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PSICOLINGUÍSTICA

Lia Emília Cremonese


Produção da linguagem:
processamentos mentais
envolvidos na fala
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever a relação entre linguagem, fala e pensamento.


 Identificar as funções dos hemisférios cerebrais para a fala e a
linguagem.
 Caracterizar as diferentes etapas da produção da linguagem.

Introdução
A psicolinguística trata da mente humana e vê a linguagem não apenas
como intrínseca ao homem, mas também — e em virtude disso — como
uma oportunidade de vislumbre do pensamento. A linguagem é algo
que dá acesso não à totalidade, mas a uma parte daquilo que se espera
poder alcançar um dia em relação ao conhecimento sobre a evolução e
o funcionamento cognitivo de nossa espécie.
Neste capítulo, você estudará sobre a relação entre linguagem, fala e
pensamento e verá que a diferença entre essas abordagens gerou uma
grande transformação nessa linha de pesquisa. Além disso, verificará
que cada hemisfério cerebral tem uma função distinta e interfere de
alguma forma no desenvolvimento cognitivo do ser humano. Por fim,
conhecerá as diferentes etapas da produção da linguagem, bem como
os desdobramentos possíveis por esse caminho.
2 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

Linguagem, fala e pensamento


Para compreender a relação entre a linguagem, a fala e o pensamento, den-
tro dos parâmetros da psicolinguística, é necessário, inicialmente, entender
determinados conceitos. Afinal, como apontava Saussure (2006, p. 15), “[...]
bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o
ponto de vista que cria o objeto [...]”. Ou seja, somente podemos identificar
efetivamente um objeto de estudo a partir da determinação do ponto de vista
teórico que o cientista adotará.
Assim, é preciso explicitar que, do ponto de vista da psicolinguística,
quando falamos em linguagem, estamos nos referindo a um elemento que
faz parte da constituição biológica do cérebro. Segundo Pinker (2002, p. 9), a
linguagem “[...] é uma habilidade complexa e especializada, que se desenvolve
espontaneamente na criança, sem qualquer esforço consciente ou instrução
formal [...]”. O autor ainda afirma que a linguagem já foi descrita como “[...]
uma faculdade psicológica, um órgão mental, um sistema neural ou um módulo
computacional [...]”, mas que ele prefere “[...] o simples e banal termo ‘instinto’
[...]”. Tal termo é adotado pelo autor por lembrar o fato de que a linguagem
não é uma “[...] invenção cultural [...]”, na medida em que não foi criada pelo
homem. Segundo ele, ao considerarmos a linguagem como “[...] uma adapta-
ção biológica para transmitir informação [...]”, passamos a respeitar cada ser
humano, independentemente de sua origem ou de sua formação, e qualquer
língua que seja em sua própria complexidade.
Nesse contexto, Balieiro Jr. (2004, p. 191) afirma que “[...] se consideramos
as bases indubitavelmente cerebrais (ou mentais) do pensamento e a hipótese
de que este pensamento se articula com a linguagem [...]”, precisamos reco-
nhecer “[...] que o acesso que temos a este processamento é indireto, ou seja,
supomos que existe um processamento linguístico na mente ou no cérebro
da pessoa, mas somente temos acesso aos eventos físicos a ele relacionados,
sejam estes eventos a fala, o gesto ou a escrita [...]” (BALIEIRO JR., 2004,
p. 192). Assim, outros dois conceitos cuja explicitação se faz necessária são
língua e fala. Segundo Slobin (1980, p. 204), “A fala é um processo físico
tangível que resulta na produção dos sons da fala”, ao passo que a “língua é
um sistema intangível de significados e estruturas linguísticas [...]” .
Como nosso acesso ao pensamento é restrito, é normal que tenham sido
elaboradas diferentes teorias sobre a relação entre a linguagem, a fala e o
pensamento. No início do século XX, havia uma crença preponderante acerca
desse tema. De acordo com Slobin (1980), os behavioristas defendiam que
pensamento e fala estavam intrinsecamente ligados. A posição mais radical,
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do americano John B. Watson, era de que fala e pensamento seriam a mesma


coisa; já a dos psicólogos russos, como Ivan Sechenov, era de que fala e pensa-
mento estariam relacionadas nas crianças, porém, nos adultos, o pensamento
seria um pouco mais livre. Entretanto, basta pensar em um exemplo simples,
como alguém que sofre um acidente e fica desprovido da capacidade de fala,
mas compreende o que lhe é dito e se comunica de outra forma que não a oral,
para que se perceba que essa relação não pode ser verdadeira.
Os teóricos Jean Piaget e Lev Vygotsky tiveram posicionamentos diferentes,
os quais, simultaneamente (ambos nasceram no mesmo ano, 1896) e em dife-
rentes lugares (Suíça e Rússia, respectivamente) estudaram o mesmo tema (o
desenvolvimento cognitivo), porém sem nunca terem se encontrado. Segundo
o primeiro, “[...] o desenvolvimento cognitivo avança por si, em geral seguido
pelo desenvolvimento linguístico, ou encontrando reflexo na linguagem da
criança. O intelecto da criança se desenvolve por meio da interação com as
coisas e pessoas do seu meio ambiente [...]” (SLOBIN, 1980, p. 203). Já para
Vygotsky, “[...] a fala pode servir ao pensamento, e o pensamento pode ser
revelado na fala [...]” (SLOBIN, 1980, p. 202).
Slobin (1980) ressalta que a crença de Watson relaciona a fala ao pensa-
mento, ao passo que Vygotsky e Piaget relacionam linguagem e pensamento,
ou seja, “[...] as relações entre linguística interna e estruturas cognitivas [...]”
(SLOBIN, 1980, p. 204). Para ir além, pode-se “[...] indagar se é possível o
pensamento sem a FALA INTERIOR — isto é, sem alguma atividade da lin-
guística interna [...]. Há muitos processos mentais que parecem pré-linguísticos
ou não linguísticos [...]” (SLOBIN, 1980, p. 205) — um exemplo seria tentar
encontrar uma palavra mais adequada para expressar o que se deseja. Pode-se
observar que “[...] uma frase não é um mapeamento direto a um pensamento
[...]” (SLOBIN, 1980 p. 206); se assim fosse, não haveria necessidade de buscar
uma “palavra ideal” em determinado momento, por exemplo.
Vygotsky (1939, documento on-line) afirmou não haver correspondência
entre as unidades do pensamento e aquelas da fala: “[...] o pensamento tem a
sua própria estrutura e a transição entre ele e a linguagem não é coisa fácil
[...]”. Slobin (1980, p. 202) afirma que, ainda que sem a língua a existência
humana — cultura, comportamento, pensamento — certamente não seria
como é, e que, portanto, “[...] ninguém negue o papel central da língua na
vida humana, definir a natureza desse papel tem sido um problema difícil e
persistente [...]”. Assim, é muito difícil determinar qual o espaço e os atributos
da linguagem verbal em relação ao pensamento em toda a sua complexidade,
com “[...] imagens e emoções, intenções e abstrações, lembranças de sons e
perfumes e sentimentos, e muita coisa mais [...]” (SLOBIN, 1980, p. 202).
4 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

Representação mental e instrumentos do pensamento


Segundo Slobin (1980), ao considerarmos a relação entre língua e cognição, é
necessário levantar duas questões, segundo o ângulo a partir do qual olhamos
tal relação. “Se consideramos a língua como uma entre as muitas formas de
REPRESENTAÇÃO MENTAL [...]”, devemos nos perguntar quais são as
relações entre essas formas, o que consiste em “[...] uma questão estrutural
[...]” (SLOBIN, 1980, p. 207). Por outro lado, “Se consideramos a língua como
um dos INSTRUMENTOS DO PENSAMENTO [...]”, precisamos entender
como esse “[...] ‘instrumento’ influencia os processos cognitivos [...]”, o que
é “[...] uma questão de uso [...]” (SLOBIN, 1980, p. 207).
No que concerne à linguagem como representação mental, “[...] para que
os processos do pensamento se realizem — raciocínio, planejamento, solução
de problema, etc. —, é necessário que o conhecimento seja codificado e
armazenado de alguma forma [...]” (SLOBIN, 1980, p. 208). Algumas formas
de representação são: enações, imagens, proposições, traços e protótipos.
A ideia de representação enativa liga-se à capacidade sensório-motora.
Na infância, em particular, aprende-se muito por meio da manipulação. Para
exemplificar, basta lembrar do ato de dar laço no tênis, de dançar, de usar
instrumentos. Os adultos mantêm representações enativas, como, por exemplo,
fazer gestos com os braços.
O escritor Millôr Fernandes jocosamente afirmou, desafiando uma famosa
frase, que “Se uma imagem vale mais que mil palavras, então diga isso com
uma imagem”. No entanto, certos conhecimentos apenas podem ser expressos
por palavras. Não poderíamos representar uma teoria, por exemplo, por meio
de imagens. Contudo, as imagens mentais (interiores) têm grande relevância.
Cores, faces, representações artísticas, todas são representadas por imagens
no pensamento. Um questionamento importante é se haveria algum tipo de
estrutura comum a palavras e imagens.
As proposições igualmente fazem parte da representação mental, corres-
pondendo a uma “[...] rede de conceitos inter-relacionados, que é mais abstrata
e mais geral que qualquer expressão linguística particular em palavras e
frases ou a imagem de qualquer acontecimento particular [...]” (SLOBIN,
1980, p. 210). Mais especificamente, esses elementos seriam representações
subjacentes, como descrições de situações — por exemplo, “mamãe me deu
um brinquedo”.
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Os traços ou protótipos dizem respeito a atributos que agrupam deter-


minados elementos. Por exemplo, brinquedos, louças e ferramentas têm em
comum o fato de serem inanimados; cachorrinhos, bebês e pintinhos, de serem
filhotes. Os traços, no entanto, não dão conta de tudo. Para Eleanor Rosch,
que ampliou a ideia de Wittgestein de que o armazenamento de conceitos é
feito por meio de semelhanças parciais e traços que se cruzam, esse conjunto
de informações é ampliado pela noção de transvariação (SLOBIN, 1980)
Segundo tal acepção, nenhum elemento de um conjunto (família) apresenta
todos os traços semelhantes, mas há um prototípico que reunirá a maior parte
deles. Assim, sabiás e corujas são bons exemplos de aves, mas pinguins e
avestruzes, ainda que se enquadrem, parecem menos aves que os primeiros,
por não voarem ou serem muito grandes. Dessa forma, “[...] muitas categorias
se organizam de maneira vaga, em torno do melhor exemplo e protótipo,
esmaecendo nos limites [...]” (SLOBIN, 1980, p. 213).

Você sabe a que nos referimos quando falamos em enação?


Uma representação enativa, explica Slobin (1980, p. 209), diz respeito às capacidades
motoras: “[...] as crianças aprendem muito do mundo através de manipulação ativa e há
um bom número de provas de que a representação enativa, ou imagem muscular, é
um antigo modo de representar objetos [...]”. O autor ainda lembra que, mesmo quando
adultos, seguimos usando esse tipo de representação ao utilizar gestos para solicitar
ou mesmo nos referir a algo na comunicação cotidiana. Se, por exemplo, fazemos
um gesto imitando o movimento de cortar quando queremos que a pessoa próxima
nos alcance uma faca, ou um movimento imitando uma tesoura com os dedos, isso
sugere “[...] que os padrões motores continuam a desempenhar um papel em nossos
modos de conceber objetos e acontecimentos [...]” (SLOBIN, 1980, p. 209).

Independentemente do tipo de representação do pensamento, há ainda


dois aspectos importantes. O primeiro diz respeito ao fato de que, por mais
que isso seja um problema, uma vez que a psicolinguística aborda as relações
entre pensamento e linguagem, há uma conceituação clara de pensamento
que subjaz à teoria. O segundo ponto é que a forma de interação entre os
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diferentes sistemas de representação mental (sejam eles linguísticos ou não)


não estão claras. Haveria uma espécie de “mentalês”, uma linguagem da mente
por meio da qual se teria a capacidade de “[...] traduzir imagens sensoriais,
pensamentos abstratos e expressões linguísticas?” (SLOBIN, 1980, p. 214).
Quando se trata a língua como um dos instrumentos do pensamento, é pre-
ciso levar em consideração o uso da língua como instrumento do pensamento,
internamente, e como instrumento de comunicação, interpessoalmente. Ambos
os aspectos relacionam-se de forma direta com os papéis que a linguagem
exerce tanto na aprendizagem quanto na memória. “A capacidade de codi-
ficar experiências verbalmente influencia, muitas vezes, o modo pelo qual
essas experiências são lembradas. De fato, muitas lembranças são distorcidas
JUSTAMENTE PORQUE estão armazenadas de forma verbal [...]” (SLOBIN,
1980, p. 216). No entanto, como nem tudo pode ser representado verbalmente de
forma tão precisa, a memória pode falhar. Memórias que associam elementos
verbais e visuais tendem a ser mais facilmente acessíveis — a associação de
uma forma a um nome de objeto, por exemplo.
Slobin (1980, p. 217) destaca algumas mudanças que nossas memórias
de histórias e de acontecimentos sofrem. O nivelamento implica que muitos
acontecimentos desaparecem para uma maior concisão, deixando a história
“[...] mais curta e esquemática [...]”. Já o aguçamento faz alguns detalhes
ganharem maior destaque, sendo “[...] várias vezes repetidos e recontados
[...]”. Por fim, há a “[...] assimilação e alguns esquemas, ou estereótipos ou
expectativas [...]”. Como afirma Slobin (1980, p. 217), “[...] até certo ponto, nós
lembramos os acontecimentos como queremos lembrá-los; as recordações se
mudam, muitas vezes, para atender aos nossos preconceitos ou desejos — para
se tornarem a nós mais plausíveis ou aceitáveis [...]”.
Vale questionar, aqui, qual seria, afinal, o objetivo desse tipo de esque-
matização que ocorre na memória. A resposta é bastante simples: trata-se de
uma necessidade, posto que não conseguiríamos lembrar de todas as coisas
que nos acontecem. Imagine que você precisasse recordar algo que aconteceu
no dia anterior: se não se lembrasse de tudo, teria de reviver o dia todo, no
mesmo período, para recordar algum evento.

As funções dos hemisférios cerebrais para


a fala e a linguagem
Os seres humanos são dotados de um órgão altamente especializado, cuja
totalidade de funções e alcance ainda estamos longe de conhecer. Nosso cérebro
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é relativamente grande (cerca de 1,5 kg), se comparado ao nosso corpo, e a sua


quantidade de células é “[...] superior ao número que tem o cérebro de qualquer
outro animal do mesmo peso [...]” (SLOBIN, 1980, p. 165). Poderíamos supor
que o tamanho do cérebro seja determinante para a aquisição da linguagem,
mas isso não é, necessariamente, verdade. Brunoni et al. (2016), por exemplo,
fazem um acompanhamento de crianças com microcefalia e relatam o atraso,
mas não a ausência do desenvolvimento linguístico em tais crianças. Portanto,
como afirma Slobin (1980), a nossa capacidade para a linguagem deve estar
relacionada à organização do cérebro, e não à sua massa.
Segundo Pinker (2002, p. 47), se a linguagem é um instinto, como ele
defende, deve haver uma “localização identificável no cérebro [...] que ajude
a mantê-la no lugar. No caso de danos desses [...] neurônios, deveria haver
prejuízo da linguagem sem que outras partes da inteligência fossem afetadas”.
Embora ainda não tenha sido encontrado um órgão da linguagem, diz o autor,
a pesquisa continua, e se há um endereço no cérebro para a linguagem, este
é o hemisfério esquerdo.
De modo geral, o sistema nervoso dos animais é simétrico (SLOBIN, 1980).
Nos seres humanos, entretanto, os hemisférios cerebrais diferem estrutural-
mente, e essa diferença reflete no funcionamento. Scliar-Cabral (2018) relata
que os primeiros estudos com relação à distinção entre produção e compreensão
da linguagem verbal foram feitos por neurologistas. Paul Broca, em 1861,
realizou um exame post mortem do cérebro de um paciente que, ainda que
entendesse o que lhe diziam, havia perdido a capacidade de produzir palavras,
exceto o monossílabo tan. A partir desse exame, Broca constatou uma lesão
na parte frontal do hemisfério esquerdo, “[...] antes do córtex motor e acima
da fissura transversal, conhecida como fissura de Sylvius, que separa a região
temporal da parietal e de parte da região frontal [...]” (SCLIAR-CABRAL,
2018, p. 429). Lesões nessa região, chamada então de área de Broca, provocam
a afasia de Broca ou de produção (Figura 1).
Pouco depois, em 1874, Wernicke “[...] formulou a hipótese de uma conexão
entre a parte posterior do giro temporal do hemisfério esquerdo, que processa
as imagens sensoriais acústicas das palavras com a que processa as imagens
motoras de palavras e sílabas [...]”, o que explicaria o fato de haver pacientes
cujas lesões na posteriormente chamada área 22 de Brodmann “[...] tivessem
a compreensão verbal comprometida, embora eles produzissem um discurso
fluente, mas sem sentido, conhecido como discurso da jargonofasia. A deno-
minação corrente para esse tipo de afasia passou a ser afasia de recepção ou
receptiva [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 429).
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Córtex motor primário


Área de Brodmann (AB 4)

Córtex pré-motor Sulco central


(AB 6)

Lobo frontal Lobo parietal


Sulco temporal
Sulco frontal superior (STS)
inferior (SFI)
Lobo occipital
Área de broca
(AB 44/45)

Lobo temporal
Opérculo frontal (OPF)
Giro de Heschl (GH)
Superior Área de Wernicke Córtex auditivo primário (CAP)
(AB 42/22)

Anterior Posterior
44/45 Giro frontal inferior (GFI)
22/38/42 Giro temporal superior (GTS)
Inferior
21/37 Giro temporal médio (GTM)

Figura 1. Partições do sistema nervoso central para as funções da linguagem verbal oral.
Vistas da área de Broca, localizada no giro frontal inferior (GFI), e da área de Wernicke,
localizada no giro temporal superior (GTS), ambas no hemisfério esquerdo.
Fonte: Scliar-Cabral (2018, p. 430).

Lembre-se de que os hemisférios cerebrais recebem informação do lado


oposto do corpo, e conexões transmitem essas informações entre os lados
(SLOBIN, 1980). “Se a língua está ‘localizada’ no hemisfério esquerdo, o
ouvido direito deve estar mais em condições de realização da linguagem que
o ouvido esquerdo [...]” (SLOBIN, 1980, p. 170). De fato, Doreen Kimura
descobriu, por meio de um teste denominado “tarefa de audição dicotômica”,
que os ouvintes “[...] relatam com mais exatidão a matéria verbal apresentada
no ouvido direito do que a matéria simultaneamente apresentada ao ouvido
esquerdo [...]” (SLOBIN, 1980, p. 170). Não se trata de uma diferença fisiológica
de recepção sonora entre os ouvidos, mas de interpretação diferenciada pelo
cérebro. “O hemisfério esquerdo se ajusta, perfeitamente, a receber os sons para
fins de realização estritamente linguística ou acústica. O hemisfério direito
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é superior ao esquerdo na tarefa de detectar sons ambientais não linguísticos


e melodias [...]” (SLOBIN, 1980, p. 170).
Pinker (2002, p. 391) apresenta a hipótese de que a linguagem, nos
seres humanos, pode ter se concentrado no hemisfério esquerdo por ser
“[...] coordenada no tempo, embora não no espaço ambiental [...]”, ou seja,
“[...] palavras são reunidas em ordem, mas não apontadas em várias direções
[...]”. Muitos psicólogos cognitivistas, diz Pinker (2002, p. 391), creem que
“[...] uma grande quantidade de processos mentais que exigem coordenação
sequencial e ordenação de partes, como reconhecer e imaginar objetos de
muitas partes e empreender passo a passo raciocínios lógicos, resida no
hemisfério esquerdo [...]”.
Há, contudo, capacidade linguística no hemisfério direito. Para Slobin
(1980), isso possivelmente é uma garantia do cérebro para o caso de haver
alguma lesão no lado esquerdo. Essa capacidade linguística, entretanto, é
limitada. Se há dano cerebral no lado esquerdo ainda na infância, o lado direito
assume sua função, e a aquisição de palavras ocorre normalmente, porém a
capacidade sintática (de combinações), mesmo que adequada, não se iguala
à alcançada pelo hemisfério esquerdo. Pinker (2002) aponta o fato de que o
hemisfério esquerdo controla a linguagem de 97% dos destros, mas, quanto
aos canhotos, 19% têm sua linguagem controlada pelo hemisfério direito, 68%
pelo esquerdo, e os demais por ambos os lados, casos em que os indivíduos,
devido à linguagem estar distribuída de forma mais uniforme, apresentam maior
possibilidade, no caso de terem lesão cerebral, de não sofrerem afasia. Além
disso, “[...] alguns dados demonstram que, embora os canhotos se destaquem
em matemática e atividades espaciais e artísticas, eles são mais suscetíveis
a distúrbios de linguagem, dislexia e gagueira [...]” (PINKER, 2002, p. 391).
Duas questões ainda devem ser abordadas: por que um ser humano leva
três anos para dominar completamente a gramática (como conjunto de regras)
de sua língua? (Ainda que isso seja surpreendente, considerando-se o grau de
especialização e complexidade da linguagem humana. Pense no tempo que
levam os outros animais para se exprimirem conforme sua espécie.) E por
que há um limite para a aquisição da linguagem?
O desenvolvimento da linguagem nos bebês não parte do zero. Lembre-se de
que, para Pinker (2002), a língua é um instinto, então nascemos “programados”
para usá-la, o que já foi comprovado por testes. O autor narra o experimento
que Peter Eimas e Peter Jusczyk realizaram com bebês de um mês:
10 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

[...] colocaram dentro de uma chupeta um dispositivo conectado a um gravador,


de tal modo que, quando o bebê sugava, a fita tocava. Quando a fita tocava
monotonamente ba, ba, ba, ba..., os bebês demonstravam seu fastio sugando
mais lentamente. Mas, quando as sílabas mudavam para pa, pa, pa..., os bebês
começavam a sugar com mais vigor, para escutar mais sílabas. Além disso,
não escutavam as sílabas apenas como sons brutos; usavam o sexto sentido,
a percepção da fala: dois ba que diferem acusticamente entre si tanto quanto
um ba difere de um pa, mas que são ambos escutados como ba por adultos,
não reavivaram o interesse das crianças (PINKER, 2002, p. 335).

Conforme Pinker (2002), as crianças ouvem como os adultos, e já nascem com


essa habilidade; ela não é aprendida com os pais. No entanto, ainda precisam da
interação social (i.e., ouvir regularmente a fala dos adultos) para apreenderem a
gramática de sua língua (i.e., a gramática interna, o conjunto de regras fonéticas,
lexicais e morfossintáticas da língua) e desenvolverem pragmaticamente a fala.
Na verdade, as crianças nascem com a habilidade de ouvir todos os fonemas
possíveis em todas as línguas, mas, à medida que vão crescendo, aprendem a
melodia e selecionam os fonemas necessários para a língua que os cerca. As-
sim “[...] por volta dos dez meses, já não são mais foneticistas universais [...]”,
fazendo “[...] essa transição antes de emitir ou compreender palavras, portanto,
sua aprendizagem não pode depender de conseguir correlacionar som e sentido
[...]”. As crianças “[...] devem estar sintonizando de alguma maneira seu módulo
de análise da fala para emitir os fonemas usados em sua língua. Esse módulo
provavelmente serve de unidade avançada do sistema que aprende palavras e
gramática [...]” (PINKER, 2002, p. 335–336).
Pinker (2002) faz uma síntese do desenvolvimento da linguagem nas crian-
ças. Ele explica que, entre os 5 e os 7 meses, os bebês começam a brincar com
sons, e entre os 7 e os 8 meses, a balbuciar sílabas verdadeiras, cujos sons “[...]
consistem em padrões de fonemas e sílabas comuns a todas as línguas [...]”
(PINKER, 2002, p. 338). Essa fase é importante porque “[...] ao escutar seu
próprio balbucio, os bebês [...] aprendem quando devem mover que músculo
em que sentido para obter que mudança no som [...]” (PINKER, 2002, p. 338).
Um pouco antes de 1 ano, as crianças começam a compreender palavras, e,
em seguida, com cerca de 1 ano, a emiti-las. “Por volta dos dezoito meses,
a linguagem deslancha. O incremento de vocabulário ganha a velocidade de
no mínimo uma-palavra-nova-a-cada-duas-horas que a criança irá manter até
o fim da adolescência [...]” (PINKER, 2002, p. 341). E do final do segundo
ano até os três anos e meio, aproximadamente, “[...] a linguagem das crianças
transforma-se numa conversa gramatical fluente, desabrochando de maneira
Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala 11

tão rápida que desconcerta os pesquisadores, e até agora ninguém conseguiu


descobrir a sequência exata desse processo [...]” (PINKER, 2002, p. 341–342).
Retomando nosso questionamento, pode-se dizer que é provável que os
seres humanos levem cerca de 3 anos até o domínio completo de sua língua
materna, uma vez que a linguagem se desenvolve à medida que a criança cresce
e, consequentemente, seu cérebro também se desenvolve. Os seres humanos,
diferentemente dos outros animas, não nascem prontos. Se o tempo da gestação
humana fosse proporcional ao dos demais primatas, duraria 18 meses, idade
em que, de fato, as crianças começam a juntar palavras. Asso, “A linguagem
parece desenvolver-se na velocidade que o cérebro em crescimento tolera [...]”
(PINKER, 2002, p. 368).
Chegamos ao nosso questionamento sobre a idade-limite para a aquisição da
linguagem. Sabe-se que é mais difícil para um adulto aprender uma nova língua,
visto que os aspectos fonológicos acabam não sendo totalmente apreendidos,
e a organização morfossintática pode ser mais bem recebida, mas a fluência
dificilmente será a de um nativo. Casos de crianças que, por algum motivo,
foram mantidas em isolamento até a adolescência e lesões cerebrais a partir
desse período também costumam deixar sequelas irreversíveis. Segundo Slobin
(1980, p. 174), “Pode haver uma ‘idade crítica’ para o hemisfério esquerdo na
sua missão de desenvolver as funções da linguagem, como também para o
hemisfério direito quando precisa assumir tais funções [...]”. Corroborando
essa ideia, Pinker (2002, p. 374) afirma que “[...] a aquisição de uma linguagem
normal é certa para crianças até seis anos, fica comprometida depois dessa
idade até pouco depois da puberdade e é rara depois disso [...]”.
Considerando-se que, segundo essa teoria, a capacidade de aquisição de
linguagem é instintiva, ela não deveria acompanhar o indivíduo ao longo
da vida? Com efeito, o hemisfério direito do cérebro não sofre essa espécie
de “atrofia” que ocorre no hemisfério esquerdo, aponta. O autor responde à
questão ao relacionar tal “atrofia” justamente às necessidades instintivas do ser
humano. O hemisfério que se relaciona com a linguagem está “[...] predisposto
a adquirir a língua NUM ESTÁGIO APROPRIADO DE MATURAÇÃO. [...]
o aprender a falar está condicionado pela complexa tabela do crescimento
físico [...]” (SLOBIN, 1980, p. 175). Ou seja, não faria sentido manter o cé-
rebro ocupado com a obtenção da linguagem após o período em que isso
ocorre plenamente, sendo mais útil direcionar os esforços neuronais a outras
atividades. Ratificando esse ponto de vista, Pinker (2002, p. 375) afirma que
“[...] aprender uma língua – em oposição a usar uma língua – é extremamente
12 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

útil uma única vez. Uma vez aprendidos os detalhes da língua local falada
pelos adultos, qualquer outra capacidade de aprender (afora o vocabulário) é
supérflua [...]”. Isso tem relação com a nossa constituição biológica, decorrente
da evolução. Metabolicamente, “[...] o cérebro consome um quinto do oxigênio
do corpo e porções igualmente grandes de suas calorias e fosfolipídios [...]”
(PINKER, 2002, p. 376). Assim, é natural que, pela seleção natural, os recursos
do corpo sejam diferenciados ao longo de nossa existência física, e corpos que
envelhecem precisam destinar energia para sua sobrevivência — a linguagem,
afinal, já está apreendida e em pleno uso.

Para se aprofundar nas questões abordadas pelo psicolinguista Steven Pinker, ampla-
mente citado, acesse o site do autor, disponível por meio do link a seguir (em inglês).

stevenpinker.com

As etapas da produção da linguagem


A primeira pergunta a ser feita nesta seção, por mais banal que pareça, é: o que
é produção da linguagem no âmbito da psicolinguística? Rodrigues (2015, p.
85) dá uma definição clara e sucinta: “Produção da Linguagem é um processo
altamente complexo, que ocorre de forma automática, podendo se dar num
ritmo de duas a três palavras por segundo [...]”. A autora comenta, ainda, que,
cotidianamente, apenas nos damos conta dessa complexidade em situações
em que há falha no processo, originando lapsos em “[...] unidades fônicas, em
trocas semelhantes às induzidas em brincadeiras de trava-língua [...]”, em “[...]
elementos da morfossintaxe, como nos chamados ‘erros de concordância’ – por
exemplo, em O estudo dos lapsos de fala geraram [...]” ou, ainda, em “[...]
trocas de ordem semântica como a que se observa no sintagma perdas e danos,
quando o falante desejava dizer perdas e ganhos [...]” (RODRIGUES, 2015, p.
85). Assim, a partir tanto das análises feitas dos lapsos quanto dos resultados
decorrentes de experimentação prática, os pesquisadores conseguem construir
Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala 13

“[...] modelos psicolinguísticos acerca do tipo da representação e dos processos


mentais envolvidos na produção da fala [...]” (RODRIGUES, 2015, p. 85).
Scliar-Cabral (2018, p. 428) menciona o desafio em que consiste a elaboração
de modelos de produção da linguagem verbal, devido a:

[...] várias dificuldades metodológicas, desde a elaboração dos experimentos


que possam testar empiricamente as representações mentais que governam
como se iniciam as intenções pragmáticas de produzir um texto, como são
gerados os significados a serem lexicalizados, enfim, todas as etapas de pro-
cessamento até a execução que exterioriza o texto, monitorado continuamente
pelo locutor e acessível à inspeção experimental.

A autora destaca que é mais difícil produzir um texto oral do que o entender.
Afinal, em primeiro lugar, o falante decide o que e como vai dizer, ao passo
que o ouvinte reconhecerá e interpretará a mensagem recebida. Além disso,
“[...] os modelos psicolinguísticos de produção da linguagem verbal oral têm
que dar conta de como somos capazes de produzir palavras numa velocidade
de até três por segundo, isto é, 180 por minuto [...]” (SCLIAR-CABRAL,
2018, p. 428).
Scliar-Cabral (2018) destaca Paul Broca e Karl Wernicke, citados ante-
riormente, como precursores em relação à produção de modelos. Embora eles
fossem da área de neurologia, seus estudos foram extremamente significativos
para o desenvolvimento da ciência psicolinguística, cujo objetivo “[...] não é
a descrição da estrutura do sistema nervoso central, mas testar hipóteses e
teorias que expliquem como ele funciona quando recebemos e produzimos
mensagens verbais, bem como o modo de adquirirmos e aprendermos tais
capacidades [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 430).
A autora explica que o léxico mental é:

[...] constituído por unidades dotadas de significado que são arquivadas na


memória permanente, à medida que o indivíduo as percebe e recorta, usadas
nos mesmos contextos de uso. Há diferentes léxicos, arquivados em áreas
distintas do cérebro, mas a divisão maior é entre os vários léxicos ligados às
referências externas à gramática de qualquer língua, abertos ao registro con-
tínuo de novas entradas e o léxico gramatical, ligado às estruturas sintáticas,
em número fechado e limitado (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 428).

Como há diferentes formas de se conceber essas unidades, existem também


diferentes modelos de representação da produção da linguagem.
14 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

Modelo de produção da linguagem


Optamos por mostrar aqui o mais conhecido, o modelo de Levelt, Roelofs e
Meyer (1999). Segundo Scliar-Cabral (2018), há três propriedades importantes
relacionadas a esse modelo. A primeira trata da questão da precedência do
input (i.e., estímulo auditivo a que o indivíduo é exposto) sobre o output (i.e.,
resposta do indivíduo) e dependência do output em relação ao input. Isso
implica que a criança poderá falar apenas se tiver ouvido adultos falando e
perceptivelmente tenha dado sinais, embora ainda não consiga produzi-los,
de tê-los compreendido. A segunda propriedade dita que a produção verbal
implica tradução de conceitos, noções, pensamentos lexicais em palavras. Por
fim, no último momento da produção verbal oral, há a execução dos gestos
motores do aparelho fonador, que “[...] ocorre a partir da ativação das sílabas
fonéticas que formam a palavra escolhida, constantes no silabário que começa
a ser fixado na fase do balbucio [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 435).
O silabário, explica Scliar-Cabral (2018, p. 435), “[...] surge quando as sílabas
entram na composição de palavras, ou seja, de unidades com significado [...]”. Para
a pesquisadora, isso ocorre quando os bebês deixam de ser o que Pinker (2002, p.
335) chama de “[...] foneticistas universais [...]” e passam a ter sensibilidade para os
traços fonéticos de sua língua. Scliar-Cabral (2018, p. 435–436) ainda destaca que:

[...] apesar da complexidade dos comandos que devem acionar, sinergicamente,


músculos pertencentes a diferentes sistemas do aparelho fonador, a criança, por
volta dos doze meses, já demonstra domínio articulatório de algumas sílabas
como /pa/, /ma/, /da/, /ne/ e logo terá um repertório de cinquenta palavras [...].

Vamos às etapas do modelo em si. O nível em que ocorre o processo, da


mensagem, esclarece Scliar-Cabral (2018, p. 436), “[...] é o mais alto e abs-
trato e deslancha os conceitos que deverão posteriormente ser lexicalizados
e inseridos nas estruturas sintáticas. É movido pelas intenções pragmáticas
dos falantes, tanto ao iniciarem a conversação, quanto quando a mantêm [...]”.
Assim que a mensagem é definida, ocorre a preparação conceitual, como
conceitos lexicais. O produtor tem muitas possibilidades e as selecionará de
acordo com sua intenção comunicativa. Um exemplo seria,

[...] apresentada a figura de um cavalo, o sujeito poder acionar os seguin-


tes conceitos lexicais: CAVALO, BICHO, ANIMAL, JUMENTO, JEGUE,
PINGO, POTRO, entre outros. Os conceitos lexicais integram o que tradi-
cionalmente é conhecido em psicolinguística como memória semântica [...]
(SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 436).
Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala 15

Segue-se, então, para a seleção lexical, que seria a “[...] seleção de um


lema correspondente a esse conceito. O lema pode ser entendido como uma
representação de propriedades gramaticais e sintáticas do item lexical (classe
da palavra, traços gramaticais, estrutura argumental, etc.) [...]” (RODRIGUES,
2009, documento on-line).
Após essa seleção, ocorre a codificação morfofonológica e a silabifica-
ção, nível, chamado por Levelt, Roelofs e Meyer (1999) de forma, em que
aparecem os morfemas integrantes da palavra, cujos fonemas constituintes e
sua ordem são determinados. “Da combinação dos morfemas resulta o output
seguinte, que é a palavra fonológica [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 437).
O próximo momento é a codificação fonética, à qual “[...] cabe computar a
pontuação gestual da palavra fonológica, ou seja, especificar a tarefa arti-
culatória na produção da palavra [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 437).
Nesse momento, ocorre “[...] a especificação das sílabas fonéticas que serão
ativadas no silabário fonético para que o programa motor acione os músculos
adequados para a produção dos gestos fonatórios e a atribuição da prosódia, ou
seja, como se distribuem os acentos [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 437).
Dá-se, então a articulação pelo aparelho fonador, sendo necessárias tanto a
coordenação de “[...] músculos em movimentos simultâneos para a obtenção
de um mesmo alvo, quanto, simultaneamente, a antecipação dos gestos da
sílaba seguinte, com todos os efeitos das mudanças contextuais decorrentes,
já que a execução é dinâmica [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2018, p. 438). Por
último, tem-se a autorregulação. Por exemplo, nós constatamos falhas de
fala do interlocutor, mas, certamente, também em nossa própria fala, uma
vez que o sinal acústico retorna aos nossos ouvidos. Além disso, realizamos
autorregulação de nosso discurso interior, o que afeta o tempo de reação da
fala, uma vez que a decodificação se torna mais lenta.
É importante lembrar que os modelos que tentam identificar os processos
da linguagem são construtos teóricos utilizados como recurso para dife-
rentes estudos. O falante não tem, evidentemente, consciência das etapas
de produção de sua fala. Há incontáveis estudos possíveis relacionados à
produção da linguagem. Entre os vários exemplos dados por Rodrigues
(2015, p. 88), estão questões relativas à representação — como a discussão
sobre se existiria “[...] um pensamento para falar [...] diferente de outros
tipos de pensamento, voltados para outras finalidades [...]” —, à passagem
do conceito para a codificação gramatical — “[...] discute-se se a formu-
lação linguística propriamente dita poderia ou não ter início antes de uma
representação completa de natureza conceptual ter sido construída [...]” —,
à construção de estrutura sintática — há modelos de orientação lexical,
16 Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala

em que “[...] a construção da estrutura sintática é lexicalmente guiada [...]”


e “[...] modelos segundo os quais a estrutura sintática [é] independente de
informação lexical específica [...]” —, à codificação morfofonológica — em
que se busca “[...] identificar quais as unidades de processamento desse nível
e quais os passos envolvidos nessa etapa da produção [...]” (RODRIGUES,
2015, p. 89). Essas são apenas algumas possibilidades dentre as tantas que
há. Um aspecto, contudo, é comum a quaisquer investigações nessa linha:
“[...] diferentemente do que ocorre nas pesquisas em compreensão, no estudo
da produção não se tem acesso direto ao ponto de partida do processo, o que
dificulta o controle e a manipulação de variáveis na condução de experimentos
[...]” (RODRIGUES, 2015, p. 89–90).

Rodrigues (2015) dá vários exemplos de pesquisas realizadas na produção da linguagem.


Um deles é o que reproduzimos aqui (Figura 2).
A pesquisadora explica que, no estudo da concordância, um procedimento é o uso
de lapsos induzidos: “[...] a técnica consiste na apresentação prévia de preâmbulos que
deverão ser empregados na posição de sujeito de uma sentença a ser construída.
A continuidade da sentença pode ser livre, ou podem ser indicados verbos ou adje-
tivos (reais ou pseudopalavras) com os quais o preâmbulo deverá ser combinado [...]”
(RODRIGUES, 2015, p. 91).

Figura 2. Representação esquemática do experimento.


Fonte: Rodrigues (2015, p. 91).
Produção da linguagem: processamentos mentais envolvidos na fala 17

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