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R E E S C R E V E N D O D E C I S Õ E S J U D I C I A I S E M P E R S P E C T I VA S F E M I N I S TA S 14 9

O QUE APRENDEMOS COM A REESCRITA


DAS DECISÕES? DA LETRA À PRÁXIS

Élida Lauris - Ana Claudia Farranha

Erguer a voz: emergindo do silêncio para enfrentar o confi-


namento dos discursos e interpretações das pensadoras feminis-
tas do direito

Esse texto discute as aprendizagens que emergem do proces-


so de reescrita de decisões judiciais sob perspectivas feministas.
Trata-se de um exercício de prática e imaginação jurídico-política
que se assenta num dos principais movimentos de coragem e ousa-
dia feminista: erguer a voz. No ensaio “Erguer a voz: pensar como
feminista, pensar como negra”, bell hooks (2015) disserta sobre
um exercício que encarna potência e dor para as mulheres: res-
ponder, como igual, a figuras consideradas autoridades. Ela lembra
que, para quem nem sempre é vista, e quando vista, não é escutada,
ousar discordar ou meramente ter uma opinião é um exercício de
ousadia. Para as pessoas sobre quem geralmente não se fala, falar é
um risco, lembra-nos bell hooks. Sobre as pessoas ignoradas e si-
lenciadas recai o ônus de dominar, com maestria, a arte de desapa-
recer e se fazer visível nas mais diferentes linguagens. Dominar as
várias técnicas de como se expressar, saber quando falar e quando
silenciar, tornar-se mestra das ferramentas necessárias para poten-
cializar a existência e a sobrevivência entre o que é considerado
público e privado, é desde sempre um mecanismo de sobrevivência
das mulheres.
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Bell hooks nos conta sobre ter crescido em uma casa em que
as mulheres falavam, em fazer parte de um universo em que as mu-
lheres negras se expressam em linguagens ricas e poéticas. Ela re-
memora que, se, para algumas abordagens do feminismo branco o
silêncio é visto como um instrumento sexista de dominação; para
mulheres negras, o problema não é a imposição do silêncio. Nas
comunidades negras, diz bell hooks, as mulheres não são silentes,
sua luta não é se livrar do silêncio, mas mudar a natureza e a di-
reção do seu discurso, construir um discurso que vincula e engaja
quem ouve, um discurso que é escutado. Aqui, bell hooks, inverte
o famoso enunciado que questiona se as pessoas subalternas podem
falar.92 Transformando a equação, ela foca no esforço empreendido
e na maestria adquirida pelas pessoas subalternas de forma simulta-
neamente precisa, rigorosa, plástica e flexível, para que possam ser
escutadas. Quanto maiores as camadas interseccionais de subalter-
nização, maior o esforço para conseguir pronunciar palavras, cons-
truir pedagogias, linguagens, discursos e interpretações que sejam
ouvidos, considerados e lembrados.
Confusão, ansiedade, violação, descrédito e exposição são os
sentimentos que acompanham quem se desafia a desafiar as formas
aceitáveis de falar, escrever e ser ouvida. É um processo complexo,
em que, se algumas formas ou momentos de expressão podem ser
premiados e valorizados; no final das contas, o discurso das mulhe-
res é confinado. Os discursos que desafiam autoridades e levantam
questões consideradas inapropriadas são inconvenientes, não devem
alcançar públicos maiores e podem trazer dor e punição, como recor-
da bell hooks.

92 Ver o texto precursor de Gayatri Spivak (1988) que lança a pergunta se o su-
balterno pode falar.
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JULGAMENTOS FEMINISTAS: DOMINAR


FERRAMENTAS, SUBVERTER DISCURSOS E EXPOR
A PERFORMANCE E LIMITAÇÕES DOS SENHORES
DO PODER

Vivemos em um contexto em que os movimentos feministas e


de mulheres ergueram suas vozes. Dominando ferramentas variadas,
expressando-se por uma diversidade ampla de meios e estilos, os dis-
cursos e leituras da realidade das mulheres têm formulado e orientado
mudanças apontando novas direções para mundos de dignidade e res-
peito aos direitos de todas nós. Esse livro é escrito por mulheres que
falam, dominam linguagens, estilos, formatos e ferramentas. As au-
toras que contribuem para esse volume, como tantas outras mulheres,
feministas e não feministas, são mestras na arte de ensinar, aprender e
discutir o direito nas mais variadas formas, e perante as mais diversas
audiências. Apesar de todo esse contexto favorável, alcançado pela
luta das mulheres, seus discursos ainda são confinados, confundidos
e desacreditados. As mulheres, que emergiram do silenciamento, ain-
da precisam dominar e exercitar variadas ferramentas e adaptar seus
discursos e leituras de mundo para que sejam consideradas e escuta-
das por públicos mais amplos, isto é, que não sejam formados apenas
por outras mulheres interessadas e pessoas feministas.
Esse é o principal exercício do projeto de julgamentos femi-
nistas nas várias experimentações conduzidas em diferentes países:
expressar os acúmulos das teorias feministas do direito em uma outra
forma de discurso e linguagem. Nas reescritas, as pensadoras femi-
nistas adaptam seus discursos a um modelo hegemônico de exercício
do poder, as decisões judiciais, objetivando que, sob esse formato,
suas interpretações possam ser cada vez mais ouvidas e levadas a
sério. Sob uma forma mais palatável e aceita pelo senso comum ju-
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rídico, os julgamentos feministas buscam não só alcançar novas au-


diências, mas também oferecer novos elementos a operadores e pen-
sadores que sistematicamente ignoram, descredibilizam ou punem as
mulheres que ousam falar, em condição de igualdade, sobre outros
métodos de pensar e interpretar o direito. Ao exercitarem utilizar a
teoria feminista como base para transformar o conteúdo das decisões
judiciais, respeitando seus limites, as autoras feministas têm provado
que podem ser desenvolvidos outros tipos de condução dos processos
judiciais. É possível alcançar resultados consistentes com os direitos
das mulheres através de decisões judiciais legítimas que estão funda-
mentadas, de forma objetiva e competente, nos padrões legais e na
jurisprudência existentes.
Os julgamentos feministas disputam as relações de poder no
campo em que as mulheres têm sido estruturalmente excluídas. Ape-
sar dos números favoráveis de ingresso de mulheres na magistratu-
ra, as carreiras jurídicas continuam sendo dominadas pela concepção
masculina branca de aplicação do direito, sobretudo nos níveis hierár-
quicos mais altos do sistema de justiça.93 Se as próprias mulheres e os
fundamentos de igualdade entre mulheres e homens têm sido histori-
camente ignorados nos processos de tomada de decisão da justiça, os
movimentos feministas e de mulheres nos ensinaram que temos que
recorrer à imaginação política e à ação coletiva. As reescritas de jul-
gamentos erguem as mulheres para que possam ocupar, como iguais,
o espaço que as dinâmicas de poder e autoridade têm reservado para
os homens brancos. Hunter, McGlynn e Rackley (2010) salientam
que o projeto de reescrita de julgamentos em perspectivas feministas
é uma intervenção política que busca desafiar a contínua exclusão
das mulheres da subjetividade jurídica. Seja como doutrinadoras ou
93 Ver, nesse volume, o capítulo de Maria da Glória Bonelli, Ana Paula Sciamma-
rella e Tharuell Lima Kahwage, “Composição de gênero e racial do Judiciário e a
perspectiva de uma diversidade transformadora da justiça brasileira”.
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julgadoras que influenciam a jurisprudência dominante, seja como


sujeitos de direito, cujas experiências, realidades e conhecimentos
deveriam fundamentar a aplicação da lei, as mulheres não têm sido
vistas pelo mundo jurídico. Quando reconhecidas, reproduzem os câ-
nones dominantes, ou são segregadas em áreas do saber consideradas
tipicamente femininas, como o direito de família, as relações entre
gênero e direito ou a violência contra mulheres.
Hunter, McGlynn e Rackley (2010) destacam como o tempo
de reconhecimento das mulheres nas profissões jurídicas é glacial e,
na prática, a maior entrada de mulheres nas carreiras e a nomeação
de mais mulheres aos cargos de topo da pirâmide judicial não têm
mudado significativamente a realidade de dominação masculina no
direito. Para essas autoras, a reescrita feminista das decisões judi-
ciais vem mostrar que as mulheres estão cansadas de esperar e deci-
diram, literalmente, fazer justiça com as próprias mãos (HUNTER;
MCGLYNN; RACKLEY, 2010, p. 8). Para as autoras, o projeto de
julgamentos feministas utiliza da agência coletiva para atacar a invi-
sibilidade e a impotência reservada às mulheres no mundo jurídico.
Os julgamentos feministas enfrentam o poder e a autoridade jurídica
no seu próprio jogo e, apropriando-se das ferramentas hegemônicas,
demonstram a maestria que as pensadoras feministas do direito detêm
fartamente para emular, parodiar, subverter e desempenhar com com-
petência os papéis dominantes do campo jurídico.
Os julgamentos feministas dão provas de que uma abordagem
feminista do direito é credível, imparcial, objetiva e ancora-se em mé-
todos que podem gerar processos judiciais mais íntegros e justos. Hun-
ter (2010) argumenta como a reescrita de decisões judiciais sob uma
perspectiva feminista compila fortes evidências contra a falácia de que
o feminismo aplicado ao ato de julgar é uma demonstração de politi-
zação e parcialidade judicial, uma ameaça à independência da juíza ou
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do juiz. Como as sentenças reescritas neste volume comprovam, o fato


de uma juíza ou juiz ancorar seu processo de tomada de decisão nas
suas crenças políticas, sociais ou filosóficas teoricamente feministas
não a/o difere de nenhuma outra magistrada ou magistrado, tampouco
faz da sua decisão um documento subjetivo sem valor legal (HUN-
TER, 2010). Ao contrário, nos julgamentos reescritos sob perspectivas
feministas vemos um exercício de tornar a pessoa que julga cada vez
mais rigorosa e transparente sobre suas preconcepções e valores e mui-
to menos investida na defesa apenas formal da imparcialidade.
As reescritas ao mesmo tempo se baseiam em valores e con-
cepções feministas e têm forte fundamento jurídico com ancoragem
na legislação, jurisprudência e nos padrões de direitos humanos. De-
monstram que, se o sistema de justiça tem sistematicamente falhado
em reconhecer os direitos das mulheres, isso pouco tem a ver com a
falta de base legal ou jurisprudencial. Há um regime conservador de
crenças e concepções pessoais de juízes e juízas que se oculta atrás
da ideia formal de imparcialidade e independência. Nesse regime, os
valores e as convicções pessoais operam de forma clandestina, não
transparente e se impõem, mesmo em detrimento dos padrões legais
e jurisprudenciais existentes, influenciando decisões que fazem do
sistema de justiça um sistema de punição das mulheres94. Assumin-
do uma posição de igualdade em relação a juízas e juízes, as pensa-
doras feministas do direito desmascaram a performance das nossas
autoridades judiciais. As reescritas mostram como a atuação judicial
opta por uma dentre tantas performances possíveis (HUNTER, 2010)
e expõem os erros, deficiências e limitações das decisões originais,
confrontando-as com exigências mínimas de reconhecimento da
igualdade e da cidadania das mulheres.

94 Sobre a punição sistemática das mulheres como forma estrutural de violência


de gênero e racial, ver Criola (2022).
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POTENCIALIDADES E LIMITAÇÕES POLÍTICAS DO


PROJETO DE JULGAMENTOS FEMINISTAS

O capítulo brasileiro de reescrita feminista das decisões judi-


ciais deu centralidade ao objetivo de melhoria do ensino jurídico, en-
volvendo diferentes instituições e grupos de ensino, pesquisa e exten-
são. É central nesse volume discutir como as reescritas contribuem
para a construção de novas pedagogias. Essas pedagogias não se cir-
cunscrevem apenas à produção de conhecimento própria do processo
de elaboração de decisões judiciais, mas, também à forma como se
ensina e se pratica o direito nas escolas voltadas à formação jurídica.
Sob essa perspectiva, a partir do ensaio de bell hooks (2013),
“A Educação como prática de liberdade”, é possível formular uma
escrita que vai além da letra da lei, mediada por uma noção de impar-
cialidade, e que se debruça sobre a experiência de produzir julgamen-
tos que erguem a voz de mulheres e outros grupos subalternizados.
Em que consistem essas novas pedagogias e práticas (práxis) as quais
nos referimos?
Nesse aspecto, a conexão, também proposta por bell hooks, en-
volve elementos de uma pedagogia engajada a qual é capaz de ler
os fatos do processo não somente pela lógica de uma interpretação
jurídica não referenciada nos processos de lutas sociais e políticas,
mas, usando lentes que compreendam esse processo e, tragam o uso
dos instrumentos jurídicos não como verdade máxima, mas, como
aportes que merecem ser aplicados além da letra da lei, destacando o
contexto social, político e econômico, desfazendo estereótipos cons-
tituídos e, principalmente, identificando como a opressão de gênero,
raça e de classe se interseccionam no sistema de justiça, mantendo,
na maioria das vezes o regime de submissão que retira das mulheres o
seu lugar de voz, vez e visibilidade na sociedade. Muitas das decisões
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reescritas nesse volume assinalam que o desafio de uma interpreta-


ção que promova a equidade de gênero, raça e classe, pode, em mui-
tos aspectos, produzir decisões capazes de mudar rumos, histórias e
reiteradas situações de preconceito e discriminação contra mulheres,
negros, pessoas LGBTQIAP+, entre tantas outras desigualdades que
atravessam a sociedade brasileira
Por outro lado, há que se destacar que no Brasil não está con-
solidada uma jurisprudência que se possa chamar de feminista. Em
outros países do projeto, a ambição de tornar realidade uma juris-
prudência feminista é espelhada no trabalho concreto de algumas
juízas, que se tornaram expoentes importantes e verdadeiros ícones
da produção de discursos feministas sobre o direito, de que é exem-
plo o trabalho produzido pela juíza da suprema corte norte-ameri-
cana, Ruth Ginzburg. O pensamento feminista no sistema de justi-
ça brasileiro ainda é um ato de coragem e atrevimento de algumas
mulheres profissionais do direito que ousam falar, podendo por isso
receber algum tipo punição, mesmo informal, na forma de pres-
são de pares, ou serem ostracizadas pelo sistema. O desafio dessa
obra é combater a enfermidade de solidão institucional que faz com
que o pensamento feminista ainda seja produzido dentro de ilhas
isoladas nos espaços de poder, limitando seu alcance. Pretende-se
que as mulheres sejam as protagonistas das suas próprias histórias,
sem retaliações, possam trabalhar em rede, se reforçar coletivamen-
te e alcançar cada vez mais novos públicos. Na forma como são
retratadas, espera-se que as mulheres sejam sujeitos das decisões
judiciais, trazendo para o centro da discussão os fatos e a forma
como são julgadas, demonstrando que é possível, e mais justo, que
qualquer pessoa passe a usar os instrumentos jurídicos disponíveis
para promover uma aplicação do direito que respeite a dignidade, a
igualdade e a não discriminação.
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Para revisitar a dimensão do poder, é necessário interpretar as


leis a partir do reconhecimento das assimetrias de gênero e raciais. O
que se pode esperar dessa abordagem? Muito provavelmente a pers-
pectiva de um sistema de justiça que produza decisões mais dialoga-
das e expressivas das múltiplas atrizes e atores que habitam o mundo
social. A prática (práxis) deixa de ser a forma e adentra o mundo
dos conflitos em que as mulheres são desprovidas de muitos recursos
(materiais, sociais, de poder) e figuram na relação jurídica como su-
jeito desigual. Criar uma jurisprudência feminista é uma tentativa de
correção desse lugar para alcançar decisões que de fato melhorem a
vida das mulheres.
Enquanto parte do esforço incessante das mulheres em erguer
sua voz, a estratégia de reescrita de julgamentos feministas traz limi-
tações95. Um limite político, já apontado por Fabiana Severi no capí-
tulo introdutório, é que o projeto também sofreu o constrangimento
político, simbólico e epistemológico colocado pelas barreiras enfren-
tadas pelas mulheres negras para acessar os cargos de professoras nas
faculdades de direito. O ensaio de imaginação política desse volume
sofreu o impacto da sub-representação das mulheres negras na carrei-
ra de professoras universitárias, em especial na área de direito.
Por outro lado, a aposta política do projeto nas decisões judi-
ciais reforça que, se a racionalidade jurídica e os julgamentos são
parte do problema de exclusão e violência estrutural enfrentado pelas
mulheres, eles podem também ser parte da solução (HUNTER; MC-

95 No capítulo introdutório a este volume, Fabiana Severi discorre sobre as limita-


ções metodológicas inerentes à escolha de dar protagonismo às mulheres dentro das
regras do jogo hegemônico. As reescritas devem respeitar a forma e os limites intrín-
secos à formalidade do julgamento, o que inclui respeitar a legislação, jurisprudência
e doutrina disponíveis no momento da decisão. Essas regras visam fazer da reescrita
uma alternativa que possa ser pedagógica e metodologicamente comparável à deci-
são original, produzindo aprendizagens para a melhoria da aplicação do direito. Para
além desses aspectos metodológicos, a estratégia das reescritas têm limites políticos.
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GLYNN; RACKLEY, 2010). O projeto acaba por reforçar a aposta no


direito e na sua reforma como meio importante de mudança social96.
Com base nos trabalhos de Carol Smart, Hunter, McGlynn e Rackley
(2010) salientam que, ao invés de questionar a validade da imagem
do direito, as perspectivas feministas reformistas acabam por refor-
çar essa imagem, tentando corrigir seus erros e deficiências. Como
relembra Audre Lorde (1984), as ferramentas dos senhores nunca
irão desmantelar o edifício que sustenta o seu poder. De acordo com
Lorde, mesmo que consigamos vencer os senhores do poder em seu
próprio jogo, isso não significa que alcançamos uma transformação
genuína. Por essa razão, reforça, a casa dos senhores não pode ser a
única fonte de sustento, tampouco o uso das suas ferramentas o único
método de ação.
Ao mesmo tempo em que as abordagens feministas reforçam o
chamado para retirar a centralidade política do fenômeno legal e não
se deixar levar pelo fetichismo da lei, o projeto reconhece que o di-
reito tem um efeito constitutivo não só sobre outros discursos, como
também sobre o próprio universo jurídico (HUNTER; MCGLYNN;
RACKLEY, 2010). A importância política do projeto decorre assim
do fato de que as decisões judiciais constroem significados materiais
concretos na vida das mulheres e impactam sua realidade, podendo
mudar suas vidas. O poder do direito em transformar as condições
de vida e sobrevivência das mulheres, muitas vezes para pior, faz
com que seja urgente, ainda que não seja a única estratégia de luta
a se investir, trabalhar pela mudança da racionalidade jurídica e dos
métodos dominantes de aplicação das leis.

96 Para uma discussão sobre os limites de uma perspectiva reformista, de engenha-


ria social do direito, ver Santos (2013).
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AS TEORIAS FEMINISTAS INCORPORADAS NOS


JULGAMENTOS

Um recurso importante desenvolvido nas reescritas das deci-


sões é a combinação da teoria feminista com a teoria do direito. As
reescritas ajudam a responder a um dos grandes desafios colocados ao
desenvolvimento do conhecimento científico no nosso tempo: como
as grandes teorias de análise (teoria política, teoria sociológica, teoria
geral do direito) tratam dos fenômenos de forma a terem em conta
marcadores sociais que determinam diferenças no acesso ao poder e
recursos, como o gênero e raça? Uma vez que incorporam essas cate-
gorias, em que medida elas redesenham sua abordagem?
As reescritas assinalam que uma abordagem dos fenômenos
políticos, jurídicos, sociais e econômicos que considere o acesso de-
sigual das mulheres e de outros grupos aos recursos de poder pode ser
feita em total harmonia com os métodos assentes de construção do
raciocínio jurídico e do convencimento judicial. Se as reescritas estão
profundamente conectadas com os fundamentos filosóficos feminis-
tas, não é a teoria feminista em si, abstrata, que será incorporada no
processo de construção do raciocínio jurídico que decidirá a melhor
solução para o caso. Ao moverem-se da teoria para a prática, os jul-
gamentos feministas, como qualquer outro julgamento, obedecem às
etapas de formação do convencimento judicial: exposição dos fatos,
exposição do direito e aplicação dos padrões legais, jurisprudenciais
e da doutrina ao caso.
Os aportes da teoria feminista influenciam concretamente como
os fatos serão analisados, perquirindo sobre a situação das mulheres
e atentando para a particularidade das suas histórias; também contam
para que os fatos possam ser compreendidos dentro de um contexto
mais amplo, podendo exigir a produção de dados empíricos e a aná-
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lise mais detalhada do impacto de certas políticas. Os fundamentos


feministas, no momento de aplicação do direito aos casos, questio-
nam o impacto de normas, procedimentos e comportamentos sobre
as mulheres e procuram desvelar padrões de discriminação, desigual-
dade e violência explícitos ou sub-reptícios. A aplicação do quadro
normativo e jurisprudencial tem assim a perspectiva de garantir uma
aplicação não discriminatória das leis e potencializar a correção de
padrões de desigualdade e desvantagem buscando a garantia de igual-
dade num sentido substantivo. Esse método de construção do racio-
cínio judicial não é estranho ao método de aplicação do direito nos
processos judiciais e dialoga com os padrões nacionais e internacio-
nais já consolidados para promoção e defesa dos direitos humanos
dos grupos estruturalmente discriminados.
Hunter (2010, p. 35) categorizou as principais características de
uma abordagem feminista para escrever julgamentos. Para esta autora,
as pensadoras feministas têm desenvolvido uma coleção de hábitos,
técnicas, preocupações e disposições que têm implantado na reescrita
das decisões. No conjunto dessas técnicas destacam-se: 1) Investigar as
consequências em termos de desigualdade e discriminação de mulhe-
res e de outros grupos excluídos que resultam de regras, práticas e com-
portamentos aparentemente neutros, 2) Fazer as mulheres aparecerem,
não só dando atenção às suas experiências, como também atentando
para as evidências empíricas e padrões que revelam as injustiças que
suportam ou que vão suportar com o desfecho dos casos; 3) Evidenciar
e contestar práticas, comportamentos e regras tendenciosas contra a
mulheres e desvelar vieses de gênero e estereótipos incorporados na
doutrina e no raciocínio jurídico; 4) Raciocinar com base no contexto e
na experiência de vida das mulheres; tomando decisões voltadas para a
particularidade de cada situação; evitando punir as mulheres por terem
feitos escolhas diferentes que possam ser consideradas equivocadas ou
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reprováveis; 5) Atentar para as injustiças, sobretudo os padrões con-


solidados de abuso, violência e discriminação, e buscar remediá-las
de forma melhorar as condições de vida das mulheres; 6) Promover
a igualdade de forma substantiva; e 7) Ter em consideração aportes
jurídicos feministas para aperfeiçoar as decisões do ponto de vista da
garantia da igualdade e da cidadania às mulheres.

UTILIZANDO AS TEORIAS FEMINISTAS PARA


ABRIR NOVOS CAMINHOS DE INTERPRETAÇÃO E
APLICAÇÃO DO DIREITO

Hunter, McGlynn e Rackley (2010) chamam atenção para o


fato de que as reescritas, apesar de referirem a um conjunto diverso
de aportes teóricos feministas, têm em comum críticas importantes
que são dirigidas a rever os cânones do legalismo liberal, cujos fun-
damentos ainda influenciam largamente o raciocínio jurídico, desde
a formação inicial de pessoas operadoras do direito nas faculdades.
Um primeiro aspecto de crítica, argumentam aquelas autoras, contes-
ta uma visão individualizante, atomizada e competitiva sobre quem é
o sujeito de direitos. As reescritas feministas, ao afirmarem as mulhe-
res como sujeitos de direitos, contam histórias de relações profundas
de interconexão e interdependência entre as mulheres, os coletivos
que integram e o meio do qual fazem parte.
As reescritas ressaltam a importância de que os fatos do pro-
cesso considerem que as vidas das mulheres são entremeadas pelo
compromisso com a ação coletiva e pelo desenvolvimento de uma
ética de cuidado, trabalhando em prol de um bem viver e bem-estar
coletivo. A reescrita que se dedica ao caso do assassinato de Marga-
rida Alves é nesse sentido emblemática.97 Ela mostra que a análise

97 Ver, nesse volume, o capítulo Margarida Maria Alves continua a florescer: uma
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dos fatos não pode se circunscrever à análise de um assassinato de


um indivíduo desconectado do tempo histórico e da ação política e
coletiva do seu território. Não se trata só de uma mulher, individuali-
zada e desconectada, que perde a vida, mas do silenciamento de uma
liderança do sindicato de trabalhadores rurais, uma defensora de di-
reitos humanos, profundamente engajada na luta pelos direitos desses
trabalhadores e que é silenciada em plena ditadura militar. As autoras
apontam como o tratamento individualizante do caso, desconectando
a história de vida de Margarida do seu histórico de liderança e do con-
texto das lutas sociais do campo, acabou por comprometer as teorias
de investigação e prejudicar a apuração e punição dos responsáveis
pelo assassinato.
A reescrita da decisão judicial que negou acesso de criança à
escola em período integral, alegando que a criança já tinha garantido
seu direito à educação por estar matriculada em outra escola é mais
um exemplo igualmente relevante.98 A revisão do julgamento permi-
tiu às autoras uma análise mais abrangente dos fatos considerando
as desigualdades que recaem sobre as mulheres no que concerne à
responsabilidade pelo trabalho de cuidado. A análise aponta a insufi-
ciência de o caso ser analisado isolando a decisão numa abordagem
individualista do direito da criança à educação. A questão deve ser
vista de maneira integrada, já que a política de creches e a escola em
período integral para crianças, em diferentes faixas etárias, é uma
política de assistência crucial. Trata-se de uma maneira de o Estado
partilhar com as mulheres o trabalho de cuidado do qual elas se en-
reescrita sob perspectiva jurídico feminista do Relatório de Mérito do Caso 12.332
da CIDH, de autoria de Gilmara Joane Macêdo de Medeiros, Clarissa Cecília Fer-
reira Alves, Aléxia Chaves Maia, Julia Gomes da Mota Barreto e Mirian Narrara
Peixoto de Aquino.
98 Ver o capítulo “‘Filho (não é só) da mãe’: o caso da vaga em escola em período in-
tegral”, de autoria de Ana Carolina da Matta Chasin, Carla Osmo, Fernanda Emy Mat-
suda, Ísis Boll de Araújo Bastos, Lia Carolina Batista Cintra e Maíra Cardoso Zapater.
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carregam integralmente em benefício de toda a sociedade e sacrifi-


cando suas chances de participar do mercado de trabalho e melhorar
as condições de vida das suas famílias e comunidades.
Um segundo aspecto de crítica aos pressupostos da teoria jurí-
dica liberal diz respeito às hesitações encontradas no sistema de jus-
tiça no que diz respeito a reconhecer às mulheres tanto o estatuto de
sujeito de direitos autônomo, quanto o de vítimas. Hunter, McGlynn
e Rackley (2010) informam que os pressupostos do liberalismo ju-
rídico contribuem para que se estabeleçam postos fixos que devem
ser ocupados pelos sujeitos, ou vítimas ou autônomos, ou capazes ou
vulneráveis, ou independentes ou desprotegidos, nunca as duas coi-
sas ao mesmo tempo. O gênero acaba demarcando a autonomia como
uma característica masculina e a vulnerabilidade como um elemento
feminino. Na prática, se as mulheres tentam exercitar sua autonomia,
recai sobre eles uma suspeição, suas ações e palavras são colocadas
em dúvida. Se é reconhecido que têm autonomia, passam a ser in-
terpretadas como pessoas que não necessitam da ou não merecem
a proteção do Estado. Os estereótipos de gênero e raciais também
determinam quais mulheres são consideradas vítimas. Em regra, o
perfil de mulher que necessita de cuidado e proteção é associado à
mulher branca de classe média. Às mulheres negras é frequentemente
negada a condição de vítima. Flauzina e Freitas (2017) argumentam
que o racismo bloqueia que solidariedade, alteridade e empatia sejam
estendidas a pessoas negras. A suspeição generalizada contra negras e
negros impede que elas sejam vistas como vulneráveis, pessoas com
as quais o Estado tem responsabilidades de proteção.
A reescrita que analisa o caso da mãe que perdeu a guarda dos
filhos devido à decisão de busca e apreensão das crianças no Brasil
e restituição ao pai mostra os bloqueios enfrentados pela mãe para
ter reconhecido no processo sua condição de vítima de violência do-
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méstica99. Dentre as questões levantadas pela decisão original para


fundamentar a retirada das crianças, destacou-se a concepção de que
a mulher tinha plena autonomia, uma vez que foi capaz de deixar o
país de origem e se mudar com as crianças para o Brasil. A reescrita
da decisão retoma a discussão sobre o dever de proteção do Estado
com a mulher vítima de violência e reenquadra a decisão de mudança
do país no contexto mais amplo de violência e maus tratos enfrenta-
dos pela mulher.
As reescritas que fizeram a revisão de julgamentos de estupros
utilizam a perspectiva de gênero para assinalar as dificuldades que
as mulheres que sofrem esse tipo de violência enfrentam para serem
tratadas como vítimas credíveis.100 Como assinalado na reescrita que
fez uma releitura das provas e de conceitos em um caso de estupro de
vulnerável, as mulheres, lidas como indivíduos autônomos com plena
capacidade de decidir, enfrentam inúmeras dificuldades para obter
justiça nos processos. Essas dificuldades incluem a desvalorização
das suas palavras; os julgamentos, as preconcepções e o uso de este-
reótipos para enquadrar seus comportamentos; a relutância na análise
das provas que atestam sua vulnerabilidade; e a culpabilização e a
sobrerresponsabilização pelos acontecimentos.
99 Ver o capítulo “Pilar, a busca e a apreensão de seus filhos e a reescrita da deci-
são” de autoria de Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira Smith, Luanna Tomaz
de Souza, Milene Maria Xavier Veloso, Verena Holanda De Mendonça Alves, Bea-
triz Neder Mattar, Cristiane da Silva Gonçalves, Erika Vitória Ferreira de Andrade,
Gabriela Rodrigues Veludo Gouveia, Gabriela Gomes Moura, Hermes Breno da
Silva Santos, Jéssica Zouhair Daou, Josué Gomes Pinheiro, Letícia Mendes Silva
de Vasconcelos, Laila Vidigal de Souza, Marcella Sousa Cavalcante e Vitória do
Socorro Peixoto Pires.
100 Ver o capítulo “Estupro de vulnerável: uma necessária releitura das provas
e de conceitos indispensáveis para a compreensão do tipo penal sob uma lente
de gênero”, de autoria de Mariângela Gama de Magalhães Gomes, Maria Claudia
Girotto do Couto, Bruna Rachel de Paula Diniz, Ana Paula Bimbato de Araújo Bra-
ga, Jaqueline Costal dos Santos, Letícia Russo Videira, Michele Prado do Amaral,
Rafaela dos Santos Oliveira, Sophia Lima.
R E E S C R E V E N D O D E C I S Õ E S J U D I C I A I S E M P E R S P E C T I VA S F E M I N I S TA S 16 5

Um terceiro e último aspecto de revisão da forma liberal hege-


mônica de interpretar e aplicar o direito diz respeito à dicotomia entre
o público e o privado (HUNTER; MCGLYNN; RACKLEY, 2010).
No que toca a assegurar e fazer respeitar os direitos das mulheres, vê-
-se um sistema de justiça vacilante em interferir no privado, mesmo
que seja para aplicar a legislação existente. Já no que diz respeito a
limitar o acesso das mulheres a seus direitos, assiste-se a decisões que
impõem concepções conservadoras sobre família, defesa do direito à
vida, liberdade e autonomia da mulher em relação aos seus direitos
sexuais e reprodutivos.
As reescritas que se dedicaram a abordar casos de violência
doméstica, feminicídio e interrupção voluntária da gravidez são pró-
digas em demonstrar essas contradições, apontando como a legisla-
ção nacional, a jurisprudência e os padrões internacionais de direitos
humanos foram tímida e precariamente aplicados nas decisões origi-
nais, comprometendo a garantia de direitos humanos das mulheres.
Nesses casos, a própria legislação espera das pessoas responsáveis
por aplicar a lei que superem a tentação de analisar as evidências de
forma meramente burocrática, o que exige aprimoramento de concei-
tos, revisão das regras probatórias e dos métodos de recolha de evi-
dências, investimento em mecanismos que assegurem a escuta atenta
das vítimas, capacidades para detectar os fenômenos da violência
identificando a gravidade dos elementos contextuais e a utilização de
diferentes tipos de abordagens multidisciplinares. A forma deve estar
a serviço do conteúdo para assegurar, em primeiro lugar, a vida, a
segurança e o bem-estar das mulheres.
A reescrita que analisou as decisões do Supremo Tribunal Fe-
deral em questões referentes à união estável e ao “concubinato” no
âmbito da previdência social, por sua vez, apontou como a defesa de
uma concepção de família associada à monogamia sai do âmbito da
16 6 FA B I A N A C R I S T I N A S E V E R I (O RG A N I Z A D O R A )

crença pessoal de juízes e juízas e invade a esfera privada dos sujeitos


de direito produzindo injustiças que recaem desproporcionalmente
sobre as mulheres. Concepções desse tipo são invocadas para basear
decisões que restringem os direitos das mulheres, como é o caso da
denegação do direito à pensão por morte a mulheres em uniões está-
veis simultâneas, que foi analisado na reescrita101.

CONCLUSÕES

Nosso percurso em busca das aprendizagens que emergem das


reescritas foi desde a letra (a forma, o desenho da decisão, o escrito)
até a práxis (o sentido, o interpretativo, a reescrita). A metodologia da
reescrita respeita uma forma hegemônica, a decisão da autoridade ju-
dicial, para subvertê-la, revisar conteúdos e mover os ensinamentos
feministas da teoria para a prática. Assim, é capaz de dar voz a subjeti-
vidades que têm sido ignoradas, quebra barreiras que têm segregado as
lutas feministas a certos espaços e combate estereótipos de gênero que
se reproduzem acriticamente, oprimindo e discriminando as mulheres.
Além dessas implicações, a metodologia de reescrever decisões
em perspectivas feministas ajuda a fortalecer conteúdos que podem
ser transformadores em relação às práticas de ensino, pesquisa e ex-
tensão nos cursos de direito. Nossas escolas nacionais têm desen-
volvido um ensino do direito que reproduz muitos dos fundamentos
individualistas do legalismo liberal que identificamos nas decisões
analisadas. Trata-se da construção de discursos que têm perpetuado
lugares sociais de exclusão e que demarcam um tipo de ensino ju-

101 Ver capítulo “Reescrita feminista dos temas 526 e 529 do STF: seguridade so-
cial, afetividade e mulheres ausentes”, de autoria de Andréa Lasevicius Moutinho,
Débora de Araújo Costa, Deise Lilian Lima Martins, Irene Maestro Sarrión dos
Santos Guimarães, Júlia Lenzi Silva, Leila Giovana Izidoro, Maria Angélica Albu-
querque Moura de Oliveira, Marianna Haug e Thamíris Evaristo Molitor.
R E E S C R E V E N D O D E C I S Õ E S J U D I C I A I S E M P E R S P E C T I VA S F E M I N I S TA S 16 7

rídico no país. Uma prática pedagógica que se repete na formação


continuada de profissionais do direito e determina o tipo de racio-
cínio jurídico que é hegemônico no sistema de justiça. Acreditamos
que esse livro permite fazer um ponto de inflexão sobre as práticas
pedagógicas dominantes nos cursos de direito até aqui e sobre os re-
sultados que elas têm produzido.
O processo de reescrita leva-nos a acreditar que construir al-
ternativas pedagógicas para mudar os rumos de construção do ra-
ciocínio jurídico nacional é possível. Contar as histórias de forma
diferente, revisitar os fatos com foco nas injustiças que emergem dos
diferentes contextos, aplicar metodologias de análise e aplicação do
direito que dão às partes nos processos, e a terceiros, a possibilida-
de de comprometer os instrumentos com a igualdade substantiva são
elementos que podem transformar as práticas pedagógicas no direito.
É, por isso, especialmente relevante que boa parte das decisões
reescritas tenham sido objeto de discussão em sala de aula, em gru-
pos de pesquisa e extensão, quebrando o formalismo do legalismo
liberal e trazendo para a mesa uma compreensão mais qualificada das
dimensões sociais nas quais o direito é aplicado. Aqui, reside um ele-
mento de prática de novas pedagogias que o projeto de julgamentos
feministas tem exercitado desde o início da sua implementação no
Brasil, opondo-se ao isolacionismo e interconectando grupos e pes-
quisadoras que têm se dedicado ao estudo das relações entre gênero e
direito nos diferentes estados.
O desafio posto é saber se é possível descolonizar as aborda-
gens jurídica na teoria e na prática, buscando, nas muitas histórias
recontadas, as referências de uma nova epistemologia que traduza
significados sobre a experiência de viver subalternizado num país tão
plural e desigual e faça das salas de aulas das escolas de direito um
espaço de diálogos transformador. Em outra ponta, o projeto também
16 8 FA B I A N A C R I S T I N A S E V E R I (O RG A N I Z A D O R A )

contribui para aprendizagens no âmbito das atividades de extensão,


cada vez mais inseridas nos currículos dos cursos de direito. As de-
cisões nos ensinam que reescrevê-las não é suficiente, se não pensar-
mos em meios de intervenção nessa realidade. E, como fazer isso?
Qual é o curso de direito que queremos? Que curso é capaz de intervir
nessa realidade? Socorre-nos pensar a resposta dessa pergunta tra-
zendo para essa conclusão o verso da Carolina de Jesus (2007, p. 47),
escritora brasileira, negra e favelada:

Escrevo a miséria e a vida infausta dos favela-


dos. Eu era revoltada, não acreditava em nin-
guém. Odiava os políticos e os patrões, porque
o meu sonho era escrever e o pobre não pode
ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar ini-
migos, porque ninguém está habituado a esse
tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu
escrevi a realidade.

Que a realidade se imponha como uma dimensão relevante


no desenvolvimento da ciência jurídica, proporcionando imersões e
abordagens que considerem a desigualdade e a discriminação e pro-
duzam práticas de aplicação do direito que não tenham medo de se-
rem reescritas.

REFERÊNCIAS

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