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Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 1.148.631 - DF (2009/0132727-6)

RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO


RECORRENTE : EUFRÁSIO JUSTINO DE ARAÚJO
ADVOGADO : NILMA GERVASIO AZEVEDO SOUZA FERREIRA SANTOS -
DEFENSORA PÚBLICA E OUTROS
RECORRIDO : CÁTIA BARCELOS DE ABREU
ADVOGADO : ALEXANDRE DE ALMEIDA SANTOS

VOTO VENCIDO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:


1. Eufrásio Justino de Araújo ajuizou ação de reintegração de posse em face de
Katia Barcelos de Abreu, tendo como objeto o imóvel localizado no Núcleo Rural Rajadinha II,
Paranoá/DF. Segundo o autor, em 6/1/2005, adquiriu - pela quantia de R$ 1.500,00 (um mil e
quinhentos reais) - os direitos possessórios sobre o imóvel em questão, tendo limpado,
cercado, construído cisterna e um barraco, onde deixou cama, fogão e vários objetos.
Sustenta que, em março de 2007, teve seu lote invadido por terceiros, a mando da recorrida,
os quais atearam fogo e derrubaram a cerca, resultando em ocorrência policial, requerendo,
por isso, a reintegração de posse e a condenação por danos materiais no importe de R$
3.500,00 (três mil e quinhentos reais).
O magistrado de piso julgou improcedente o pedido levando em conta que
"tanto o autor quanto a ré sustentam 'posse' na existência de domínio, e que a segunda está
na lide na defesa dos interesses da comunidade de chacareiros do Núcleo Rural Rajadinha II,
deve a contenda ser resolvida com fundamento no melhor título, o que no caso dos autos
quer dizer que posse melhor é a mais antiga" (fls. 254-257).
Interposta apelação, o Tribunal de Justiça de origem negou provimento ao
recurso, nos termos da seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL. Civil. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.
MELHOR POSSE. PROVA. Na ação de reintegração de posse, o que se
discute é quem tem a melhor posse da área litigiosa. Comprovada que a
posse mais antiga sobre o imóvel em litígio é da ré, não há como conceder
a reintegração do imóvel ao autor. Sentença mantida. Recurso desprovido.
(fls. 280-286)

Irresignado, interpõe recurso especial com fulcro na alínea "a" do permissivo


constitucional, por violação ao art. 927 do CPC.
Aduz que desde 6/1/2005, quando adquiriu os direitos possessórios sobre o
imóvel vindicado, vem limpando, cercando, construindo e plantando, tudo em consonância
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com o princípio da função social da propriedade.
Afirma que o Juízo de origem se valeu da aplicação do art. 507, parágrafo único,
do CC/1916 como critério para definição da melhor posse, mas que tal interpretação está
superada com o advento do novo Código Civil, que não repetiu a norma do referido
dispositivo.
Expõe que o novo CC/2002 trouxe um sistema aberto, estabelecendo cláusulas
gerais, com base nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade, devendo o
intérprete, ainda, submeter-se aos princípios da CF/88.
Diante disso, alude que "o principal critério abalizador da definição de melhor
posse haverá de ser, indubitavelmente, a utilização sócio-econômica do bem litigioso,
substituindo o critério puramente objetivo do parágrafo único do antigo art. 507 pelos critérios
sócio-políticos e econômicos ancorados na função social da propriedade que, em última
análise, reside na própria posse".
É o relatório.
Decido.
2. Cinge-se a controvérsia em se saber, com o advento do novo Código Civil,
qual o critério a ser adotado para definição da "melhor posse", haja vista que o antigo art. 507
do CC/1916 não foi reproduzido, nem mesmo com redação diversa, no Código vigente de
2002.
O magistrado de piso, como o Tribunal de origem, perfilharam o entendimento
de que, diante do vácuo normativo, para fins de reintegração, a melhor posse é aquela
baseada no título mais antigo, haja vista que ambos litigantes apresentaram documentos de
força equivalente (instrumento particular de compromisso de compra e venda) em relação ao
terreno em litígio.
Realmente, restou assentado no acórdão de origem que:
Os requisitos das ações possessórias estão elencados no art. 927 do
Código de Processo Civil, de onde se extrai a necessidade de comprovação
da posse, a turbação ou o esbulho praticado pelo réu, a data da turbação
ou do esbulho e, por fim, a continuação da posse, embora turbada, na ação
de manutenção; perda da posse, na ação de reintegração.
In casu, o autor juntou aos autos cópia de instrumento particular de
compromisso de compra e venda, onde figurava como compromissário
comprador e, como compromissários vendedores, José Pereira dos Santos
e Antônia Pereira dos da Silva. Do citado documento infere-se que o autor
adquiriu a posse do imóvel em 06/01/2005.
Por outro passo, a ré apresentou, igualmente, instrumento particular, no
qual figura como promissária compradora, e como promissária vendedora a
Sra. Terezinha Teixeira Costa, mediante o qual alega ter adquirido a posse
do mesmo imóvel em 06 de setembro de 1997.
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Neste caso, o parágrafo único do art. 507 do Código Civil nos dá a definição
do que seria melhor posse, oferecendo subsídios para que questões como
a que ora se analisa seja solucionada de forma justa, conforme se vê:
“Entende-se melhor a posse que se fundar em justo título; na falta de título,
ou sendo os títulos iguais, a mais antiga (...).”
Dessa forma, evidenciado que a posse detida pela ré é melhor, porquanto
mais antiga e por não está maculada pelos vícios inerentes à
clandestinidade ou violência, passa a deter a condição de legítima
possuidora, merecendo a proteção legal.
Nesse sentido, já se pronunciou este egrégio Tribunal, conforme se vê dos
arestos abaixo transcritos:
CIVIL - PROCESSO CIVIL - REINTEGRAÇÃO DE POSSE - DISPUTA
BASEADA EM CONTRATO DE CESSÃO - PREVALÊNCIA DO MAIS
ANTIGO - IMPROVIMENTO DO RECURSO.
1. Disputada a posse com base em títulos iguais, no caso, contratos de
cessão de direitos, há de prevalecer o mais antigo (CC/1916, art. 507). 2.
Apelo improvido. Unânime.
(19990710100399APC, Relator ESTEVAM MAIA, 4ª Turma Cível, julgado
em 08/08/2007, DJ 16/08/2007 p. 108)

PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. RELAÇÃO


MATERIAL COM A COISA. RÉU QUE VEM EDIFICAR BARRACÃO NO
LOTE. DETENTOR DE INSTRUMENTO CONTRATUAL DE CESSÃO DE
POSSE MAIS ANTIGO QUE O DO AUTOR. RECURSO DESPROVIDO.
1. Exsurgindo que o réu, de fato, ocupou o lote, ali erigindo um barracão,
e sendo ainda detentor de um instrumento contratual de cessão de
posse anterior ao do autor, não há como prover o inconformismo deste.
2. Recurso desprovido.(20040610062116APC, Relator SILVANIO
BARBOSA DOS SANTOS, 6ª Turma Cível, julgado em 17/01/2007, DJ
17/04/2007 p. 132)

Assim, a meu sentir, a r. sentença recorrida, porque bem fundamentada,


não merece reparos.
Pelo exposto, nego provimento ao apelo.
(fls. 284-286)

Estabelecia o Código Civil de 1916, expressamente:


Art. 507. Na posse de menos de ano e dia, nenhum possuidor será
manutenido, ou reintegrado judicialmente, senão contra os que não
tiverem melhor posse.

Parágrafo único. Entende-se melhor a posse que se fundar em justo


título; na falta de título, ou sendo os títulos iguais, a mais antiga; se
da mesma data, a posse atual. Mas, se todas forem duvidosas, será
seqüestrada a coisa, enquanto se não apurar a quem toque.

2.1. A doutrina clássica salientava que, dentro do direito de invocar os interditos,


as ações possessórias poderiam ser de força nova ou de força velha, de acordo com o prazo
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de ano e dia (como hoje ainda é), mas com a ressalva da questão da melhor posse.
Nesse contexto, asseverava que:
Caso, porém, haja várias pessoas na posse da coisa, todas arvorando-se
em legítimas possuidoras, o Código, no artigo 507, traça as normas para a
decisão. Deverá ser mantido provisoriamente aquele que tiver melhor
posse.
[...]
Se forem vários os possuidores na posse atual da coisa, deve-se decidir a
liminar em favor daquele que tiver melhor posse. Para isso, deverá ser
observado o valor do título. Terá melhor posse aquele que tiver justo título.
Se nenhum tiver título, ou se os títulos por eles apresentados forem todos
considerados justos, valiosos, terá preferência na obtenção da liminar o
possuidor que tiver a posse mais antiga. Se com base nesses elementos
não for possível se decidir em favor de quem deve ser deferida a posse
provisória, por ocorrer dúvida no espírito do julgador, a coisa deverá ser
seqüestrada, prosseguindo-se a ação possessória até que, a final, com as
provas produzidas, ficar decidido em definitivo a quem legitimamente
pertence a posse.
Procedida a justificação e resolvida a questão da liminar, a ação
possessória terá propriamente início e, para a sua decisão em definitivo,
deverão ser observadas as mesmas regras do artigo 507 e seu parágrafo
único, com exceção da medida de seqüestro, que só se operará em se
tratando da fase da medida liminar. Pode, ainda, acontecer que, nessa
decisão definitiva da ação, não tendo os contenedores quaisquer títulos, ou
sendo seus títulos iguais em valor, a decisão final deverá calcar-se, então,
na antiguidade da posse.
O art. 507, como se observa, cogita tão-somente da posse nova, isto é,
daquela de menos de ano e dia.
(LEVENHAGEN, Antônio José de Sousa. Código civil: direito das coisas. São
Paulo: Atlas, 1981, p. 72-73)

2.2. Deveras, Miguel Reale trouxe, no tocante ao novo Código Civil, as diretrizes
da "socialidade", trazendo cunho de humanização do Direito e de vivência social, da
"eticidade", na busca de solução mais justa e equitativa, e da "operabilidade", alcançando o
Direito em sua concretude. Quanto à posse, já reconhecia que:
Em virtude do princípio da socialidade, surgiu também um novo conceito de
posse, a posse-trabalho, ou posse pro labore, em virtude da qual o prazo
de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os possuidores
nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de
interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o
antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da
propriedade.
[...]
Mais do que nunca se impõe, por conseguinte, a disciplina da propriedade
em razão de sua já apontada 'função social', o que, como explico na
Exposição de Motivos, repercute em vários preceitos, no tocante, por
exemplo, à posse, cuja apreciação deixa de ser feita segundo os critérios
formalistas da tradição romanista, a qual não distingue a posse simples, ou
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improdutiva, da posse acompanhada de obras e serviços realizados nos
bens possuídos, o que exige seja dada a atenção devida aos valores do
trabalho. Esse novo conceito de posse é, fora de dúvida, uma das
contribuições originais do Direito pátrio, já consagrado em nossa legislação
agrária sob a denominação usual, embora imprópria, de posse pro labore.
[...]
De igual modo é urgente encontrar uma solução jurídica para
reiterados dramas sócio-econômicos conseqüentes de conflitos
entre os proprietários de terras, vencedores em ações
reivindicatórias após dezenas de anos de demanda, e aqueles que,
de boa-fé, nelas edificaram, entrementes, sua morada realizaram
benfeitorias de irrecusável alcance social.
(REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação após a aprovação pelo
Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999, p.7 e 33)

Em relação à posse, o Código Civil atual, em seu art. 1.196, adotando a teoria
objetivista de Ihering, enuncia: "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade"; isto é, segundo a lei,
para se ter posse basta o exercício de um dos atributos do domínio.
E, assim como dantes, o novo Código (art. 1210, caput) manteve a faculdade
de o possuidor invocar interditos possessórios (interdito proibitório, manutenção de posse e
reintegração de posse) para proteção de sua posse ad interdicta, podendo a ação ser de
força nova (possibilidade de concessão de liminar initio litis) ou de força velha (nos trilhos do
procedimento ordinário), nos termos do art. 924 do CPC.
3. Diante disso é que o autor, ora recorrente, afirmando esbulho em sua posse
dentro do prazo de ano e dia, ajuizou ação de reintegração asseverando ser a sua posse
melhor que a da ré.
3.1. O CJF editou o Enunciado n. 239, da III Jornada de Direito Civil, dispondo
que: "Na falta de demonstração inequívoca de posse que atenda à função social, deve-se
utilizar a noção de 'melhor posse', com base nos critérios previstos no parágrafo único do art.
507 do CC/1916".
Com efeito, Sílvio Venosa, ao tratar do parágrafo único do antigo art. 507,
ressalta que os "aspectos circunstancias não são mais enunciados no atual Código Civil. No
caso concreto, caberá ao juiz avaliar a melhor posse, e esse enunciado do ordenamento
passado pode servir de ponto de partida" (in Código civil comentado: direito das coisas,
posse, direitos reais, propriedade, artigos 1.196 a 1.368, volume XII. Coordenador Álvaro
Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003, p.65).
Nessa ordem de ideias, entendo que para a definição do que seja "melhor

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posse" é necessário seja levado em conta o atendimento de sua função social, tendo como
escopo a atual codificação e seu espírito de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, em
alinhamento com a Carta da República, que trouxe como pilar a dignidade da pessoa
humana, assegurando a tutela à moradia, ao trabalho, ao aproveitamento do solo e ao mínimo
existencial; sendo a posse, por isso, uma extensão dos bens da personalidade.
Deveras, à luz do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a
função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se
efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e dignidade da pessoa
humana.
De fato, trata-se de princípio implícito no CC/2002, advindo da interpretação dos
arts. 1.228, §§4° e 5°, e parágrafo único dos arts. 1.238 e 1.242, além de que, tendo a
propriedade uma função social reconhecida pela Constituição Federal, deve-se conferir o
mesmo entendimento em relação à posse, uma vez que é por meio desta que a função
social daquela se cumpre.
Enfim, "a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à
família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato
social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidade básicas do
ser humano" (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 5. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 38).
Nessa toada, assenta a doutrina que:
Evidentemente que a função social da posse não se evidencia apenas em
torno dos conflitos envolvendo a situação proprietária. A função social da
posse, como princípio constitucional positivado e com aplicação cogente às
relações interprivadas, deve ser a base normativa para a solução dos
conflitos entre possuidores que detenham ou não 'justo título', o que
relativiza a formalidade ainda exigida através do art. 507 do Código Civil.
Assim sendo, o julgador não deve restringir-se apenas ao exame formal de
eventual título nos conflitos possessórios, mas adentrar no conteúdo da
posse, ou seja, perquerir sobre a exteriorização de sua função social.
[...]
Através destes efeitos, salientamos que a função social da posse não
determina apenas a juridicização de um fato social - do fato da posse em si
-, tampouco um efeito da posse, mas exigência de sistematização das
situações patrimoniais de acordo com a nova ordem constitucional, no
âmbito de uma Constituição normativa que pretende seja real e efetiva,
muito menos condicionada aos fatores do poder e a um destino de simples
folha de papel a que alude Lassale, do que em condicionar e realizar sua
força no sentido do bem comum, tendo por base o princípio da igualdade e
dignidade da pessoa humana"
(ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira de. Da função social da posse e sua
conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2002, p. 210 e 221)
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Com efeito, a posse deve ser analisada de forma autônoma e independente em


relação à propriedade, como fenômeno de relevante densidade social, em que se verifica o
poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida e de acordo com
os valores sociais nela impregnados, devendo expressar o aproveitamento concreto e efetivo
do bem para o alcance de interesse existencial, tendo como vetor de ponderação a dignidade
da pessoa humana, sendo o acesso à posse um instrumento de redução de desigualdades
sociais e justiça distributiva.
3.2. Nessa seara, a concepção acerca da "melhor posse" não mais se funda
apenas no justo título, mas sim na da posse que esteja cumprindo adequadamente sua
função social.
Conforme enfatiza Bezerra de Melo, verbis:
A posse não pode ser vista apenas como uma mera visualização do
domínio, ou seja, tem a posse uma valoração econômica e social própria.
[...]
A densidade axiológica da posse, mormente em uma sociedade que oscila
entre a pobreza e a miséria e que adota como modelo tradicional para a
aquisição de bens a compra e venda e o direito hereditário, a posse deve
ser respeitada pelos operadores do direito como uma situação jurídica
eficaz a permitir o acesso à utilização dos bens de raiz, fato visceralmente
ligado à dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB) e ao direito
constitucionalmente assegurado à moradia (art. 6° da CRFB). Importa, por
assim dizer, que ao lado do direito de propriedade, se reconheça a
importância social e econômica do instituto.
O novo Código Civil, respeitando o dispositivo constitucional que determina
de forma enfática que se cumpra a função social da propriedade (art. 5°,
XXIII), traz importante previsão legal do que estamos a dizer no art. 1.228,
§4°, pois prevê a privação do direito de propriedade se em contraposição a
este houver considerável número de pessoas exercendo posse por mais de
cinco anos de forma ininterrupta e sem oposição, dando relevo na parte
final que as pessoas deverão ter 'realizado, em conjunto ou separadamente,
obras e serviços considerados pelo juiz de relevante interesse social e
econômico.' Confira-se, sobremais, em lei especial, o art. 10 do Estatuto da
Cidade (Lei 10.257/2001).
[...] as principais conseqüências da análise constitucional do referido
princípio que resumidamente passam a ser descritas:
1) elevação da dignidade da pessoa humana a um plano concreto como um
instrumento efetivo para atender às exigências de moradia, de
aproveitamento do solo e os programas de erradicação da pobreza;
2) reforço ao entendimento de que a posse é um direito autônomo e
independente da propriedade e, portanto, não pode funcionar apenas como
um mecanismo de defesa contra eventuais agressões, mas sim um
instrumento positivo de afirmação da cidadania;
3) desnecessidade de formalismo para a prova da posse, como
exigia o revogado - a bom tempo - artigo 507 do Código Civil que
estabelecia ser melhor a posse que se fundasse em justo título.
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Com efeito, a bem da verdade, a melhor posse é aquela que cumpre
a sua inexorável função social,[...];
4) relativização da teoria objetiva de Ihering tendo em vista que pela função
social da posse a causa da aquisição já não se reveste da mesma
importância de tempos passados. De fato, o que ganha mais relevo é o
modo como se utiliza a posse (posse para fins de moradia, posse produtiva)
e não a efetiva causa de aquisição do bem que embasa a concepção da
posse como exteriorização da propriedade. [...] 'a consideração, portanto,
da atualidade na posse, do tempo, da necessidade de aproveitamento do
bem, antes questões secundárias em relação ao título, passam a ser
questões principais e determinantes da posse';
5) possível diminuição das nocivas práticas de arrebatação de terras por
meios escusos, inclusive violentos, pois a atividade dos grileiros, segundo a
autora perderia o alcance, pois nada adiantaria a formalização do título se
no embate entre formalidade do título e a funcionalidade do direito, este
último deveria preponderar;
6) o sepultamento definitivo da exceptio proprietatis nas lides possessórias,
fato que com o novo Código Civil já se operou a teor do que prescreve o
artigo 1.210.
(MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. 5.ed. Rio de Janeiro:
Lumenjuris, 2011, p. 23-24)

De fato, a construção do conceito de melhor posse deve levar em conta o


direito social primário à moradia e o acesso aos bens vitais mínimos, aptos a conferir
dignidade à pessoa humana em um plano substancial (art. 1°, III, CF), sempre em resguardo
à pessoa e à entidade familiar.
A propósito, salienta Gustavo Tepedino que:
A omissão na legislação atual não se mostra despropositada, já que os
critérios indicados pelo Código Civil de 1916 se apresentavam insuficientes
para solucionar os conflitos possessórios. Além de aferir quem possui título
hábil para transferir a propriedade, o intérprete deverá verificar o
atendimento pelo possuidor da função social da posse, consubstanciada na
utilização racional e adequada do solo, no direito ao trabalho e à moradia,
que correspondem, em última análise, à concretização da cláusula geral de
tutela da dignidade da pessoa humana, assegurada em sede constitucional.
Na perspectiva civil-constitucional, a posse com justo título nem sempre será
a melhor posse. Começa a ser superada a envelhecida formulação de
Jhering sobre a posse, concebida como a guarda avançada da propriedade,
'com a sustentação segundo a qual o largo alcance da função social não é
congruente com o deferimento da proteção possessória ao titular do
domínio cuja propriedade não cumpra integralmente sua função social'.
Assim, o justo título passa a ser critério subsidiário na solução de conflitos
possessórios, na ausência de prova da posse e de sua função social. E o
mesmo se pode afirmar para os critérios da antiguidade e atualidade da
posse.
(TEPEDINO, Gustavo. Comentário ao código civil: direito das coisas.
Coordenador Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011, p.
151-152)

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Verifica-se que a função social advém de limitações e finalidades decorrentes


do interesse público, conferindo o mesmo conceito dinâmico à posse e à propriedade, como
forma de uma reação anti-individualista.
Com efeito, a tessitura da função social, independentemente se na propriedade
ou na posse, está na atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua disposição.
Ela "não transige, não compactua com a inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta
que atende ao mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do bem"
(TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da
função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 308).
Nesse sentido, são os precedentes do STJ que tratam do conceito de função
social da propriedade:
ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA
AGRÁRIA. SUSPENSÃO DO PROCESSO EXPROPRIATÓRIO. MEDIDA
CAUTELAR PELO JUIZ SINGULAR. POSSIBILIDADE. CONCEITO DE
FUNÇÃO SOCIAL QUE NÃO SE RESUME À PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL.
DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL NÃO RECONHECIDA PELA
CORTE DE ORIGEM. MATÉRIA PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ.
[...]
3. Nos moldes em que foi consagrado como um Direito Fundamental, o
direito de propriedade tem uma finalidade específica, no sentido de que não
representa um fim em si mesmo, mas sim um meio destinado a proteger o
indivíduo e sua família contra as necessidades materiais. Enquanto adstrita
a essa finalidade, a propriedade consiste em um direito individual e,
iniludivelmente, cumpre a sua função individual.
4. Em situação diferente, porém, encontra-se a propriedade de bens que,
pela sua importância no campo da ordem econômica, não fica adstrita à
finalidade de prover o sustento do indivíduo e o de sua família. Tal
propriedade é representada basicamente pelos bens de produção, bem
como, por aquilo que exceda o suficiente para o cumprimento da função
individual.
5. Sobre essa propriedade recai o influxo de outros interesses - que
não os meramente individuais do proprietário - que a condicionam
ao cumprimento de uma função social.
6. O cumprimento da função social exige do proprietário uma
postura ativa. A função social torna a propriedade em um
poder-dever. Para estar em conformidade com o Direito, em estado
de licitude, o proprietário tem a obrigação de explorar a sua
propriedade. É o que se observa, por exemplo, no art. 185, II, da CF.
7. Todavia, a função social da propriedade não se resume à
exploração econômica do bem. A conduta ativa do proprietário deve
operar-se de maneira racional, sustentável, em respeito aos ditames
da justiça social, e como instrumento para a realização do fim de
assegurar a todos uma existência digna.
8. Há, conforme se observa, uma nítida distinção entre a
propriedade que realiza uma função individual e aquela
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condicionada pela função social. Enquanto a primeira exige que o
proprietário não a utilize em prejuízo de outrem (sob pena de sofrer
restrições decorrentes do poder de polícia), a segunda, de modo
inverso, impõe a exploração do bem em benefício de terceiros.
9. Assim, nos termos dos arts. 186 da CF, e 9º da Lei n. 8.629/1993, a
função social só estará sendo cumprida quando o proprietário
promover a exploração racional e adequada de sua terra e,
simultaneamente, respeitar a legislação trabalhista e ambiental, além
de favorecer o bem-estar dos trabalhadores.
10. No caso concreto, a situação fática fixada pela instância ordinária é a de
que não houve comprovação do descumprimento da função social da
propriedade. Com efeito, não há como aferir se a propriedade - apesar de
produtiva do ponto de vista econômico, este aliás, o único fato
incontroverso - deixou de atender à função social por desrespeito aos
requisitos constantes no art. 9º da Lei n. 8.629/93.
11. Analisar a existência desses fatos, conforme narrado pelo agravante,
implica revolvimento de matéria probatória, o que é vedado a esta Corte
Superior em razão do óbice imposto pela Súmula 7/STJ.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1138517/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,
SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011)

TRIBUTÁRIO. ITR. INCIDÊNCIA SOBRE IMÓVEL. INVASÃO DO MOVIMENTO


"SEM TERRA". PERDA DO DOMÍNIO E DOS DIREITOS INERENTES À
PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE DA SUBSISTÊNCIA DA EXAÇÃO
TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL
NÃO PROVIDO.
[...]
5. Com a invasão do movimento "sem terra", o direito da recorrida ficou
tolhido de praticamente todos seus elementos: não há mais posse,
possibilidade de uso ou fruição do bem; consequentemente, não havendo a
exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de
renda ou de benefícios para a proprietária.
6. Ocorre que a função social da propriedade se caracteriza pelo
fato do proprietário condicionar o uso e a exploração do imóvel não
só de acordo com os seus interesses particulares e egoísticos, mas
pressupõe o condicionamento do direito de propriedade à
satisfação de objetivos para com a sociedade, tais como a obtenção
de um grau de produtividade, o respeito ao meio ambiente, o
pagamento de impostos etc.
[...]
9. Recurso especial não provido.
(REsp 1144982/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 15/10/2009)

3.3. Na hipótese, como visto, o Juízo de origem entendeu que a "melhor posse"
é a da ré, ora recorrida, porquanto mais antiga, valendo-se da aplicação do art. 507, parágrafo
único, do CC/1916 - tendo em vista a omissão normativa do novo Código Civil -, deixando de
adentrar no conteúdo da posse, isto é, na exteriorização da função social dada à posse do
Documento: 30529367 - VOTO VENCIDO - Site certificado Página 10 de 11
Superior Tribunal de Justiça
imóvel em testilha.
Assim, diante da limitação de atuação do Superior Tribunal de Justiça no
tocante a questões fático-probatórias, deverão os autos retornar à origem para que seja
analisada a "melhor posse" do caso em concreto na perspectiva de sua função social.
4. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para anular a sentença e
o acórdão recorridos, de modo a que o Juízo de origem analise a "melhor posse" do caso em
concreto à luz de sua função social.
É como voto.

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