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CURSO DE DIREITO FINANCEIRO E TRIBUTÁRIO

II. DESPESA PÚBLICA

1. Introdução
2. Conceito e requisitos
3. Classificações da despesa pública
4. Realização da despesa pública e “escolhas trágicas”
5. Ilicitude do dispêndio e sanções

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Carlos Alexandre de Azevedo Campos

1. Introdução

A atividade financeira do Estado, como visto, é o conceito nuclear do Direito


Financeiro. Ela compreende a atividade estatal de obtenção, gestão e dispêndio de recursos
públicos na direção da satisfação das necessidades públicas. Tanto o Direito Financeiro
Positivo como a Ciência do Direito Financeiro cuidam separadamente dessas três “fases” da
atividade financeira do Estado – a obtenção, a gestão e o dispêndio dos recursos. O
dispêndio dos recursos públicos é disciplinado e estudado sob o rótulo de Despesa Pública.
Esse é o tema do qual se ocupa o presente capítulo.

2. Conceito e requisitos da Despesa Pública

A despesa pública corresponde a um dispêndio de recursos públicos relativo à


determinada finalidade de interesse público (uma necessidade pública). O uso do dinheiro
público para a realização de obras e serviços públicos, em favor da população, caracteriza a
chamada despesa pública. Pode-se, assim, conceituar despesas públicas como o gasto da
riqueza pública, devidamente autorizado pelo poder competente (o Poder Legislativo), com
o fim de satisfazer as necessidades públicas.

Aliomar Baleeiro1 definiu despesas públicas, enxergando-as em seus sentidos amplo


e restrito: em latu sensu, é “o conjunto dos dispêndios do Estado, ou de outra pessoa
jurídica de direito público, para o funcionamento dos serviços públicos”; em strictu sensu, é
a “aplicação de certa quantia, em dinheiro, por parte da autoridade ou agente público
competente, dentro de uma autorização legislativa, para execução de fim a cargo do
governo.” A primeira definição pode ser considerada como a despesa pública em seu
significado abstrato, como a previsão, em orçamento público, do emprego das receitas
públicas em diversas atividades do Poder Administrativo no cumprimento de suas
atribuições. No segundo sentido, bem mais concreto, trata-se da despesa pública decorrente
de um pagamento específico para o custeio de determinada atividade administrativa
obrigatória, sendo o dispêndio de dinheiro elemento essencial da despesa pública.

1
BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução ao Estudo das Finanças. Op. cit., p. 73.

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A aplicação de dinheiro na satisfação das necessidades públicas representa a


despesa pública, que vem a corresponder a uma das facetas da atividade financeira do
Estado. Como consequência de a eleição das necessidades públicas ser uma decisão
política, as despesas públicas decorrem, necessariamente, de uma decisão política. O exame
das despesas públicas, aprovadas pelo Congresso na Lei Orçamentária (Cf. Capítulo IV),
identifica o plano de governo que será concretizado: se houver maior previsão de despesas
públicas para a área de saúde, o plano de governo será voltado precipuamente para a saúde
da população; por outro lado, diferentemente, se houver maior previsão para gastos na área
de educação, teremos que o Estado priorizou a educação como meta de governo.

Os governantes não podem gastar à vontade, ou seja, não são livres para realizarem
as despesas públicas que desejarem. Existem limitações para estes gastos. A autorização
para efetivação das despesas públicas deve observar alguns requisitos:

1) autorização legislativa – todas as despesas devem estar aprovadas pelo


Congresso Nacional na Lei Orçamentária (arts. 165, 167, 169, todos da
CF/88). A execução das despesas públicas, pelo Poder Executivo, deve se
submeter ao Poder Legislativo, tal como as despesas do Poder Judiciário;

2) observância do processo de licitação – deve haver licitação para a escolha


daqueles que executarão os serviços públicos, venderão mercadorias, para
alienações dos bens públicos, todos destinados para a satisfação das
necessidades públicas (art. 37, XXI, da CF/88);

3) empenho das despesas públicas – o empenho significa o ato administrativo


que reserva recursos suficientes, tirados do orçamento público, para
pagamento do débito respectivo. Tem natureza jurídica de ato administrativo
e visa garantias de recebimentos aos credores do Estado.

Não obstante, um corte explicativo deve ser feito acerca do requisito da autorização
legislativa para o caso de despesas públicas voltadas para a satisfação de direitos
fundamentais, inclusive do mínimo existencial. Os direitos fundamentais e os sociais, esses
em sua expressão de mínimo existencial, devem ser garantidos pelo Estado mesmo se não

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contemplados por políticas públicas ou por qualquer outra previsão legal, podendo a
execução dos serviços públicos correspondentes ser imposta judicialmente. 2 Na omissão do
legislador em estabelecer o dispêndio de recursos públicos para satisfação desses direitos
fundamentais, caberá ao Judiciário determinar a institucionalização das medidas necessárias
para a fruição desses direitos. A fundamentalidade desses direitos justificaria a
judicialização da despesa pública. Essa questão será retomada no tópico 4.

3. Classificações da despesa pública

As despesas públicas podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios. O


primeiro a ser observado é o critério de sua periodicidade, de onde se extrai que as
despesas públicas podem ser ordinárias ou extraordinárias:

a) despesas ordinárias – representam a rotina dos serviços públicos e são


renovadas anualmente no orçamento (saúde, educação, segurança, folha de
salário dos servidores públicos, etc.);

b) despesas extraordinárias – são as despesas momentâneas, esporádicas, que não


se renovam todo ano (calamidade pública, evento internacional de grande porte).

Há autores que classificam as despesas, segundo suas utilidades, em produtivas,


reprodutivas e improdutivas. As primeiras se limitam a criar utilidades por meio da atuação
estatal (atividade policial, atividade jurisidicional, etc.); as segundas são as que representam
aumento de capacidade produtora do país (construção de escolas, estradas, hidroelétricas,
etc.); já as improdutivas correspondem às despesas inúteis.3

2
Na já clássica e sempre lúcida lição de Ricardo Lobo Torres, O Direito ao Mínimo Existencial, Rio de
Janeiro: Renovar, 2009, p. , o direito ao mínimo existencial consiste no “direito às condições mínimas de
existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (=imunidade)
e que ainda exige prestações estatais positivas”. No âmbito dos direitos sociais, essa garantia toca às pessoas
que se encontram abaixo da linha da pobreza e representa as condições mínimas à existência digna do ser
humano como condições iniciais da liberdade, de modo que ninguém pode ser privado destas condições
materiais aquém de um mínimo, sob pena de desaparecer a própria liberdade.
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HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 8ª ed., São Paulo: Atlas, p. 41/42.

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Outro critério adotado é o da competência para sua realização. Deste critério


classificam-se as despesas em federais, estaduais e municipais. As despesas federais
atendem aos serviços públicos privativos da União Federal, previstos no art. 21 da CF/88.
As despesas estaduais e municipais atendem aos serviços próprios dos Estados e dos
municípios, respectivamente. Contudo, essa classificação não pode ignorar haver
competências comuns (art. 23 da CF/88), bem como competências concorrentes (art. 24 da
CF/88), o que deixa certas despesas públicas fora do critério de exclusividade de
competência. Despesas com saúde pública e proteção ao meio ambiente são exemplos

Por fim, cumpre destacar a classificação legal das despesas públicas, prevista na Lei
nº 4.320/64, que, em seu art. 12, divide as despesas públicas em despesas de capital e
despesas correntes. Esta conceituação é feita por lei e se esgota na lei, não tendo grande
aceitação no mundo doutrinário.

4. Realização da despesa pública e “escolhas trágicas”

O professor Ricardo Lobo Torres aponta três fases distintas da realização da


despesa: o empenho; a liquidação e o pagamento. No entanto, quando se tratar de obras,
serviços e compras de bens, essas fases deverão ser precedidas pelo processo de licitação,
disciplinado pela Lei 8.666, de 1993, e que se impõe em nome da moralidade pública, mas
também da isonomia.

Empenho da despesa é o ato pelo qual a Administração Pública reserva, de seu


orçamento total, o valor necessário para o pagamento de respectiva despesa. Liquidação da
despesa, estágio seguinte, consiste na operação pela qual a Administração se certifica do
direito adquirido pelo credor ao recebimento por seus serviços prestados, obras realizadas
ou mercadorias fornecidas. Essa certificação envolve também o cálculo final do pagamento
a ser feito. O pagamento da despesa é seu estágio final, quando a Administração satisfaz o
crédito e realiza efetivamente a despesa pública. O art. 42 da LC 101/200 (Lei de
Responsabilidade Fiscal) veda que os titulares da Administração Pública contraiam
obrigações de despesa que não possam ser cumpridas integralmente dentro dos últimos dois

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quadrimestres do mandato ou que tenham parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem
que haja suficiente disponibilidade de caixa.

É de se destacar ainda que, em relação às despesas oriundas de sentenças judiciais,


as Fazendas Públicas Federal, Estaduais e Municipais haverão de realizá-las
exclusivamente por meio do instituto do precatório judicial, na ordem cronológica de sua
apresentação e à conta dos créditos respectivos, conforme estabelecido no art. 100 da
Constituição de 1988 e de acordo com as exceções dispostas nos parágrafos desse mesmo
dispositivo constitucional.

Tema fundamental que envolve a despesa pública é o dos limites de gastos públicos
em um cenário de necessidade de escolhas sobre “em que gastar” diante da pluralidade de
necessidades públicas e da possibilidade de escassez de recursos. Esse tema, tratado,
normalmente, sob o rótulo da “reserva do possível” (que será aprofundado no Capítulo IV),
alcança, principalmente, os processos de realização dos direitos sociais. A necessidade de
tornar efetivos os direitos sociais e econômicos não envolve apenas questões dogmáticas
relativas ao conteúdo e eficácia desses direitos, mas questões de fundo mais prático como a
escassez de recursos financeiros em um cenário de escolhas alocativas.

De fato, a alocação de recursos públicos para a satisfação de direitos envolve


decisões sobre metas, prioridades e meios ótimos de desenvolvimento das funções estatais
em favor desses direitos, o que não é tarefa fácil em um ambiente de necessidade de
escolhas frente a recursos financeiros sempre limitados. Como lembra Daniel Sarmento,
“cada decisão explicitamente alocativa de recursos envolve também, necessariamente, uma
dimensão implicitamente desalocativa. Em palavras mais toscas, sendo curto o cobertor,
cobrir o nariz implica deixar os pés de fora”.4 Sendo ainda mais direto: decidir satisfazer
um direito pode importar sacrificar outros, haja vista a limitação dos recursos públicos.5

4
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel (orgs.). Direitos Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 556.
5
Sobre a falácia desses argumentos, cf. OLIVEIRA, Fernando Fróes. Finanças Públicas, Economia e
Legitimação: Alguns Argumentos em Defesa do Orçamento Autorizativo. Revista da Procuradoria Geral
do Estado do Rio de Janeiro nº 64, 2011.

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Desse tema deriva outro, de maior destaque ainda – o da judicialização da política


no âmbito da execução orçamentária. Uma vez que a realização das despesas públicas não
alcançou determinado setor da sociedade porque a escolha feita prestigiou outras espécies
de necessidades ou de direitos, o grupo prejudicado buscará o Judiciário para satisfazer sua
demanda não atendida pela Administração Pública, vindo então a judicializar matéria que
deveria, originariamente, ser do âmbito decisório exclusivo dos poderes de representação
popular. Esse é, sem dúvida alguma, uma das questões mais controvertidas e discutidas do
direito constitucional contemporâneo.

5. Ilicitude do dispêndio e sanções

O dever da boa administração é uma ideia central da moralidade administrativa,6


que possui status constitucional no art. 37 e encontra proteção na Lei nº 8.429, de
02/06/1992, que trata dos casos de improbidade administrativa e das penas a serem
aplicadas em suas hipóteses. Essa importante lei é determinante para o exercício do
controle sobre os gastos públicos, a execução das despesas públicas, tipificando como atos
de improbidade dos agentes públicos aqueles que importem em enriquecimento ilícito (art.
9º); que causem prejuízos ao Erário (art. 10); e que atentem contra os princípios da
Administração Púbica. Seus dispositivos se aplicam não apenas aos órgãos e entidades da
Administração Pública, mas também às entidades que recebam verbas públicas
correspondentes a mais de 50 por cento de sua renda.

Nos casos de atos que importem em enriquecimento ilícito, isto é, o aumento do


patrimônio pessoal por meio de práticas ilícitas contra os cofres públicos, o legislador
estipulou a pena de perda dos bens obtidos ilicitamente; o ressarcimento dos danos
materiais; a perda da função pública; a suspensão dos direitos políticos por 8 a 10 anos;
multa até três vezes do acréscimo patrimonial ilícito; além da proibição de contratar com a
Administração Pública por dez anos. Nos casos de danos ao Erário Público, que importa na
indevida diminuição do patrimônio do Estado em face de ato ilícito do agente público, as
penas também incluem a perda dos bens obtidos ilicitamente; o ressarcimento dos danos

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materiais; a perda da função pública; a suspensão dos direitos políticos, dessa feita por 5 a 8
anos; multa em dobro do dano patrimonial provocado; e a proibição de contratar, por cinco
anos, com o poder público. Já os atos contra os princípios da Administração Pública, como
fraudes e congêneres, as penas são o ressarcimento dos danos; a perda da função pública; a
suspensão dos direitos políticos por entre 3 a 5 anos; multa de até cem vezes a remuneração
recebida; além da proibição de contratar com o poder público por três anos.

A lei tem sido importante para reforçar o controle da execução do orçamento e


melhorar a execução das despesas públicas, contudo, falta ainda uma definição clara do
Judiciário, máxime do Supremo Tribunal Federal, sobre a plena aplicação da lei aos agentes
políticos como prefeitos e governadores. Ao que tudo indica, em breve a Corte produzirá
uma solução para o tema.7

6
MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, p. 71 e ss.
7
Cf. STF – Pleno, ARE 683.235/PA (RG), Rel. Min. Teori Zavascki.

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