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Esquizofrenia
Helio Elkis
Monica Kayo
Rosana Ramos de Freitas
Graça Maria Ramos de Oliveira
Samuel Araujo Leite
Marisa Fortes
Ivania Pantarotto
Mario Rodrigues Louzã
Sumário
Introdução
A evolução do conceito de esquizofrenia
Fenomenologia
Dimensões psicopatológicas
Cognição
Critérios diagnósticos da esquizofrenia
Subtipos de esquizofrenia
Epidemiologia
Etiopatogenia e neurobiologia
Alterações cerebrais estruturais e funcionais
Neuroimagem estrutural
Neuroimagem funcional
Fatores de risco genéticos
Fatores de risco precoces
Fatores de risco tardios
Fisiopatologia
Hipótese dopaminérgica
Outros sistemas de neurotransmissão
Diagnósticos diferenciais
Curso e evolução
Vinheta clínica
Para aprofundamento
Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO
Pontos-chave
O conceito de esquizofrenia evoluiu ao longo das décadas. Seu diagnóstico atual inclui sintomas psicóticos, de
desorganização e negativos, bem como comprometimento funcional e cognitivo
A etiologia da esquizofrenia é multifatorial, havendo interação entre fatores genéticos e ambientais.
O aumento da neurotransmissão dopaminérgica é o modelo que melhor explica os sintomas psicóticos, porém
não os sintomas negativos e cognitivos, cuja fisiopatologia está associada a disfunções de outros
neurotransmissores cuja ação é menos conhecida, tais como o glutamato, GABA e a serotonina.
O tratamento da esquizofrenia consiste na combinação de antipsicóticos, cuja ação reduz a neurotransmissão
dopaminérgica e intervenções psicossociais, particularmente terapia cognitivo comportamental, orientação
familiar e reabilitação cognitiva, que tem alguma evidência de eficácia sobre sintomas negativos e cognitivos.
O conceito de esquizofrenia sofreu muitas transformações ao longo dos anos. Relatos de quadros que
hoje são denominados psicóticos foram descritos em diversos textos médicos, porém somente a partir do
final século XIX, autores como Haslam (1810), Hecker (1871) e Kalhbaum (1874) observaram que se
manifestavam em jovens e levavam à deterioração cognitiva. Para diferenciá-los de quadros demenciais
associados ao envelhecimento, o psiquiatra belga Benoit Morel, em 1860, criou o termo démence precoce,
que foi latinizado posteriormente por Kraepelin como dementia praecox3.
Kraepelin pode ser considerado o primeiro autor a descrever um quadro psiquiátrico caracterizado por
sintomas psicóticos (delírios, alucinações, distúrbios do pensamento) e que levava, na maioria das vezes, à
deterioração intelectual. Embora Kraepelin tenha descrito a maioria dos sintomas conhecidos hoje, ele não
considerava qualquer deles como patognomônico, privilegiando o diagnóstico longitudinal, isto é, a partir de
evolução do quadro clínico. Além disso, considerava a etiologia do quadro exógena, diferentemente da
psicose maníaco-depressiva (hoje conhecida como transtorno bipolar) considerada puramente endógena3,4.
Em 1911, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler rebatizou a demência precoce com o nome de esquizofrenia e,
ao contrário de Kraepelin, estabeleceu uma hierarquização entre sintomas que considerava fundamentais (por
ex., desorganização do pensamento e embotamento afetivo) em relação a outros que considerava acessórios
(delírios e alucinações) para o diagnóstico.
Na ausência de uma definição da etiologia da doença, a busca por sintomas patognomônicos continuou
com Kurt Schneider que, em 1939, classificou uma série deles como essenciais ou de primeira ordem para o
diagnóstico. Hoje, na prática, tanto a concepção kraepeliana (longitudinal) como a bleuleriana/schneideriana
(sintomatológica ou transversal) podem ser reconhecidas nos critérios diagnósticos modernos.
FENOMENOLOGIA
Dimensões psicopatológicas
A primeira escala que procurou os principais sintomas das psicoses foi a Brief Psychiatric Rating Scale
(BPRS)5 com 16 itens. Esta escala passou a ser a mais utilizada na avaliação da gravidade dos sintomas das
psicoses. No entanto a avaliação da gravidade da menor (1) para maior (7) era realizada de forma
inteiramente subjetiva e, por isto, ela foi sucedida por uma versão ancorada (cuja versão em português está
disponível), na qual cada nível de gravidade passou a ser definido de acordo com os graus de frequência e
intensidade dos sintomas6.
Cognição
A esquizofrenia foi inicialmente descrita como uma “demência precoce” e, portanto, a deterioração
cognitiva representa uma dimensão bastante característica do transtorno. As alterações cognitivas na
esquizofrenia não se restringem somente a uma deterioração da inteligência, avaliada pelo QI, mas abrangem
várias funções cognitivas. Muito mais que um transtorno psicótico, a esquizofrenia pode ser entendida como
um transtorno cognitivo e comportamental decorrente do processamento anormal de informações1.
As principais dimensões ou domínios cognitivos afetados na esquizofrenia estão apresentados na Tabela
2.
Os sintomas cognitivos representam uma importante dimensão da esquizofrenia, porém não fazem parte
dos critérios diagnósticos desta entidade clínica, mesmo estando presentes desde as primeiras manifestações
da doença, ainda na fase pré-mórbida1. Também acometem pacientes de primeiro episódio, atingindo
domínios cognitivos específicos e o funcionamento social, variando em gravidade e afetando pacientes com
esquizofrenia antes mesmo das primeiras manifestações dos sintomas positivos ou negativos10.
Pessoas com esquizofrenia apresentam déficits cognitivos em diversos domínios distintos e, ao serem
avaliadas por baterias neuropsicológicas, apresentam desempenho concentrado entre abaixo da média e
deficitário (entre 0,5 e 0,8 desvios-padrão abaixo da amostra normativa), evidenciando claro
comprometimento cognitivo11. Além disso, apresentam grave declínio de QI total entre a puberdade e a vida
adulta, período comumente associado ao surgimento dos primeiros sintomas prodrômicos e subsequentes
crises psicóticas12.
Um dos domínios cognitivos mais gravemente comprometidos na esquizofrenia são as funções
executivas (FE), que correspondem aos processos cognitivos associados ao córtex pré-frontal que modulam e
orientam o comportamento para a realização de tarefas com objetivos específicos. Uma vez que os processos
cognitivos necessários para FE como atenção, controle inibitório, memória e motivação também estão
alterados, o indivíduo com esquizofrenia fica impossibilitado de ter uma vida plenamente funcional,
resultando em disfunção executiva13. Considerando a progressão natural da esquizofrenia quando não
adequadamente tratada e o declínio progressivo da cognição, o impacto às FE e ao comportamento geral é
considerável e compromete gravemente as atividades da vida diária do indivíduo.
Outro déficit cognitivo muito significante na esquizofrenia envolve a capacidade de cognição social, que
corresponde à soma das habilidades responsáveis pela aptidão humana de interação social, incluindo a
compreensão sobre as emoções, intenções e comportamentos (de si e de terceiros), bem como a possibilidade
de adaptação e modulação das próprias atitudes em diferentes situações sociais14. Desta forma, a cognição
social nos permite desenvolver e sustentar interações interpessoais, nos relacionarmos, entendermos e
cooperarmos com outras pessoas. Indivíduos com esquizofrenia, no entanto, exibem deficiências no
processamento de informações sociais, o que pode resultar em interpretações equivocadas em relação às
intenções de terceiros, resultando, dentre outras coisas, em retraimento e isolamento social15.
Para melhor avaliar a cognição na esquizofrenia, pesquisadores do National Institute of Mental Health
(NIMH) desenvolveram a Bateria Cognitiva Consensual MATRICS (Measurement and Treatment Research
to Improve Cognition in Schizophrenia)13. Na realidade o objetivo primário da criação deste instrumento foi o
de avaliar de forma confiável a resposta ao tratamento com antipsicóticos sobre os domínios cognitivos tais
como: a velocidade de processamento, atenção/vigília, memória operacional, aprendizagem verbal,
aprendizagem visual, raciocínio e resolução de problemas e cognição social, por meio de 10 testes (Tabela 3).
No Brasil, a adaptação da bateria MATRICS evidenciou resultados similares à versão original norte-
americana, sendo um instrumento adequado para uso na avaliação da população brasileira portadora de
esquizofrenia16.
Tabela 3 Measurement and Treatment Research to Improve Cognition in Schizophrenia (MATRICS): domínios cognitivos
e respectivos testes para sua avaliação
Domínio cognitivo Testes utilizados
Velocidade de Trail Making Test, Part A
processamento
Brief Assessment of Cognition in Schizophrenia: Symbol
Coding
Category Fluency Test: Animal Naming
Aprendizagem verbal Hopkins Verbal Learning Test – Revised, Immediate Recall
Memória operacional não Wechsler Memory Scale III: Spatial Span Subtest
verbal
Memória operacional verbal Letter-Number Span Test
Domínio cognitivo Testes utilizados
Pode-se considerar este último mais restritivo que CID-10, uma vez que há a necessidade de disfunção
social/ocupacional, e sintomas contínuos pelo período de 6 meses (este período deve incluir um mês de
sintomas, ou menos, se tratado com sucesso). Além disso, é necessária a exclusão de transtornos de humor e
esquizoafetivo, condição médica ou uso de substâncias psicoativas. Por fim, se existir história de transtorno
do espectro do autismo ou transtorno de comunicação de início na infância, o diagnóstico adicional de
esquizofrenia pode ser feito somente se houver alucinações ou delírios proeminentes e se outros sintomas
requeridos para o diagnóstico de esquizofrenia estiverem presentes há pelo menos um mês (ou menos se
tratados com sucesso). O Quadro 1 descreve os critérios diagnósticos da CID-10 para esquizofrenia.
Subtipos de esquizofrenia
Desde o princípio, a heterogeneidade clínica foi identificada como uma das principais características da
esquizofrenia, pois Bleuler, já no começo do século XX, preferiu chamar a esquizofrenia de “o grupo das
esquizofrenias”.
É importante enfatizar no entanto que o DSM-5 aboliu os subtipos da esquizofrenia dada a constatação de
que estes não têm estabilidade diagnóstica, não têm valor prognóstico para resposta a tratamento e não são
associados a fatores hereditário, tendo sido substituídos pelas dimensões psicopatológicas19 e que a 11ª
versão da CID (CID-11), a ser implantada em 2022, seguirá no mesmo caminho, abolindo os subtipos da
esquizofrenia, pelas mesmas razões anteriormente descritas 9. Portanto, os subtipos da esquizofrenia não têm
utilidade clínica ou valor prognóstico, sendo mencionados neste capítulo porque ainda constam na CID-10.
Os critérios de esquizofrenia propostos para a 11ª revisão da Classificação Internacional das Doenças
(CID-11), que estão sujeitos a modificações, são os apresentados no Quadro 2.
Os critérios diagnósticos da esquizofrenia, de acordo com a DSM-5, encontram-se no Quadro 3.
EPIDEMIOLOGIA
A incidência de esquizofrenia varia entre os países, sendo sua mediana em torno de 15,2/100.000/ano,
com uma proporção maior para os homens que para as mulheres (1,4 para 1), havendo maior incidência no
grupo de migrantes e predominância em áreas urbanas, quando comparadas às rurais e em latitudes mais
elevadas do globo terrestre21.
Quadro 2 Critérios diagnósticos da esquizofrenia da futura 11ª Revisão da Classificação Internacional das Doenças (CID-
11)9, 20
Pelo menos 2 dos seguintes 7 sintomas devem estar presentes pelo período de um mês,
sendo que, necessariamente, um deles deve situar-se entre os itens a-d
a. Delírios persistentes
b. Alucinações persistentes
c. Pensamento desorganizado
d. Experiências de influência, passividade e controle
e. Sintomas negativos
f. Comportamento desorganizado ou bizarro
g. Distúrbios psicomotores (agitação, inquietação catatônica, negativismo, flexibilidade
cérea, negativismo, mutismo ou estupor)
A prevalência varia de acordo com a medida adotada (expressa por 1.000 pessoas): a mediana da
prevalência pontual é de 4,6, a prevalência por período é de 3,3 e a prevalência por toda vida é de 4. Um
estudo detalhado conduzido na Finlândia encontrou uma prevalência de 0,87%22. No caso da prevalência, não
há diferença entre gêneros e urbanicidade, porém as taxas são maiores em migrantes, em países
desenvolvidos e nas maiores latitudes23.
No Brasil, no estudo epidemiológico de área de captação abrangendo os bairros do Jardim América e Vila
Madalena, na cidade de São Paulo, Andrade et al. encontraram uma prevalência ao longo da vida de 1,9%
para as chamadas psicoses não afetivas, o que, teoricamente, pode representar uma estimativa da prevalência
de esquizofrenia no Brasil24.
As pessoas com esquizofrenia têm uma expectativa de vida menor que a população geral; o suicídio é um
fator que contribui para maior mortalidade na idade jovem e a doença cardiovascular é o fator de maior
impacto na mortalidade em fases mais tardias. Paciente com esquizofrenia apresentam um risco durante a
vida de 5%, sobretudo nos primeiros anos da doença25.
Diversos fatores contribuem para a alta incidência de doença cardiovascular nas pessoas com
esquizofrenia: estilo de vida sedentário, uso de medicamentos antipsicóticos e alto índice de tabagismo1.
ETIOPATOGENIA E NEUROBIOLOGIA
Presença de alterações cerebrais estruturais não progressivas e que são identificáveis já nas primeiras
manifestações da doença.
Ausência de gliose, que é uma alteração específica associada à neurodegeneração (p. ex., Alzheimer).
Alterações da girificação cerebral.
Redução da arborização com aumento de densidade neuronal em áreas pré-frontais (áreas 9 e 46),
também chamada hipótese da redução do “neuropil”.
Maior frequência de complicações obstétricas em pacientes em relação a controles.
Pessoas com diagnóstico de esquizofrenia apresentam na infância maiores déficits no desenvolvimento
cognitivo e motor em relação aos controles.
Maior frequência de pequenas anomalias físicas.
Associação com síndromes disgenéticas conhecidas (p. ex., síndrome velocardiofacial).
Na realidade, esses dois processos ocorrem na esquizofrenia e, como proposto por Jarskog e Gimore28 os
processos de alteração do neurodesenvolvimento ocorrem nos períodos pré-mórbido e prodrômico, ao passo
que, a partir do primeiro episódio psicótico, ocorrem processos de caráter neurodegenerativo, mas que são
limitados30.
Já está bem estabelecido que pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, quando comparados a controles
normais, apresentam uma série de alterações cerebrais estruturais e funcionais.
Neuroimagem estrutural
Alterações estruturais cerebrais, como dilatação ventricular e atrofia cortical, foram observadas desde
1920 em cérebros de pacientes portadores de esquizofrenia, por meio de técnicas de pneumoencefalografia.
No entanto, em razão do caráter invasivo daquela técnica, não havia estudos que pudessem comparar as
imagens obtidas com as de controles normais; isso só ocorreu em 1976, graças ao estudo pioneiro de
Johnstone et al., por meio de tomografia computadorizada31.
Desde então, uma quantidade enorme de estudos tem mostrado que os cérebros de pacientes com
esquizofrenia apresentam uma série de anormalidades. O achado neuroestrutural mais replicado na
esquizofrenia é o alargamento do sistema ventricular, principalmente ventrículos laterais e terceiro
ventrículo, quando comparados com controles saudáveis32.
Esse alargamento ventricular, observado em crianças e adolescentes portadores de esquizofrenia, foi
considerado a princípio uma demonstração de que a esquizofrenia é uma alteração do neurodesenvolvimento,
estando associada a pior resposta ao tratamento antipsicótico. Posteriormente, com a evolução das pesquisas,
tais premissas não se sustentaram, tendo se verificado também que a dilatação ventricular está presente em
pacientes com transtornos do humor, embora em menor grau32.
São frequentes também as reduções do volume cerebral total e de substância cinzenta cerebral. Reduções
volumétricas em regiões como córtex frontal, amígdala, cíngulo, hipocampo e giro para-hipocampal, regiões
mesiais do lobo temporal e giro temporal superior foram consistentemente replicadas em estudos de
pacientes com esquizofrenia, ganhando suporte também de grandes metanálises33.
Nas últimas décadas, tem sido documentada uma redução bilateral no volume da formação hipocampal,
observação embasada por achados de redução do n-acetil aspartato, um marcador de patologia neuronal em
pacientes adultos não medicados e em pacientes em primeiro episódio da doença. Além disso, os estudos que
utilizam o PET também revelaram disfunção hipocampal durante a recuperação de memória episódica em
pacientes com esquizofrenia34.
Algumas dessas anormalidades, principalmente alargamento de ventrículos e reduções de volume
cerebral total e hipocampo, já estão presentes em pacientes com primeiro episódio e também em familiares
não afetados35. O início precoce da esquizofrenia aparentemente está associado a alterações anatômicas
similares, porém de maior gravidade36.
Woods mostrou em uma metanálise em que a redução dos volumes cerebrais ocorre antes e depois de o
cérebro atingir o seu volume máximo37. Alterações cerebrais, especialmente dilatação ventricular, progridem
em um subgrupo de pacientes, em contraposição à ideia de que as anormalidades seriam estáticas (isto é, de
origem exclusivamente no neurodesenvolvimento)38. Assim, como salientado anteriormente, essas são
evidências de que a esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico associado tanto a alterações do
neurodesenvolvimento como neurodegenerativas.
Neuroimagem funcional
Vários estudos, corroborados por uma metanálise, demonstraram a presença de um menor fluxo
sanguíneo em regiões cerebrais frontais (“hipofrontalidade”)39,40.
Pacientes com esquizofrenia têm um baixo desempenho em tarefas cognitivas como memória de trabalho
e funções executivas, associadas à redução da atividade do córtex pré-frontal, que foram identificadas
inicialmente correlacionando-se o fluxo sanguíneo cerebral com o desempenho em testes como o de
Wisconsin.
Há uma vasta literatura que correlaciona a redução da atividade pré-frontal cerebral em pacientes com
esquizofrenia e as funções cognitivas42. Tais anormalidades foram observadas em familiares de primeiro
grau, podendo estar associadas a um aumento da atividade dopaminérgica estriatal, mas não são exclusivas
da esquizofrenia, sendo possivelmente observadas em pacientes com transtornos do humor.
FATORES DE RISCO
Genéticos
OUTROS FATORES
Figura 2 Modelo de Gottesman: risco de esquizofrenia ao longo da vida em parentes de pessoas com esquizofrenia46 .
Apresentamos na Tabela 4 os riscos expressos em razões de chances (odds ratio) cuja interpretação é
simples e direta (p. ex., fumar maconha aumenta em 5 vezes o risco para desenvolvimento da
esquizofrenia)45,48.
Assim como ocorre com muitas condições médicas a esquizofrenia hoje é entendida como um processo
de natureza epigenética, onde os fatores ambientais desencadeiam.
ETIOPATOGENIA
Hipótese dopaminérgica
Na década de 1950, observou-se que nos primeiros pacientes tratados com clorpromazina, o primeiro dos
antipsicóticos, a melhora estava associada a uma síndrome parkinsoniana (“síndrome de impregnação”), que
passou a ser considerada, na época, necessária para o efeito terapêutico. Posteriormente, foi descoberto que a
doença de Parkinson estava associada a uma diminuição de dopamina no striatum e, portanto, surgiu a
hipótese de que a síndrome parkinsoniana produzida pelos antipsicóticos resultaria de uma diminuição da
dopamina no striatum. Inversamente, observou-se que substâncias como a anfetamina, que induzem o
aumento da dopamina (agonistas dopaminérgicos), produziam psicoses semelhantes às da esquizofrenia.
Tais aspectos podem ser explicados por meio da hipótese dopaminérgica da esquizofrenia, que pode ser
assim resumida:
Os sintomas psicóticos estariam associados a um excesso de dopamina.
A melhora dos sintomas psicóticos seria devida a um bloqueio da dopamina.
A síndrome extrapiramidal (SEP) traduziria o bloqueio dopaminérgico.
Atualmente, sabe-se que o sistema dopaminérgico possui cinco tipos de receptores pós-sinápticos: D1,
D2 e D3, que são abundantes no núcleo acumbente e estriado (striatum), ao passo que os receptores D4 e D5
são mais abundantes no mesencéfalo, na amígdala, no hipocampo e no córtex49. Por outro lado, há também os
chamados autorreceptores pré-sinápticos de D2, que podem exercer função regulatória de liberação de
dopamina por meio de mecanismos de inibição da liberação de tal neurotransmissor; eles têm grande
importância no mecanismo de ação de certos antipsicóticos.
Seeman e Kapur50 mostraram que a base da teoria dos receptores dopaminérgicos nas psicoses radica-se
em algumas linhas de evidência:
A potência clínica dos antipsicóticos está diretamente relacionada com sua capacidade de ocupação de
receptores D2 (presentes predominantemente no striatum), havendo uma correlação entre as doses
terapêuticas empregadas e as constantes de inibição dos antipsicóticos.
Em estudos com tomografia por emissão de pósitrons, observa-se que 60 a 80% dos receptores D2 estão
ocupados com as doses terapêuticas dos antipsicóticos.
Há um aumento de receptores D2 em pacientes com esquizofrenia nos estudos em que foram empregados
ligantes específicos, como é o caso da metilespiperona.
Não há evidências de aumento de receptores D1 em pacientes com esquizofrenia.
Concentrações de dopamina estão aumentadas no cérebro de pacientes com esquizofrenia.
As origens dos sintomas da esquizofrenia passaram a ser explicadas pela “teoria dopaminérgica” nas suas
três versões51. Na versão II da teoria, coube a Davis et al. apresentarem uma reformulação, que então passou
a apresentar uma explicação para a origem dos sintomas negativos: a diminuição de atividade dos receptores
dopaminérgicos D1, abundantes no córtex frontal52. Assim, a teoria ficou mais completa, de modo que os
sintomas positivos passaram a ser explicados por um aumento da atividade dopaminérgica subcortical,
enquanto os sintomas negativos poderiam ser explicados por uma diminuição da atividade dopaminérgica
cortical.
Com a evolução dos estudos de neuroimagem e o papel de outros receptores dopaminérgicos, como os
receptores D3 e a proposta da “teoria da saliência aberrante”53,54 (que propõe que o aumento da atividade
dopaminérgica alteraria a percepção dos estímulos, promovendo uma “saliência aberrante” de certos
esquemas cognitivos preexistentes, gerando, por exemplo, sintomas psicóticos, como os delírios), foi
formulada a última versão da teoria dopaminérgica (versão III), com quatro componentes51:
A alteração da regulação dopaminérgica é uma via final comum causada por uma série de “golpes”.
O local da alteração da regulação dopaminérgica ocorre em um nível pré-sináptico dos receptores D2.
A alteração da regulação dopaminérgica está associada à “psicose” e não somente à “esquizofrenia”.
A alteração da regulação dopaminérgica altera a percepção dos estímulos pelo mecanismo da saliência
aberrante.
A Figura 3 ilustra essa teoria: o aumento da transmissão dopaminérgica induzida por vários estímulos tais
como genes, drogas ou estresse promove a liberação de dopamina e aumento da “saliência aberrante”, i.e., a
percepção aumentada aos estímulos. A administração de antipsicóticos reduz a transmissão dopaminérgica e,
consequentemente, a saliência aberrante51.
No entanto esta teoria não consegue explicar o fato de que 30% ou mais dos pacientes não respondem a
dois tratamentos consecutivos com dois diferentes antipsicóticos sendo considerados resistentes, passando a
responder, em grande parte dos casos, ao tratamento com clozapina, cujo bloqueio dopaminérgico é bem
menos pronunciado que, por exemplo, antipsicóticos fortemente bloqueadores dopaminérgicos, tais como
haloperidol ou risperidona.
Figura 3 Teoria dopaminérgica da esquizofrenia versão III a partir do modelo proposto por Howes e Kapur, 200951 .
Fonte: modificada de Howes e Kapur49.
Howes formulou a hipótese de que estes pacientes teriam uma neurotransmissão dopaminérgica reduzida
ou normal (“esquizofrenia normodopaminérgica”), em contraste com os respondedores, que aumento da
neurotransmissão dopaminérgica (“esquizofrenia hiperdopaminérgica”)55. Da mesma forma os pacientes com
resistência a tratamento apresentam maiores níveis de glutamato, quando comparados com os
respondedores56.
DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
A esquizofrenia é um transtorno psicótico, mas nem todo transtorno psicótico é esquizofrenia. Várias
doenças podem se apresentar com sintomas psicóticos e, por isso, o diagnóstico diferencial é essencial. As
condições genéticas, clínicas, neurológicas e psiquiátricas associadas ao aparecimento de quadros psicóticos
estão apresentadas nos Quadros 4, 5 e 6.
Para o diagnóstico diferencial, são necessários exames que permitam um screening adequado, sobretudo
quando se tratar de uma primeira manifestação psicótica: exame físico e neurológico, hemograma, funções
tireoidianas e hepáticas, eletroencefalograma, presença de substâncias psicoativas na urina, tomografia ou
ressonância magnética do encéfalo, cálcio e cobre séricos, sorologia para sífilis e HIV e, eventualmente,
exame de liquor. Medicamentos podem produzir sintomas psiquiátricos, em geral depressivos, mas
ocasionalmente sintomas psicóticos, como é o caso de antivirais, antibióticos, antiparkinsonianos
(especialmente levodopa e seus derivados), ansiolíticos, antidepressivos, anticonvulsivantes, corticosteroides,
digitálicos, psicoestimulantes (principalmente anfetaminas).
Quadro 4 Doenças de transmissão genética mendeliana de grande ou média probabilidade de associação com
psicose62,63
Doenças com grande probabilidade de associação com psicose
Doença de Huntington
Leucodistrofia metacromática
Porfiria aguda intermitente e subtipos
Calcificação familial dos gânglios da base
Doenças com certa probabilidade de associação com psicose
Doença de Niemann-Pick
Doença de Gaucher
Doença de Fabry
Narcolepsia
Doença de Kuf
Homocistinúria
Doença de Wilson
Hemocromatose
Deficiência de glicose 6PD
Albinismo
Síndrome de Kartagener
Síndrome de Lawrence-Moon-Biedl
Ataxia familial
Curso e evolução
Em termos do curso ou história natural, a esquizofrenia pode ser dividida nas fases pré-mórbida,
prodrômica, progressiva e crônica64,65.
A fase pré-mórbida é importante e desafiadora, pois raramente se procura ajuda nesta fase, e intervir em
fatores de risco para surtos psicóticos pode ter grande impacto na vida do indivíduo.
A fase prodrômica precede o início da doença. Nessa fase já são observadas alterações como atrasos no
desenvolvimento motor ou retardo na aquisição da fala, surgindo sintomas como alterações de personalidade,
de pensamento e do humor, muitas vezes não detectáveis. É comum nesse período que a família procure
ajuda de profissionais por causa do aparecimento de sintomas depressivos, que o quadro seja diagnosticado
como um transtorno do humor e, como consequência, o paciente é tratado com antidepressivos, sem
resultados. Da mesma forma, é comum que a psicoterapia seja indicada, sem evidências de eficácia nesse
período da doença.
O período prodrômico culmina muitas vezes no primeiro episódio de psicose, e nesse ponto inicia-se a
chamada fase progressiva do transtorno. Finalmente, o transtorno evolui para a fase de estabilidade ou
crônica, ainda sujeita a recaídas (isto é, piora da sintomatologia). É importante lembrar que, na esquizofrenia,
os sintomas negativos são detectados muitas vezes desde o princípio, ao passo que os sintomas positivos ou
psicóticos ocorrem durante os episódios de exacerbação (“surtos”). A Figura 4 (modificada a partir de
Lieberman et al.64) mostra essas fases da evolução da esquizofrenia, ilustradas com um exemplo típico.
As bases para o tratamento da esquizofrenia estão apresentadas na Figura 5, tendo como base o modelo
proposto por Howes e Murray44 assim como a revisão feita por McCutcheon et al.45
Figura 4 Evolução longitudinal e transversal de um caso hipotético de esquizofrenia.
Fonte: adaptada de Lieberman et al., 200164,66.
Prevenção
A identificação de casos pessoas com risco alto risco de desenvolvimento de esquizofrenia (e.g., filhos
com um dos pais ou irmãos com esquizofrenia) e de alterações precoces do neurodesenvolvimento é uma
estratégia que tem sido tentada. Assim como aumento de uso de maconha se correlaciona com aumento de
casos de esquizofrenia na população, a redução de seu consumo poderá apresentar impacto importante na
incidência de novos casos.
Tratamento farmacológico
A eficácia sobre sintomas psicóticos por meio do tratamento com antipsicóticos, reduzindo a
neurotransmissão dopaminérgica e diminuindo a saliência aberrante já está bem estabelecida. No entanto, as
evidencias de eficácia destes agentes sobre os sintomas negativos e sobre a cognição ainda é pequena.
Vinheta clínica
O paciente com 22 anos foi trazido ao primeiro atendimento médico por estar isolado no quarto e não querer se
alimentar há um mês. Segundo sua mãe, há cerca de 6 meses, passou a não frequentar mais sua faculdade de
engenharia, queixando-se de depressão. O paciente mora com os pais, tem bom relacionamento com eles, só estuda
e depende financeiramente deles. Estes observaram que, há cerca de um ano o paciente passou a ter um
comportamento de isolamento, que causou estranheza, uma vez que sempre foi extrovertido e falante.
Posteriormente a irmã do paciente procurou-os, pois, ao levar uma das calças para ser lavada, encontrou uma ponta
de cigarro de maconha. A família não relacionou o uso de maconha com o aparecimento do quadro atual e levou-a
para se consultar com um médico, que diagnosticou “ansiedade e depressão” tendo prescrito sertralina, em doses
progressivas de até 150 mg, sem resposta. A partir de então passou a dizer que seus colegas de faculdade haviam
colocado um “chip” em seu notebook e, por isto, poderiam localizá-lo em qualquer lugar. Posteriormente passou a
achar que mais chips foram colocados, inclusive no seu cérebro. O quadro foi se agravando a tal ponto que ao andar
na rua sentia que as pessoas podiam ler seus pensamentos, e que os apresentadores dos telejornais falavam dele na
TV. Posteriormente, passou a achar que haviam colocado veneno na sua comida, razão pela qual deixou de se
alimentar. Os familiares, por sua vez, notavam que o paciente havia se tornado “distante” e que já não era tão
caloroso e afetivo, como era de seu temperamento. Assim, diante da presença de sintomas psicóticos (delírios e
alucinações), sintomas negativos (isolamento social e embotamento afetivo) e comprometimento funcional (abandono
da faculdade) o psiquiatra fez o diagnóstico de primeiro episódio psicótico em paciente com esquizofrenia. Passou
então a ser medicado com risperidona oral, em doses progressivas, até chegar a 6 mg, com boa adesão e
tolerabilidade. Foi posteriormente introduzida a terapia cognitivo-comportamental e a família orientada a respeito da
doença por meio de encontros semanais. O paciente evoluiu para remissão dos sintomas psicóticos, porém
permanece com sintomas negativos. O paciente não está fazendo mais uso de maconha e planeja retornar a
faculdade em breve.
Em termos de antecedentes pessoais, nasceu de parto cesárea, apresentou certa demora para ficar em pé e para
falar (ambos por volta de 2 anos). Apresentou dificuldades escolares nas áreas de humanas mas tinha bom
desempenho em matemática. Teve uma repetição no colegial, provavelmente associada ao início do uso de
maconha, mas entrou na faculdade de engenharia e apresentava bom desempenho. Não tinha muitos amigos, mas
era afetivo e sempre se relacionou bem com seu pai e sua irmã. Seu tio materno tem diagnóstico de esquizofrenia.
Para aprofundamento
Kahn RS, Sommer IE, Murray RM, Meyer-Lindenberg A, Weinberger DR, Cannon TD, et al. Schizophrenia.
Nature Reviews Disease Primers 2015;1(1):15067.
Excelente artigo de revisão que mostra aspectos gerais da doença, incluindo epidemiologia,
fisiopatologia e tratamento.
McCutcheon RA, Reis Marques T, Howes OD. Schizophrenia-An Overview. JAMA Psychiatry. 2019:1-10.
Excelente e moderna revisão da esquiozofrenia, com ênfase no tratamento baseado nas melhores
evidencias.
Howes OD, Murray RM. Schizophrenia: An integrated sociodevelopmental-cognitive model. Lancet.
2014;383(9929):1677-87.
Uma excelente visão da etiopatogenia da esquizofrenia.
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Um apanhado histórico sobre a evolução do conceito de esquizofrenia
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Neste artigo são explicadas as modificações que serão implantadas a partir de 2022 na CID 11, inclusive
no diagnóstico de esquizofrenia
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