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Vita Latina
Salamon Gérard. A Conjuração de Catilina: uma reflexão sobre a crise da República Romana. In: Vita Latina, N°199, 2019.
pp. 92-107;
doi : https://doi.org/10.3406/vita.2019.1905
https://www.persee.fr/doc/vita_0042-7306_2019_num_199_1_1905
Gérard SALAMON
HiSoMA ¢ UMR 5189
Resumo:
O objectivo do artigo é mostrar que o tema da primeira monografia de Sallust não é
tanto a conjuração de Catilina, mas a crise da República Romana, para a qual a
conspiração serve de ilustração. De facto, o fracasso de Catilina não resolve nada. Na
verdade, Sallust atribui esta crise ao enfraquecimento do uirtus político dos dirigentes
romanos, que define como a capacidade de fazer prevalecer os interesses da cidade
sobre os seus próprios interesses. No passado, a cidade era suficientemente forte para
compensar as falhas daqueles que a governavam; mas, numa altura em que as próprias
instituições estão a desmoronar-se, o risco de Roma perder a sua supremacia é grande.
Distanciando-se de qualquer discurso político, Sallust apela aos seus contemporâneos
para que salvem Roma.
O mesmo se passa com aqueles que relataram os feitos de outros, que receberam
muitos elogios 1.
1. Organizar a história
tornar-se uma das leis do género 9. Mas Salluste introduz esta chamada de
atenção explicando que ela lhe é "imposta" pelo sujeito:
Res ipsa hortari uidetur, quoniam de moribus ciuitatis tempus admonuit, supra
repetere ac paucis instituta maiorum domi militiaeque, quomodo rem publicam
habuerint quantamque reliquerint, ut, paulatim immutata, ex pulcherrima
<atque optuma> pessuma ac fiagitiosissima facta sit, disserere. (C. 5, 9)
O próprio assunto parece impelir-me, uma vez que a circunstância me levou a
recordar os costumes da cidade, a recuar mais e a expor em poucas palavras as
instituições dos nossos antepassados em tempos de paz e em tempos de guerra, <para
dizer> como governaram o Estado, como era grande quando o deixaram, como,
mudado pouco a pouco, se tornou, do mais belo e do melhor que era, o pior e o mais
criminoso.
De facto, a passagem que leva o leitor desde as origens de Roma até aos
nossos dias, quando o próprio historiador já abandonou a vida política, destina-
se a explicar que, embora Catilina esteja coberto de vícios, é apenas um
produto do seu tempo e que só representava um perigo tão grande para Roma
porque a própria cidade era corrupta:
In tanta tamque corrupta ciuitate Catilina, id quod factu facillumum erat,
omnium fiagitiorum atque facinorum circum se tamquam stipatorum cateruas
habebat. (C. 14, 1)
Numa cidade tão grande e tão corrupta, Catilina não tinha nada mais fácil do que
rodear-se de batalhões de todo o tipo de infâmia e crime como guarda-costas.
63 e esperava ser eleito. A violência radical das afirmações feitas por Salluste
nesta altura é, portanto, altamente improvável, mesmo que a tomada do poder
pela força ainda só estivesse prevista como recurso em caso de fracasso nas
eleições consulares 10. De facto, só depois deste fracasso é que Salluste decide
agir verdadeiramente e instala depósitos de armas e de dinheiro em certas
cidades italianas (C. 24, 1-2), o que marca verdadeiramente o início da
conspiração. O acontecimento é oficializado, por assim dizer, por uma nova
reunião, que tem lugar durante a noite em casa de Porcius Laeca (C. 27).
Catilina informou os seus cúmplices das medidas que tinha tomado, incitou-os
a agir, distribuiu os papéis e apelou ao assassinato de Cícero.
Tal como a inserção da evocação da história romana após o retrato de
Catilina, esta "deslocação da ordem narrativa "11 não é isenta de
consequências para a compreensão da situação por parte do leitor. A
importância dada à conspiração de 66 e ao encontro de Junho de 64 destina-
se, evidentemente, a fazer com que Catilina apareça, de acordo com o retrato
que dele foi previamente pintado 12, como literalmente obcecado, desde o
período siliciano, pelo desejo de tomar o poder. Mas os capítulos em questão
são também uma oportunidade para Sallustus apresentar dois dos cúmplices
de Catilina, Curius (C. 23) e Sempronia (C. 25). Estas personagens, por serem
ambas de origem nobre, ilustram com o seu exemplo, tal como Catilina, os
vícios que se espalharam pela alta sociedade romana. Curius e Sempronia são,
pois, no contexto da narrativa, revelações da corrupção generalizada que
afecta a cidade; impõem, uma vez mais, a ideia de que é na crise da República
que se deve procurar a origem dos acontecimentos de 63.
O resto da obra confirma esta análise: o lugar e a extensão que Sallustus dá a
duas passagens que são habitualmente apresentadas como digressões, o longo
desenvolvimento sobre o estado de espírito em Roma na altura da conspiração
(C. 36,4 ¢ 39,5) e a reflexão sobre o papel essencial desempenhado pelos
grandes homens no poder de Roma (C. 53,2 ¢ 54), reduzem ainda mais o
espaço dedicado ao relato dos acontecimentos de 63. A primeira destas duas
passagens tem claramente um papel estruturante: situa-se quase a meio da
monografia, no momento exacto em que o Senado, ao declarar Catilina e
Manlius inimigos
10. Esta estranheza da narrativa explica-se, parece-me, pelo facto de Sallustus estar
dividido entre duas exigências contraditórias: por um lado, o seu desejo de atrasar a narrativa
e, por outro, a apresentação de Catilina como uma personagem obcecada, desde o governo
de Sylla, pelo desejo de tomar o poder.
11. R. SYME 1982: 63-64.
12. C. 5, 5-6 : Vastus animus inmoderata, incredibilia, nimis alta semper cupiebat. Hunc
post dominationem L. Sullae lubido maxuma inuaserat rei publicae capiundae : neque id
quibus modis adsequeretur, dum sibi regnum pararet, quicquam pensi habebat ("A sua alma
insaciável tinha sempre desejos imoderados, incríveis, demasiado altos. Desde a tirania de
L. Sylla, um desejo muito grande de se apoderar do Estado tinha-o invadido; e não lhe
importava os meios que utilizava para o conseguir, desde que obtivesse o poder real").
A REFLEXÃO NO CRISE DO REPÚBLICA ALFACE ROMANA 97
A análise efectuada sobre o uirtus pode ser alargada aos termos com
conotações morais que Sallustus coloca na boca de Catão, como luxuria ("amor
ao luxo") ou auaritia ("avareza"). O uso que o historiador faz deste último
termo é particularmente interessante 16 : Vê na "sede de dinheiro" (pecuniae
cupido é uma outra forma de descrever a auaritia), mais ainda do que na sede
de poder (imperi cupido), a origem de todos os males que assolaram a cidade
após a derrota de Cartago; mas não condena a auaritia por razões éticas, isto
é, por ser contrária à honestidade, mas porque tem o efeito de fracturar aquilo
a que chamamos o corpo social:
Qui labores, pericula, dubias atque asperas res facile tolerauerant, iis otium diui-
tiaeque, optanda alias, oneri miseriaeque fuere. Igitur primo pecuniae, deinde imperi
cupido creuit : ea quasi materies omnium malorum fuere. Namque auaritia fidem
probitatem ceterasque artis bonas subuortit ; pro his superbiam, crudelitatem, deos
neglegere, omnia uenalia habere edocuit. (C. 10, 2-4)
Para estes homens [os romanos], que tinham suportado facilmente a fadiga, o perigo
e as situações incertas ou mesmo difíceis, o descanso e as riquezas, de outro modo
desejáveis, eram um fardo e uma fonte de infortúnio. Porque primeiro crescia a sede
de dinheiro, depois a sede de poder: eram, por assim dizer, o combustível de todos os
males.
A segunda fase ocorreu em 82, quando Sylla entrou em Roma à frente do seu
exército, tomou o poder e estabeleceu o seu governo. Este facto fez aumentar
ainda mais a devastação da aua- ritia, que se manifestou através de roubos e
pilhagens, levando à violência entre os cidadãos e, consequentemente, a
divisões no seio da cidade:
Sed postquam L. Sulla armis recepta re publica bonis initiis malos euentus habuit,
rapere omnes, trahere, domum alius, alius agros cupere, neque modum neque
modes- tiam uictores habere, foeda crudeliaque in ciuis facinora facere. (C. 11, 4)
Mas quando Lúcio Sylla conquistou o Estado pela força das armas e a sua acção,
depois de um bom começo, teve consequências desastrosas, todos roubavam e
pilhavam: uns cobiçavam uma casa, outros um pedaço de terra, e os conquistadores
não tinham moderação nem contenção; cometiam crueldades abomináveis contra os
seus concidadãos.
Postquam diuitiae honori esse coepere et eas gloria imperium potentia sequebatur,
hebescere uirtus, paupertas probro haberi, innocentia pro maleuolentia duci coepit.
Igitur ex diuitiis iuuentutem luxuria atque auaritia cum superbia inuasere : rapere
consumere, sua parui pendere, aliena cupere, pudorem pudicitiam, diuina atque
humana promiscua, nihil pensi neque moderati habere. (C. 12, 1-2)
Quando as riquezas começaram a ocupar um lugar de destaque e trouxeram a glória,
os mandamentos e o poder, o mérito embotou-se, a pobreza tornou-se uma
vergonha e o altruísmo começou a ser visto como maldade. Assim, na esteira das
riquezas, o amor aos prazeres, a avareza e o orgulho invadiram a juventude:
saqueavam, gastavam, davam pouco valor aos seus bens, cobiçavam os bens alheios,
desprezavam o comedimento e a reserva, os bens divinos e humanos, não tinham
mais respeito nem moderação.
23. Em virtude das regras do género histórico, os discursos das personagens são, de facto,
uma recriação do historiador.
24. Sobre estes discursos, ver P. MCGUSHIN 1977: 239-268.
25. Para as referências, ver nota 6 supra.
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31. É verdade que Sallustus não diz nada sobre os outros Catilinarii, mas do ponto de
vista histórico o primeiro discurso de Cícero é verdadeiramente decisivo, pois leva à partida
de Catilina de Roma.
32. A campanha africana, na qual Cato morreu, ainda está fresca na memória de todos.
106 GÉRARD SALAMÃO
Mas, segundo Salústio, se já não há grandes homens, uma vez que César e
Catão estão mortos, e o Estado, cujas instituições se enfraqueceram, entrou em
decadência, é o fim de Roma, ou pelo menos do seu poder, que se deve temer,
uma vez que os romanos são "inferiores aos gregos na eloquência e aos
gauleses na glória militar" (C. 53, 3). Numa altura em que Roma reflecte mais
do que nunca sobre o seu passado e, por conseguinte, sobre o futuro da
cidade, Salústio apela aos seus concidadãos, na sua monografia, para que
façam uma revolta nacional como única forma de se precaverem contra a
catástrofe.
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