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o poder da

imaginação
C O O R D E N A R M O V I M E N T O S C O M P L E X O S E VELOZES E S T Á ENTRE OS FEITOS N O T Á V E I S DE

Q U E O C É R E B R O É CAPAZ. M U I T A S VEZES N E M S Ã O N E C E S S Á R I O S A N O S DE T R E I N A M E N T O :

BASTA A F O R Ç A DA V I S U A L I Z A Ç Ã O

por Franz Mechsner

P
ara entender como os seres humanos coordenam
os movimentos precisa, antes de mais nada, com-
preender de que forma o sistema nervoso contrai
ou distende os músculos certos no momento de-
cisivo. Assim rezava a doutrina tradicional dos fisiologistas
do movimento. Mas como explicar, por exemplo, que uma
pessoa com doença de Parkinson que, apesar de andar com
dificuldade, seja capaz de dançar bem? É o caso de Sofia.
Quando lhe perguntei como se via ao caminhar, ela disse: i
"Ponho um pé diante do outro e fico atenta para ver se |
funciona ou não". "E ao dançar?", acrescentei. "Ah, então |
eu voo!", respondeu. f
Se, contudo, a experiência de Sofia admite generalização, a ^
explicação tradicional decerto revela-se insuficiente. Está claro 2
que também a maneira como imaginamos mentalmente um |
movimento exerce enorme influência sobre sua execução real. |
o AUTOR já na década de 50, o físico israelense Moshé Feldenkrais S
FRANZ MECHSNER é doutor em (1904-1984) -queficou famoso porsuateoria do movimen- s
biologia humana e professor da
Universidade Northumbria, em to - estava convencido de que nem sempre a repetição das s
' NewCastIe, Reino Unido.
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mesmas sequências motoras é o melhor a fazer ção acima). O mesmo fenómeno se verifica em
quando se deseja aperfeiçoar novos movimen- outros movimentos, como o girar dos braços.
tos em processo de aprendizado. Muito mais Nas últimas décadas, pesquisadores inves-
sensato seria, ao contrário, refinar a percepção tigaram essa tendência à simetria especular,
que se tem de si mesmo: "A imaginação possi- em especial no que se refere ao exercício com
bilita progresso maior que a ação". Percepções os indicadores, para entender melhor os me-
e imaginações encarregadas de fomentar a canismos que a fundamentam. A maioria dos
coordenação muscular não precisam necessa- cientistas buscou explicara mudança do movi-
riamente ter por conteúdo a coordenação em si: mento paralelo para o simétrico especular com
podem direcionar-se também para o resultado base numa tendência à ativação conjunta dos
desejado. Assim é que grandes violinistas en- músculos homólogos, isto é, equivalentes do
fatizam com frequência que, ao tocar, prestam ponto de vista anatómico. À primeira vista, a
menos atenção aos movimentos do corpo que explicação parece plausível, uma vez que, por
ao som do instrumento, que, por assim dizer, vias neuronais, os músculos homólogos têm
"ouvem de antemão". ligação direta entre si e podem ser ativados
Mas é de fato concebível imaginar que algo em conjunto com facilidade. Ademais, essa
como um "voo" possa vir a ser mais propício à "teoria do m ú s c u l o " coaduna-se bem com
coordenação muscularque um bem ponderado a noção de que o sistema nervoso planeja e
"um pé depois do outro"? No Instituto Max executa movimentos como padrões completos
Planck de Ciências Cognitivas e Neurociências de ativação muscular.
de Munique, investigamos essa questão. Para Mas estará de fato correta essa explicação
tanto, em vez de abordar logo a complexa inte- óbvia? Como temos boa capacidade de reco-
ração entre os componentes do conjunto que nhecer e apreciar as simetrias especulares,
forma nosso aparelho locomotor, começamos talvez aqueles movimentos que parecem
com um exercício simples para os dedos. simétricos e que sentimos como tais sejam
Não era pouca coisa. Pedimos aos volun- particularmente fáceis de comandar. Para
tários que balançassem, paralelamente, para investigar essa hipótese, fizemos pequenas
a direita e para a esquerda, os indicadores alterações no experimento original. Solicitamos
esticados de ambas as mãos e que, ao fazê-lo, aos voluntários que movimentassem os indica-
acelerassem pouco a pouco a frequência do dores de forma ritmada, movendo-os paralela
movimento. Cedo ou tarde, a maior parte das ou simetricamente de um lado para outro.
pessoas acaba involuntariamente passando Durante metade dos 40 ciclos de movimento
do movimento paralelo inicial para um padrão (paralelo ou simétrico), eles mantiveram as
simétrico: os indicadores oscilam num mesmo mãos em posição "congruente" - ambas as
ritmo, mas em direções opostas (veja ilustra- palmas para baixo ou para cima. E durante

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\

BRINCANDO COM OS DEDOS: movimentar


simetricamente os indicadores de um lado para outro
em direções opostas (A) é mais fácil do que movimentá-
los paralelamente (Bj; assim é também quando as mãos
assumem posicionamento incongruente (Q

dessa capacidade de forma generalizada nos


movimentos intencionais, sem depender de
padrões motores fixos.
Tal balizamento "perceptivo-cognitivo" ou
"psicológico" do movimento seria de fato van-
tajoso: se os movimentos fossem codificados
tão somente como padrões fixos de contrações
musculares ou de comandos motores, isso
constituiria considerável impedimento a um
planejamento ajustável da ação. Contudo, uma
metade uma palma ficou para cima, e a outra das capacidades especiais do nosso sistema
para baixo (veja ilustração acima). cognitivo é precisamente configurar os movi-
Se existe de fato uma tendência à ativação mentos de forma criativa e flexível, de acordo
conjunta de músculos homólogos, então, na com a demanda de cada situação.
posição incongruente, o padrão paralelo de Mas é evidente que não basta simplesmente
movimento seria mais estável que o simétrico. imaginar qualquer ação motora. Resta saber se
Se, ao contrário, o que se tem é uma tendência ela funciona. Ser capaz de conceber um salto
ao movimento simétrico especular, os movi- mortal, por exemplo, está longe de significar
mentos simétricos logo substituiriam os para- que é possível executá-lo. Para realizar de forma
lelos quando do posicionamento incongruente correta um movimento, é necessário que se
das mãos - embora, para tanto, m ú s c u l o s disponha, antes de tudo, de certa habilidade
diferentes, não homólogos, sejam ativados. básica a partir da qual, então, a imaginação
Os resultados foram claros: as oscilações apropriada do movimento se constrói. O que ca-
simétricas especulares dos dedos revelaram-se racteriza, porém, tal imaginação "apropriada"?
sempre mais estáveis, independentemente do Que qualidades de um movimento planejado
posicionamento das palmas das mãos. No caso são decisivas para sua execução bem-sucedida?
de ritmos mais velozes, observamos transições Se desejo conduzir as pontas dos dedos
espontâneas do padrão de movimento paralelo de um ponto A para B, por exemplo, "direção"
para o simétrico, mas nem uma única mudança e "amplitude" são conceitos físicos que des-
no sentido contrário. Fica evidente, portanto, crevem com precisão suficiente o movimento
que nossa tendência espontânea à simetria corporal. Seria possível supor que esses pa-
se deve a uma propensão geral a movimentos râmetros são computados em nosso sistema
percebidos como simétricos especulares. Que motor. Surpreendentemente, experimentos de Temos
músculos atuam aí ou que sinais nervosos são uma equipe da Universidade da Califórnia em
enviados parece ser uma questão secundária. Berkeley demonstram que o cérebro não calcula
tendência
Tudo indica que os músculos são flexível e um movimento intencional com base em tais espontânea
automaticamente ativados a serviço direto do parâmetros - ou, pelo menos, nem sempre. à simetria,
desenho visível do movimento. O pesquisador jõrn Diedrichsen, da Uni-
nossos
A ênfase tradicional nos aspectos moto- versidade de Londres, investigou juntamente
res do controle do movimento - comandos com Richard Ivry e outros colaboradores um
músculos
neuronais dirigidos aos músculos, por exem- fenómeno que até então era considerado com- procuram
plo - poderia, assim, estar equivocada. São provação clara do controle do movimento por sempre se
antes conteúdos mentais que parecem balizar parâmetros corporais. Movimentar ambos os
diretamente os movimentos. Isso é notável braços com amplitudes diferentes era tido como
ajustar a
porque o cérebro poderia, portanto, se valer mais difícil que movimentá-los com amplitudes esta "lógica"
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É possível idênticas. Assim sendo, voluntários podem dar não precisa ser planejada em cada detalhe.
início mais rapidamente a movimentos dos Movimentos desiguais à esquerda e à direita,
transformar braços de uma mesma amplitude - a eventual difíceis de planejar como tais, deixam-se exe-
ideias em diferença tende a se igualar com o tempo. As cutar sem qualquer problema diante de uma
ação sem amplitudes parecem ser planejadas para ambos meta concreta.
os lados, do contrário não poderiam influenciar- Para demonstrarmos como as pessoas po-
grande se mutuamente dessa maneira. dem realizar movimentos de alta complexidade,
aprendizado O que chamou a atenção dos pesquisadores e até supostamente "impossíveis" desde que
quando foi que o sinal de partida dado aos voluntários sejam confrontadas com a meta visível de seu

temos claro consistia sempre nas amplitudes desejadas. Por


exemplo, " I " significava "longo" e "c", "curto";
movimento, solicitamos a um grupo de volun-
tários que girassem duas manivelas, cada uma
o objetivo ao sinal "l-c", portanto, os voluntários deveriam delas com uma mão. As manivelas estavam
final reagir com um movimento longo da mão es- montadas embaixo de uma mesa e, portanto,
querda e outro curto da mão direita. A equipe não podiam ser vistas pelos participantes. Dois
decidiu investigar o que acontece se, em vez das ponteiros visíveis sobre a mesa giravam na
amplitudes, forem sinalizados aos voluntários mesma direção das manivelas (veja ilustração
os pontos a ser atingidos pelos movimentos. O abaixo). O da esquerda respondia diretamente
resultado surpreendeu em dois aspectos. Em ao movimento da mão esquerda, ao passo que
primeiro lugar, não mais se verificou a diferença o da direita - cujo controle passava por uma
na velocidade inicial dos movimentos, fossem engrenagem - movia-se um pouco mais rapi-
as amplitudes idênticas ou não. Estivessem os damente que o movimento giratório da mão e
pontos de chegada à esquerda e à direita a dis- da manivela correspondentes. Os voluntários
tâncias diferentes ou a uma mesma distância, tinham de girar ambos os ponteiros a uma
os voluntários davam início a seus movimentos mesma velocidade. Para tanto, precisariam
com a mesma velocidade. E, em segundo, com girar as mãos numa relação de frequência de
a sinalização direta dos pontos a atingir, eles 4 para 3. Isso significa que, enquanto a mão
foram capazes de executar os movimentos de direita completava três giros, a esquerda tinha
ambas as mãos com mais rapidez que à mera de completar quatro - uma tarefa de extrema
indicação da amplitude desejada. dificuldade. Ainda assim, para executá-la, bas-
Com base nesses experimentos, o grupo tava que atentassem apenas para o giro dos
de Diedrichsen concluiu que, se as metas dos ponteiros e "esquecessem" suas mãos.
movimentos são dadas, sua forma corporal C o n c l u s ã o : seres humanos podem exe-
cutar os movimentos mais complicados,
contanto que prestem a t e n ç ã o ao efeito
almejado, e não ao movimento exato do cor-
po. Isso parece ser possível pelo fato de as
percepções e a imaginação exercerem forte
influência sobre os processos de coordena-
ção do sistema motor.
O que não significa dizer que as grandezas físi-
cas da biomecânica ou que as conexões neuronais
não desempenham nenhum papel. Mas, com
base nos resultados visíveis, o cérebro é capaz de
controlar tais fatores e, assim, planejar e executar
movimentos de acordo com a situação. Se esse
controle se desse mediante programações fixas,
QUASE IMPOSSÍVEL:
neste experimento, a fim a dificuldade seria maior. De resto, os padrões de
de fazer girar as setas na contração muscular não se deixam vincular dire-
mesma velocidade a mão
tamente à meta de um movimento - no futebol,
esquerda precisa rodar a
manivela com mais rapidez por exemplo, quando se trata de chutar a gol de
que a direita um ângulo muito fechado.

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o MOVIMENTO é composto de subdivisões: nos esportes essas delimitações ajudam a aprimorar a técnica.

Mas o que, então, um jogador de futebol esporte-o saque no ténis, por e x e m p l o - é com-
precisa aprender para colocar a bola "na rede"? posto de fases diferentes e bem delimitáveis do
Como o tenista transforma seu saque num ace} movimento, cada uma contendo submovimen-
Como um ginasta consegue dar um salto mortal tos funcionais,eé a partir daí que os problemas
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiniiiií
triplo? Em todos esses casos, o cérebro precisa podem ser resolvidos. Se, pois, os movimentos PARA SABER MAIS
estar em condições de reagir de acordo com a não são controlados por programas motores, The bodywidefascial nebwork
situação - no futebol, para, em meio ao maior mas por intermédio da imaginação, então ha- as a sensory organ for haptic
perception. Robert Schleip,
tumulto ou com a grama molhada de chuva, veria de ser possível demonstrar nos esportistas Franz Mechsner, Adjo Z o r n e
alçar a bola com sensibilidade por sobre o goleiro a presença de planos mentais relativos a esses Werner Klingler, em Journal of
Motor Behavior, 46 (3), págs.
dentro da rede. Em situações desse tipo, calcular mesmos submovimentos. Com o auxílio de 191-193, 2014.
os comandos motores ou padrões de contração engenhosos métodos cognitivo-psicológicos, A psychological approach
muscular exatos parece ser tarefa extremamente Schack foi capaz de mostrar que tenistas profis- to human voluntary move-
ments. Franz Mechsner, e m
complicada, quando não impossível. Difícil de sionais dispõem de planos mentais organizados Journal of Motor Behavior, 36
compreender é também de que forma movimen- hierarquicamente e armazenados na memória (4), págs. 355-370, 2004.

tos de funcionalidade semelhante - c o m o , para de longo prazo, os quais são evocados no mo- Independent online controlof
the two hands during bima-
citar outro exemplo, bater um escanteio- podem mento do saque. Nesses planos, diferenciam-se nual reaching. J. Diedrichsen
estar baseados em programas prototípicos, com clareza fases isoladas, tais como "rotação et ai, e m EuropeanJournal of
Neuroscience, 19 (6), págs.
considerando-se, afinal, que os músculos ativos do tronco", "aceleração da raquete", "alonga-
1643-1652, 2004.
e seu padrão de contração variam enormemente mento do corpo" e "golpe na bola".
The relationship between mo-
de uma situação para outra. Ao que parece, portanto, é possível coman- tor representation and biome-
chanical parameters In com-
Se programas motores, na qualidade de dar diretamente os movimentos com o auxílio plex movements - Towards
bases exercitáveis para movimentos complexos, da atividade cognitiva, sem que para tanto um an integrativa perspective of
movement science. T. Schack,
não parecem de todo apropriados, então o que programa especial coordene os músculos de em European Journal of Sport
um esportista aprende ao se desenvolver pouco alguma forma estabelecida. Se assim é de fato, Sdence, 3 (2), págs. 1-13,2003.

a pouco em direção à maestria? Thomas Schack, então podemos transformar em ação direta Perceptual basis of bimanual
coordination. R Mechsner et
da Universidade Bielefeld, Alemanha, parte do ideias novas e criativas de movimento, sem
ai, e m Nature, 414 (6859),
princípio de que muitos problemas diferentes antes precisar planejar, aprender e controlar págs. 69-72, 2 0 0 1 .

de natureza biomecânica e física precisam ser programas musculares correspondentes. Desse O poder da autotransfbrma-
ção: a dinâmica do corpo e da
resolvidos a fim de que um movimento seja modo, também ideias tão genéricas como aque-
mente. M o s h é Feldenkrais.
executado com sucesso. Contudo, toda ação no le "eu voo" de Sofia conduzem ao sucesso. S u m m u s , 1994.

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E D I Ç Ã O ESPECIAL Imaginar movimentos antes de
fazê-los favorece sua execução

mente
SCIENTIFIC AMERICAN • Jffi

Neurocientístas investigam processos


neurais que nos permitem dançar

cérebro
psicologia I p s i c a n á l i s e I n e u r o c i ê n c i a
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