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COMENTÁRIO SOBRE AS FERIAS JUDICIAIS NO ORDENAMENTO

JURÍDICO ANGOLANO

Benedito Pascoal1

Chegado o último mês do ano, torna-se imperioso fazer uma abordagem sobre a gestão
dos Tribunais de Jurisdição Comum no ordenamento jurídico angolano, para, grosso
modo, entender o funcionam os tribunais durante as férias judiciais, período que coincide,
entre nós, com as Festas de Natal e do ano novo.

Declaradas constitucionalmente (cf. n.º 2 do art.º 76.º), entende-se de antemão que as


férias são um período essencial para qualquer trabalhador e destina-se a possibilitar ao
funcionário condições de recuperação física e psíquica de desgaste provocada pela
prestação de serviço, permitindo condições de inteira disponibilidade pessoal, de
integração de vida familiar e de participação social e cultural (cf. n.º 1 do art.º 78.º da Lei
n.º 26/22, de 22 de Agosto, Lei de Base da Função Pública). No entanto, para os órgãos
judiciais, há uma disciplina sui generis, que é ou deve ser rigorosamente cumprida,
perseguindo de perto a administração da justiça em nome do povo.

Tal disciplina e, consequentemente a gestão dos tribunais, é feita sempre e de acordo a


Lei Orgânica de Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum,
adiante LOOFTJC, aprovada pela Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto.

Na lei retro mencionada, logo no art.º 1.º, determina-se que “A presente Lei Orgânica
estabelece os princípios e as regras gerais de organização e funcionamento dos Tribunais
de Jurisdição Comum.”. Importa aquilatar que, são Tribunais de Jurisdição Comum, o
Tribunal Supremo, os Tribunais da Relação e outros Tribunais (estes últimos, entenda-se,
Tribunais de Comarca), de acordo o n.º 2, al. a) do art.º 176.º da Constituição da República
de Angola, n.º 1 do art.º 3.º e n.º 1 do art.º 25.º da Lei Orgânica de Organização e
Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum.

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Advogado e Assessor Jurídico.

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Torna-se mister, nessa ordem de ideias, anunciar que, as férias judiciais não se confundem
com férias dos juízes, pois estes como qualquer funcionário público têm também 22 (vinte
e dois) dias úteis de férias por ano, devendo ser acrescido 3 (três) dias úteis por cada 10
(dez) anos de serviço efectivo, nos termos dos ns.º 1 e 2 do art.º 79.º da Lei n.º 26/22, de
22 de Agosto, Lei de Base da Função Pública, aplicável subsidiariamente por força do
art.º 2.º da Lei n.º 7/94, de 29 de Abril, Lei que aprova o Estatuto dos Magistrados
Judiciais e do Ministério Público.

No entanto, pela natureza do presente comentário, não se pretende desmistificar tudo que
gira em torno desta lei, até porque desaconselha-se, pelo que remetemos tal
desmistificação para outro foro. O presente comentário visa simplesmente aquilatar
alguns dos actos praticados durante as férias judiciais no ordenamento jurídico angolano.
Importa adiantar que, nesta lei, balizam-se para além de outras situações, as férias
judiciais e as actividades que podem ser realizadas nesse período.

As perguntas que seguem, vão, de certo modo, orientar o objecto do presente artigo e
serão respondidas na medida em que o mesmo é desenvolvido, no sentido de esclarecer
ponto por ponto. Eis as questões:

1. O que são férias judiciais?


2. O que ocorre no decurso das férias judiciais?
3. Há paralisação total dos serviços nos tribunais?
4. Quando iniciam e terminam as férias judiciais?
5. Quem fica encarregue da organização dos tribunais nesse período?

Entende-se por férias judiciais o período de suspensão da prática dos actos judiciais
durante o qual é assegurado o serviço urgente, mediante turnos e a organização interna
do Tribunal e dos processos, bem como os demais actos previstos por lei (cf. n.º 1 do art.º
8.º2);

Como bem determina o artigo citado, durante as férias judiciais, nos tribunais são
praticados os serviços urgentes, o que implica a não paralisação total do Tribunal, pois,
desse modo, atiçar-se-ia a morosidade processual já existente nos tribunais e o violar dos

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Todos os preceitos legais doravante citados sem qualquer menção ao diploma legal a que pertencem,
bem como as referências ao “Código” ou “Lei”, devem considerar-se como pertencentes à Lei Orgânica
de Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum.

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direitos fundamentais dos cidadãos que acorrem àqueles serviços. Então, a forma de
prevenir tal câncer, é a continuação da actividade processual de natureza urgente –
aquelas que a própria lei determina.

Assim, de acordo ao n.º 3 do art.º 8.º, entende-se por Serviço Urgente seguintes:

a) Tratamento de providência cautelar e de processos com arguidos3 presos

Quanto ao primeiro, de natureza cível, somos a mencionar algumas das providências


cautelares:

As providencias cautelares, pela sua finalidade – a de conservar e assegurar de forma


emergente elementos do processo – assegurar o efeito útil do direito de modo a evitar
danos ou prejuízos irreparáveis com a demora do Tribunal, entram logo no leque dos
serviços emergentes a oferecidos durantes as férias judiciais. Elas dividem-se em
providências cautelares especificadas e providências não especificadas.

 Providências cautelares especificadas


i. Alimentos provisórios (cf. art.º 388.º e ss. do Código de Processo Civil e 256.º do
Código de Família);
ii. Restituição provisória da posse (cf. art.º 393.º e ss. do Código de Processo Civil,
1279.º e 1285.º do Código Civil);
iii. Suspensão das deliberações sociais (cf. art.º 396.º e ss. do Código de Processo
Civil e 56.º e ss. da Lei das Sociedades Comerciais).
 Providências cautelares não especificadas
i. Arresto e arresto preventivo (cf. 402.º e ss. do Código de Processo Civil e 619.º e
ss. do Código Civil);
ii. Embargo de obra nova judicial (cf. n.º 1 do art.º 412.º e ss. do Código de Processo
Civil);
iii. Arrolamento (cf. art.º 421.º e ss. do Código de Processo Civil).

Quanto ao segundo (processos com arguido presos), o Código do Processo Penal elenca
também os actos que têm prioridade durante as férias judiciais. Esses actos dizem respeito
ao arguido e a urgência que se tem para terminar o processo, porque, os processos, ou
pelo menos a instrução preparatória com arguidos presos deve terminar depois de 6 (seis)

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Réu no texto original.

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meses, podendo ser elevado a 10 (dez) meses se se justificar (cf. n.º 1 e 2 do art.º 321.º do
Código do Processo Penal).

Assim, de acordo ao n.º 2 do art.º 119.º do Código do Processo Penal, durantes as férias
judiciais podem ser praticados:

a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos ou indispensáveis à


garantia da liberdade das pessoas;
b) Os actos relativos a processos sumários;
c) Quaisquer outros actos em relação aos quais, por razões de necessidade urgente, a
autoridade judiciária competente considerar que devem realizar-se aos sábados,
domingos, feriados e dias de tolerância de ponto ou dentro das férias judiciais.

Na mesma ordem de ideias, surgem também o n.º 3 e 4.º do artigo citado a determinar
que, quando requerida pelo arguido solto e devidamente fundamentado pela autoridade
judiciária competente, os actos de instrução preparatória ou de instrução contraditória e
os relativos à audiência de julgamento, bem como as decisões de mero expediente
daquelas autoridades, podem iniciar/serem tomadas ou prosseguir durante as férias
judiciais.

Nesta conformidade, é possível, durante as férias judiciais, instruir processos com


arguidos presos, julgamento de arguidos presos, revogações de prisões preventivas (seja
qual for o fundamento das mesmas), praticar actos de mero expediente e até a tramitação
processual de arguidos soltos, se mostrar conveniente ou vantajoso.

b) Prática de actos e diligências previstos nos Códigos de Processo, na Lei de


Cooperação Judiciária Internacional em matéria Penal, na legislação referente à
protecção de crianças e jovens em perigo e no regime jurídico de entrada,
permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional

Quanto ao primeiro quesito da al. b) (Prática de actos e diligências previstos nos Códigos
de Processo), aplica-se mutatis mutandis o disposto na al. a) do art.º 8.º, pelo que, para
não cairmos em lugares comuns, preferimos remeter o laudável leitor àquele ponto.

Quanto ao segundo (Prática de actos e diligências previstos na Lei de Cooperação


Judiciária Internacional em matéria Penal), somos a mencionar os seguintes actos que
podem ser praticados durante as férias judiciais:

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1. Extradição.
2. Transmissão de processos penais.
3. Execução de sentenças penais.
4. Transmissão de pessoas condenadas a penas ou medidas de segurança privativas de
liberdade.
5. Auxilio judiciário mútuo em matéria penal.

Quanto ao terceiro (Prática de actos e diligências previstos na legislação referente à


protecção de crianças e jovens em perigo), acreditamos ser bastante o disposto no art.º 7.º
do Código do Processo do Julgado de Menores, aprovado por Decreto n.º 6/03, de 28 de
Janeiro. Nesta norma dispõe-se que, os processos da competência do Julgado de Menores
correm durante as férias judiciais.

A ratio do legislador nesse ponto talvez seja a de conferir celeridade na recuperação


efectiva da criança ou adolescente em conflito com a lei, para que possa começar ou
continuar a viver sem o peso do processo sob as costas.

Em relação ao quarto (Prática de actos e diligências previstos no regime jurídico de


entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional) o
ordenamento jurídico angolano entende que, actos como a entrada, permanência, saída ou
expulsão do estrangeiro no território nacional podem mesmo ser praticados durante as
férias judiciais. Tal regime é trazido pela Lei n.º 13/19, de 23 de Maio, Lei Sobre o
Regime Jurídico dos Cidadão Estrangeiros na República de Angola.

De acordo ao n.º 1 do art.º 23.º da referida lei, os tribunais podem, junto com a Autoridade
Migratória, interditar a entrada de um estrangeiro no território nacional quando
justificável. Compete também ao tribunal ou ao Ministério Público o impedimento ou
interdição de saída do país nos termos da al. a) e b) do art.º 46.º da Lei n.º 13/19.

Do mesmo modo, a expulsão de um estrangeiro do território nacional também é


competência do tribunal (cf. n.º 1 e 2 do art.º 34.º e n.º 1 do art.º 35.º da Lei n.º 13/19).
De acordo ao n.º 3 e 4 do art.º 37.º da Lei n.º 13/19, depois de a Autoridade Migratória
concluir com o processo, remete ao Tribunal no prazo de 5 (cinco) dias para efectuar o
julgamento. Recebido o processo, o juiz deve marcar julgamento dentro das 48 (quarenta
e oito) horas seguintes ao recebimento do processo.

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Vale aqui sublinhar, no entanto que, na referida lei, não existe qualquer menção a “férias
judiciais”, somente o art.º 8.º pretende indicar que, os actos ou serviços daquela lei,
mereçam o tratamento urgente durante as férias judiciais.

c) Outros actos que as necessidades do serviço urgente justificarem

Quais seriam tais actos?

Acreditamos que qualquer, desde que se justifique. A Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei
Orgânica de Organização e Funcionamento dos tribunais de Jurisdição Comum, revogada
pela Lei 29/22, de 29 de Agosto, era peremptória ao dispor no n.º 2 do art.º 8.º que, “no
período das férias judiciais os tribunais dedicam-se essencialmente a trabalhos de
organização interna, ao levantamento da movimentação dos processos, à elaboração de
peças processuais mais complexas à realização de julgamentos de processos urgentes,
de réus presos e de providências cautelares”.

A actual lei (Lei 29/22, de 29 de Agosto) é omissa nesse quesito. Entretanto, queremos
acreditar que o espirito do legislador teria sido o mesmo. Neste sentido, durantes as férias
judiciais, os Tribunais de Jurisdição Comum não observam uma actividade laboral
“normal” – o que não implica a paralisação total. Praticam os actos retro citados.

Embora não se faça também menção expressa, parece-nos também que, nos termos do n.º
1, segunda parte do art.º 143.º do Código de Processo Civil, as citações, notificações,
arrematações e os actos que se destinem a evitar dano irreparável, podem ser praticadas
ou executadas durante as férias judiciais.

Para tal, nos termos do n.º 1.º do art.º 9.º, devem, dentro dos tribunais, ser criados turnos,
para atender a dinâmica processual durante as férias judiciais. Tais turnos têm, portanto,
a atribuição de fazer face aos serviços urgentes. A LOOFTJC, nos ns.º 3 e 4 do art.º 9.º,
atribui aos Juízes Presidentes dos Tribunais Supremo, da Relação e no caso do Ministério
Público, ao Procurador Geral da República e ao Sub-Procurador Geral da República,
respectivamente, competência para a organização dos turnos. Nos Tribunais de Comarca,
os turnos são organizados pelo Juiz Presidente e pelo Procurador da República Titular no
caso do Ministério Público.

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Finalmente, de acordo ao n.º 2 do art.º 8.º “As férias judiciais decorrem de 22 de
Dezembro ao último dia do mês de Fevereiro do ano seguinte”. Findo este período, é
aberto ano judicial, a 1 de Março, através de uma cerimonia solene em que tomam a
palavra o Presidente da República, o Presidente do Tribunal Supremo, o Procurador Geral
da República e o Bastonário da Ordem dos Advogados conforme o art.º 7.º.

Tal período de férias tem sido bastante contestado, mormente por advogados que
entendem ser desnecessário período tão longo porque não privilegia a celeridade
processual que há muito tempo procuramos. Aliás, o Dr. Luís Paulo Monteiro, Bastonário
da Ordem dos Advogados de Angola entre 2018 e 2023, referiu em 2019 que com 71 dias
de férias, é impossível combater a morosidade processual nos tribunais. Pelo que é
ilusória a narrativa do propalado combate à morosidade processual nos tribunais se se
continuar com as actuais férias judiciais.4

Seja como for, o facto é que as férias judiciais não têm vindo a sofrer alterações
significativas. É só olharmos que o período de gozo é igual tanto na Lei n.º 2/15 quanto
na Lei n.º 29/22, isto é, de 22 de Dezembro ao último dia útil do mês de Fevereiro do ano
seguinte.

Por tudo, somos peremptórios ao dizer que, as férias judiciais são um período que embora
contestado, tem servido para colocar “água na fervura” na dinâmica processual no
ordenamento jurídico angolano porque permite a organização e gestão interna dos órgãos
judiciais. Entretanto, somos obrigados a concordar na redução da sua duração de modos
a conferir justiça ou chegar próximo dela às pessoas naturais ou jurídicas que clamam nos
órgãos judiciais.

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Cf. https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/detalhes.php?id=424932 acessado em 19 de Dezembro de
2023.

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