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Teoria Geral do Poder Público

Faculdade de Direito
1.º Ciclo de Estudos
Direito - 1.º Ano
Prova de Frequência/Exame
30/01/2023
Duração: 2:00h

Notas:
a) Pode alterar a ordem das respostas;
b) Deixe pelo menos uma linha entre cada resposta.

I (14 valores)

Defina sucintamente sete dos seguintes conceitos:


1. Democracia representativa.

A democracia representativa é caraterizada pelo facto de o poder político não ser exercido
diretamente pelo povo através de assembleias e / ou deliberações populares (como na
democracia direta), mas sim por órgãos representativos eleitos pelos cidadãos,
nomeadamente uma assembleia representativa (parlamento), e por órgãos executivos
responsáveis perante aqueles. Numa democracia representativa, a principal forma de
expressão e intervenção política são as eleições para os órgãos representativos, a começar
pelos parlamentos. Muitas vezes também são diretamente eleitos os Presidentes da
República ou os chefes de certos órgãos executivos (por exemplo, os governadores dos
Estados federados ou os presidentes dos municípios). A democracia representativa é antes
de mais uma democracia eleitoral, através de eleições livres e periódicas por sufrágio
universal, secreto, igual e direto. A democracia representativa pode comportar formas de
democracia participativa (assembleias populares, consultas populares, conselhos
consultivos, etc.), que, porém, não revestem natureza deliberativa.
A democracia representativa propriamente dita distingue-se também da “democracia
semidireta” (referendos) e contrapõe-se à chamada “democracia popular”, entre outras
coisas pelo facto de haver competição eleitoral pluripartidária, de o mandato
representativo não ser vinculado e de, em princípio, não haver possibilidade de revogação
popular dos mandatos dos representantes eleitos antes do seu termo.
2. Cidadania europeia.

A cidadania europeia foi instituída pelo Tratado de Maastricht (1992) para os cidadãos
dos Estados membros da UE: qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um
Estado-membro acumula a cidadania europeia com a cidadania nacional, que mantém na
íntegra. Assim, além dos direitos e obrigações como cidadãos nacionais nos seus Estados-
membros, os cidadãos europeus gozam de direitos e estão sujeitos a deveres adicionais ao
nível da União. Os direitos fundamentais da cidadania europeia estão previstos no TFUE
e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Dos direitos inerentes à
cidadania europeia fazem parte, nomeadamente, o direito de circular livremente e de
permanecer e residir no território dos Estados-membros, de eleger e ser eleito nas eleições
para o Parlamento Europeu e nas eleições locais, onde quer que residam na União, de
dirigir petições às autoridades europeias e de fazê-lo na sua própria língua e de proteção
no estrangeiro pelas autoridades diplomáticas e consulares de qualquer Estado-membro.

A cidadania europeia é um dos traços federais da União, traduzindo a dupla ligação e


representação política dos cidadãos, ao nível nacional (Estado) e ao nível supranacional
(União), como sucede nos Estados federais.

Uma vez que a cidadania europeia depende da cidadania nacional de um dos Estados-
membros, os cidadãos não podem ser privados arbitrariamente da respetiva cidadania
nacional, pois deixariam de ser cidadãos europeus de usufruir dos respetivos direitos na
União.

3. Voto censitário.

O voto ou sufrágio censitário era caracterizado pela imposição de limites económicos ao


exercício do direito de voto ou sufrágio, ou seja, só quem usufruísse de certo nível de
património ou rendimentos é que poderia votar, afastando das eleições todos os que não
preenchessem tal requisito, o que, nessa altura, era a maior parte da população,
nomeadamente os trabalhadores. O fundamento desse restrição estava na ideia de que só
quem fosse economicamente independente é que poderia votar livremente e que só os
proprietários poderiam defender o direito de propriedade, um dos direitos básicos do
Estado liberal. Em Portugal, o sufrágio censitário foi introduzido pela Carta
Constitucional de 1826, tendo estado em vigor até à implantação da República (1911).

4. Referendo constitucional.

Referendo constitucional é a votação popular que versa sobre a aprovação ou ratificação


de uma constituição ou de uma revisão constitucional. Referendo ordinário é o que versa
sobre leis ou decisões políticas infraconstitucionais. Quando versa sobre revisões
constitucionais, o referendo constitucional pode ser obrigatório (porque imposto pela
Constituição), proibido (por que excluído pela Constituição) ou simplesmente permitido.
Em alguns Estados federais, como os Estados Unidos da América, as revisões
constitucionais estão sujeitas a ratificação pelos estados federados, segundo as normas
próprias destes, mas não a referendo popular direto.
No ordenamento constitucional português está proibido o referendo constitucional às
alterações à Constituição (art. 115º/4a)), mas em vários países (como em Espanha) as
alterações à Constituição efetuadas pelo parlamento têm de ser submetidas a um
subsequente refendo popular.

5. Cláusula-barreira (sistemas eleitorais).

Consiste na fixação legal de uma percentagem mínima de votos a obter pelos partidos a
nível nacional (ou nos círculos eleitorais) para conseguirem representação parlamentar
em sistemas eleitorais proporcionais, como sucede, v. g., na Dinamarca (2%), Espanha e
Grécia (3%), Suécia, Noruega e Áustria (4%), Alemanha (5%). Os partidos que não
atingem essa votação ficam excluídos da atribuição dos deputados, mesmo que
matematicamente tivessem votos suficientes para o conseguirem. As cláusulas barreira
são típicas dos sistemas proporcionais e visam impedir ou reduzir a fragmentação
parlamentar e/ou impedir ou dificultar o acesso ao parlamento de pequenos com
implantação somente local ou de partidos extremistas ou radicais.
Em Portugal está proibida pela Constituição, pelo menos a nível nacional. É certo que a
eleição dos deputados em círculos eleitorais que elegem um número reduzido de
deputados equivale a uma cláusula-barreira implícita, variável de círculo para círculo;
por exemplo, num círculo que elege 3 deputados a cláusula-barreira implícita é de cerca
de 25%. Todavia, nos círculos que elegem muitos deputados, como Lisboa, basta uma
pequena percentagem de votos para eleger um deputado (menos de 2%), o que não
aconteceria, se houvesse cláusula-barreira acima desse limiar.

6. Revogação popular dos mandatos eletivos (recall).

A revogação de mandatos (ou recall) consiste na faculdade reconhecida aos cidadãos


eleitores de, por iniciativa de um certo número deles ou por iniciativa oficial, serem
chamados a decidir mediante votação popular a cessação do mandato de um certo titular
eletivo (um deputado, o presidente da república) antes do termo desse mandato. Trata-se,
portanto, de uma destituição popular de titulares de mandatos eletivos, tratando-se numa
forma de responsabilidade política direta perante os cidadãos.
Essa figura estava, por exemplo, prevista na Constituição alemã de Weimar (1919) para
a destituição de presidente da República; era um dos mecanismos previstos nas
constituições dos Estados comunistas; e continua a existir em alguns dos Estados norte-
americanos (Califórnia, por exemplo) e em vários países latino-americanos.
Em princípio, não existe o recall nas s democracias representativa, onde o poder de eleger
não inclui o poder de destituir. Por isso, entre nós não existe destituição popular nem dos
deputados nem do Presidente da República ou de outros titulares de mandatos eleitos
diretamente (por ex., presidentes de câmara municipal).

7. Impeachment.

Em geral, nos sistemas de eleição popular, direta ou indireta, do Presidente da República


(ou outros cargos políticos eletivos, como os mayors municipais), ele não pode ser
destituído pelo parlamento. No entanto, em alguns países, como nos Estados Unidos da
América ou no Brasil, o presidente poderá ser destituído por efeito do impeachment pelo
parlamento, em caso de infração constitucional grave (trata-se de uma condenação de tipo
penal e não de condenação propriamente política). A acusação pertence à câmara baixa
do parlamento federal e a o julgamento e eventual condenação cabem ao senado federal.
No entanto, como a acusação e a condenação exigem maioria qualificada, são em geral
raros os casos em que ela vinga, salvo no Brasil, onde já houve duas condenações, na
vigência da Constituição de 1988.

8. Estado unitário “regional”.

Estado unitário é o contrário de Estado federal, que é um “Estado compósito”, com dois
níveis políticos estaduais (federação e unidades federadas) e dois níveis de cidadania
política, tendo as unidades federadas a sua própria constituição e participando através do
senado federal nas decisões políticas da federação. Estado unitário regional é o Estado
unitário em que existem formas de descentralização política territorial (comunidades ou
regiões autónomas), dotadas de poderes legislativos e governativos próprios, como os
estados federados, mas, ao contrário destes, sem disporem de autonomia constitucional e
sem intervirem nos processos de decisão do Estado. Estados regionais típicos são a
Espanha e a Itália.

Portugal é um Estado unitário, permanecendo no Estado o poder constituinte, o poder de


revisão constitucional e o poder jurisdicional. Existe apenas uma cidadania (portuguesa).
Mas existem duas regiões autónomas, os Açores e a Madeira, dotadas de amplas
atribuições políticas próprias e de governos e parlamentos próprios; porém, não dispõem
de poder de aprovar e rever o seu próprio estatuto político-administrativo (que é uma lei
do Estado) nem estão representadas numa câmara nacional de representação territorial
(que, aliás, não existe). Portugal é um exemplo de Estado unitário “regional” parcial, visto
que a CRP de 1976 reconheceu a autonomia política apenas a essas duas regiões insulares:
o Continente não é uma região autónoma nem está divido em regiões autónomas, sendo
governado pelo Governo da República.

II (6 valores)

Desenvolva um dos seguintes temas:


a) «A revisão constitucional de 1982 instaurou um sistema de governo de inequívoca
natureza parlamentar, mantendo, porém, nas mãos do Presidente um conjunto de poderes que
lhe permitem “gerir” e controlar o funcionamento do sistema político».

O sistema de governo em Portugal fixou-se a partir da revisão constitucional de 1982, uma


vez que os governos são nomeados em função das eleições parlamentares e são
politicamente responsáveis somente perante a Assembleia da República e não do
Presidente da Republica. Embora eleito, o Presidente da República não governa nem
compartilha da função governativa.
No entanto, não é possível compreender o sistema de governo português sem ter em conta
o lugar específico do Presidente da República como “quarto poder”, à margem da
dialética da relação parlamento-Governo, claramente inspirada na figura do “poder
moderador” proposta por Benjamin Constant no primeiro quartel do século XIX.
Efetivamente, o Presidente da República passou a assumir o papel de árbitro, moderador,
garante do regular funcionamento das instituições, intervindo ativamente na vida política,
mas sem qualquer função governativa ou de oposição.
Há quem veja na eleição direta do Presidente da República um traço
“semipresidencialista” do sistema de governo. Mas esta tese é improcedente, na medida
em que (i) o sistema de governo não inclui nenhum traço tipicamente presidencialista
(exercício do poder executivo pelo Presidente e separação estrita entre o poder executivo
e o poder legislativo) e (ii) existem muitas repúblicas tipicamente parlamentares em que
o Presidente da República é diretamente eleito e não tem nenhuns poderes exorbitantes
de um sistema de governo parlamentar (Áustria, Irlanda, Islândia, etc.). A eleição direta
não quer dizer necessariamente presidencialismo nem semipresidencialismo.
Por outro lado, se o Presidente da República tem entre nós relevantes poderes próprios,
isso não quer dizer que eles se referem diretamente à atividade governativa. Na verdade,
embora o Presidente tenha fortes poderes de intervenção institucional (nomeação de altos
cargos públicos, poder de veto dos diplomas legislativos, poder de dissolução parlamentar
e antecipação de eleições, por iniciativa própria, demissão do Governo em condições
excecionais, etc.), ele não participa, porém, diretamente da atividade governamental nem
o governo depende da sua confiança política, pelo que não pode deixar de nomear um
governo que tenha maioria parlamentar nem demitir nenhum governo por motivo de
discordância política (salvo excecionalmente, quando estiver em causa o “regular
funcionamento das instituições”). No sistema de governo português, o Presidente da
República não governa, não semigoverna, nem cogoverna. Ele não integra o poder
executivo, que incumbe exclusivamente ao Governo, que não responde politicamente
perante o Presidente da República.
Estruturalmente, o sistema de governo português é hoje um sistema de índole
essencialmente parlamentar, em que (i) os governos são constituídos no seguimento das
eleições parlamentares e de acordo com o seu resultado e em que (ii) dependem
politicamente do parlamento, sendo demitidos em caso de perda dessa confiança, por
moção de censura ou denegação de moção de confiança. O Presidente da República não
compartilha da função executiva nem da atividade governamental, cabendo-lhe antes um
papel de defesa da Constituição e de regulador e moderador do sistema político, fazendo
lembrar, como se referiu, o “poder neutro” de Benjamin Constant, que entre nós inspirou
a Carta Constitucional de 1826, a mais duradoura constituição portuguesa.

b) «Nas modernas democracias representativas o histórico mandato eletivo local


vinculativo ou imperativo foi substituído por um mandato eletivo nacional livre ou
representativo».

A distinção entre o mandato eletivo local vinculativo ou imperativo e o mandato eletivo


nacional livre ou representativo tem a ver com natureza do mandato político dos
representantes eleitos:
O mandato imperativo (ou vinculado) é típico da representação política pré-liberal (Cortes
medievais) e também das conceções rousseaunianas e leninistas de democracia, em que os
representantes representam especificamente quem os elegeu e estão obrigados por um
programa e vinculados às posições assumidas perante os representados, sendo
politicamente responsáveis perante estes no decurso do mandato (daí a possibilidade de
revogação dos mandatos, ou recall).
No mandato representativo (ou livre), que carateriza as modernas democracias
representativas, os representantes (deputados) representam o conjunto dos cidadãos (e
não uma localidade, um grupo ou corporação, como nas Cortes medievais) e exercem
livremente o seu cargo, sem estarem vinculados a adotar determinadas orientações
previamente definidas pelos representados. Por essa razão o mandato representativo não
pode ser revogado (recall).
É comummente aceite que não existe mandato representativo até aos finais do século
XVIII – revoluções liberais –, pelo que antes disso, a designação comum dos
representantes eleitos era de “procuradores”. Com o advento do constitucionalismo
moderno, o mandato representativo veio substituir o mandato imperativo, fundando-se,
sobretudo, no célebre discurso dirigido por Edmund Burke ao eleitorado de Bristol
(1774): “vosso representante deve a vós não somente sua indústria, senão seu juízo, e vos
atraiçoa, em vez de vos servir, se se sacrifica à vossa opinião”. A Constituição francesa de
1791 proibia terminantemente o mandato imperativo. Em Portugal, a Constituição de
1822 veios determinar que “cada deputado é procurador e representante de toda a Nação e
não o é somente da divisão que o elegeu” (art.º 94º).
No entanto, não devemos deixar de ter em conta que desde as Cortes de 1331 os
procuradores do “terceiro estado” (eleitos a nível municipal) podiam discutir e formular,
em conjunto, “capítulos gerais” no interesse comum e da boa governabilidade do reino,
incluindo temas não compreendidos nas suas procurações concelhias. Por isso, há quem
entenda que durante a Idade Média a “regra geral foi a de os procuradores serem
representantes e não meros porta-vozes. E isso desde muito cedo, sem dúvida, desde 1331”.
Mas se podiam ir além do mandato, não podiam ir contra ele.
Por outro lado, atualmente a “disciplina de voto” imposta pelos partidos no parlamento é
entendida como uma manifestação do mandato imperativo ou vinculado, não em relação
aos eleitores, mas sim em relação aos partidos em nome dos quais os deputados foram
eleitos e ao respetivo programa partidário. Todavia, os deputados podem eventualmente
ser afastados pelo respetivo partido por indisciplina, mas não podem perder o mandato.

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