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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Professora: Mônica Genelhu Fagundes

Aluna: Poliany Trindade Quintão

Disciplina: Poesia Portuguesa

Leitura da cantiga atribuída a Fernando Esquio

Vaiamos, irmana, vaiamos dormir

nas ribas do lago u eu andar vi

a las aves meu amigo.

Vaiamos, irmana, vaiamos folgar

nas ribas do lago u eu vi andar

a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago u eu andar vi,

seu arco na mãao as aves ferir,

a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago u eu vi andar,

seu arco na mãao a las aves tirar,

a las aves meu amigo.


Seu arco na mano as aves ferir

e las que cantavam leixa-las guarir,

a las aves meu amigo.

Seu arco na mano a las aves tirar

e las que cantavam non'as quer matar

a las aves meu amigo

Antes de tudo, faz-se necessário uma análise superficial sobre o tema da cantiga,
que, neste caso, relata a euforia de uma irmã ao apressar a outra para que fossem dormir,
insinuando, assim, a ansiedade pelo amanhecer, pois iriam ao encontro do “namorado”
ou a pessoa por quem se tem interesse, na margem do lago. Essa movimentação é
exposta no primeiro par de estrofes da cantiga. Por conseguinte, já no segundo par de
cóplas, é revelado pelo eu lírico que o “amado” se desloca até às margens do lago para
caçar as aves com o seu arco. Com a conclusão do último par de estrofes, afirma-se que
a figura masculina possui o intento de ferir as aves, porém, aquelas que cantavam não
eram designadas a morte, mas, sim, salvas.

Com base nessa primeira leitura, podemos, a partir de então, propor uma análise
aprofundada sobre a cantiga, isto é, desdobrar o campo metafórico. Para isso, o destaque
aos elementos que aparecem na narrativa são de suma importância para a compreensão
da totalidade do sentido. Nesse contexto, a menção do homem no refrão de cada estrofe
“a las aves meu amigo” pode ser reforçada, simbolicamente, pela incidência do arco,
visto que é um artefato feito para atingir e perfurar um alvo, devido a isso é fundamental
que a sua estrutura seja forte e resistente, além da projeção ereta e rígida das flechas que
o compõem. Todas essas características se aproximam do elemento fálico, ou seja, o
órgão reprodutor masculino, representado, então, como o símbolo do arco.

Por outro lado, representando o feminino, o cenário é constituído pelas aves,


que, por sua vez, são símbolo de leveza, tranquilidade e beleza, qualidades essas que
podem ser transfiguradas para o ideal de uma mulher na sociedade medieval, no século
XIII. Além disso, as aves, em sua maioria, possuem duas características marcantes que
definem o seu diferencial, a capacidade de voar e o seu canto. À vista disso, fazendo um
paralelo com as mulheres, há uma virtude equivalente, a virgindade. Dessa forma, tanto
as aves quanto as mulheres mantém um valor exclusivo. Nesse sentido, a cena que se
sucede no segundo par de estrofes permite associar a ação do arco penetrando as aves
com o próprio ato sexual. Portanto, assim como as aves perdem o que têm de mais
precioso ao serem feridas pelo arco, a sua destreza de voar e cantar, as mulheres
também são destituídas da sua dignidade, posto que a castidade era muito estimada
naquela época.

Adicionando essa interpretação, pode-se inferir que as irmãs desejavam ir até a


margem do lago buscar a realização da experiência sexual com o homem, logo, o verso
“seu arco na mãao as aves ferir”, evidencia o contato do masculino com o feminino
através dos seus respectivos elementos simbólicos. Além disso, é viável estabelecer uma
relação entre o arco e o elemento fálico, uma vez que, ao atingir o alvo, a flecha lançada
pelo arco causa um sangramento, tal como ocorre quando o hímen da mulher é rompido
no ato sexual. A escolha da margem do lago para a composição da cena também é
essencial, já que a água está totalmente ligada ao feminino, indicando a fertilidade,
condutora da vida.

Sendo assim, durante a extensão de todo o poema é perceptível a alusão a essa


movimentação erótica através da repetição dos versos “seu arco na mãao as aves ferir” e
“seu arco na mãao a las aves tirar”, retomados no início do último par de estrofes com
pequenas alterações (leixa-pren), mas sempre preservando o conteúdo principal, o atrito
entre o arco e as aves. Posto isso, nas duas últimas cóplas, há a confirmação da intenção
do homem acerca das irmãs, os versos “e las que cantavam leixa-las guarir” e “e las que
cantavam non'as quer matar” demonstram uma inversão do que seria o papel do
caçador, ou seja, o dever do caçador é caçar, exigindo a morte das aves, entretanto, neste
caso, o homem deseja mantê-las vivas.

Isto pode significar, no sentido conotativo, o próprio desejo e prazer da figura


masculina no envolvimento com as duas irmãs, justificando, assim, a sua escolha por
apenas ferir em vez de matar, ao passo que o ato de ferir condiz com a penetração e a
abstenção de matar expõe o vínculo amoroso em jogo. Além disso, o verbo “cantavam”
ligado às aves pode indicar o interesse recíproco sentido pelas irmãs, visto que o canto
está fortemente associado a capacidade de atrair para que haja a procriação. Em suma, a
voz lírica transparece que se o sentimento das irmãs fosse correspondente ao do homem,
este, por sua vez, desfrutaria desse momento de intimidade com elas.

Por fim, é importante destacar que esta cantiga de Fernando Esquio adequa-se
perfeitamente às cantigas de amigo da idade média, no século XIII, pois abarca
características muito próprias desse estilo, como a predominância do eu-lírico feminino,
o conteúdo voltado aos encontros eróticos entre o homem e a mulher, descrevendo
como cenário principal ambientes que envolvam água, animais e a prática de tarefas
corriqueiras, devido a forte influência que esses elementos possuem para a construção
do significado da cantiga, sendo, portanto, símbolos indispensáveis que representam o
elemento fálico e o feminino. Também torna-se nítida a preferência pelo amanhecer, à
medida que esse momento, no contexto medieval, seria mais propicio para a ocorrência
desses encontros, considerando que as tarefas diárias eram realizadas nesse período,
então, poderiam servir como pretexto.

Nessa cantiga, embora o amanhecer não apareça de forma explícita, é possível


deduzir, na primeira estrofe, a necessidade de dormir para que a noite passe depressa e,
logo, surja o dia. À respeito dos aspectos formais nota-se que a cantiga é baseada no
paralelismo, cujas estrofes pares são sempre uma variação das estrofes ímpares, e na
estrutura leixa-pren, a qual cada novo par de estrofes é uma retomada do último verso
variável do par anterior. Por último, além dos dois pontos indicados anteriormente, o
refrão também é uma marca específica dessas cantigas, adquirindo, muitas vezes, a
função de enfatizar o tema central, como o encontro das duas irmãs com o amado, nesta
cantiga.

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