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ANEMIAS CARENCIAIS

Fábio Carvalho

Anemia por carência de ferro (ferropriva)

Epidemiologia

Segundo a OMS, cerca de 30% da população mundial apresenta anemia ferropriva,


ocorrendo principalmente em países em desenvolvimento e em populações de baixa renda.

Fisiologia e metabolismo do ferro

Em condições normais, cerca de 3,5 a 4,5 gramas de ferro estão presentes no corpo
humano, sendo cerca de 70% na forma funcional (contida na hemoglobina, mioglobina e
enzimas intracelulares) e 30% na forma de armazenamento (ferritina e hemossiderina).
Na dieta, obtém-se o ferro inorgânico (não heme), presente em plantas e em tecidos
animais, e o orgânico (heme), visto na mioglobina e na hemoglobina. O ferro heme é
absorvido de maneira intacta e é transportado para dentro dos enterócitos por proteínas
carreadoras (PCFT e HCP1). Já o não heme é convertido do estado férrico (3+) para o
ferroso (2+) para ser absorvido pelos receptores DMT1.
No enterócito, o ferro é armazenado como ferritina ou transportado para o plasma
via ferroportina. A hepcidina regula a expressão de ferroportina: sua presença induz a
proteólise da ferroportina, de modo a reduzir a exportação de ferro e a preservar os
estoques. A hepcidina tem sua concentração corporal variada de acordo com a
concentração de ferro corporal e a necessidade de eritropoiese.
Para se ligar à transferrina na circulação, o ferro ferroso é transformado novamente
em férrico.

Fatores etiológicos

Constituem populações de maior risco: de baixa renda, com desnutrição intrauterina,


de baixo peso ao nascer, gêmeos, prematuros, com período reduzido de aleitamento
materno, que não suplementaram ferro após a substituição do leite materno pelo de vaca,
que têm dieta pobre em ferro, desnutridos, que têm infecções recorrentes, que necessitam
de maior quantidade de ferro para o crescimento (ex: 6 a 18 meses de idade e puberdade),
com dificuldades para absorver o ferro, que apresentam maiores índices de parasitoses,
que apresentam sangramento intestinal (ex: alergia ao leite da vaca), com ocorrência de
pólipos e divertículos, e com o uso de fármacos que levam a sangramento digestivo e à
inibição da secreção gástrica.
O ferro obtido no período gestacional é estocado no fígado do feto principalmente no
último trimestre da gravidez e confere aporte de ferro por 4 a 6 meses. Logo, recém-
nascidos de baixo peso ou prematuros exigem suplementação mais precoce que os demais.

Diagnóstico clínico

Quando as primeiras manifestações surgem, a anemia, normalmente, já é


moderada. Vê-se: apatia, adinamia, palidez, dispnéia, intolerância ao exercício, fraqueza,
fadiga crônica, dificuldades de termorregulação, inapetência, prejuízo do crescimento,
geofagia, redução da atenção, déficits psicomotores, atraso na aquisição de habilidades,
predisposição a infecções, entre outros. Ao exame físico, pode-se observar palidez, glossite
(hiperemia e perda de papilas linguais), sopros cardíacos sistólicos leves (secundários ao
estado hiperdinâmico) e esplenomegalia.

Diagnóstico laboratorial

É importante ressaltar que pode haver deficiência de ferro sem que haja anemia
ferropriva. Para que esta ocorra, é necessária a presença de uma concentração de
hemoglobina inferior a dois desvio-padrão de referência para a idade e o sexo.
O processo da anemia ferropriva apresenta uma evolução: primeiro, há a depleção
das reservas (ferritina); depois, há queda do ferro circulante e da eritropoiese; e, por fim,
reduz-se o ferro funcional ligado à hemoglobina.
Para diagnosticar, basta a concentração baixa de hemoglobina estar presente junto
de índices hematimétricos reduzidos ou de um RDW (coeficiente de variação eritrocitária)
acima de 14%. As hemácias vistas à hematoscopia são hipocrômicas e microcíticas. O
CHCM (concentração de hemoglobina corpuscular média) e o HCM (hemoglobina
corpuscular média) também são úteis na avaliação da hipocromia, enquanto o VCM (volume
corpuscular médio) é importante para a avaliação da microcitose. O RDW elevado indica
anisocitose (heterogeneidade nos tamanhos das hemácias), que é confirmada à
hematoscopia.
A dosagem de ferritina indica redução dos estoques de ferro, mas ela pode estar
elevada em quadros infecciosos, já que é uma proteína de fase aguda. A contagem de
reticulócitos pode estar aumentada, indicando resposta medular à anemia. A dosagem de
ferro sérico pode estar reduzida e a capacidade de ligação do ferro (CLF) aumentada. O
índice de saturação de transferrina (IST), calculado pela divisão da concentração do ferro
sérico x 1000 pela CLF pode estar diminuída.
Para formar o grupo heme, a protoporfirina deve se combinar com o ferro. Na
carência deste elemento, vê-se aumento da protoporfirina eritrocitária livre (PEL). Há
aumento dos receptores de transferrina.
Hiperplasia eritróide pode ser vista à punção medular.
Em resumo:

Primeiro estágio Segundo estágio Terceiro estágio


(depleção dos (depleção de ferro (depleção de ferro
estoques de ferro) sem anemia) com anemia)

Hb Normal Normal Reduzida

VCM Normal Normal Reduzido

Ferro sérico Normal Reduzido Reduzido

Ferritina Reduzida Reduzida Reduzida

IST Normal Reduzido Reduzido

PEL Normal Normal Aumentado


Diagnóstico diferencial de anemias microcíticas

Anemia Talassemia Anemia de Anemia


ferropriva menor doenças sideroblástica
crônicas

Ferritina sérica Reduzida Normal ou Normal ou Aumentada


aumentada aumentada

Ferro sérico Normal ou Normal ou Reduzido Aumentado


reduzida aumentada

Saturação de Reduzida Normal ou Reduzida Aumentada


transferrina aumentada

Capacidade Aumentada Normal Reduzida Normal ou


ferropéxica total reduzida

Sideroblastos Reduzidos Normal Reduzidos Aumentados


(em anel)

Fatores que influenciam a absorção de ferro

Fatores inibidores

O leite de vaca, em comparação às fórmulas lácteas na substituição do leite


materno, apresenta menor teor de ferro, além de ser mais rico em cálcio e em proteínas que
reduzem a disponibilidade do ferro.

Fatores facilitadores

Ácido ascórbico, ácido cítrico, carne, frango, peixe e carboidratos não digeríveis (ex:
pectina, inulina, oligofrutose).

Tratamento

➔ Administração:
◆ Iniciar preferencialmente por via oral.
◆ Evitar a via intramuscular sempre que possível.
➔ Pode-se pensar na associação com ácido ascórbico para pacientes com dificuldade
de absorção do ferro.
➔ Efeitos adversos: fezes enegrecidas, manchas escuras nos dentes, náuseas,
vômitos, diarréia, dor epigástrica, cólicas e constipação intestinal.
◆ Podem ser minimizados com a administração após refeições ou em menores
doses.
◆ Administração com água ou sucos de frutas cítricas pode amenizar o gosto e
reduzir a formação de manchas dentárias.
➔ Dose: 4 a 6 mg/kg/dia (máximo de 200mg por dia).
◆ Sulfato ferroso é a droga de escolha.
◆ Uma opção é dar uma dosagem semanal equivalente ao invés de diária.
➔ Duração: até normalizar a ferritina ou, ao menos, dois a três meses após o
desaparecimento da anemia.
➔ Absorção é facilitada quando ingerido em jejum ou nos intervalos entre as refeições:
30 minutos antes ou 2 horas depois da refeição.

Profilaxia

➔ Após os 6 meses de idade, o aleitamento materno apenas oferece metade da


necessidade diária do lactente. Suplementa-se, então, dos 6 aos 24 meses ou a
partir da introdução de novos alimentos.
➔ Situações especiais:
◆ Prematuros maiores que 1500g e recém-nascidos de baixo peso: 2mg/kg/dia
dos 30 dias aos 12 meses e 1mg/kg/dia até os 24.
◆ Prematuros com peso entre 1000 e 1500g: 3mg/kg/dia dos 30 dias aos 12
meses e 1mg/kg/dia até os 24.
◆ Prematuros com peso menor que 1000g: 4mg/kg/dia dos 30 dias aos 12
meses e 1mg/kg/dia até os 24.

Anemia por deficiência de vitamina B12 (cobalamina)

Epidemiologia

➔ Acomete principalmente descendentes de europeus e africanos.


➔ A anemia perniciosa verdadeira, que cursa com ausência de fator intrínseco, ocorre
principalmente em brancos e após os 50 anos. Apresenta caráter familial.
➔ Vegetarianos.

Metabolismo da vitamina B12

Está presente nos alimentos de origem animal e só é obtida pela dieta. Junto ao
fator intrínseco, produzido pelas células parietais do fundo gástrico, forma um complexo que
resiste às enzimas proteolíticas e que penetra nos enterócitos do íleo via receptores
específicos. O fator intrínseco é degradado e a cobalamina (vitamina B12) se liga à
transcobalamina II, sua proteína de transporte de maior afinidade.

Etiologia

➔ Deficiência de fator intrínseco (ex: anemia perniciosa, gastrectomia).


➔ Má absorção intestinal (ex: esteatorreia, doença inflamatória intestinal, ressecção
ileal, tuberculose intestinal).
➔ Medicamentosa.
➔ Gravidez.
➔ Dieta vegetariana.
➔ Deficiência de transcobalamina II.
➔ Interação com medicamentos: trimetoprim, sulfadiazina, pirimetamina.
Fisiopatogenia

➔ B12 é essencial na produção das células sanguíneas e de tecido nervoso.


➔ Sua redução culmina em diminuição da síntese de DNA.
◆ Ocorre, então, redução da capacidade de divisão das células da medula
óssea, gerando eritrócitos grandes.
➔ Deficiência de B12 afeta a medula, nervos ópticos e nervos periféricos.

Diagnóstico clínico

➔ Cansaço, palidez, glossite atrófica, ardor na língua, parestesias em membros


inferiores e mãos, dificuldades de locomoção, alterações esfincterianas, hipo ou
hiper-reflexia, perturbações mentais.
➔ Degeneração do nervo óptico pode gerar até cegueira.

Diagnóstico laboratorial

➔ Oligocitemia, baixa concentração de hemoglobina, macrocitose, VCM aumentado,


anisocitose, poiquilocitose, eritroblastos, corpúsculos de Howell-Jolly
(remanescentes nucleares nas hemácias).
➔ Possível leucopenia com neutrófilos hipersegmentados.
➔ Possível plaquetopenia.
➔ Níveis aumentados de ácido metilmalônico.
➔ Níveis elevados de homocisteína (menos específico, pois também ocorre na
deficiência de ácido fólico).
➔ Redução de B12 (normal = 200 a 900 ng/L).

Tratamento e prevenção

➔ 100 mcg/dia durante uma semana e, a seguir, duas doses semanais acompanhadas
do exame de hemograma (após três a cinco dias há aumento dos reticulócitos).
➔ Outra opção: 1.000 mcg/dia por dois a sete dias e, a seguir, doses semanais,
mensais e, posteriormente, a cada três meses.

Anemia por deficiência de ácido fólico (vitamina B9)

➔ Participa da síntese de DNA, RNA e proteínas. Sua deficiência é prejudicial sobre


células de alta renovação (ex: medula óssea, tecido nervoso, trato digestivo).
➔ Origem: vegetais folhosos verdes, fígado, laranja, leveduras, leite humano, leite de
vaca.

Etiologia

➔ Ingestão insuficiente (ex: alcoolismo materno, dieta deficiente).


➔ Má absorção (ex: doença celíaca, intestino curto, uso de anticonvulsivantes,
síndrome de má absorção).
➔ Aumento da demanda (ex: doença hemolítica crônica, neoplasias, gravidez,
lactância, hipertireoidismo).
➔ Antagonistas (ex: drogas quimioterápicas, etanol).

Diagnóstico clínico

➔ Fraqueza, glossite, anorexia, taquicardia, esplenomegalia.


➔ Déficit de memória, irritabilidade, distúrbios do sono e ataxia geralmente ocorrem
quando há deficiência concomitante de B12.

Diagnóstico laboratorial

➔ Aumento de homocisteína (prejuízo na sua transformação em metionina).


◆ Maior risco de doenças vasculares.
➔ Anemia macrocítica.
➔ Neutrófilos hipersegmentados.
➔ Baixos níveis de ácido fólico.

Tratamento e prevenção

➔ Corrigir carências dietéticas.


➔ Suspender ou interromper, se possível, medicamentos com ação antagonista.
➔ Uso de ácido fólico medicamentoso, 1 a 5 mg por dia.
➔ Em caso de uso de drogas com ação antagonista, opta-se pelo ácido folínico.

Bibliografia

Tratado de pediatria : Sociedade Brasileira de Pediatria / Dioclécio Campos Júnior, Dennis


Alexander Rabelo Burns. -- 3. ed. -- Barueri, SP : Manole, 2014.

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