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PRINCÍPIOS DOS CONTRATOS - continuação

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA - CONTINUAÇÃO

A boa fé (Artigos 113 e 422 do CC) pode ser:

a) subjetiva (crenças internas, conhecimentos e desconhecimentos,


convicções pessoais, interferência do estado psicológico);

b) objetiva (parâmetros abstratos, standards impostos para a conduta das


partes, que devem agir com honestidade e sem trair a confiança do outro).

Em outras palavras, a boa fé objetiva exige de todos um comportamento


condizente com um padrão ético de lealdade, impondo deveres de conduta e
comportamentos obrigatórios, implicitamente contidos, em todos os contratos.

O PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA tem SUBPRINCÍPIOS, também denominados


DESDOBRAMENTOS ou DEVERES ANEXOS, a saber:

I) TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL (substantial performance


ou cumprimento relevante)

Nos casos em que o contrato tiver sido quase todo cumprido, sendo a mora
insignificante, não caberá sua extinção, mas apenas outros efeitos jurídicos, como a
cobrança ou o pleito de indenização por perdas e danos.

A despeito da ausência de previsão expressa no CC, tem-se associado o


adimplemento substancial com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do
contrato.
Nesse sentido, na IV Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da
Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006, aprovou-se o
Enunciado n. 361 CJF/STJ, estabelecendo que “O adimplemento substancial
decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função
social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

CC, art. 475 - A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do
contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos
casos, indenização por perdas e danos. GRIFO NÃO ORIGINAL

Casos práticos:

• Há busca e apreensão de veículo objeto de venda com reserva de domínio,


no qual se proibiu a retomada do bem, restando a cobrança do saldo devedor
(STJ, Agravo n. 607.406/RS, QUARTA TURMA, Rel. Ministro Fernando
Gonçalves, julgado em 09.11.2004, DJ 29.11.2004, p. 346).

• O mesmo se decidiu ao afastar a liminar em ação de busca e apreensão


concernente a alienação fiduciária em garantia de bem móvel, considerando-
se o pequeno montante da dívida em relação ao valor do bem e o fato de ser
a coisa essencial à atividade da devedora (STJ, REsp. 469.577/SC, QUARTA
TURMA, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em
25.03.2003, DJ 05.05.2003, p. 310).

• Outro caso: contrato de leasing celebrado entre duas empresas, uma


financeira e uma empresa transportadora de mercadorias. Houve o
adimplemento de 30 das 36 parcelas, correspondente a cerca de oitenta e
três por cento do contrato. Por isso foi confirmado o afastamento da então
ação reintegração de posse (STJ, REsp. 1.200.105/AM, Rel. Min. Paulo de
Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 19.06.2012, DJe 27.06.2012).

Deve haver análise caso a caso. Não há percentual de cumprimento prefixado.


Segundo alguns doutrinadores, a análise do adimplemento substancial não deve ser
meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do
montante (percentual) do cumprimento do negócio.

Deve-se considerar, também, o aspecto qualitativo, analisando todas as


circunstâncias (afastando-se sua incidência, por exemplo, em situações de moras
sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito).

II) TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS

A teoria dos atos próprios é baseada na necessidade de proteção das legítimas


expectativas das partes.

Assim, veda-se a prática de atitudes incoerentes, instáveis, inconstantes e errantes


por um dos contratantes.

O comportamento do contratante deve ser linear e constante.

Não se deve romper a crença do outro contratante o qual acreditava que os


comportamentos anteriores seriam mantidos.

Exemplo: mudança, a cada mês, do local e da forma do pagamento.

III) SUPRESSIO

A inércia do titular de um direito, aliada ao decurso do tempo, podem levar à perda:

a) de uma pretensão de recorrer ao Judiciário (prescrição)

b) do direito material (decadência)

Tanto a prescrição quanto a decadência estão expressas na lei, que menciona


textualmente os prazos de cada uma delas.
Pode haver, ainda, uma outra situação, não prevista expressamente na lei, mas que
decorre do princípio da boa-fé.

Não é de boa-fé se levar o devedor a crer, seriamente, que um direito não mais será
exercido, dada a inércia prolongada do credor e, passando um longo tempo, este
surpreender aquele, exigindo tudo de uma vez, causando perplexidade e ferindo
razoável expectativa.

A boa-fé exigível dos contratantes implicaria na supressão (perda) de um direito, não


exercido por tempo e modo tamanhos a ponto de levar o outro contratante a crer,
seria e honestamente, que aquilo nunca mais lhe seria exigido.

A supressio decorrente da expressão alemã werwirkung (em português, perda)


remete à supressão do direito pelo seu não exercício por período considerável ou de
forma a levar a outra parte a considerar, com legítima expectativa, que não mais se
exigirá tal direito. O devedor acredita ter havido uma espécie de desistência tácita.

Há necessidade de que os contratantes ajam mediante conduta constante e retilínea,


impedindo que a parte oposta venha a ser pega de surpresa.

Segundo CARLOS ROBERTO GONÇALVES, um direito não exercido durante


determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé.

Já PABLO STOLZE GAGLIANO cita exemplo: O exemplo tradicional de supressio é o


uso de área comum por condômino em regime de exclusividade por período de
tempo considerável, que implica a supressão da pretensão de cobrança de aluguel
pelo período de uso”.

Exemplos:

a) CC, art. 330 - O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir
renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

b) Não cobrar nos respectivos prazos os reajustes do aluguel e, muito tempo


após, exigir, de só uma vez, todos aqueles reajustes não cobrados nos
respectivos vencimentos, só o fazendo após 2 anos e 11 meses (1 mês artes
da prescrição referida no art.206, §3º, inc. I, do CC).
IV) SURRECTIO

Instituto similar ao da supressio, embora com efeito contrário.

Seria “a outra face da moeda”.

Supressio gera supressão (perda) de um direito

Surrectio leva à aquisição (ganho) de um direito.

Aqui, há a aquisição de um direito não previsto originalmente no contrato.

Isto se dá pelo reiterado e prolongado exercício do direito sem oposição da parte


contrária (o que induz à conclusão de ter havido uma verdadeira aceitação tácita).

Tem-se que um comportamento, mesmo que contrário as regras iniciais do acordo,


se por muito tempo praticado sem qualquer oposição, acaba tomando proporções de
regra.

Há o nascimento de um direito em razão da continuidade da prática de certos atos


não previstos, mas que são tacitamente aceitos pela outra parte.

Como exemplo, podemos citar o caso de um restaurante, locatário de espaço em


shopping center, que sempre teve mesas no corredor, servidas por garçons e,
passados muitos anos, a administração resolve proibir tal prática ante a falta de
expressa previsão no contrato. O STJ já julgou caso similar e este.

Tal postura configuraria uma quebra de confiança praticada pelo locador.

Enfim, pode ser alegada a surrectio quando há o transcurso do tempo e a conduta


das partes em aceitar que os atos fossem sempre praticados daquela forma.
V) TU QUOSQUE (TU QUOQUE)

“Tu quosque, Brutus, filie mi!” (Até tu, Brutus!).

Célebre frase atribuída a Júlio Cesar, pela constatação da traição de seu filho Brutus,
dá nome a este desdobramento do princípio da boa-fé objetiva

A aplicabilidade do chamado tu quosque se dá em situações em que uma parte da


relação contratual é pega de surpresa e com indignação, por determinada atitude da
parte contrária que lhe causa prejuízo.

À título de exemplo, podemos citar os ensinamentos de PABLO STOLZE


GAGLIANO: um bom exemplo desse desdobramento da boa-fé objetiva ... se a parte
não executou a sua prestação no contrato, não poderá exigir da outra parte a
contraprestação. Isto consta do art. 476 do CC:

Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua
obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

VI) EXCEPTIO DOLI

Não há boa-fé objetiva quando determinada parte de um contrato se vale de atitude


dolosa com o intuito de prejudicar a parte contrária.

A lei buscou restringir condutas dolosas no art. 940 do Código Civil e no art.42, par.
ún. do CDC:

CC, art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem
ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a
pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o
equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

CDC, art. 42, parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito
à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido
de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
VII) VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (NON POTEST)

Em uma tradução literal do latim significaria “vir contra um fato próprio”. No direito,
significa agir de maneira contraditória a um fato por você mesmo praticado.

Protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em
contradição com o comportamento por ele próprio assumido anteriormente.

Podemos citar uma situação na qual alguém pratica ato ilegal e, depois, quer se valer
da própria ilegalidade para se eximir de obrigação contraída.

Exemplo: saí com um automóvel sem autorização do proprietário e agora não quero
pagar pelo pedágio e pelo estacionamento, alegando não ser meu o veículo.

Mais um exemplo: credor encerra sua conta bancária sem aviso ao devedor e,
depois, quer receber pagamento, que lá seria depositado, com multa, juros e
correção monetária.

Outro exemplo pode ser extraído da lei:

CC, art. 973. A pessoa legalmente impedida de exercer atividade própria de


empresário, se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas.

No caso acima, embora impedido de exercer a atividade, se o faz, gera a expectativa,


nos contratantes, do cumprimento pactuado, não podendo o indivíduo invocar a sua
própria torpeza para se desvencilhar das obrigações celebradas.

No mesmo sentido, o 175 do CC:

Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos


termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de
que contra ele dispusesse o devedor.
VIII) DUTY TO MITIGATE THE LOSS (dever de mitigar a perda)

Este desdobramento da boa-fé objetiva estipula que credor, caso possa, deve evitar
o agravamento do próprio prejuízo.

Conforme Enunciado nº 169 do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil, “O princípio


da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.
Ensina FLÁVIO TARTUCE que o mencionado enunciado se inspirou no art. 77 da
Convenção de Viena de 1980 sobre a venda internacional de mercadorias:

De forma exemplificativa à aplicação do duty mitigate the loss, podemos citar um


caso no qual, após abandono do imóvel pelo locatário, com danos consistentes em
vazamento de água, o locador aguarda que haja infiltrações totais a ponto de poder
reformar todo o imóvel e exigir valor maior. Tal situação configura verdadeira quebra
da boa-fé objetiva ligada à duty mitigate the loss.

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