhuma das constrições propostas na literatura, tais
que para que haja qualquer tipo de transferência de traços de uma língua para., como aquelas denatureza tipológica, implicaturas universais ou regras de natu
outra, os falantes dessas línguas têm de ter algum nível de bihngüismo| ralidade seaplicam nesse contexto. Dosseus estudos, eles concluíram que"éa
(Weinreich, 1963). Aextensão eos tipos de troca que ocorrem em ambientes • sociohistória dos falantes de uma língua, e não a estrutura da língua, que de
de contato lingüístico dependem em grande parte das relações sociais ecultu termina o resultado do contato lingüístico"(Thomason e Kaufman, 1988: 35).
rais entre as comunidades envolvidas.
Apesar de concordar com Thomason eKaufman sobre aimportância da histó
ria social dos falantes de uma dada língua, os fatores puramente lingüísticos
Durante acolonização do Brasil, apesar da superioridade numérica de
mencionados acima têm grande relevância na interpolação da gramática de
povos outros que os portugueses, estes sempre mantiveram ocontrole politi-
\
uma dada língua a uma outra e não podem ser excluídos de uma análise que
provavelmente falavam alguma forma de um pidgin português, aprendido nos
trate do efeitos do contato lingüístico
entrepostos escravagistas africanos, no seu traslado para o Brasil, ou mesmo
Há diferentes elementos envolvidos no desenvolvimento dos fenôme nas fazendas ezonas mineiras em que habitariam ao aqui chegar. Esse pidgin
nos associados ao contato lingüístico, dentre eles, estão: empréstimos, câmbio seria usado não apenas entre os escravos para a comunicação entre grupos
(aquisição de língua estrangeira), pidginização ecrioulização. Dentre os pro étnicos e lingüísticos diferentes, mas também entre escravos e falantes do
cessos citados, crioulização écertamente o mais radical, pois nele a transmis português.
são normal de uma língua é interrompida, causando a gênese de uma nova
Osescravos dasegunda geração inicialmente falariam as línguas nativas
língua (cf. Bickerton, 1989; Mühlháusler, 1989; Byrne and Holm, 1993). Po de seus pais, assim como o pidgin. Porém, as crianças escravas eram criadas
outro lado, empréstimos ecâmbio ocorrem em ambientes em que há vário
graus de bilingüismo. Vejamos aseguir uma hipótese para odesenvolviment junto às crianças brancas, e dessa forma aprendiam a falar português. Esse
portugès teria marcas de reestruturação, uma vez que este teria sido transmiti
do PNP, dentro das possibilidades oferecidas pelas teorias de contato lingüístico.
do pelos pais brancos, mas também por babás e pagens negros. Os escravos
Ao aqui chegar, a maioria dos primeiros colonizadores portugueses fa domésticos, naturalmente, teriam maior exposição ao portugès falado pelos
lava dialetos vernáculos continentais, euma pequena parcela dos mesmos, tais brancos, dessa forma, sua modalidade de português seria necessariamente menos
como representantes do Estado, padres, latifundiários, possivelmente falava pidginizada que aquela falada pelos escravos que trabalhavam nos campos. Ao
também modalidades dialetais mais prestigiadas, num padrão culto. Como crescente número de escravos nascidos no Brasil (os crioulos) eradadaa prefe
sugerido em 2.2, falantes dos dialetos vernaculares nivelaram seus falares para rência para trabalhos domésticos, por serem eles considerados mais "inteligen
uma modalidade lingüística que eliminasse formas marcadas de regionalis tes" e por falarem um português "melhor" que o falado pelos escravos boçais.
mos, usando características comuns que fossem percebidas como pertencentes
Com o passar do tempo, os escravos nascidos no Brasil falariam varie
ao português de prestígio da época. Esse processo, sem dúvida, teria iniciado dades nativizadas de português. Estas variedades não eram línguas crioulas,
um distanciamento entre oportuguês falado no Brasil eaquele de PortugaLÉ mas possuíam traços de línguas de substrato e erros de aquisição de segunda
também plausível que, no período inicial da colonização, falantes de portugu língua, trazidos da fala de gerações precedentes. Por outro lado, a população
ês que vivessem em áreas rurais tivessem aprendido alguma forma de pidgin a rural branca tinha grande proximidade com a população escrava, e em muitos
fim de se comunicarem com escravos recém-chegados da África. Aqueles por
casos, teria a fala escrava como modelo na sua aquisição de língua nativa.
tugueses que viviam em áreas em que predominavam os ameríndios possivel Wfín
Certamente, com o tempo, o português falado pelas primeiras gerações de
mente falavam algum tipo de dialeto de contato, como alíngua geral, além colonizadores portugueses cedeu lugar àquelas variedades faladas pelas gera
dos seus dialetos portugueses.
ções subseqüentes, as quais, como jáfoi mencionado, tinham um componen
Os escravos nascidos na África falavam suas línguas de origem (em sua te da fala escrava em seu modelo de língua materna.
maioria bantos e sudanesas). Uma porcentagem dos escravos vindos para o
No final do século XVII, provavelmente, já havia se formado um contí
Brasil se originou em São Tome, portanto, falaria ocrioulo santomense. Os nuo de variedades da língua portuguesa no Brasil, que poderia ser chamado de
escravos conhecidos como boçais, ou seja, nascidos na África enão-aculturados, PNP. No extremo mais reestruturado desse contínuo figurariam a fala dos
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R13E1RO DE MELLO, Heliana. Portuguêspadrão, português não-padrão.
DATA:
RlBEIRO DE MELLO, Heliana. Portuguêspadrão, português não-padrão... Para ahistória do português brasileiro. Novos estudos, p.341-58, 2002.
• as referências quese faziam em obras literárias à fala dos negros, mulatos c trabalhavam na casa grande tinham mais contato com falantes nativos do por
pessoas pertencentes aos extratos sociais mais baixos na sociedade colonial tuguês e, portanto, mais oportunidades de falar um dialeto mais próximo ao
brasileira indicam que um dialeto português com marcas de reestruturação falado pelos senhores. Observe-se que após a primeira onda de importação de
era falado no Brasil desde um período bastante inicial (cf. Prazeres, 1819)- mão-de-obra africana, muitos escravos eram nascidos no Brasil e falavam varie
• o grande número de itens lexicais de origem ameríndia e africana no portu dades locais do português. Estes serviam como modelo lingüístico para aque
guês brasileiro contemporâneo atestam o extensivo contato lingüístico que les recém-chegados, que vinham noconstante influxo proveniente daÁfrica, o
teria ocorrido no Brasil colonial (cf. Melo, 1981). que fez do PNP a língua decontato entre os escravos importados e osescravos
brasileiros natos, não havendodessa forma a necessidade de utilizar um pidgin
para essa função. O PNP teria sido também a língua da crescente população
Dos processos de contato mencionados acima, interferência causada mestiça e da classe social mais pobre, inclusive branca.
pelo câmbio de línguas deve ter sido o mais importante na formação do PNP.
As razões para isso são principalmente demográficas: a maioria da população
brasileira, durante o período colonial, era composta por negros, indígenas e
mestiços. Os escravos recém-chegados daÁfrica tinham desecomunicar entre Contato e mudança lingüística
si e com todas aquelas pessoas que afetavam suas vidas, incluindo-se aí capata- Muitos dos traços considerados não-padrão no português brasileiro
zes, religiosos e mercadores. É possível que para os primeiros escravos nascidos aparentemente resultaram de uma conjunção de fatores. Um dos elementos
no Brasil, a língua decontato tenhasido, inicialmente, um pidgin. Porém, esta desse conjunto seria a transferência de traços gramaticais das línguas africanas
mesma fatia da população teria adquirido nativamente a modalidade de por de substrato quando da aquisição, por seus falantes nativos, do português no
tuguês que a ela estavadisponível, apesarde, em algumas situações, essa expo Brasil. Esse processo de transferência não é incomum ou desconhecido e é
sição ter sido bastante restrita; i.e.,escravos domésticos teriam tido muito mais amplamente estudado na literatura de aquisição de segunda língua. Também
exposição à língua portuguesa que aqueles que trabalhavam nos campos. Po 'm i
Thomason & Kaufman (1988) fazem menção a esse processo e afirmam que
rém, nos tempos coloniais era comum crianças brancas serem criadas pelas "na interferência produzida pela câmbio lingüístico, se houver interferência
amas e babás negras, e brincarem com as crianças negras. Seria de fato muito fonológica, então certamente haverá interferência sintática e vice-versa" (p. 60).
provável que todas essas crianças falassem uma mesma variedade dialetal em
Dentre as marcas mais profundas dessa aquisição imperfeita desegunda
sua interação. Como conseqüência disso, mesmo o português falado pelos m
língua, figuram o padrão morfológico de pluralização no sintagma nominal e
brasileiros brancos trariamarcas de reestruturação nas áreas rurais e mineradoras.
de número/pessoa no sintagma verbal. Esses são: a tendência à marcação do
A elite agrária só aprenderia a variedade dialetal de prestígio após a infância,
plural nos elementos determinantes pré-nucleares e a diferenciação comumente
por meio da instrução de tutores e pela escolarização.
bifórmica no SV, com uma forma para a primeira pessoa do singular e uma
O modelo lingüístico do português estava mais disponível para escra outra, baseada na terceira pessoa do singular, usada para as outras pessoas (o
vos em áreas urbanas que para aqueles que viviam em áreas rurais. Porém, que faz com que a marcação de pessoa seja feita pelo uso depronomes sujeitos).
mesmo nos latifúndios, havia uma hierarquia entre os escravos. Aqueles que
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3&
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Os traços mencionados acima tornaram-se parte da gramática do PNP Finalmente, em relação aos processos de contatolingüístico, novamente
devido a mais de úmfator, sendo que a interferência lingüística teria se associado se observou uma interação de processos. Dentre esses, destacaram-se reestru
auniversais de aquisição de segunda língua, que prevêem acodificação lexical m turação lingüística, empréstimos ecâmbio lingüístico imperfeito. Foi propos
de informação gramatical, e atendência histórica do português de reduzir a to que crioulização ereestruturação lingüística não ocorreram majoritariamente
morfologia inflexional. Dessa forma, é provável que num momento inicial, as no território brasileiro, mas podem"ter ocorrido, ainda que por curtos perío
variedades de português falados no Brasil abarcassem dialetos em que não dos, em áreas mais isoladas, onde havia uma grande desproporção demográfica
houvesse marcação de pluralidade no SN e contivessem apenas uma forma entre falantes nativos do português e falantes de outras línguas. Na maior
para paradigmas verbais. Pelo contato mais ostensivo com falantes do portu parte do Brasil, ocenário mais provável para contato lingüístico teria ocorrido
guês, falantes desses dialetos teriam mudado seu dialeto em direção avariantes por meio do câmbio imperfeito para o português, por parte de indígenas e
mais padronizadas (cf. Bortoni-Ricardo, 1985 e Macedo, 1996). africanos. Esse processo teria acontecido devido à transferência de traços gra
maticais das línguas de substrato eaplicação de tendências universais na aqui
sição de segunda língua (interlíngua), que teriam se fossilizado no português
não-padrão do Brasil.
Conclusão
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MüHLHÀUSLER, P. (1989). Nature and nurturc in the development ofpidgin and creolc
languages. In: PüTZ, M.; Dirven, R. (Orgs.), p. 33-54.
Naro, A; SCHERRE, M. M. (1993). Sobre as origens do português popular do Brasil.
delta, n. 9, p. 437-54.
icS-
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