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destinadas a preservar a pessoa livre, mas soube ver o defeito, em contrapartida,


desse individualismo que prejudicava a exata definição da realidade estatal. Em
Montesquieu, que foi dos três o mais admirado, lastimou que tanta capacidade
de análise e tanto poder de síntese se bastassem com a verificação de como os
povos de fato se governavam, sem importar-se com saber se esses governos eram
ou não legítimos. Assim, alçou-se à condição de pensador capacitado aformular
um esquema em que, interligando-se substancial e vila/mente a liberdade e a lei,
acabasse por definir-se a legitimidade do poder político. Como expõe o Contrato
Social.

3. Resenha analítica

Dividindo o Contrato Social em quatro livros, Rousseau reservou o pri-


meiro deles para atacar, de forma direta e sem dispensáveis considerações preli-
minares, o problema que sempre o preocupou e que é o de positivar qual o funda-
mento legítimo da sociedade política. O segundo livro, prosseguindo nas
cogitações decorrentes dessa indagação básica, cuidará de discutir as condições
e os limites em que opera o poder soberano. Daí passamos às considerações
sobre a forma e o funcionamento do aparato governamental, que exigiram o ter-
ceiro e o mais longo dos quatro livros, enquanto ao último ficaria reservada,
afora o capítulo inicial onde se compendia conclúsivamente a exposição anterior,
uma série de estudos sobre os sufrágios, as assembléias e certos órgãos e funções
governamentais complementares, que não apresentam a mesma unidade sistemá-
tica das três primeiras partes do Contrato . .

LIVRO!

Depois de breve advertência, na qual se abandona definitivamente o plano


das Instituições Políticas, abre-se o primeiro livro com uma introdução, onde
ainda ressoam algumas notas do estilo oratório e do pensamento apaixonado do
jovem Rousseau. Aí se diz que o tratado se destina a "indagar se pode existir, na
ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os ho-
mens como são e as leis como podem ser", porém o leitor precisa evitar as mui-
tas armadilhas interpretativas que se encontram por sob expressões como "regras
de administração·: "homens como são" e "leis como podem ser". Não teremos
um exame empírico e realista da situação política dos vários povos, nem um
compêndio de prática governamental. O verdadeiro objeto da investigação reve-
la-se na frase inicial do Capítulo !: "O homem nasce livre, e por toda a parte
encontra-se a ferros". Em outras palavras, Rousseau anota o contraste entre a
condição natural do homem, que é a de uma total irrestrição de seus impulsos, e
a sua condição social que comumente lhe abafa a liberdade. Impõe-se, portanto,
investigar se a passagem da liberdade natural para o condicionamento social é
necessária, ou seja, se corresponde a um imperativo de sobrevivência e, se ta/for
o caso, em que condições a transformação pode operar-se legitimamente, isto é,
atendendo plenamente a seu objetivo e só a ele.
Natureza e convenção constituem, pois, os grandes temas do Livro !, no
qual se demonstrará não ser natural qualquer desigualdade entre os homens,
INTRODUÇÃO 15

como supuseram os que, erroneamente, para explicar ou justificar o poder de al-


guns sobre todos, recorreram ao exemplo da autoridade paterna na sociedade
doméstica, que, contudo, só uma convenção mantém coesa depois de crescidos
os filhos, ou então ao símile do pastor e do rebanho, ou, ainda, à afirmação aris-
totélica de nascerem alguns homens para serem livres e outros para serem escra-
vos, o que é "tomar o efeito pela causa". A discussão, iniciada no Capítulo II,
continua no Capítulo III, onde se demonstra que um pretenso "direitO do mais
forte" não pode oferecer base à ordem social, pois não se considerará como um
direito a justo título, esse que desaparece quando cessa a força, não passando
pois do reflexo de uma situação de fato sem qualquer validade ética ou jurídica.
"A força não faz o direito" e, conseqiientemente, "só se é obrigado a obedecer
aos poderes legítimos." Se o Capítulo IV volta a cuidar da escravidão, anterior-
mente discutida, agora o faz do ponto de vista do direito das gentes e para afron-
tai refutação de Grotius, pois a guerra, se chega a gerar direitos, só os gera para
as relações entre Estados, enquanto, no tocante aos indivíduos, dela só resultam
situações de fato; Deforma alguma se conceberá que um povo se aliena a um rei,
numa estr.anha convenção, que em tudo aproveitasse a uma só das partes; só isso
já caracterizaria sua ilegitimidade.
Impõe-se, portanto, "remontar a uma convenção anterior", ao fato de man-
darem uns e obedecerem outros, como nos anuncia o título do Capítulo V. Ainda
quando verdadeiras, todas as explicações e justificações anteriores nã9 bastariam
para gerar um direito. Mesmo, pois, se dispostos a aceitar, como qÚer Grotius,
que "um povo pode dar-se a um rei", deveríamos, antes de examinar esse ato de
insólita alienação, conhecer aquele outro e anterior "ato pelo qual um povo é
povo", isto é, a convenção de que se origina, não o poder, mas a sociedade. É o
pacto social, tal como no Capítulo VI se descreve. Os homens, impossibilitados
de subsistirem por seus próprios meios no estado de natureza, isto é, como sim-
ples indivíduos, entre si contratam uma transformação na maneira de viver, unin-
do-se numa ''forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a
todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto
antes". Eis como tudo se origina de uma convenção e, por seu intermédio, dando-
se cada um, total e igualmente, a todos, preserva-se a sua igualdade e a sua liber-
dade, sendo que esta última apenas se transforma, porquanto, em lugar da liber-
dade natural irrestrita, instala-se agnra uma liberdade convencional, uma
existência livre porém socializada.
Tal o sentido explícito do texto em que se descreve o contrato social. Se,
contudo, o colocarmos em cotejo com os anteriores escritos de Rousseau, alcan-
çaremos também sua significação em profundidade, porquanto nele se estabelece
que, no homem, a parte animal, o substrato fisiopsicológico de instintos e impul-
sos, se mostra incapaz de resistir às necessidades geradas pelos contatos -com os
semelhantes. Só o ser social, ou melhor, a parte socializável do ser humano pode-
rá ·atender a tais solicitações, à condição de ·realizar-se plenamente, porém essa
passagem não se deve fazer, para ser legítima, em nome de ''fundamentos natu-
rais" (desigualdade dos homens, direito da/orça, escravidão, autoridade paterna
e outros argumentos que já se discutiam no segundo Discurso e na Economia
Política), senão em função de seu objetivo realmente natural: a preservação do
homem pelo grupo. Por isso, constitui efeito principal do contrato social o nasci-
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menta de uma nova entidade, de "um corpo moral e coletivo ", com "sua unidade,
seu eu comum, sua vida e sua vontade", que não é o simples agregado de
homens, mas a ''pó/is·: a "república·: ou, como prefere Rousseau, o "corpo
político ". Como um todo orgânico, chama-se "Estado·: quando passivo; "sobe-
rano", quando ativo, e ''potência" no trato com seus iguais. Quanto aos homens,
constituíram um ''povo", sendo "cidadãos" ou "súditos" conforme os conside-
remos ativa ou passivamente.
"Do Soberano", ou seja, dos homens considerados coletivamente e depois
de legitimamente investidos no poder que lhes conferiu o pacto, cuida o Capítulo
VII, que analisará as relações entre o corpo político ativo e seus próprios campo~
nentes,formulando a mais transcendente questão do Contrato Social: a vontade
geral. Importa saber, desde logo, onde auscultá-la e estabelecer que nos próprios
homens é que ela se revela, não pelo que de geral haja em suas vontades particu-
lares, mas pelo que de comum as torna interligadas. Por isso mesmo, a vontade
geral é sempre certa e, não podendo errar, jamais atentará contra a liberdade de
qualquer dos membros do corpo social. O Capítulo VIII, estudando o "Estado
civil", num balanço entre o que perde e o que ganha o homem pelo contrato,
traça o contraste entre, de um lado, o direito ilimitado atomar para si tudo que
suas forças permitirem e, de outro, a liberdade civil e a propriedade de tudo que
possui legitimamente, enquanto o Capítulo IX examina as relações entre a
propriedade privada e o poder do soberano.

LIVRO II

Havendo o primeiro livro passado em exame todas as questões fundamen-


tais da vida política, no segundo se encontrará um estudo mais pormenorizado
da estrutura e comportamento da soberania, com o que se prepara a definição da
lei, para depois formulá-la.
Caracteriza-se a soberania por ser inalienável (Capítulo I) - pois, sendo
vontade geral, é-lhe impossível alienar-se, dado que o poder se transmite, porém
não a vontade - e, também, indivisível (Capítulo II) - porquanto, afastando-se
de seus predecessores, notadamente de Montesquieu, Rousseau demonstra que
não há divisão de poderes no Estado, noção errônea que resulta de confundir-se
·o que são verdadeiras "emanações" da força de mando do corpo político, com
pretensas ''partes" constitutivas do Estado. Conseqüentemente, um só dos cha-
mados poderes realmente dispõe da força soberana - o legislativo. Antes,
porém, de cuidar da legislação, única manifestação completa e direta da vontade
geral, o Contrato Social ainda se deterá no exame das limitações que pode
conhecer, em si mesma, essa vontade geral. Pode ela sofrer uma deterioração -
limite vivencial, poder-se-ia dizer - no contato com os interesses privados, cuja
pior manifesiação se encontra na formação de grupos e partidos políticos, como
se estabelece no Capítulo III, onde porém se firma que, salvo em tal caso de
deperecimento e perversão, a vontade geral nunca erra. No capítulo seguinte,
apontam-se os únicos limites reais e, por assim dizer, sadios do poder soberano:
são os limites das convenções gerais, o que vale dizer que cada homem será livre
no que escapar a elas, pois nem tudo, efetivamente, constitui objeto do interesse
geral. Afinal, o Capítulo V aborda a inquiet.ante questão de saber-se se deve o Es-
tado deter-se em face da vida dos súditos e Rousseau haverá de concluir que, se
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o Estado precisar das vidas dos súditos, a elas tem direito, porém, malgrado um
contido protesto sentimental, apressa-se a distinguir tal situação, configurada
pelas exigências da guerra, da pena de morte que se aplica aos criminosos, por-
quanto estes, pelo seu crime, já se colocaram à margem do pacto social.
"Da Lei" é o título do Capítulo VI, que começa, aliás, por uma clara propo-
sição do problema: se ''pelo pacto social demos existência e vida ao corpo políti-
co, resta atribuir-lhe, pela legislação, movimento e vontade". De fato, à descrição
genética, que nos deu uma visão segura, porém apenas estática, anatômica, do
organismo político, impõe-se acrescentar o exame de sua fisiologia, de seu
comportamento ativo. E o Estado vive e age pela lei.
Não nos percamos, a tal propósito, em idéias metafisicas que, apelando
para a lei da natureza ou afirmando que toda ajustiça vem de Deus ou ainda que
há uma justiça universal emanando da razão, não chegam a definir, na essência,
o que é a lei do Estado. Ora, impõe-se saber, exatamente, a relação que resulta do
disposto pela vontade geral "quando todo o povo estatui algo para todo o povo",
pois, sendo a matéria de deliberação "geral como a vontade que a estatui '', aí
teremos o que se pode e se deve chamar de lei. Em outras palavras, a lei, que pof
isso mesmo jamais pode discriminar ou particularizar, é a expressão das condi-
ções da associação civil, tais como as estabelece o mesmo povo a quem virá a
obrigar. Conseqiientemente, se chamarmos de república a todos os Estados regi-
dos por leis, só os governos republicanos, sem embargo daforma particular de
sua administração, serão legítimos.
A noção de lei, que completa e amplia as noções fundamentais do Livro 1,
exige, contudo, uma nova cogitação básica, pois faz-se necessário supor, para o
primeiro e imprescindível estabelecimento legal, uma "inteligência superior" que
se interessasse pelos interesses dos homens, sem ter ela própria nenhum interesse.
"Do Legislador" trata o Capítulo III, que muitos comentários tem suscitado pelo
fato de, nele, Rousseau abandonar decidida e declaradamente qualquer rigor
analítico e racional para, depois de afirmar que "seriam precisos deuses para dar
leis aos homens", supor que só será verdadeiro legislador aquele que, "homem
extraordinário no Estado'', não obstante permanece praticamente fora do Estado,
sem poderes e sem autoridade. E admite até que em estágios sociais rudimentares
recorra a apelos às divindades, para ser melhor compreendido e aceito pelos ho-;
mens que nelas creit~m. Como se vê, não basta o pacto constitutivo do corpo
político, pois quase tão substancial quanto ele é o estabelecimento das conven-
ções gerais que só um legislador pode realizar devidamente.
Suposto tal elemento, os capítulos VIII, IX e X, sob o título geral "Do
Povo'', passam em exame as condições de adequação dos sistemas de legislação
a cada povó, considerado segundo sua própria constituição, as condições natu-
rais de sua vida e cada momento particular de sua história. O Contrato Social
começa a tanger o campo dos problemas, se não concretos, ao menos práticos,
ou ainda melhor: técnicos, da organização estatal. Essas considerações se con-
cluem no Capítulo XI, onde a análise dos "diversos sistemas de legislação '"se re-
sume àfixação de "dois objetos principais: a liberdade e a igualdade, sempre os
mesmos, enquanto variam os recursos específicos empenhados em sua pres~va­
ção conforme as específicas condições de cada caso concreto". O Capítulo XII
estabelece uma divisão das leis que distingue as políticas das civis e das crimi-
nais, porém não se encerra sem apaixonada referência - em que repercutem as
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concepções sobre o legislador - a uma quarta espécie de lei, "a mais importante
de todas, que não se grava no mármore, nem no bronze, mas nos corações dos
cidadãos". Como dessas leis imateriais decorre a "verdadeira constituição do
Estado", podemos concluir que, no momento em que se vê levado a examinar
problemas mais técnicos, Rousseau julga necessário reafirmar a importância
capital do conteúdo ético da vida política.

LIVROIJI

Contrastando com a apaixonada reivindicação ética que acabamos de


sumariar, este livro, além de ser o mais longo de todo o Contrato Social, é tam-
bém o de maiores ambições de exatidão sistemática. Dedicado inteiramente ao
estudo do governo, propõe-se a desenvolver as principais idéias à custa de símiles
matemáticos, o que, longe de transmitir à política o rigor dos números, torna
bastante nebulosas certas passagens e comunica ao conjunto uma impressão algo
desapontadora. Parece necessário, neste passo, ir buscar o pensamento de Rous-
seau para além das pretensas equações de que se sentia tão orgulhoso.
Dedicado ao estudo do governo, abre-se o livro com dois capítulos em que
se examina a questão em termos gerais a fim de estabelecer um critério para a
avaliação das várias formas de organização governamental. Como não passa de
simples corpo intermédio, posto entre o soberano e os súditos, o governo apre-
senta-se principalmente como um problema de equilíbrio, pois, se jamais deve
colocar-se abaixo das forças particulares, também não deve tomar para si a força
do Estado. Firmada tal distinção entre o poder executivo, mera "emanação", e a
completa realidade estatal - distinção que já ao tempo de Rousseau, como
ainda hoje, acusa os maiores abusos políticos - , torna-se impossível dizer que,
em si mesma, é melhor tal ou qual dasformas de governo, expostas ejulgadas do
Capítulo III ao Capítulo VII. Democracia, aristocracia e monarquia, todas têm
suas vantagens peculiares para certos casos específicos, como tem qualquer
delas, em outros casos, defeitos característicos. Cada uma - salvo, talvez, a
democracia absoluta, que é praticamente irrealizável - deverá, portanto, ser
avaliada segundo as condições do povo que as adota (capítulos VIII e XI), e se
o Contrato Social parece fixar-se preferencialmente no índice oferecido pela
população, desde logo reconheçamos que não se reduz ao simples censo numé-
rico dos habitantes, pois visa ao exame de todo o complexo das · relações
demo-econômicas.
Uma vez estabelecida a conexão necessária da composição e atividade do
povo com a forma de governo, impõe-se compreender que não se trata de um
nexo relacional estável e definitivo, pois há uma natural tendência dos governos
à degenerescência (capítulos X a XV). Sempre tenta o governo tomar o lugar e a
força do soberano. Daí, as duas formas de declínio: a contração do governo,
numa congestão do poder que o torna, por assim dizer, esclerótico, e a dissolu-
ção do Estado, num depauperamento que se diria anemizante do organismo polí-
tico. Essas moléstias, a rigor, são incuráveis, porém um paliativo, bastante satis-
fatório para retardar-lhes os efeitos, pode ser encontrado na interrupção do
exercício do poder governamental pelas assembléias periódicas, que transfun-
dirão a força pura e autêntica da vontade geral no corpo debilitado. Por isso
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mesmo, não se admitem assembléias compostas de representantes, isto é, o simu-


lacro da deputação do poder do povo, pois, como sabemos, as vontades e,
conseqüentemente, a vontade geral não se transmitem.
Destinam-se os três capítulos finais do Livro III a cuidar da instituição do
governo que, coerentemente com o que já sabemos desde o primeiro livro, jamais
configura um contrato nem poderia obrigar ao soberano que, pór sua própria
e
natureza, não conhece superiores não reconhece interesses particulares. Tal
afirmação, a esta altura do livro, provoca, contudo, uma séria dificuldade siste-
mática, pois obriga a distinguir a lei, que adota a forma de governo, do ato de
escolha do chefe, o que só se resolve supondo, num recurso teorético, a assem-
bléia em dupla função. E, novamente, só as assembléias periódicas podem consti-
tuir remédio contra as usurpações.

LIVRO/V

Iniciando-se o último livro com um capítulo sob o título "De como a Vonta-
de Geral é Indestrutível", impõe-se esclarecer que não nos defrontamos aqui com
uma tardia seqiiência da primeira porção do segundo livro, on.de se tratou dos
atributos essenciais da soberania, mas apenas com uma conclusão do que se tra-
tou no Livro III sóbre as refações entre o governo e o soberano. É curlosa a loca-
lização desse trecho conclusivo no quarto livro, sobretudo se tivermos em vista
que nos demais capítulos, entre os quais não se reconhece a mesma unidade siste-
mática e a mesma coerência expositiva até agora constantes, surge uma série de
ponderações sobre certos problemas de minúcia, certas implicações concretas do
funcionamento da máquina política que,fartamente entremeadas de referências
tomadas à história romana por intermédio de Sigonius, instigam a suspeita de
tratar-se de um aproveitamento fragmentário de porções das Instituições que a
Rousseau custava abandonar.
Assim vemos sucessivamente abordados os problemas do sufrágio (Capítulo
II) e das eleições (Capítulo III), onde ainda ressoam considerações sobre a legí-
tima expressão da vontade geral, para logo toparmos com uma verdadeira mono-
grafia sobre os comícios romanos (Capítulo IV), que se relacio'Tta com o assunto,
mas dispensava tratamento exaustivo. O "tribunato ·: palavra que Rousseau
emprega com significação muito especial, e a ditadura (capítulos V e VI), ou seja,
os remédios excepcionais a que se pode recorrer quando o Estado, ameaçado em
sua integridade, chega às bordas da crise, também se ligam ao exemplo de Roma,
porém nele não encontram mais do que inspiração para uma inédita figura de
ditador-repúblico jamais vista na prática e que parece significar o temor de ver-se
irremissivelmente perdida a essência do ente político. E, como sempre que cuida
do Estado em perigo, não pode Rousseau esquecer-se de seu conteúdo ético, pelo
que normalmente se passa, no Capítulo VII, à questão da censura que corres-
ponde, para a opinião pública, ao que, para a vontade geral, é a lei. Não se bus-
que aí, contudo, a raiz da exposição sobre a religião civil que surge no capítulo
seguinte, fruto de diversa inspiração e de circunstânciàs distintas das responsá-
veis pelo mais que se encontra nesse livro. Embora não constitua, propriamente,
um corpo estranho ao conjunto do Contrato Social, esse capítulo sempre exigirá
estudo e comentário à parte. Afinal, o derradeiro capítulo não passa de brevís-
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sima conclusão em que, à guisa de escusa, Rousseau enumera o que não pôde
expor, isto é, o que constituiria o plano completo das Instituições Políticas.

4. Observações sobre o texto

Na revisão desta edição do Contrato Social, utilizamo-nos, para confronto, da


edição clássica de Vaughan 5 , por ela ajustando as eventuais variantes, inclusive
no que respeita à pontuação e ortografia quando possuíam significação para a
transposição em português, como, por exemplo, o emprego intencional da maiús-
cula ou minúscula inicial no vocábulo lei. Não ignoramos as contribuições valio-
sas trazidas, posteriormente, por Maurice Halbwachs, porém, não chegando
algumas a modificar substancialmente o sentido do texto de Rousseau e sendo
numerosas aquelas que tendem à reposição de maiúsculas e outras peculiari-·
dades ortográfi.cas à maneira do século XVIII segundo a edição original, pareceu
mais seguro ater-nos à versão de Manchester, considerada exemplar, inclusive
pelos especialistas franceses, como Robert Derathé, Bertrand De Jouvenel e Pier-
re Burgelin, para citar os que assinam trabalhos mais recentes.
De outra parte, a tradução, que procurou manter-se o mais próximo possível
do original, embora com algum sacrifício estilístico, foi respeitada nesse intuito,
particularmente conforme à intenção de rigor sistemático e exatidão expressiva
que, embora nem sempre plenamente alcançada, constituiu a constante preocu-
pação de Jean-Jacques Rousseau ao redigir o Contrato Social.

5 Jean-Jacques Rousseau: Du Contrai Social ou Principes du Droit Politique, edited by C. E. Vaughan,

Manchester, 1947. (N. de L. G. M.)

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