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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA

@ (PROCESSO ELETRÔNICO)
MMM
Nº 70084650589 (Nº CNJ: 0103417-61.2020.8.21.7000)
2020/CÍVEL

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS.


NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. TEMA Nº 28. CARTÃO
DE CRÉDITO COM RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL
(RMC). VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO.
ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. CONVERSÃO EM
EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO. DANOS MORAIS.
FIXAÇÃO DAS TESES JURÍDICAS.
1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado
quando celebrado pelo consumidor em erro substancial
quanto à sua natureza, decorrente de falha na prestação de
serviços bancários por inobservância ao dever de
informação. Os instrumentos contratuais devem conter as
cláusulas essenciais a essa modalidade de negociação,
sendo ônus da instituição financeira comprovar que
informou ao consumidor, prévia e adequadamente: a) a
natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as
consequências decorrentes do contrato de cartão de
crédito consignado; b) a existência de modalidades e
serviços de crédito diversos, como o empréstimo pessoal
consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e outra
contratações, seus custos e características essenciais; c) a
disponibilidade, ou não, de margem disponível para a
celebração de empréstimo pessoal consignado; d) que a
fatura do cartão de crédito poderá ser paga total ou
parcialmente até a data do vencimento; e) que, se não
realizado o pagamento total da fatura, será efetuado o
pagamento mínimo mediante desconto na folha de
pagamento ou em benefício previdenciário, com o
refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.
2. O contrato de cartão de crédito consignado que tenha
sido celebrado mediante violação ao dever de informação é
passível de conversão em contrato de empréstimo pessoal
consignado, devendo a este ser aplicada a taxa média de
mercado divulgada pelo BACEN, vigente na data da
contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a
compensação dos valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela
instituição financeira, como na hipótese de inexistência de
margem consignável, o que deverá ser aferido em
cumprimento de sentença, a obrigação será convertida em
perdas e danos com a recomposição das partes ao status
quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC, mediante
restituição à instituição financeira da quantia mutuada e, ao

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consumidor, dos valores indevidamente pagos a maior, na


forma simples, admitida a compensação.
3. A celebração de contrato de cartão de crédito
consignado mediante violação ao dever de informação não
configura, por si só, dano moral in re ipsa, cabendo ao
consumidor demonstrar a ofensa à dignidade da pessoa
humana ou a direitos da personalidade.
CAUSA-PILOTO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA C/C
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CARTÃO DE CRÉDITO
COM RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL. VIOLAÇÃO AO
DEVER DE INFORMAÇÃO. ANULABILIDADE DO NEGÓCIO
JURÍDICO. CONVERSÃO EM EMPRÉSTIMO PESSOAL
CONSIGNADO. DANOS MORAIS.
1. Violação do dever de informação. Erro substancial.
Anulabilidade. Consumidor que não foi prévia e
adequadamente informado pela instituição demandada
acerca da natureza, do objeto, dos direitos e as obrigações
relativos ao contrato de cartão de crédito consignado.
Instrumento contratual que, embora intitulado “PROPOSTA
DE ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO”, não
contém as cláusulas essenciais a essa modalidade
contratual. Situação em que o consumidor, à mingua de
informações claras e adequadas sobre o serviço contratado
e, sobretudo, em face do comportamento da instituição
financeira demandada, acreditou ter celebrado contrato de
empréstimo pessoal consignado. Hipótese em que a falsa
percepção acerca da natureza do negócio jurídico autoriza a
sua anulação por erro substancial, com amparo nos arts.
138 e 139 do CC.
2. Conversão do contrato de cartão de crédito consignado
em contrato de empréstimo pessoal consignado.
Evidenciada a intenção do consumidor em celebrar contrato
de empréstimo pessoal consignado, e não contrato de
cartão de crédito consignado, afigura-se possível a
conversão de um negócio jurídico em outro com amparo na
função interpretativa da boa-fé. Incidência dos arts. 112,
113 e 170 do CC e nos arts. 6º, V, 30, 35 e 46 do CDC.
Sentença reformada em parte para determinar a conversão
dos contratos de cartão de crédito consignado celebrados
pelo autor com a instituição financeira demandada em
contratos de empréstimo pessoal consignado.
3. Danos morais. Inocorrência. A celebração de contrato de
cartão de crédito consignado mediante erro substancial do
consumidor, provocado pela violação ao dever de
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informação pela instituição financeira, por si só, não gera


danos morais indenizáveis. Caso concreto em que o
consumidor não logrou êxito em comprovar ofensa à
dignidade da pessoa humana ou a direitos da
personalidade. Manutenção da improcedência do pedido
de indenização por danos morais.
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
ACOLHIDO, COM FIXAÇÃO DAS TESES JURÍDICAS. RECURSO
DE APELAÇÃO NA CAUSA-PILOTO PARCIALMENTE
PROVIDO, POR MAIORIA.

INCIDENTE DE RESOLUCAO DE DEMANDAS QUARTA TURMA CÍVEL - SECRETARIA DO 6º


REPETITIVAS GRUPO CÍVEL

Nº 70084650589 (Nº CNJ: 0103417-


61.2020.8.21.7000)

EXMO DES RELATOR DA APELACAO PROPONENTE


70083663088

DANILO GIAZZON INTERESSADO

BANCO CETELEM S A INTERESSADO

ABBC - ASSOCIACAO BRASILEIRA DE BANCOS AMICUS CURIAE

PROCONS/RS AMICUS CURIAE

DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO RIO INTERESSADO


GRANDE DO SUL

INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO AMICUS CURIAE


CONSUMIDOR - IDEC

FEDERACAO BRASILEIRA DE BANCOS - AMICUS CURIAE


FEBRABAN

MINISTERIO PUBLICO INTERESSADO

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Quarta Turma Cível -


Secretaria do 6º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, vencidos em
parte os Desembargadores Ricardo Pippi Schmidt, Eduardo João Lima Costa, Dilso
Domingos Pereira, Cairo Roberto Rodrigues Madruga, Vivian Cristina Angonese Spengler,
Fernando Antonio Jardim Porto, Roberto José Ludwig, Guinther Spode e Umberto Guaspari
Sudbrack, em acolher o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas para fixar as
seguintes teses: 1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando celebrado
pelo consumidor em erro substancial quanto à sua natureza, decorrente de falha na
prestação de serviços bancários por inobservância ao dever de informação. Os
instrumentos contratuais devem conter as cláusulas essenciais a essa modalidade de
negociação, sendo ônus da instituição financeira comprovar que informou ao consumidor,
prévia e adequadamente: a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as
consequências decorrentes do contrato de cartão de crédito consignado; b) a existência de
modalidades e serviços de crédito diversos, como o empréstimo pessoal consignado,
esclarecendo as diferenças entre uma e outra contratações, seus custos e características
essenciais; c) a disponibilidade, ou não, de margem disponível para a celebração de
empréstimo pessoal consignado; d) que a fatura do cartão de crédito poderá ser paga total
ou parcialmente até a data do vencimento; e) que, se não realizado o pagamento total da
fatura, será efetuado o pagamento mínimo mediante desconto na folha de pagamento ou
em benefício previdenciário, com o refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.
2. O contrato de cartão de crédito consignado que tenha sido celebrado mediante violação
ao dever de informação é passível de conversão em contrato de empréstimo pessoal
consignado, devendo a este ser aplicada a taxa média de mercado divulgada pelo BACEN,
vigente na data da contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a
compensação dos valores pagos a maior. Não sendo possível o cumprimento da obrigação
pela instituição financeira, como na hipótese de inexistência de margem consignável, o que

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deverá ser aferido em cumprimento de sentença, a obrigação será convertida em perdas e


danos com a recomposição das partes ao status quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC,
mediante restituição à instituição financeira da quantia mutuada e, ao consumidor, dos
valores indevidamente pagos a maior, na forma simples, admitida a compensação. 3. A
celebração de contrato de cartão de crédito consignado mediante violação ao dever de
informação não configura, por si só, dano moral in re ipsa, cabendo ao consumidor
demonstrar a ofensa à dignidade da pessoa humana ou a direitos da personalidade. Ainda,
em dar parcial provimento ao recurso de apelação interposto na causa-piloto.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores


DES. ALBERTO DELGADO NETO (1º VICE-PRESIDENTE, SEM VOTO), DES. JOÃO MORENO
POMAR, DES. EDUARDO JOÃO LIMA COSTA, DES.ª JUCELANA LURDES PEREIRA DOS
SANTOS, DES. DILSO DOMINGOS PEREIRA, DES. CAIRO ROBERTO RODRIGUES MADRUGA,
DES. RICARDO PIPPI SCHMIDT, DES.ª DEBORAH COLETO ASSUMPÇÃO DE MORAES, DES.ª
VIVIAN CRISTINA ANGONESE SPENGLER, DES. ROBERTO CARVALHO FRAGA, DES.
FERNANDO ANTONIO JARDIM PORTO, DES. JOSÉ VINÍCIUS ANDRADE JAPPUR, DES. LUÍS
ANTÔNIO BEHRENSDORF GOMES DA SILVA, DES. AMADEO HENRIQUE RAMELLA
BUTTELLI, DES. JOÃO PEDRO CAVALLI JÚNIOR, DES. ROBERTO JOSÉ LUDWIG, DES.
GUINTHER SPODE, DES. ERGIO ROQUE MENINE, DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK E
DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN.

Porto Alegre, 06 de novembro de 2023.

DES.ª MYLENE MARIA MICHEL,


Relatora.

RELATÓRIO

DES.ª MYLENE MARIA MICHEL (RELATORA)

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Trata-se de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas suscitado pelo


E. Des. Vicente Barroco de Vasconcellos nos autos da apelação cível nº 70083663088,
interposta por DANILO GIAZZON em face da sentença de improcedência proferida nos
autos da Ação Anulatória c/c Indenização por Danos Morais que propôs em face do BANCO
CETELEM S/A.

Extrai-se do ofício (fls. 03-06) endereçado à Presidência desta Egrégia Corte


que o incidente foi suscitado em razão da divergência jurisprudencial acerca do tema nos
Órgãos Fracionários que compõem esta Colenda Turma em torno de demandas
semelhantes, ad litteram:

Sustenta-se a necessidade de instauração do incidente, com vistas


à estabilização do pensamento cognitivo e as decisões sobre o
tema relativo à contratação do chamado CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO, oferecido à servidores públicos, pensionistas e
aposentados, como se de CRÉDITO CONSIGNADO se tratasse, sem
a devida e adequada informação, na forma do art. 6º do CDC,
acerca da diferença básica entre a modalidade que tem direito o
consumidor com renda garantida (sem risco de inadimplência),
hipótese em que há a limitação do comprometimento de sua
renda, de molde a preservar as condições mínimas de
subsistência, debaixo do princípio da garantia fundamental do
respeito à dignidade da pessoa humana, conforme previsão do
art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, oportunidade em que os
juros são menores em relação ao cartão de crédito propriamente
dito, os quais transitam entre os mais elevados vistos,
recentemente limitados a 8% ao mês, enquanto aqueles estão
limitados a, no máximo, 2.08% ao mês em até 72 prestações
mensais, limitado o comprometimento de 30% da renda do
servidor público, aposentado ou pensionista, mais 5% de RMC –
Reserva de Margem Consignável.
Acontece que o assunto vem sendo maltratado pelo colendo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde ainda vigem os
princípios do pacta sunt servanda, da dura lex, sede lex e do
contrato como lei entre as partes, sem observar o princípio da
função social do contrato e as diretrizes do Código de Defesa do
Consumidor e o Estatuto do Idoso, quando é o caso.

Discorreu o ilustre magistrado suscitante quanto ao preenchimento dos


requisitos exigidos pelo art. 976 do CPC, notadamente a divergência jurisprudencial entre
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os Órgãos Fracionários que julgam a matéria em liça, e defendeu a possibilidade de


aplicação do disposto no art. 170 do CC:

Sustenta-se ser adequado à realidade jurídica a posição


jurisprudencial que adota o entendimento no sentido da falha na
prestação do serviço por informação deficiente ao consumidor, na
forma do CDC, ao contratar o chamado Cartão de Crédito
Consignado pensando se tratar de Crédito Consignado, institutos
com características completamente diferentes. Hipótese a impor a
interpretação da vontade das partes, adaptando a modalidade de
contrato àquela menos onerosa ao consumidor servidor público,
aposentado e pensionista, parte vulnerável e hipossuficiente na
relação consumerista, por aplicação do art. 170 do Código Civil
Brasileiro.
Com efeito, os tribunais pátrios têm possibilitado a conversão
substancial de que trata o art. 170 do Código Civil, também por
aplicação do art. 6º, inc. V, do CDC, ao permitir a modificação das
cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais. Portanto, se o negócio aceito pelos
consumidores era um empréstimo pessoal consignado, com juros
e encargos bem menos onerosos, por ausência de risco de
inadimplência, a quem tem direito, de acordo com as normas
protetivas que sobre ele incidem, e, se ainda assim a instituição
financeira formaliza contrato de cartão de crédito com encargos
mais onerosos, descontado da reserva de margem consignável, há
de ser aplicada a regra do art. 170 do Código Civil brasileiro (...).

Nesse contexto, o eminente desembargador defendeu “a necessidade de


definição do thema decidendum, com vistas à pacificação social, à isonomia de tratamento
do jurisdicionado e à segurança jurídica, uma vez que comprovada a divergência de
entendimento acerca de assunto mediante os precedentes anexados ao presente
requerimento, além de ser relevante o tema no contexto de uma sociedade ávida por
crédito, e onde as classes historicamente menos favorecidas e já em situação de risco
financeiro e vulnerabilidade social, seja pela idade (idoso), seja pela condição de
aposentado ou pensionista, estão a merecer a proteção do Estado de que trata o art. 5º,
inciso XXXII da Carta Magna, erigida à condição de direito fundamental".

Visando exemplificar a divergência jurisprudencial apontada, citou os


precedentes proferidos nos autos das apelações cíveis nºs 70081192775, 70081523342,

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70081991945, 70077227478, 70082854530, 70081867541, 70081151409, 70082469404 e


70083212969.

Ao final, pugnou pelo recebimento, processamento, admissão e provimento


do incidente para que fosse determinada a suspensão dos processos pendentes versando
sobre a mesma temática e, ao final: i) declarada “a anulação do contrato por falha na
prestação do serviço por infringência ao dever de informação ao consumidor, com a devida
repetição e/ou compensação dos valores indevidamente pagos”; ou ii) “atentando à
vontade das partes, seja adaptado o contrato celebrado entre as partes à modalidade
empréstimo consignado em folha de pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se a
título de juros remuneratórios a taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central, na
modalidade de crédito pessoal consignado para a época da contratação, abatidos os
valores já descontados do autor”; e iii) “reconhecido o direito do autor à indenização por
danos morais”.

De ordem do então Excelentíssimo Senhor Presidente desta Egrégia Corte,


Des. Voltaire de Lima Moraes, os autos foram remetidos ao Departamento Processual e
distribuídos por sorteio (fls. 2 e 167).

Em juízo preliminar, foi proferido despacho (fls. 169-176 dos autos físicos)
requisitando os autos da apelação cível nº 70083663088 ao então relator, e. Des. Vicente
Barroco de Vasconcellos, Presidente da 15ª Câmara Cível, para que fossem apensados ao
presente incidente para verificação dos requisitos de admissibilidade.

Em sessão realizada no dia 28/06/2022, o incidente foi admitido por


unanimidade pela 4ª Turma Cível desta Egrégia Corte, tendo sido determinada a suspensão
“exclusivamente, daqueles processos que já se encontrem maduros para julgamento em
primeiro grau”, nos termos do voto parcialmente divergente proferido pelo e. Des.
Umberto Guaspary Sudbrack (@fls. 557-669), conforme ementa abaixo transcrita:

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS.


NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO. RESERVA DE MARGEM CONSIGNADA (RMC).
(IN)VALIDADE DA CONTRATAÇÃO. (IM)POSSIBILIDADE DE
CONVERSÃO EM EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO.
(IN)OCORRÊNCIA DE DANOS MORAIS.
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Conforme dicção do art. 926 do CPC, os tribunais devem


uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente. Para tanto, admissível a utilização do incidente de
resolução de demandas repetitivas quando se constatar a efetiva
repetição de processos que contenham controvérsia sobre a
mesma questão unicamente de direito e o risco à isonomia e à
segurança jurídica. Presentes os requisitos de admissibilidade do
art. 976 do CPC, é de rigor a admissão do incidente, conforme
previsão do art. 981 do CPC e dos arts. 12, IV, e 14, II, “e”, do
RITJRS, a fim de que o Órgão Colegiado competente pacifique a
jurisprudência e fixe a tese jurídica aplicável a demandas em que
se discutem idênticas questões.
In casu, a causa-piloto em que suscitado o presente incidente
versa sobre: i) a validade de contratos de cartão de crédito
consignado; ii) a possibilidade de conversão dessa avença em
contratos de empréstimo pessoal consignado; iii) a configuração
de danos morais indenizáveis. A análise da jurisprudência desta
Egrégia Corte demonstra que há divergência jurisprudencial sobre
essa temática junto aos órgãos fracionários que compõem a 4ª
Turma. Conquanto idênticas as questões a serem dirimidas, as
soluções conferidas por esta Egrégia Corte podem ser
diametralmente opostas, a depender do órgão fracionário
julgador. Hipótese em que, constatadas a repetição efetiva de
demandas semelhantes e o risco à isonomia e à segurança
jurídica, deve ser admitido o incidente de resolução de demandas
repetitivas visando à uniformização e à estabilização da
jurisprudência acerca da matéria.
INCIDENTE ADMITIDO À UNANIMIDADE, COM A
DETERMINAÇÃO, POR MAIORIA, DA SUSPENSÃO,
EXCLUSIVAMENTE, DAS DEMANDAS QUE JÁ SE ENCONTREM
MADURAS PARA JULGAMENTO EM PRIMEIRO GRAU.

Realizadas as comunicações e intimações de estilo pela Secretaria da 4ª


Turma, o incidente foi cadastrado pelo NUGEP no âmbito deste Tribunal sob o Tema nº 28
e, no âmbito do CNJ, sob o NUT 8.21.1.000028 (@fl. 684).

Publicado edital de intimação de terceiros interessados para que,


querendo, postulassem a habilitação e apresentassem manifestações no prazo de 15
(quinze) dias (@fls. 694-712).

As partes da demanda originária foram intimadas para, querendo,


manifestarem-se no prazo de 15 (quinze) dias (@fls. 715-716).

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Sobrevieram pedidos de habilitação formulados por ONDINA DA COSTA


LOPEZ e por JOSÉ HERMÍLIO RIBEIRO SERPA JÚNIOR (@fls. 719-721 e 724-727).

O BANCO CETELEM S/A apresentou manifestação (@fls. 730-739)


sustentando a regularidade da contratação, na medida em que o autor da causa-piloto, sr.
DANILO GIAZZON, tinha ciência dos termos do contrato, razão pela qual não há falar em
vício de consentimento. Teceu considerações quanto à legalidade do contrato de cartão de
crédito consignado e à inocorrência de violação ao dever de informação. Apontou não ser
possível a definição de tese jurídica, em caráter abstrato e genérico, sobre a configuração
de violação ao dever de informação na celebração de contratos de cartão de crédito
consignado. Asseverou que a falha na prestação dos serviços por violação ao dever de
informação não pode ser presumida, cabendo ao consumidor comprovar a configuração de
erro substancial. Ao final, pugnou para que “seja afastada a possibilidade da fixação de tese
que estabeleça como presunção a falha do prestador dos serviços no dever de informação
ao consumidor que realiza um saque no cartão de crédito com reserva margem consignável,
considerando a necessária análise casuística do vício de consentimento, o que remete tal
apuração à situação fática manifestada em cada processo”.

Proferido despacho (@fls. 745-749) determinando o cadastramento dos


procuradores do BANCO CETELEM S/A, postergando o exame dos pedidos de habilitação
apresentados e determinando a remessa dos autos ao Ministério Público para parecer

Retificada a tira de julgamento do acórdão de admissão do incidente, a qual


foi republicada pela NE nº 5/2022, disponibilizada na edição nº 7282 do DJE de 02/09/2022
(@fls. 754-755).

Protocolada manifestação pela FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS


(FEBRABAN) postulando a sua admissão como amicus curiae (@fls. 766-787). Teceu
considerações sobre a legalidade do cartão de crédito consignado com amparo na Lei nº
10.820/03 e na Instrução Normativa nº 28 do INSS e as características dessa modalidade de
crédito, salientando que a taxa de juros aplicável é inferior à taxa ordinariamente cobrada
em cartões de crédito convencionais. Aduziu que, em contratações dessa natureza, o
consumidor deve ser “munido de informações suficientes que o levam à certeza de ter
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contratado um cartão de crédito consignado”. Referiu que as instituições financeiras


também devem observar o disposto na Resolução nº 3.110/03, que disciplina a contratação
de correspondentes bancários, e na Resolução nº 3.517/07, que dispõe sobre a informação
do custo efetivo total, ambas do Conselho Monetário Nacional. Referiu que as instituições
financeiras também se submetem às regras de autorregulação impostas pela entidade,
como o Normativo SARB 010/2013 e o Normativo SARB 015/2014, e que “as instituições
financeiras não oferecem o serviço de cartão de crédito consignado da forma como bem
entendem”, pois “Há todo um mecanismo financeiro estipulado por entidades e órgãos
competentes que disciplinam de forma rígida a forma pela qual as instituições deverão
agir”. Afirmou que a legalidade do cartão de crédito consignado foi objeto do IRDR nº
0002370-30.2019.8.03.0000, julgado pelo TJAP, e que há precedentes do Superior Tribunal
de Justiça sobre a matéria. Sustentou que o erro substancial, para invalidar o negócio
jurídico, deve ser comprovado pelo consumidor, ponderando que “é bastante comum,
aliás, o consumidor procurar a celebração do contrato de cartão de crédito com margem
consignável justamente porque sua margem consignável para empréstimos pessoais (ex.
35%, limite previsto na lei à época dos fatos) já estaria comprometida, restando-lhe apenas
a margem consignável específica de cartões, de 5%”. Sustentou não ser possível a
conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal
consignado, ao argumento de que a margem consignável para uma e outra operação é
distinta, e de que haveria grave desequilíbrio econômico para as instituições financeiras.
Por fim, defendeu que a mera cobrança indevida não gera, por si só, danos morais
indenizáveis e que o desconto de valores em folha de pagamento ou benefício
previdenciário, ainda que por modalidade contratual diversa, seria implementado com o
conhecimento e consentimento do consumidor. Ao final, sugeriu fossem fixadas teses no
seguinte sentido: i) “reconhecer que contrato de cartão de crédito com margem consignável
é um produto regular, previsto em normativos e legislações próprias, amparado inclusive
pela jurisprudência, que figura como importante linha de crédito para os tomadores de
modo geral e que em hipótese alguma pode ser confundido, ou mesmo ser convolado, em
empréstimo consignado”; ii) a “apuração de erro substancial na celebração do contrato,

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dependerá da identificação, em cada caso concreto, da comprovação de vícios no


consentimento para celebração do negócio jurídico, que jamais poderão ser presumidos,
sendo inclusive do autor, o ônus da prova para demonstrar a existência do erro
substancial”; e iii) “a mera cobrança do cartão de crédito consignado, ainda que venha a ser
declarada nula pela justiça, não deve gerar a condenação, in re ipsa, ao pagamento de
danos morais, haja vista tratar-se de situação de mero dissabor, não passível de
ressarcimento”.

O Ministério Público ofereceu parecer relativamente ao mérito do presente


incidente (@fls. 871-906) opinando pela admissão da DEFENSORIA PÚBLICA DO RS, do IDEC
– INSTITUTO DE DEFESA DO CONSUMIDOR e da FEBRABAN como amici curiae. No mérito,
discorreu sobre a incidência do CDC aos contratos de cartão de crédito consignado,
especialmente dos arts. 2º, 3º, 4º, 6º e 39. Apontou para a necessidade de interpretação
dos dispositivos infraconstitucionais à luz da Constituição Federal “a qual deve ser vista
como norteadora das relações civis, uma vez que tem como princípio norteador a Dignidade
da Pessoa Humana, do qual é corolário a função social do contrato, postulado fundamental
para a preservação da dignidade do indivíduo e óbice às regras, muitas vezes, ‘agressivas’
do mercado de consumo”. Teceu considerações sobre o direito de informação do
consumidor – que é vulnerável no mercado de consumo - nos contratos de cartão de
crédito consignado, ressaltando que “a informação deve ser ampla em sentido e em
abrangência, para que aquele consumidor possa se prevenir quanto à eventual
periculosidade de um produto ou serviço que esteja adquirindo”. Pontuou que “por motivos
óbvios, dificilmente aquele consumidor que buscou um empréstimo na instituição bancária
tem condições de adimplir o valor total já no mês seguinte” e que “é nesse momento, que o
consumidor se afunda em uma dívida sem fim”, pois “para quem não pagou a fatura total
da dívida no mês seguinte, nos próximos meses será descontado em folha de pagamento
apenas o valor mínimo desta fatura e, sobre a diferença, passam a incidir encargos
rotativos de um cartão e não de um empréstimo tradicional”. Asseverou que “após terem
acesso aos dados da operação realizada, descobrem que a dívida contraída não tem fim,
vez que os descontos mensais realizados apenas abatem os juros e encargos da dívida,

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enquanto o valor principal é mensalmente refinanciado”. Nesse contexto, ponderou que o


consumidor devidamente informado não celebraria contrato dessa natureza. Afirmou ser
enganosa, na forma do art. 37, §1º, do CDC, a informação parcial sobre o produto ou
serviço disponibilizados no mercado de consumo, estando na contramão do princípio da
transparência e da Política Nacional das Relações de Consumo. Defendeu a conversão do
contrato de cartão de crédito consignado em contrato de empréstimo consignado, quando
celebrado mediante erro substancial pelo consumidor no ato da contratação,
especialmente nos casos em que o consumidor não desbloqueia o cartão e não realiza
transações e a concessão do crédito é realizada por intermédio de TED em conta bancária
do consumidor. Invocou os arts. 52, 54-C, 54-D e 54-G do CDC e argumentou que nessas
situações, “dada a sua vulnerabilidade, deve se ter por evidenciada a intenção do
consumidor em adquirir um empréstimo consignado, com desconto em seu contracheque, e
não a modalidade que é empregada pela instituição bancária”. Por fim, com amparo no art.
5º, X, da CF/88, no art. 14 do CDC e nos arts. 186 e 927 do CC, aduziu que a contratação de
cartão de crédito consignado mediante erro dá azo à configuração de danos morais in re
ipsa. Forte nesses argumentos, opinou para que fossem fixadas teses no seguinte sentido: i)
“é passível de anulação o contrato de cartão de crédito consignado quando verificada a
falha na prestação do serviço por infringência ao dever de informação ao consumidor, com
a devida repetição e/ou compensação dos valores indevidamente pagos”; ii) “atentando à
vontade das partes, seja adaptado o contrato celebrado entre as partes à modalidade
empréstimo consignado em folha de pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se a
título de juros remuneratórios a taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central, na
modalidade de crédito pessoal consignado para a época da contratação, abatidos os
valores já descontados do autor”; e iii) seja “reconhecido o direito do autor à indenização
por danos morais, quando constatado que a contratação do cartão de crédito consignado
ocorreu mediante falha na prestação de serviço por infringência ao dever de informação ao
consumidor”.

Protocolada manifestação pela Defensoria Pública do Estado do RS


pugnando pela sua habilitação como amicus curiae (@fls. 909-911).

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Proferida decisão (@fls. 924-938) deferindo os pedidos de habilitação


formulados pela FEBRABAN e pela DPERS, indeferindo os pedidos de habilitação
formulados por ISABEL ONDINA DA COSTA LOPES e JOSÉ HERMÍLIO RIBEIRO SERPA JÚNIOR
e determinando a expedição de ofícios ao PROCON/RS e ao INSTITUTO BRASILEIRO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR – IDEC para que, querendo, promovessem a sua habilitação
como amici curiae e apresentassem manifestações.

Apresentada manifestação pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO


GRANDE DO SUL na qualidade de amicus curiae (@fls. 955-1000). No mérito, discorreu
sobre a invalidade dos contratos de cartão de crédito consignado por inobservância ao
dever de informação, devendo ser assegurada a restituição em dobro do indébito
independentemente da demonstração de má-fé da instituição financeira. Teceu
considerações sobre o contrato de cartão de crédito consignado à luz da Instrução
Normativa nº 138/2022, esclarecendo a diferença entre essa modalidade contratual e o
empréstimo consignado. Ressaltou que o cartão de crédito consignado “acaba por gerar
uma cobrança infinita e impagável de juros e de encargos quando não suportada a fatura
em sua integralidade, posto que o pagamento mínimo da fatura (rotativo), acaba por gerar
crédito rotativo e, portanto, aquilo que seria vantajoso, ao meio da eterna cobrança, acaba
onerando demasiadamente o consumidor, mormente porque fica sem perspectiva de
adimplemento integral da cobrança e do encerramento de um contrato que acabou
gerando um produto que nem mesmo havia sido desejado e sequer cogitado pela parte
mais fraca da relação”. Sustentou que “na maior parte dos casos, o consumidor não se
encontra verdadeiramente ciente das cláusulas ou mesmo consequências de um cartão de
crédito consignado, desejando, no momento da assinatura do contrato, tão somente obter
um crédito, quando muito” e que “o perfil do consumidor que vem aderindo à modalidade
de cartão de crédito consignado, em sua maioria, é de pessoa idosa, hipervulnerável, que
percebe parcos rendimentos provenientes de benefícios previdenciários, restando-lhe
praticamente impossível realizar o pagamento integral da fatura que lhe é encaminhada”.
Ponderou que “os contratos não mais podem ser interpretados tendo em vista,
exclusivamente, os interesses privados”, pois “Há valores maiores que devem ser

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observados na análise de qualquer pacto, valores estes que transcendem os interesses


individuais, repercutindo na esfera de todos os componentes da sociedade”. Afirmou que “a
base fática da realidade atendida de maneira corriqueira, diária e muito triste pela
Defensoria Pública é sempre a mesma: falta de conhecimento a respeito do produto
contratado”, pois há “Completa e absoluta ignorância a respeito do que consiste o cartão
de crédito consignado, quais as obrigações dele decorrentes, a possibilidade de contratação
de outro produto em seu lugar e, muitas vezes, até mesmo a ignorância a respeito da
própria existência deste produto incidente sobre seu benefício ou contracheque”. Aduziu
que essa realidade é contrária aos preceitos da Lei nº 14.181/21 e que é comum a adoção
de práticas abusivas, “consistentes em: a) creditar montante em dinheiro na conta bancária
do consumidor, sem a devida anuência; b) se beneficiar da margem consignável do
consumidor, mediante a outorga de crédito e de cartão de créditos consignados, sem a
devida autorização do consumidor; c) omitir informações concretas a respeito do valor
creditado na conta do consumidor, bem como de informações sobre os riscos da má
utilização do serviço, induzindo-o a acreditar que o pagamento do valor mínimo da fatura
bastaria para a liquidação do montante depositado; d) realizar a contratação de saque via
ligação telefônica, sem especificar o percentual de juros e os riscos relacionados a operação
de crédito; e) impor, na contratação do cartão de crédito consignado, o saque do montante
em dinheiro correspondente à quantia total da margem consignável para referido produto,
entre outros tipos de assédios direcionados”. Pontuou as situações em que os consumidor
não recebem, tampouco utilizam, o cartão de crédito ou as faturas mensais. Referiu que
práticas comericiais e contratuais dessa natureza são abusivas, conforme previsão do art.
39, IV, e 51, IV, do CDC e que “em razão da má prestação de informações, bem como da
ausência de boa-fé na pactuação, a equivalência material de tais contratos resta
fragilizada, tornando imperiosa a intervenção do Poder Judiciário, a fim de equilibrar a
relação jurídica entabulada”. Afirmou ser possível a repetição em dobro dos valores pagos
a maior pelo consumidor, com amparo no art. 42 do CDC e na tese definida pelo Superior
Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial nº 1.823.218 (Tema 929). Defendeu a
conversão dos contratos de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal

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consignado com amparo nos arts. 4º, 6º, 30, 46 e 47 do CDC e no art. 170 do CC. Por fim,
advogou pela configuração de danos morais indenizáveis, sustentando que “para além da
perda patrimonial significativa, os consumidores ficam suscetíveis à negativação perante os
órgãos de proteção ao crédito e os cartórios de protesto de títulos, bem, como, à ansiedade
e confusão geradas pela constante cobrança indevida de uma dívida, diretamente, em sua
folha de pagamento ou em seu benefício previdenciário, em detrimento do seu sustento
próprio e familiar” e que “a situação de ter descontos no benefício mensal de valores
relativos à margem consignável de cartão de crédito, cuja contratação não se deu em
virtude da livre e consciente escolha do consumidor, é situação capaz de gerar angústia e
sofrimento, que não se confundem com um simples dissabor do cotidiano”. Ao final, sugeriu
fossem fixadas teses no seguinte sentido: i) “Nos casos de invalidade do contrato de cartão
de crédito consignado, tendo em vista a não observância do dever de informação ao
consumidor, para a restituição em dobro do indébito não se exige a demonstração de má-
fé, sendo cabível quando o fornecedor tenha agido de forma contrária à boa-fé objetiva”; ii)
“Considerando que a contratação do cartão de crédito consignado, sem a ciência acerca dos
detalhes do contrato, implica invalidade da avença, por vício de vontade, não há que se
falar em revisão de cláusulas, devendo o negócio ser convertido em empréstimo
consignado, nos termos do art. 170 do Código Civil, com limitação de juros àqueles
incidentes sobre as regras estabelecidas para as operações de empréstimo pessoal
consignado, caso haja margem consignável disponível junto ao benefício previdenciário do
consumidor vítima”; e iii) “A contratação do cartão de crédito consignado, sem a inequívoca
ciência dos verdadeiros termos contratuais, seja por dolo da instituição financeira ou por
erro de interpretação do consumidor, causado pela fragilidade das informações constantes
da avença, evidencia a existência de dano moral sofrido pelos consumidores, que deverá ser
suportado pelas instituições financeiras, sendo prescindível a apuração da culpa”.

Protocolada manifestação pelo IDEC – INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA


DO CONSUMIDOR (@fls. 1.003-1.005) requerendo a sua admissão como amicus curiae e a
concessão de prazo de 15 (quinze) dias, para apresentação de manifestação.

Certificado o decurso do prazo conferido ao PROCONRS (@fs. 1.120).

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Apresentada manifestação pelo IDEC na qualidade de amicus curiae (@fls.


1.123-1162). Preliminarmente, discorreu sobre a incidência do CDC aos contratos de cartão
de crédito consignado por força do disposto nos arts. 2º e 3º daquele diploma legal e na
súmula 297 do STJ. Sustentou que “os artigos 30 e 31 do Código de Defesa do Consumidor
determinam que as informações na oferta e apresentação dos produtos e serviços sejam
corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características,
qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre
outros dados, além de vincularem o fornecedor do produto ou serviço” e que “o art. 6º., VI
c.c. art. 37, ambos do Código de Defesa do Consumidor, estabelecem que é enganosa a
informação, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por
omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre
produtos e serviços a que pretende contratar, inclusive, quando deixa de informar – pouco
importando se intencionalmente – sobre dado essencial do produto ou serviço”. Por essa
razão, sustentou ser de fundamental importância o fornecimento de informações
completas sobre a modalidade da contratação realizada, se cartão de crédito consignado
ou empréstimo pessoal consignado, e que eventual descumprimento ao dever de
informação configura falha na prestação dos serviços, conforme previsão dos arts. 14 e 20
do CDC, assegurada a reparação dos danos causados ao consumidor com amparo no art. 6º,
VI, do mesmo diploma legal. Ponderou que a violação ao dever de informação também
viola a liberdade de escolha do consumidor e, como consequência, a liberdade de
contratar. Defendeu que “O Consumidor tem o direito de ser suficiente e claramente
esclarecido; ao passo que as Instituições Financeiras têm o dever de alertar sobre a
aquisição de um produto mais oneroso, prevenindo o consumidor de um eventual
desequilíbrio contratual pela incapacidade de adimplemento do produto ou serviço
financeiro que está adquirindo”. Nesse contexto, afirmou que o contrato de cartão de
crédito consignado somente será válido “(i) se o produto ou serviço financeiro estiver
adstrito e precisamente vinculado à informação correta, acessível e satisfatória à sua
contratação e (ii) se o consumidor assim o fizer desde que, depois de suficientemente

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esclarecido tenha o discernimento necessário para, diferenciando as modalidades de crédito


que a ele se apresentam e ponderando os seus riscos, em maior ou menor extensão,
livremente optar por essa ou aquela contratação dentro de cada particularidade”. Aduziu
que “Muitas vezes já endividado, quando não superendividado, e sem reserva de margem
consignável, as Instituições Financeiras passam a oferecer o chamado cartão de crédito
consignado como um atrativo àquele consumidor que não mais consegue obter crédito de
forma racional e sustentável no mercado financeiro”. Afirmou que em muitos casos o
consumidor sequer tem conhecimento da contratação de cartão de crédito consignado,
pois os valores mutuados são creditados em conta bancária de titularidade do consumidor,
sem que haja o envio do cartão plástico ou a sua utilização para a realização de compras.
Referiu que em contratos dessa natureza os juros são estratosféricos, em desacordo com os
arts. 52, 54-C, 54-D e 54-G, do CDC e extremamente vantajosos às instituições financeiras.
Afirmou que as cláusulas contratuais são abusivas e, consequentemente, nulas de pleno
direito, afigurando-se possível a conversão do contrato de cartão de crédito consignado em
empréstimo consignado com amparo nos arts. 138 e 170 do CC e na força conservatória
dos negócios jurídicos. Afirmou que “para que isso possa ocorrer é necessário que o negócio
jurídico nulo contenha todos os requisitos do outro; que esses requisitos sejam todos válidos
e que se possa supor que, no momento da celebração do negócio jurídico nulo, as partes
teriam querido celebrar o negócio jurídico em que se pretende converter o negócio nulo se
houvessem previsto a nulidade”. Argumentou que a conversão do negócio jurídico não
interfere na vontade das partes, apenas a restaura, devendo ser privilegiada a do
consumidor, que muitas vezes se encontra em situação de hipervulnerabilidade, de modo
que,“verificada a existência de erro quanto à substância da declaração de vontade do
consumidor relativamente à contratação do crédito consignado, o dever ético-jurídico
impõe um só resultado que não é faculdade, mas mera consequência legal: a convolação do
contrato de cartão de crédito consignado para a modalidade de empréstimo pessoal
consignado, como inicialmente pretendido pela pessoa consumidora, com a devida
aplicação de tarifas correspondentes, em observância aos artigos 138 e 170 do Código Civil,
artigo 6º, V, do CDC e a Súmula 530 do STJ”. Asseverou que a falha no dever de informação

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dá azo à reparação dos danos morais e materiais suportados pelo consumidor, conforme
dicção dos arts. 6º, VI, 14 e 20 do CDC, dada a necessidade de proteção à dignidade da
pessoa humana e ao mínimo existencial. Aduziu que os danos morais decorrem do risco à
subsistência do consumidor, do constrangimento e do desconforto a que o consumidor
enganado é exposto. Afirmou que os danos morais são de natureza in re ipsa, pois “A falha
na prestação de serviços é patente e causa danos extrínsecos à pessoa consumidora, à
medida que o ato de ludibriar-lhe com o oferecimento de cartão de crédito consignação ao
invés do tradicional empréstimo consignado, gera efetivos danos patrimoniais e ofende
claramente a esfera moral da parte consumidora”. Por fim, discorreu sobre a possibildiade
de repetição em dobro dos valores pagos a maior com amparo no art. 42 do CDC,
independentemente da comprovação de má-fé da instituição financeira. Teceu
considerações sobre os princípos da vulnerabilidade, da harmonia e do equilíbrio das
relações de consumo e da boa-fé objetiva positivados no art. 4º do CDC e sobre os direitos
básicos à informação e à modificação das cláusulas contratuais positivados no art. 6º, III e
V, do CDC. Asseverou que “Estes princípios, principalmente o da boa-fé objetiva, é que dão
ensejo a uma série de deveres conexos às relações de consumo como a eticidade, lealdade,
confiança, cooperação, cuidado e informação, inerentes aos negócios jurídicos celebrados
entre fornecedor e consumidor e que, caso não observados, como no caso em testilha,
fazem surgir o dever de indenizar através da responsabilidade civil na relação de consumo,
pois houve vício (ou defeito) na qualidade do produto ou serviço prestado”. Forte nesses
argumentos, sugeriu fossem fixadas teses no seguinte sentido: i) “é nulo o contrato de
cartão de crédito consignado quando verificada a falha na prestação do serviço por
infringência ao dever de informação ao consumidor, com a devida repetição em dobro e/ou
compensação dos valores indevidamente pagos”; ii) “Consoante aos arts. 138 e 170 do CC e
atentando à vontade das partes, o negócio jurídico nulo é convolável à modalidade pessoal
empréstimo consignado em folha de pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se a
título de juros remuneratórios a taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central, na
modalidade de crédito pessoal consignado para a época da contratação (Súmula 530/STJ),
abatidos os valores já descontados do consumidor”; e iii) “É presumido o dano moral na

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hipótese de invalidação da contratação de cartão de crédito com reserva de margem


consignável”.

Proferido despacho (@fls. 1.287-1.304) determinando: i) a redigitalização


dos autos físicos do incidente de resolução de demandas repetitivas e da causa-piloto; ii) a
intimação pessoal do PROCON/RS, na pessoa do seu Diretor-Executivo, para que
promovesse a sua habilitação como amicus curiae no prazo de 15 (quinze) dias e
apresentasse manifestação sobre os temas sob discussão neste incidente; iii) a intimação
das partes, interessados e amici curiae para apresentarem suas alegações finais; iv) a
remessa dos autos ao Ministério Público para apresentação de parecer final; e v) a
prorrogação do prazo de suspensão das ações afetadas pelo incidente pelo prazo
suplementar de 06 (seis) meses.

Petição protocolada pelo BANCO BMG S/A (@fls. 1.307-1.315) pugnando


pela sua admissão como terceiro interessado e, no mérito, para que seja firmada tese pela:
i) validade dos contratos de cartão de crédito consignado; e ii) inocorrência de danos
morais indenizáveis.

Petição pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL


(@fls. 1.398-1.401) requerendo: i) fosse oportunizada sustentação oral; ii) a sua admissão
como custos vulnerabilis; iii) a renovação da intimação para apresentar memoriais após
manifestação do PROCON/RS, do MP e demais amici curiae.

Anexadas cópias digitalizadas dos autos físicos deste incidente de resolução


de demandas repetitivas (@fls. 1.402-1.743) e da causa piloto (@fls. 1.744-1.949),
conforme certidão lavrada pela Secretaria do 6º Grupo Cível (@fl. 1.950).

Expedido ofício (@fls. 1.957-1.958) à Excelentíssima Presidente desta


Egrégia Corte, Desa. Íris Helena Medeiros Nogueira, comunicando a prorrogação do prazo
de suspensão das demandas afetadas por este incidente por mais 06 (seis) meses, contados
do término do prazo de suspensão a que alude o art. 982, I, do CPC.

Petição protocolada pela ABBC - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS


(@fls. 1.970-1.993) requerendo a sua admissão como amicus curiae já acompanhada de
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manifestação sobre os temas objeto do IRDR. Apontou a tempestividade do requerimento,


posto que protocolado antes do início do julgamento do incidente, conforme jurisprudência
das Cortes Superiores, e a sua representatividade adequada. Sustentou que na
eventualidade de ser firmada tese pela nulidade de contratos de cartão de crédito
consignado por violação ao dever de informação, haveria potencial usurpação de
competência do Supremo Tribunal Federal em razão da declaração indireta de
inconstitucionalidade da Lei nº 10.820/2003, que regulamenta a matéria. Discorreu sobre a
inadmissibilidade do IRDR, argumentando que no caso em apreço se discute a violação ao
dever de informação por parte das instituições financeiras, matéria que demanda o exame
do caso concreto e das provas produzidas em cada demanda. No mérito, discorreu sobre a
legalidade do contrato de cartão de crédito consignado, à luz do art. 6º, §5º, II, da Lei nº
10.820/2003 e do art. 8º-B, II, da Instrução Normativa nº 134/2022 do INSS. Mencionou
tese firmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão no IRDR nº 0008932-
65.2016.8.10.0000 a respeito da validade dos contratos de mútuo em quaisquer
modalidades, o que abrange o cartão de crédito consignado. Afirmou que a constatação de
vício de consentimento - erro substancial - não pode ser presumido, pois depende do
exame do caso concreto, razão pela qual inviável a definição de tese geral e abstrata em
sede de IRDR. Referiu que o cartão de crédito consignado somente é contratado porque já
utilizada a totalidade da margem disponível para celebração de empréstimos consignados.
Discorreu sobre a impossibilidade de conversão dos contratos de cartão de crédito
consignado para contratos de empréstimo consignado, tecendo considerações sobre uma e
outra modalidades contratuais. Asseverou que o contrato de cartão de crédito consignado
é “operação quase idêntica ao cartão de crédito convencional, com a única peculiaridade de
que um pagamento mínimo (correspondente ao valor da RMC - Reserva de Margem
Consignável) é consignado automaticamente na folha do consumidor”, sendo possível o
pagamento total ou parcial do saldo devedor, e, na hipótese de ausência de pagamento, o
refinanciamento do saldo devedor na próxima fatura. Argumentou que a conversão dos
contratos de cartão de crédito consignado para empréstimo consignado, além de
impossível operacionalização prática, causaria desequilíbrio contratual. Ainda, discorreu

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sobre a inocorrência de danos morais in re ipsa e sobre a impossibilidade de repetição em


dobro dos valores pagos pelos consumidores. Ao final, requereu : i) a sua admissão como
amicus curiae: ii) a inadmissão do incidente; e, iii) sucessivamente, fosse firmada tese
afastando a presunção de falha quanto ao dever de informação, a possibilidade de
repetição em dobro de valores pagos pelo consumidor e a configuração de danos morais in
re ipsa.

Protocolada petição pelo IDEC - INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO


CONSUMIDOR (@fls. 2.030-2.032) pugnando por nova intimação para apresentação de
alegações finais após o oferecimento de manifestação pelo PROCON/RS e para que fosse
oportunizada sustentação oral preferencialmente por videoconferência.

Manifestação pelo BANCO BMG S/A comunicando o julgamento do IRDR


pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (@fls. 2.035-2.038).

O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL apresentou manifestação instruída de


relatórios em nome do PROCON/RS como amicus curiae (@fls. 2.061-2.081). Inicialmente,
teceu considerações sobre a sua admissão como amicus curiae. No mérito, reportou-se às
razões apresentadas pelo Ministério Público, afirmando que os serviços financeiros em
sentido amplo estão em 2º lugar no gráfico do setor demandado, e que os serviços
financeiros relacionados a empréstimos consignados e cartões de crédito consignado estão
em 3º lugar. Esclareceu que as medidas administrativas adotadas estão previstas no
Decreto nº 38.864/98, na Lei nº 10.913, no CDC e no Decreto nº 2.181/97. Discorreu sobre
as plataformas de atendimento PROCON/RS Digital e Pro Consumidor visando à solução dos
problemas e reclamações dos consumidores, nas quais atinge 90% de êxito em acordos.
Não havendo êxito na composição amigável, relatou adotar as medidas necessárias à
instauração de processo administrativo sancionador individual com amparo na Resolução
Normativa SJCDH/PROCON/RS nº 01/2023. Aduziu que apenas o BANCO SANTANDER
aderiu à plataforma PROCON/RS Digital, não havendo adesão de outras instituições
financeiras. Quanto ao mérito, propriamente dito, discorreu sobre o dever de informação
do fornecedor, enfatizando as regras inseridas no CDC relativas ao superendividamento e
da Diretiva 2005/59/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005.

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Asseverou que “a matéria de direito à informação de forma clara, objetiva, precisa, ‘sem
rodeios’ ao consumidor é tema de grande relevância, inclusive, para fins de evitar nulidade
contratual” e que o “consumidor precisa ter compreensão do produto ou dos serviços para,
então, manifestar sua vontade podendo escolher entre os diversos produtos ou, até mesmo,
nenhum”. No ponto, filiou-se à tese proposta pelo Ministério Público quanto à possibilidade
de anulação de contratos de cartão de crédito consignado quando celebrado com ofensa ao
dever de informação. Em atenção aos princípios da liberdade contratual, função social e
boa-fé, apontou a possibilidade de conversão dos contratos de cartão de crédito
consignado em empréstimos consignados pessoais. Referiu que a falha no dever de
informação é suficiente para a configuração de danos morais in re ipsa, ponderando que a
“ofensa aos direitos de personalidade, dentre eles a autonomia, resulta em abalo à moral e
à psique do consumidor, o qual se sente afetado em sua intimidade”. Por fim, requereu a
sua admissão como amicus curiae e, no mérito, propôs a fixação de teses pela: i) a
possibilidade de anulação de contratos de cartão de crédito consignado quando verificada
falha na prestação de serviços por violação ao dever de informação, permitida a
repetição/compensação de valores; ii) possibilidade de conversão dos contratos de cartão
de crédito consignado em empréstimo consignado; iii) configuração de danos morais in re
ipsa.

As partes foram intimadas para, querendo, apresentarem alegações finais


(@fls. 2.097-2.099).

Apresentadas alegações finais pela FEBRABAN (@fls. 2.102-2.111)


ratificando e reiterando os argumentos anteriormente apresentados e requerendo seja
firmada tese: i) pela licitude dos contratos de cartão de crédito consignado; ii) pela
possibilidade de invalidação quando comprovada, no caso concreto, a configuração de erro
substancial; iii) pela impossibilidade de conversão dos contratos de cartão de crédito
consignado em contratos de empréstimo consignado; e iv) pela inocorrência de danos
morais indenizáveis, que somente serão devidos quando demonstrada ofensa a direitos da
personalidade.

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O BANCO CETELEM S/A também apresentou alegações finais (@fls. 2.116-


2.122), discorrendo sobre a inadmissibilidade do incidente de resolução de demandas
repetitivas, na medida em que o vício de consentimento, a violação ao dever de informação
e à boa-fé objetiva dependem do exame das circunstâncias peculiares do caso concreto.
Teceu considerações sobre a legalidade dos contratos de cartão de crédito consignado e
sobre a necessidade de exame casuístico, não sendo possível estabelecer presunção de
falha nos serviços prestados. Ao final, requereu fosse firmada tese afastando a presunção
de falha nos contratos de cartão de crédito consignado.

Protocolada petição pela ABBC - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS


(@fls. 2.125-2.127) requerendo o exame do pedido de admissão como amicus curiae e a
abertura de prazo para oferecimento de alegações finais.

Apresentados memoriais complementares pelo BANCO BMG S/A (@fls.


2.130-2.135).

Alegações finais pela DEFENSORIA PÚBLICA (@fls. 2.158-2.211) apontando


preliminarmente a necessidade de saneamento do processo, mediante exame dos pedidos
de habilitação como amici curiae formulados pelo BANCO BMG S/A e pela ABBC -
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS e a reabertura do prazo para apresentação de
memoriais e alegações finais. No mérito, repisou os argumentos ventilados em sua
manifestação anterior sobre: i) a invalidade dos contratos de cartão de crédito consignado
porque abusivos, na forma do art. 39, IV, e 51, IV, do CDC, e celebrados com ofensa ao
dever de informação; ii) a repetição em dobro dos valores indevidamente pagos pelo
consumidor; iii) a violação ao dever de informação e transparência positivados nos arts. 4º,
6º, e 52 do CDC; iv) a possibilidade de conversão dos contratos de cartão de crédito
consignado em empréstimo consignado, com fulcro no art. 170 do CC e nos arts. 30, 46 e 47
do CDC, com a aplicação da taxa média de juros; e v) o dever de reparação dos danos
materiais e morais causados aos consumidores. Ainda, tece considerações sobre a Diretiva
nº 2005/29/CE do Parlamento Europeu e Conselho de 11/05/2005. Apontou a necessidade
de expedição de ofícios: i) ao INSS, para que apresente números globais relativos à
contratação anual da modalidade de cartão de crédito consignado junto ao benefícios

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previdenciários dos aposentados e pensionistas; ii) à Secretaria Nacional do Consumidor -


SENACON, para que informe o número de reclamações referentes a supostas contratações
indevidas de cartão de crédito consignado; e iii) ao BACEN, para que informe a quantidade
de cartões de crédito emitidos as partir de 2016, e o percentual de cartões de crédito
relativos a contratos celebrados em Estado da Federação diverso do domicílio do
consumidor. Por fim, requereu: i) o exame dos pedidos de habilitação formulados pelo
BANCO BMG S/A e pelo ABBC - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS, oportunizando-se
nova vista dos autos para apresentação de alegações finais; ii) seja oportunizada
sustentação oral em sessão presencial; iii) a sua admissão como custus vulnerabilis; iv) seja
oportunizada a apresentação de memoriais após a manifestação do PROCON/RS e do
Ministério Público; v) a expedição de ofícios ao INSS, à Secretaria Nacional do Consumidor -
SENACON e ao BACEN; e vi) firmada tese pela nulidade dos contratos de cartão de crédito
consignado, os quais devem ser convertidos para contratos de empréstimo consignado,
assegurada a repetição em dobro dos valores pagos pelo consumidor e a reparação dos
danos morais suportados.

Embora regularmente intimado, o autor da causa-piloto, sr. DANILO


GIAZZON, não apresentou alegações finais.

Remetidos os autos ao Ministério Público para parecer final, sobreveio


manifestação (@fls. 2.234-2.236) se reportando ao parecer inicialmente apresentado (@fls.
871-906).

Proferida decisão: i) indeferindo o pedido de habilitação do BANCO BMG


S/A como amicus curiae; ii) deferindo os pedidos de habilitação como amicus curiae
formulados pelo ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, em nome do PROCON/RS, e pela ABBC –
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS, mas restringindo os seus poderes, vedando-lhes a
possibilidade de apresentar alegações finais e de postular diligências; iii) deferindo os
requerimentos visando à prolação de sustentação oral formulados pelo IDEC – INSTITUTO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR e pela DEFENSORIA PÚBLICA; iv) indeferindo os
requerimentos formulados pela ABBC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS, pelo IDEC –
INSTITUTO DE DEFESA DO CONSUMIDOR e pela DEFENSORIA PÚBLICA visando à renovação

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da intimação para oferecimento de alegações finais; iv) indeferindo os requerimentos


formulados pela DEFENSORIA PÚBLICA visando à expedição de ofícios ao INSS, à SENACON
e ao BACEN.

Declarada encerrada a instrução deste incidente com a requisição de data


para julgamento, da qual as partes, interessados e amici curiae deveriam ser intimados para
participar e proferir sustentação oral, querendo.

O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, em nome do PROCON/RS, protocolou


petição manifestando ciência da decisão e informando que aguardaria o julgamento do
incidente.

Vieram os autos conclusos.

É o relatório.

VOTOS

DES.ª MYLENE MARIA MICHEL (RELATORA)

Eminentes Colegas.

Conforme relatório, o presente incidente de resolução de demandas


repetitivas tramitou regularmente e está apto para julgamento.

Em atenção à manifestação apresentada pela ABBC – Associação Brasileira


de Bancos, registro que as questões relativas à admissão deste incidente já estão superadas
pelo acórdão proferido por esta Colenda Turma na sessão de julgamento realizada em
28/06/2022, conforme ementa antes transcrita, no relatório.

Dito isso, rememoro que o presente incidente tem como finalidade definir
teses relativas aos seguintes temas:

1) a anulação do contrato por falha na prestação do serviço em razão


de infringência ao dever de informação ao consumidor, com a

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devida repetição e/ou compensação dos valores indevidamente


pagos; ou

2) atentando à vontade das partes, a adaptação do contrato celebrado


à modalidade de empréstimo consignado em folha de
pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se, a título de juros
remuneratórios, a taxa média de mercado divulgada pelo Banco
Central, na modalidade de crédito pessoal consignado para a época
da contratação, abatidos os valores já descontados do consumidor;
e

3) o reconhecimento do direito do consumidor à indenização por


danos morais.

Inicio o julgamento do incidente pelo escorço fático-processual da causa-


piloto.

1. ESCORÇO FÁTICO-PROCESSUAL DA CAUSA-PILOTO:

Trata-se de Ação Anulatória c/c Indenização por Danos Morais sob nº


010/1.19.0010467-9, proposta por DANILO GIAZZON em face do BANCO CETELEM S/A.

Na petição inicial, o autor afirmou ser pessoa idosa e humilde, tendo sido
surpreendido ao constatar descontos mensais consignados em aposentadoria e pensão por
morte que aufere mensalmente do INSS no valor de R$ 57,92 cada. Narrou que, visando
obter informações sobre a origem desses débitos, diligenciou junto ao PROCON, tendo sido
informado de que se trata de cartão de crédito consignado, que afirmou jamais ter
recebido. Alegou não ter autorizado quaisquer descontos em seus rendimentos mensais a
tal título. Sustentou que “em nenhum momento (...) solicitou qualquer cartão à instituição
bancária - seja pessoalmente, seja por meio de canais de autoatendimento”. Mesmo assim,

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referiu que os descontos indevidos a título de pagamento dos cartões consignados (RMC)
permaneceram em seu benefício previdenciário, o que se afigurava ilegal não só pelo fato
de não os ter solicitado ou recebido, mas também pelo fato de que seu benefício
previdenciário possui natureza alimentar. Sustentou que a “atitude da ré de debitar em
conta corrente valor que não foi contratado, ou ainda, especificados de forma clara,
objetiva e pormenorizada, nos termos do CDC, violam os direitos e princípios básicos e
legais, visto que retém verba alimentar, essencial para a manutenção de uma mínima
qualidade de vida”. Discorreu sobre os danos morais suportados, sustentando que: i) não
contratou ou solicitou os cartões, tampouco os recebeu ou as respectivas faturas; ii) não foi
alertado dos descontos que seriam realizados em seus benefícios previdenciários; e iii) não
lhe foi dada a possibilidade de realizar pagamento em valor diverso que não o valor mínimo
da fatura devida. Ao final, requereu a procedência da ação para: i) condenar a instituição
financeira demandada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$
10.000,00 (dez mil reais), ou em patamar arbitrado judicialmente; ii) anular os contratos de
cartão de crédito consignado nºs 97-820742995/16 e 97-820743464/16 em razão de vício
na contratação e na forma de cobrança dos valores devidos, condenando-se a instituição
financeira a restituir os valores descontados ilegalmente de seu benefício previdenciário; e
iii) alternativamente, converter os contratos de cartão de crédito consignado para
contratos de empréstimo pessoal consignado, caso comprovado o depósito de qualquer
valor em conta bancária de sua titularidade.

Citado, o BANCO CETELEM S/A apresentou contestação instruída de


documentos (volume 3, páginas 539-559 da causa-piloto). Discorreu sobre a regularidade
da contratação, afirmando que os descontos nos proventos de aposentadoria foram
autorizados pelo autor por intermédio do contrato de cartão de crédito consignado nº 97-
820742995/16, relativo ao cartão de crédito consignado nº 5340.XXXX.XXXX.6671 e por
meio do qual lhe foi concedido um limite de crédito no valor de R$ 1.476,06, integralmente
utilizado através de transferência bancária realizada para conta de sua titularidade junto à
Caixa Econômica Federal (Banco 104), agência 457, conta corrente nº 151249-5. Alegou que
o autor foi informado das condições contratuais e anuiu com os seus termos ao preencher

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e assinar a “Proposta de Adesão – Cartão de Crédito Consignado”, sendo válida a


contratação e lícitos os descontos realizados. Sustentou que, “analisando o produto
ofertado na contratação, resta claro a possibilidade de verificar que a parte autora teve
ciência de todos os aspectos contratuais aderindo a ‘PROPOSTA DE ADESÃO – CARTÃO DE
CRÉDITO CONSIGNADO’ (ctt. Anexo) que compõe a operação que contratou” e que “Estas
informações, por si só, permitem ao consumidor constatar em sua integralidade o custo
efetivo total do contrato celebrado, em especial na descrição da operação, garantindo
plena ciência de sua composição e o direito de ESCOLHA à parte autora, que podia
comparar inclusive com outras propostas ofertadas no mercado financeiro e munido destes
dados aderiu livremente ao pacto”. Nesse contexto, defendeu que o negócio jurídico é
válido, porque observados os requisitos mínimos exigidos pelo art. 104 do CC e não
configuradas quaisquer das hipóteses do art. 166 do mesmo diploma legal. Discorreu
acerca da legalidade da contratação à luz da Instrução Normativa nº 28 do INSS e da
inocorrência de danos morais indenizáveis. Requereu a improcedência dos pedidos.

O autor apresentou réplica repisando tratar-se de pessoa idosa, humilde e


vulnerável em face da instituição financeira demandada, e que jamais contratou ou
solicitou a contração de cartão de crédito consignado. Afirmou não ter solicitado o cartão
ou as faturas mensais, e que os descontos realizados em seu benefício previdenciário são
ilegais. Asseverou que os contratos apresentados pela instituição financeira demanda
foram assinados em branco, “não contendo os valores praticados, tampouco taxas, juros e
demais correções fundamentais para ensejar qualquer cobrança pretendida”. Sustentou
que o ônus de comprovar a regularidade da contratação é da ré. Asseverou que a
demandada não lhe forneceu cópias dos contratos. Alegou que a ré não comprovou a
regularidade da contratação e que os descontos de pequena monta em seu benefício
previdenciário dificultavam a identificação da origem dos valores devidos, repisando se
tratar de pessoa idosa que, embora capaz, enfrenta diversas dificuldades no mercado de
consumo. Teceu considerações sobre abusividade da contratação em razão do baixo valor
dos descontos realizados, que afirmou serem insuficientes para a amortização do saldo
devedor em razão da incidência de juros e encargos contratuais. Aduziu que a validade da

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contratação exige a exposição das condições e termos de forma clara, de modo que
“havendo falha em um dos pressupostos, não se pode considerar válida a onerosidade
imposta à parte autora, principalmente sendo o presente caso, matéria de direito do
consumidor e do estatuto do idoso”. Ainda, discorreu sobre a abusividade dos juros
praticados pela ré, equivalentes a 48,67% a.a., e da taxa de emissão do cartão de crédito,
que jamais lhe foi entregue. Impugnou os documentos apresentados pela ré, porque
produzidos unilateralmente. Sustentou que, “qualquer dúvida deve ser solucionada em
benefício do consumidor”, pois as normas protetivas do consumidor são de ordem pública.
Ratificou a procedência dos pedidos formulados na exordial.

Intimadas para especificarem a provas que pretendiam produzir, as partes


requereram o julgamento antecipado da lide, tendo sido proferida sentença de
improcedência, conforme dispositivo abaixo transcrito:

Isso posto, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, condenando o autor


ao pagamento das custas processuais e dos honorários
advocatícios aos procuradores do Banco réu, os quais fixo em R$
1.200,00 (um mil e duzentos reais), acrescidos de correção
monetária pelo IGP-M, a contar da publicação da sentença, e de
juros de mora de 1% ao mês, a partir do trânsito em julgado da
decisão, por apreciação equitativa, na forma do artigo 85, §§8º e
16, do CPC/15, ficando a exigibilidade suspensa por ser
beneficiário da AJG.
Diante da nova sistemática processual, inexistindo o juízo de
admissibilidade, (art. 1.010, § 3º do CPC), em caso de interposição
de recurso de apelação, proceda-se na intimação da parte
apelada para que apresente contrarrazões, querendo, no prazo de
15 dias. Decorrido o prazo, subam os autos ao E. TJ/RS.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Opostos embargos de declaração pelo autor, foram acolhidos após o


oferecimento de contrarrazões (fls. 125-126, 129-131 e 133 da causa piloto), conforme
decisão abaixo transcrita:

Vistos.
Recebo os embargos de fls. 125/126, uma vez que tempestivos.
Com razão o embargante, uma vez que a sentença embargada foi
omissa quanto aos pedidos veiculados no item “e.2” da petição

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inicial. Contudo, isso não tem o condão de alterar o dispositivo da


decisão.
Dessa forma, acolho os embargos declaratórios, para acrescentar
o seguinte à fundamentação da sentença embargada:
‘(...) Nessas condições, ao realizar os descontos diretamente na
folha de pagamento do benefício previdenciário do autor, o Banco
réu agiu no exercício regular de um direito, amparado pelas
disposições contratuais e pelo artigo 188, I, do CCB/02. Com
efeito, no que concerne ao pedido alternativo, não preenchidos os
requisitos do art. 170 do Código Civil, não há que falar em
conversão do negócio entabulado, restando, por conseguinte,
prejudicados os pedidos subsequentes. (...)’.
Sendo assim, acolho os embargos declaratórios, a fim de sanar a
omissão acima, a qual, entretanto, não importa em qualquer
modificação na parte dispositiva da sentença.
Intimem-se.

Nas razões recursais (fls. 136- 142 da causa-piloto), o apelante sustenta


haver ingressado com demanda judicial buscando “primeiramente a anulação de um
contrato, ou alternativamente, a conversão nos termos de decisões deste próprio Egrégio
Tribunal de Justiça, em face da forma ilícita com que foi procedida a negociação”. Assevera
que a sentença laborou em erro ao dirimir a quaestio sub judice com amparo no fato de a
instituição financeira haver comprovado a regularidade da contratação, na medida em que
não discute o desconhecimento da relação contratual ou negocial, mas o fato de jamais ter
solicitado empréstimo na modalidade de cartão de crédito - porque financeiramente mais
desvantajoso -, mas empréstimo pessoal consignado. Afirma que diversos são os indícios de
fraude no caso vertente, tais como: i) consta dos contratos apenas a assinatura do
apelante, sem que os demais campos tenham sido preenchidos (fls. 68, 69, 74, 75, 76 e 77
da causa-piloto); ii) o contrato celebrado entre as partes não informa os valores praticados,
taxas de juros e demais encargos incidentes sobre a operação; iii) ao apelante não foram
fornecidas cópias dos instrumentos contratuais, que inclusive estão em branco; iv) os
documentos de fls. 70-71 e 79-80 da causa-piloto destoam da cronologia contratual, pois
são posteriores à assinatura aposta nos contratos em branco; v) a retenção mensal de
valores baixos no benefício percebido pelo apelante dificulta a identificação do valor
efetivamente devido, sua origem e motivação; vi) informações dessa natureza dependem

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de diligência junto ao INSS ou consulta pela internet, o que dificulta o seu acesso por
idosos; e vii) não foi fornecido o cartão de crédito para realização de transações, tampouco
das respectivas faturas. Nesse contexto, pondera que “havendo falha em um dos
pressupostos, não se pode considerar válida a onerosidade imposta à parte apelante,
principalmente sendo o presente caso, matéria de direito do consumidor e do estatuto do
idoso”. Refere que, de acordo com a jurisprudência desta Egrégia Corte, práticas deste jaez
são abusivas, em razão das taxas de juros praticadas, “além de toda ilegalidade cometida
na contratação, sem precisão nos dados e além de forçar os descontos de forma
consignada, sem jamais ter dado vistas ao contrato e demais instrumentos antes da
presente demanda”. Sustenta que os juros cobrados pela instituição financeira demandada
são abusivos, pois alcançam a cifra de 48,67% a.a., e que não há risco de inadimplência, na
medida em que o pagamento é feito mediante desconto em folha de pagamento do
consumidor. Por derradeiro, refere haver sido cobrada taxa referente à emissão de cartão
de crédito que nunca lhe fora entregue, tampouco as respectivas faturas. Forte nesses
argumentos, pugna pelo provimento do recurso para que a demanda seja julgada
procedente para declarar “a nulidade dos contratos de cartão de crédito 97-820742995-16
e 97-820743464-16, anulando assim os valores cobrados ilicitamente, condenando o banco
réu a restituir a parte autora o que foi – e ainda será – descontado ilegalmente de seus
vencimentos”. Alternativamente, comprovado o depósito de valores em sua conta bancária,
requer o provimento do recurso e a procedência da ação mediante “conversão do mesmo
para empréstimo pessoal consignado, declarando por base o valor original/nominal do
suposto saque realizado, fazendo incidir, uma única vez, sobre o montante do empréstimo a
taxa média anual de juros remuneratórios divulgada pelo BACEN para a modalidade de
empréstimo pessoal consignado – pessoa física”, assegurada a compensação ou a repetição
dos valores pagos a maior. Requer, por fim, o provimento do recurso para que seja julgado
procedente o pedido de indenização por danos morais.

Regularmente intimada, a apelada apresentou contrarrazões (fls. 144-152


da causa-piloto) esclarecendo que a cobrança questionada pelo apelante se refere ao
contrato de cartão de crédito consignado nº 5340.04XX.XXXX.5575, emitido em 06/03/2018

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em razão do contrato nº 97-820743464/16, por intermédio do qual “liberou à parte


Apelante o valor de R$ 1.476,06 em 17/10/2016, por meio de (TED ao banco 104, AG. 457,
CONTA – CORRENTE 1512495)”. Assevera que as alegações do apelante - no sentido de que
teria sido surpreendido pelos descontos realizados em seu benefício previdenciário a título
de cartão de crédito consignado - não prosperam, conforme contrato celebrado entre as
partes, com cujos termos anuiu e no qual havia previsão expressa para reserva da margem
consignável. Argumenta que o apelante tinha conhecimento da emissão do cartão de
crédito e da cobrança da respectiva taxa, na medida em que inclusive informado o
respectivo limite. Nesse contexto, afirma restar “clara a veracidade e aquiescência do
Apelante frente a contratação debatida nos autos”, sendo “(i) legítima a contratação; (ii)
regular o exercício de direito do réu de cobrar a dívida; (iii) clara a tentativa da parte
Apelante de se livrar da dívida regularmente constituída para receber indenização”.
Sustenta haver cumprido o dever de informação, conforme cópia da “PROPOSTA DE
ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO” acostado aos autos, na medida em que
informado o custo efetivo total, permitindo ao consumidor o exercício do direito de
escolha, “que podia comparar inclusive com outras propostas ofertadas no mercado
financeiro”. Discorre sobre a legalidade dos descontos realizados no benefício
previdenciário percebido pelo apelante à luz da Instrução Normativa nº 28 do INSS, a qual
faculta “ao aposentado ou pensionista utilizar até 5% de seu benefício para a obtenção de
empréstimo em cartão de crédito”. Tece considerações sobre as relações jurídicas bancárias
e sobre o cartão de crédito consignado, asseverando que “o próprio Apelante afirma ter
efetuado a contratação, o que afasta qualquer possibilidade de fraude, percebendo-se que,
na verdade, o Apelante almeja se esquivar das obrigações assumidas com o banco”.
Argumenta que “Quando há por parte do cliente a contratação específica de cartão de
Crédito Consignado, há sempre um valor mínimo a ser consignado para o pagamento
mensal do valor contratado, variando este, de acordo com cada caso específico, ou seja,
para toda contratação nessa modalidade haverá obrigatoriamente a RMC (reserva de
margem consignável)”, cujo percentual máximo é de 5% e que não se confunde com os
descontos efetivamente realizados. Afirma que contratações deste jaez são reguladas pela

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Lei nº 13.172/2015, e que todas as despesas contraídas pelo contratante por intermédio do
cartão de crédito, inclusive do saque do limite de crédito concedido, são realizadas
mediante descontos em folha, respeitado o limite máximo de 5% do valor do benefício.
Refere que “Os descontos que estão sendo realizados são destinados, única e
exclusivamente, ao pagamento dos valores disponibilizados para a parte Apelante, cuja
modalidade foi avençada de forma específica”. Nesse contexto, afirma que o contrato foi
validamente celebrado entre as partes, haja vista respeitar a legislação em vigor. Assevera
não estarem presentes os requisitos necessários à configuração do dever de indenizar,
porque ausente prova do ato ilícito e dos danos morais alegadamente sofridos, ônus que
incumbe ao apelante por força do disposto no art. 373, I, do CPC. Aduz que, na hipótese de
se entender pela desnecessidade de provas, não há falar em danos morais, mas mero
aborrecimento que não é intenso o suficiente para romper o equilíbrio psicológico do
apelante e, como consequência, não dá azo a qualquer espécie de indenização.
Entendendo-se pela configuração de danos morais, advoga pela incidência dos juros
moratórios a contar do seu arbitramento, conforme previsão do art. 407 do CC, devendo a
indenização ser compensada com os valores creditados na conta do apelante com amparo
no contrato. Em caso de provimento do recurso, invoca o disposto no art. 497 do CPC e
discorre sobre a impossibilidade de conversão do contrato celebrado entre as partes em
operação de empréstimo consignado, haja vista se tratar de operações de crédito distintas.
Sustenta que “O sistema bancário apesar de moderno e diligente, tem suas falhas e em
consequência, suas devidas limitações”, dentre as quais “a conversão de operação em
operação diversa, como exemplificado nos pedidos da presente, não ofertando ao registro
bancário a simples cancelamento de parte da operação contratada”. Sustenta que a
“operação não deve ser novada ou distorcida, e sim ser convertida, em eventual
determinação de sua ilegalidade, em perdas e danos abatendo-se o valor devido por
eventuais valores ofertados”. De qualquer sorte, pontua que a possibilidade, ou não, de
conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo consignado deve
ser analisada em cumprimento de sentença. Advoga pela impossibilidade de repetição do
indébito, na medida em que “legítima a contratação e devidos os descontos”. Sustenta que

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a repetição somente se justificaria se demonstradas as hipóteses do art. 877 do CC, como o


erro, situação de que não se cogita no caso em apreço. Por fim, em caso de provimento do
recurso, pugna pelo arbitramento da honorária em patamar mínimo. Requer o
desprovimento do recurso e a manutenção da sentença de improcedência por seus
próprios e jurídicos fundamentos.

Remetidos os autos a esta Egrégia Corte, o recurso foi distribuído ao E. Des.


Vicente Barroco de Vasconcellos por vinculação (fl. 154 da causa-piloto).

Feito o histórico fático processual, tanto deste IRDR como da causa-piloto,


passo ao enfrentamento meritório do incidente.

2. MÉRITO:

2.1. A LIVRE INICIATIVA E A DEFESA DO CONSUMIDOR SOB A


PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL:

A matéria sob discussão neste incidente de resolução de demandas


repetitivas evidencia com clareza o antagonismo e a tensão que se estabelece entre os
interesses dos fornecedores e dos consumidores em demandas individuais envolvendo a
celebração de contratos de cartão de crédito consignado.

Nesse contexto, parto da premissa de que a celeuma a ser dirimida, em


última análise, estabelece-se entre os princípios da livre iniciativa e da defesa consumidor,
positivados nos arts. 1º, IV, 5º, XXXII, e 170 da CF/88.

Conforme dicção do art. 1º1 da CF/88, a República Federativa do Brasil tem


como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização social do
trabalho e da livre iniciativa, dentre outros.

1 CF/88, Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
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Atento a esses fundamentos, o art. 3º2 da CF/88 estabelece como objetivos


fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e das
desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem comum.

Ao tratar das garantias fundamentais, o art. 5º3, incisos X, XIII, XVII, XXII,
XXIII, XXXII, da CF/88 tutela expressamente a igualdade, a liberdade, a inviolabilidade da
honra e o direito à reparação dos danos materiais e morais, a propriedade e sua função
social, a liberdade de ofício, trabalho ou profissão, o direito de associação para fins lícitos, o
direito de associação e a defesa do consumidor, garantias que servem de substrato para o
exercício da livre-iniciativa e a defesa do consumidor.

Não há dúvidas, portanto, de que a Carta Política de 1988 consagrou


direitos fundamentais de 1ª4, 2ª5 e 3ª6 dimensões, o que aponta para a necessidade de

III - a dignidade da pessoa humana;


IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição.
2
CF/88, Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
3 CF/88, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei
estabelecer;(...)
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;(...)
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;(...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;(...).
4 Sustentam Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “Os direitos fundamentais, ao menos no

âmbito de seu reconhecimento nas primeiras constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social
característico do constitucionalismo francês) do pensamento liberal-burguês do século XVIII, caracterizado por um cunho
fortemente individualista, concebidos como direitos do indivíduo perante o Estado, mais especificamente, como direitos de
defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder. São,
por esse motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma
conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, “direitos de resistência ou de oposição perante o
Estado”. Nesse contexto, assumem particular relevo os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei,
posteriormente complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão
coletiva (liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.), e pelos direitos de participação política,
tais como o direito ao voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, íntima correlação com os direitos
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compatibilização entre a abstenção do Estado nas relações privadas, a promoção do bem-


estar social e a tutela dos direitos meta individuais ou transindividuais.

Como ensina Alexandre de Moraes7, as garantias constitucionais não são


absolutas, de modo que sua efetivação no mundo dos fatos depende de juízo de
ponderação em face de outras garantias constitucionais a fim de que, a partir da
concordância prática e sem prejuízo ao seu núcleo essencial, se alcance a maior efetividade
possível do texto constitucional. Por essa razão, Luís Roberto Barroso8 sustenta que a

fundamentais e a democracia.” In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva Educação; 2021.
5 Sustentam Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “O impacto da industrialização e os graves

problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal
de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos
movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na
realização da justiça social. A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de
evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, na lapidar formulação de Celso Lafer, de propiciar
um “direito de participar do bem-estar social”.(...) É, contudo, no século XX, de modo especial nas constituições do segundo
pós-guerra, que estes novos direitos fundamentais acabaram sendo consagrados em um número significativo de constituições,
além de constituírem o objeto de diversos pactos internacionais. Como oportunamente observa Paulo Bonavides, esses direitos
fundamentais, é possível exprimir, “nasceram abraçados ao princípio da igualdade, compreendido em sentido material e não
meramente formal.” In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva Educação; 2021.
6
Sustentam Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “Os direitos fundamentais da terceira
dimensão, também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se
desprenderem, em princípio da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos
(povo, nação), caracterizando-se, consequentemente como direitos de titularidade transindividual (coletiva ou difusa).(...)
Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo
impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e
suas contundentes consequências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais.A nota distintiva destes
direitos da terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade transindividual (ou metainvididual), muitas vezes
indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especial no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o
qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção.” In: SARLET, Ingo
Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva
Educação; 2021.
7 Sustenta Alexandre de Moraes: “Os direitos humanos fundamentais, dentre ele os direitos e garantias individuais e coletivos

consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de
atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos
criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Os direitos e garantias
fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos
demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
Desta forma, quando houver um conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do
princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito,
evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando um redução proporcional do âmbito de alcance de cada
qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional
com sua finalidade precípua.” In: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª ed. São Paulo: Atlas; 2020.
8 Sustenta Luís Roberto Barroso: “A constituição é o documento que dá unidade ao sistema jurídico, pela irradiação de seus

princípios aos diferentes domínios infraconstitucionais. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação
sistemática, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas jurídicas. A superior
hierarquia das normas constitucionais impõe-se na determinação de sentido de todas as normas do sistema. O problema
maior associado ao princípio da unidade não diz respeito aos conflitos que surgem entre as normas infraconstitucionais ou
entre estas e a Constituição, mas sim às tensões que se estabelecem dentro da própria Constituição. De fato, a Constituição é
um documento dialético, fruto do debate e da composição política. Como consequência, abriga no seu corpo valores e
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interpretação das normas constitucionais deve levar em consideração os princípios da


unidade da Constituição, da razoabilidade ou da proporcionalidade e da efetividade.

Portanto, a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional devem


ser interpretadas de modo a compatibilizar o valor social da livre iniciativa e a defesa do
consumidor, cujos núcleos essenciais devem ser preservados, tanto quanto possível.
Destaca-se que a própria Constituição Federal, em certa medida, já realiza juízo de
ponderação entre a livre iniciativa e a defesa do consumidor em seu art. 1709 ao dispor que
“a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

O texto constitucional é claro ao estabelecer que a ordem econômica não é


um fim em si mesmo e que o exercício da livre iniciativa não é absoluto, mas está limitado a

interesses contrapostos. Nesses casos, como intuitivo, a solução dos colisões entre normas não pode se beneficiar, de maneira
significativa, dos critérios tradicionais. Portanto, na harmonização de sentido entre normas contrapostas, o intérprete deverá
promover a concordância prática entre os bens jurídicos tutelados, preservando o máximo possível de cada um. Em algumas
situações, precisará recorrer a categorias como a teoria dos limites imanentes: os direitos de uns têm de ser compatíveis com
os de outros. E em muitas situações, inexoravelmente, terá de fazer ponderações, como concessões recíprocas e escolhas.(...)
O princípio da razoabilidade-proporcionalidade, termos aqui empregados de modo fungível, é de grande importância na
dogmática contemporânea, tanto por sua dimensão instrumental, quanto material. O referido princípio não está expresso na
Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devidos processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso
instrumento de proteção dos direitos fundamentais dos atos do Poder Público e por funcionar como medida com que uma
norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do
sistema. (...) Consoante doutrina clássica, os atos jurídicos em geral, inclusive as normas jurídicas, comportam análise em três
planos distintos: os da sua existência, validade e eficácia. No período imediatamente anterior e ao longo da vigência da
Constituição de 1988, consolidou-se um quarto plano fundamental de apreciação das normas constitucionais: o da sua
efetividade. Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos
os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser
normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição:
entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita atuação da vontade institucional,
evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência
de omissão do legislador.” In: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação Constitucional como Interpretação Específica.” In:
CANOTILHO, J. J.; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São
Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
9 CF/88, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar

a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
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interesses maiores que dizem respeito à sociedade como um todo, evidenciando o


compromisso com os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil
previstos nos arts. 1º e 3º da CF/88. Dito de outro modo, conquanto a escolha do legislador
constitucional pelo modelo capitalista seja inegável, permite-se a intervenção do Estado na
ordem econômica para assegurar que seus fundamentos sejam observados e seus objetivos
precípuos alcançados, valendo-se, para tanto, de instrumentos para a regulação
econômica, dentre os quais o dirigismo contratual10.

Ao discorrer sobre a defesa do consumidor, Rizzato Nunes11 aponta para a


necessidade de harmonização da livre-iniciativa e demais princípios e garantias
fundamentais que lhe são correlatos à necessidade de proteção do consumidor:

Assim, quando chegamos ao art. 170 da Constituição Federal, que


trata dos princípios gerais da atividade econômica, com seus nove
princípios, esses elementos iniciais tem de ser levados em conta. O
regime é capitalista, logo há livre-iniciativa, ele é possível, e
aquele que tem patrimônio e/ou que tem condições de adquirir
crédito no mercado pode, caso queira, empreender algum
negócio, mas dentro dos limites impostos pelo texto
constitucional. (...)
O art. 170 como um todo estabelece princípios gerais para a
atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também,
como já dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus
ditames. Acontece que não basta examinar os princípios
estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si
mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais
chamamos a atenção.
O caput do art. 170 está em harmonia com aqueles outros
princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos
interessam em no nosso exame. São eles: propriedade privada;
função social da propriedade; livre concorrência; defesa do

10 Sustenta Alexandre de Moraes: “A ordem econômica na Constituição de 1988, em seu artigo 170, optou pelo modelo
capitalista de produção, também conhecido como economia de mercado (Art. 219), cujo coração é a livre-iniciativa. Porém, a
análise dos quatro princípios da ordem econômica previstos no caput do citado art. 170 - valorização do trabalho humano,
livre-iniciativa, existência digna, conformidade com os ditames da Justiça social – apontam no sentido da ampla possibilidade
do intervir na economia, e não somente em situações absolutamente excepcionais.(...) O texto constitucional de 1988,
portanto, consagrou uma economia descentralizada de mercado, sujeita a forte atuação do Estado de caráter normativo e
regulador, permitindo que o Estado explore diretamente a atividade econômica quando necessário aos imperativos de
segurança nacional ou relevante interesse coletivo. O artigo 170 da Constituição Federal, com a nova redação que lhe deu a
Emenda Constitucional nº 06/1995, consagrou a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-
iniciativa. Igualmente, o artigo 170 estabeleceu a finalidade à ordem econômica constitucional: garantia da existência digna,
conforme os ditames da justiça social.” In: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª ed. São Paulo: Atlas; 2020.
11 NUNES, Rizzato. Comentários ao art. 170, V. In: CANOTILHO, J. J.; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L.

(Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.


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consumidor e possibilidade de exploração da atividade econômica


- com seu natural risco – prevista no parágrafo único do art. 170.
Ora, a Constituição Federal garante a livre-iniciativa? Sim.
Estabelece a garantia a propriedade privada? Sim. Significa isso
que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de
consumidor “praticar iniciativa privada” sem nenhuma
preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade
social? Pode qualquer um dispor dos seus bens de forma
destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A
resposta a essas duas questões e não. (...)
Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da
pessoa humana, o que se está pressupondo é que esse regime
capitalista é fundado num mercado, numa possibilidade da
exploração econômica que vai gerar responsabilidade social,
porque é da sociedade que se trata.
Livre mercado composto de consumidores e fornecedores tem, na
ponta do consumo, o elemento de sua formação, pois o
consumidor é reconhecidamente vulnerável como receptor dos
modelos de produção unilateralmente definidos e impostos pelo
fornecedor. A questão não é, pois – como às vezes a doutrina
apresenta -, de ordem econômica ou financeira, mas técnica: o
consumidor é mero expectador no espetáculo da produção.
O reconhecimento da fragilidade do consumidor no mercado está
ligado à hipossuficiência técnica: ele não participa do ciclo de
produção e, na medida em que não participa, não tem acesso aos
meios de produção, não tendo como controlar aquilo que compra
de produtos e serviços; não tendo como fazê-lo e, na medida em
que não tem como fazê-lo, precisa de proteção. É por isso que
quando chegamos ao CDC há uma ampla proteção ao consumidor
com o reconhecimento de sua vulnerabilidade (no art. 4º, I) e
como decorrência direta do estabelecido no inciso V do art. 170,
assim como do inciso XXXII do art. 5º.

Noutro giro, não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 tutelou


institutos eminentemente privados, pondo fim à divisão estanque que outrora existia entre
o direito público e o direito privado, e, como consequência, retirou do Código Civil o
prestígio de Constituição do Direito Privado que lhe empregou a doutrina oitocentista e
que, no direito brasileiro, encontrou a sua expressão máxima no Código Beviláqua de 1916.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald12 relembram que, ao longo do século XX, o

12
Sustentam Crstiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “O quadro desenhado pelo individualismo oitocentista, no
entanto, começa a ser redefinido, gradativamente, na Europa, no início do século XX, chegando ao Brasil a partir da década de
1930, através de diferentes fenômenos, como a intervenção do Estado na economia e a restrição da autonomia privada (o
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Código Civil passou por paulatino processo de descodificação, já que diversas matérias que,
ao menos em tese, deveriam ter sido por ele reguladas, foram objeto de leis esparsas.
Nesse contexto, Luís Roberto Barroso13 anota que a Constituição Federal de 1988 passou a
ser o centro do ordenamento jurídico do ponto de vista formal e material, exigindo do
aplicador do Direito uma filtragem constitucional, isto é, uma reinterpretação do direito
privado à luz do texto constitucional.

chamado dirigismo contratual). Ao lado disso, intensifica-se o processo legislativo em matéria civil, quebrando o caráter
fechado, monolítico, o Código Civil, com a formação de microssistemas jurídicos. É o fenômeno conhecido como descodificação
do direito civil, com a retirada de matérias inteiras da esfera codificada, passando a ser disciplinada em diplomas legais
específicos, como no exemplo do Estatuto da Mulher Casada, da Lei nº 4.91/64 - regulando incorporações imobiliárias e
condomínio, a Lei nº 6.015/73-, Lei de Registrado públicos, dentre outros. Houve, efetivamente, um deslocamento do centro
nevrálgico do Direito Civil de um centro codificado monolítico para uma realidade fragmentada e pluralista, através de
estatutos autônomos, situados hierarquicamente ao lado da Codificação e não submissos a ela. A crise nas fontes normativas
do Direito Civil se completa quando se agrega ao Direito Civil o conjunto de normas supranacionais formado pelos tratados,
convenções e pactos internacionais, além de regulamentos de mercados regionais, estabelecendo normas humanitárias,
acolhidas pelo sistema jurídico brasileiro. Esse panorama resultante da desconstrução do sistema monolíticos do Código Civil,
a partir do pluralismo não só legislativo, mas também social (oriundo do welfare state), mereceu notável do notável mestre
baiano Orlando Gomes a advertência de que “o Código Civil foi o estatuto orgânico da vida privada, elaborada para dar
solução a todos os problemas da vida de relação aos particulares. Não é mais, a olhos vistos. Perdeu, com efeito, a
generalidade e completude. Suponho que jamais conseguirá recuperá-las.(...) Na medida em que se detectou a erosão do
Código Civil, ocorreu uma verdadeira migração dos princípios gerais e regras atinentes às instituições privadas para o Texto
Constitucional. Assumiu a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites da
autonomia privada, da propriedade, do controle de bens, da proteção dos núcleos familiares etc.(...) Enfim, o papel unificador
do sistema jurídico, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos, quanto noutros temas de relevância pública, é
desempenhado pela norma constitucional.” In: FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Direito
Civil. Volume único. 4ª ed.. Salvador: Ed. Jus Podium; 2019.
13 Sustenta Luís Roberto Barroso: “Nos Estados de democratização mais tarde, como Portugal, Espanha e, sobretudo, o Brasil,

a constitucionalidade do Direito é um processo mais recente, embora muito intenso. Verificou-se, entre nós o mesmo
movimento translativo ocorrido inicialmente na Alemanha e em seguida na Itália: a passagem da Constituição para o centro
do sistema jurídico. A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar
não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela
abertura do sistema jurídico e pela normatividade dos seus princípios. Com grande ímpeto, exibindo força normativa sem
precedente, a Constituição ingressou na paisagem jurídica do país e no discurso dos operadores jurídicos. Do centro do sistema
jurídico foi deslocado o velho Código Civil. Veja-se que o direito civil desempenhou no Brasil – como alhures – o papel de um
direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferia certa unidade dogmática ao ordenamento. A
própria teoria geral do Direito era estudada dentro do direito civil e só mais recentemente adquiriu autonomia didática. No
caso brasileiro, deve-se registrar, o Código Civil, já vinha perdendo a influência no âmbito do próprio direito privado. É que, ao
longo do tempo, à medida que o Código envelhecia, inúmeras leis específicas foram editadas, passando a formar
microssistemas autônomos em relação a ele, em temas como alimentos, filiação, divórcio, locação, consumidor, criança e
adolescente, sociedades empresariais. A exemplo do que passou na Itália, também entre nós deu-se a “descodificação” do
direito civil, fenômeno que não foi afetado substancialmente pela promulgação de um novo Código Civil em 2002, com
vigência a partir de 2003. Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – como a sua ordem,
unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esse fenômeno,
identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consistem em que toda a ordem jurídica deve ser lida e
apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados.” In: BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva;
2015.
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Em outras palavras, trata-se da constitucionalização do direito privado, a


qual deu azo à concepção de um Direito Civil-Constitucional, como ensina Flávio Tartuce14.
Em idêntico sentido, Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo
Roscoe Bessa15 referem com acerto que “A Constituição Federal de 1988 serve, assim, de
centro valorativo, centro sistemático-institucional e normativo também do direito privado
(força normativa da constituição), um novo direito privado brasileiro (garantido e moldado
pela ordem pública constitucional, limitado e consubstanciado pelos direitos fundamentais
aí recebidos), um direito privado coerente, com manutenção do Código de Defesa do

14 Nas palavras de Flávio Tartuce: “O conceito de Direito Civil Constitucional, à primeira vista, poderia parecer um paradoxo.
Mas não é. O direito é um sistema lógico de normas, valores e princípios que regem a vida social, que integram entre si de tal
sorte que propicie segurança - em sentido lato – para os homens e mulheres que compõem a sociedade. O Direito Civil
Constitucional, portanto, está baseado em uma visão unitária do ordenamento jurídico. Ao tratar dos direitos fundamentais,
José Joaquim Gomes Canotilho também fala em unidade da ordem jurídica sustentando a viabilidade de uma interação entre o
Direito privado e a Constituição, mesmo que em tom cético. Para o mesmo Gustavo Tepedino, um dos principais idealizadores
desse novo caminho metodológico, é “imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da
Constituição”. Desse modo, “reconhecendo a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se buscar a
unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado
no Código Civil”. O Direito Civil Constitucional, como uma mudança de postura, representa uma atitude bem pensada, que tem
contribuído para a evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sadio diálogo
entre os juristas das mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que a há uma inversão da forma de interação dos
dois ramos do direito – o público e o privado -, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do
que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso. Os próprios constitucionalistas reconhecem o fenômeno de interação
entre o Direito Civil e o Direito Constitucional como realidade do que se convém denominar neoconstitucionalismo, ou da
invasão Constitucional. E, por certo, o movimento brasileiro é único, é autêntico. Ressalta Eduardo Ribeiro Moreira que “As
outras inovações do direito civil-constitucional têm de ser esse ponto de encontro, os direitos fundamentais nas relações
particulares, intenção vital com a transposição e redução entre o espaço privado e o espaço público, garantizador. Dois pontos
basilares do direito civil-constitucional que funcionam em prol da dignidade da pessoa humana.(...) Deve ser feita a ressalva
que, por tal interação, o Direito Civil não deixará de ser Direito Civil; e o Direito Constitucional não deixará de ser Direito
Constitucional. O Direito Civil Constitucional nada mais é do que um novo caminho metodológico, que procura analisar os
institutos privados a partir da Constituição, e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil e da
legislação infraconstitucional, em uma análise em mão dupla.” In: TARTUCE, Flávio. Manual de direito Civil: volume único. 11ª
ed.. Rio de Janeiro: Forense/Método; 2021.
15 Nas palavras de Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa: “De outro lado, a inclusão

da defesa do consumidor como direito fundamental na Constituição Federal de 1988 também significa, sistematicamente, uma
garantia constitucional desse ramo do direito privado, um direito objetivo (na lei, no sistema posto de direito) de defesa do
consumidor. É a chamada “força normativa” da Constituição (expressão de Konrad Hesse), que vincula o Estado e os
intérpretes da lei em geral, que devem aplicar este novo direito privado de proteção dos consumidores (institucionalizado na
ordem econômica constitucional, no art. 170, V, da CF/1988, garantindo e consubstanciado como valor a tutelar incluído na
lista de direitos fundamentais, no art. 5º, XXXII, da CF/1988). Em outras palavras, a Constituição Federal é a garantia
institucional da existência e efetividade do direito do consumidor no Brasil. Em resumo, certos estão aqueles que consideram a
Constituição Federal de 1988 como o centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e
preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário.(...) Em outras palavras, a Constituição seria a
garantia (de existência e de proibição de retrocesso) e o limite (limite-guia e limite-função) de um direito privado construído
sob seu sistema de valores e incluído a defesa do consumidor como princípio geral! (...) A Constituição Federal de 1988 serve,
assim, de centro valorativo, centro sistemático-institucional e normativo também do direito privado (força normativa da
constituição), um novo direito privado brasileiro (garantido e moldado pela ordem pública constitucional, limitado e
consubstanciado pelos direitos fundamentais aí recebidos), um direito privado coerente, com manutenção do Código de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/1990), em sua inteireza, mesmo depois da entrada em vigor de um Código Civil (Lei 10.406/2002),
que unificou suas obrigações civis e comerciais e revogou grande parte do Código Comercial de 1850.”. In: Benjamin, Antônio
Herman V.; Marques, Cláudia Lima; Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais; 2014.
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Consumidor (Lei 8.078/1990), em sua inteireza, mesmo depois da entrada em vigor de um


Código Civil (Lei 10.406/2002), que unificou suas obrigações civis e comerciais e revogou
grande parte do Código Comercial de 1850”.

Com efeito, a positivação da dignidade da pessoa humana como


fundamento da República Federativa, ex vi, art. 1º, III, da CF/88 desencadeou um processo
de despatrimonialização e de repersonalização do direito privado. Não se pode ignorar o
fato de que os direitos e garantias fundamentais, por força do disposto no art. 5º16, §1º, da
CF/88, gozam de aplicabilidade imediata, inclusive às relações privadas. Como ensina
Marcelo Schenk Duque17, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais repousa na
necessidade de tutela da dignidade da pessoa humana e na aplicabilidade dos direitos e
garantias fundamentais, inclusive nas relações entre particulares.

Nessa perspectiva, os institutos do direito civil devem ser aplicados de


acordo com os direitos e garantias fundamentais, como exemplifica o precedente abaixo
colacionado do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO


BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM
GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a
direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das

16 CF/88, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: (...) § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
17 Nas palavras de Marcelo Schenk Duque: “Na doutrina pátria, a aceitação de uma eficácia direta dos direitos fundamentais

nas relações privadas ganhou espaço pelos escritos de Ingo Wolfgang Sarlet, sob o ponto de vista de que a eficácia direta dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares, estejam ou não em pé de igualdade, encontra fundamento junto ao
princípio da dignidade humana, já que na esfera desse conteúdo são, em tese, irrenunciáveis. Nessa linha Sarlet defende um
modelo de eficácia direta que denomina de prima facie, pelo fato de que as normas de direitos fundamentais não são
homogêneas, possuindo diversos graus de eficácia, com efeitos peculiares, razão pela qual, conquanto entenda que os
particulares estão diretamente vinculados aos direitos fundamentais, não há falar de uma vinculação ou de uma eficácia
direta de feições absolutas. Pondera, ainda, que se do mandamento de respeito à dignidade decorrem direitos subjetivos à sua
proteção pelo Estado e pelos particulares, haverá de se ter presente a circunstância de que, por força da dimensão
intersubjetiva da dignidade, fundamenta-se um dever geral de respeito por parte de todos os integrantes da comunidade para
com os demais.
Para além do argumento relacionado à proteção da dignidade humana, Sarlet recorre ao princípio da aplicabilidade direta das
normas constitucionais. Pondera que o fato de a Constituição Federal conter o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais, sem, contudo, fazer menção expressa tanto aos poderes públicos quanto às relações privadas, não permite
concluir que apenas os primeiros estariam abrangidos por esse princípio.” In:DUQUE, Marcelo Schenk. Direito privado e
constituição: drittwirkung dos direitos fundamentais, construção de um modelo de convergência à luz dos contratos de
consumo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas


relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito
privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela
Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes
públicos, estando direcionados também à proteção dos
particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS
ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não
conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à
revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos
postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da
Constituição da República, notadamente em tema de proteção
às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia
privada garantido pela Constituição às associações não está
imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram
o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A
autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem
jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com
desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente
aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da
vontade não confere aos particulares, no domínio de sua
incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as
restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja
eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares,
no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades
fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.
ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-
ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO
SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO
CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função
predominante em determinado âmbito econômico e/ou social,
mantendo seus associados em relações de dependência
econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de
espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de
Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a
estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para
determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de
seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem
qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do
devido processo constitucional, onera consideravelmente o
recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos
autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das
garantias constitucionais do devido processo legal acaba por
restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O
caráter público da atividade exercida pela sociedade e a
dependência do vínculo associativo para o exercício profissional
de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos

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direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao


contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.
(RE 201819, Relator(a): ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:
GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11-10-2005, DJ 27-
10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-
00209-02 PP-00821)

Logo, não há como dirimir a mais singela questão contratual envolvendo


direito do consumidor sem olvidar que a ordem econômica nacional está fundada no valor
social da livre iniciativa, e que, em um dos polos, há uma parte vulnerável que deve ser
protegida pelo Estado.

Salvo melhor juízo, o exame dos temas afetados ao presente incidente e a


fixação das teses respectivas devem partir dessa premissa, sob pena de se realizar um
julgamento em claro descompasso com a ordem constitucional atual e que, como
consequência, não atenderá às necessidades sociais vigentes.

Um Estado que tem como objetivo constitucional “construir uma sociedade


livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos” não pode permitir que os atores do
cenário econômico explorem e subjuguem, por intermédio do direito privado e,
especialmente, do direito contratual, os indivíduos vulneráveis da sociedade, como os
consumidores.

Feita essa ressalva inicial, passo ao exame dos temas afetados ao presente
incidente.

2.2. ANULABILIDADE DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO


CONSIGNADO POR VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO:

2.2.1. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS:

O tema em exame guarda direta correlação com a essência do contrato,


enquanto instituto típico do direito privado, e os princípios que lhe são inerentes. De

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sabença geral que os contratos, ao lado da lei, constituem fontes de obrigações18, tratando-
se de instrumentos reconhecidos pelo ordenamento jurídico visando, em síntese, à
constituição, à modificação e à extinção de direitos e obrigações19.

A compreensão tradicional do direito contratual remonta ao ideário da


Revolução Francesa - liberté, legalité, fraternité – e ao Estado liberal, encontrando sua
expressão jurídica no Código Napoleônico de 1804, caracterizado pelo individualismo
extremo, fruto da tutela exacerbada que conferiu à liberdade e à propriedade privada a
partir de uma concepção meramente formal da igualdade, na qual o contrato era o
instrumento apto à transmissão da propriedade e à circulação de riquezas das classes
nobres, vencidas com a derrocada do regime feudal e a queda da monarquia20.

18
Como ensina Arnaldo Rizzardo: “De modo geral, costuma-se classificar em três as fontes das obrigações: os contratos, as
declarações unilaterais de vontade e os atos ilícitos. Acrescenta-se mais uma quarta, que é a lei, a primeira e mais importante
das fontes. Ela disciplina, inclusive, as demais fontes, isto é, a formação dos contratos, a eficácia das declarações unilaterais da
vontade e a reparação pela prática de atos ilícitos. Neste sentido, é considerada a fonte única das obrigações, à qual se
submetem todas as demais, pois nela encontram a força coercitiva, o modo de ser, de existir e de se impor. É a lei que faz
decorrer do contrato a obrigação, porquanto ela o disciplina, lhe dá caráter jurídico, o sanciona e o garante. Aquelas
obrigações originadas da declaração unilateral da vontade também promanam da lei, que lhe concede eficácia plena.
Identificamos as provenientes de atos ilícitos, já que ordena ao culpado o dever de ressarcir, segundo os princípios da
responsabilidade civil. Considera-se fonte no sentido de fato humano que determina a relação causal da obrigação, relação
esta que se desdobra em contrato, em declaração unilateral de vontade e em ato ilícito. O primeiro constitui a mais rica, mais
comum e fecunda de todas as fontes dos direitos obrigacionais, de modo que ela não existe sem os efeitos que lhe atribui a lei,
em cuja observância estão constantemente interessados os bons costumes, a ordem pública, a ética, o interesse particular, o
respeito pelo prometido e o interesse coletivo.”. In: RIZZARDO, Arnaldo Contratos. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 2022.
19 Nas palavras de Maria Helena Diniz: “O contrato constitui uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou

plurilateral, dependendo, para a sua formação, do encontro da vontade das partes, por ser ato regulamentador de interesses
privados. Deveras, a essência do negócio jurídico é a autorregulamentação dos interesses particulares, reconhecida pela
ordem jurídica, que lhe dá força criativa. Num contrato, as partes contratantes acordam que se devem conduzir de
determinado modo, uma face da outra, combinando seus interesses, construindo, modificando ou extinguindo obrigações. O
contrato repousa na ideia de um pressuposto de fato querido pelos contraentes e reconhecido pela norma jurídica como base
do efeito jurídico perseguido. Seu fundamento é a vontade humana, desde que atue conforme à ordem jurídica.” In: DINIZ,
Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 3: teoria geral das obrigações contratuais e extracontratuais. 37ª ed.
São Paulo: Saraiva Educação; 2021.
20
Conforme Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A moderna concepção do contrato, como acordo de vontades por
meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico que a que se prendem, se esclarece à luz da ideologia individualista
dominante na época de sua cristalização e do processo econômico de consolidação do regime capitalista de produção. O
liberalismo econômico, a ideia basilar de que todos são iguais perante lei e devem ser igualmente tratados, e a concepção de
que o mercado de capitais e o mercado de trabalho devem funcionar livremente em condições, todavia, que favorecem a
dominação de uma classe sobre a economia considerada em seu conjunto, permitiram fazer-se do contrato o instrumento
jurídico por excelência da vida econômica. O Código Napoleônico de 1804 – grande código da Idade Moderna e o primeiro dos
códigos burgueses – associava o contrato à liberdade e o conectava, em um binômio indissolúvel, ao direito de propriedade
(categoria-chave do sistema jusprivatístico). O contrato seria o instrumento técnico-jurídico adequado de transferência da
riqueza das classes vencidas para a nova classe nascente. Mediante o igualitário acesso à propriedade – pela via do contrato -,
a propriedade se liberta dos pesos de origem feudal que impedem o seu uso capitalista, adentrando o bem no ciclo produtivo.
No Código Civil alemão de 1896 (BGB), a disciplina do contrato é organizada de forma distinta da organizada no code
Napoéon. Na Alemanha, a categoria do contrato é construída no interior e à sombra de uma categoria mais geral,
compreensiva do contrato e de outras figuras. Esta categoria é o negócio jurídico, elaborada pela escola de “Pandectística”.
Trata-se de um modelo abstrato, originalmente definido como “uma declaração de vontade dirigida a produzir efeitos
jurídicos”. Na base desta ideia, acolhida pelos pensamentos jusnaturalista e iluminista, cristaliza-se o “dogma da vontade”,
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Essa concepção, porém, foi significativamente influenciada pela Revolução


Industrial, pela massificação das relações sociais e contratuais21 e pelos problemas sociais
que eclodiram no início do século XX e deram azo ao Estado do Bem-Estar Social (Welfare
State) e à positivação dos direitos fundamentais de 2ª dimensão, caracterizados pela marca
indelével da socialidade e da promoção do bem-estar social.

A mudança de paradigma pode ser facilmente percebida pela interpretação


do Código Civil de 2002, que possui como princípios norteadores a socialidade, a eticidade e

destinado a tutelar de modo mais intransigente a liberdade e a espontaneidade do querer de quem realiza o negócio. A teoria
do negócio jurídico representa formidável instrumento ideológico funcionalizado aos interesses da burguesia e ao capitalismo,
ao propor a igualização formal dos sujeitos jurídicos, ocultando a concreta posição econômico-social das partes.” In: FARIAS,
Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 10ª ed.
Salvador: JusPodium; 2020.
21 Pontua Sílvio de Salvo Venosa: “O consensualismo pressupõe igualdade de poder entre os contratantes. Esse ideal, na

verdade, nunca foi atingido. É evidente que o contrato essencialmente privado e paritário ocupa hoje parcela muito pequena
do mundo negocial, embora não tenha desaparecido. É o contrato de quem adquire o cavalo do vizinho; o automóvel usado
anunciado pelo atual proprietário no jornal; uma peça de antiguidade exposta por um colecionador; ou quem contrata os
serviços de alimentação de uma quituteira que trabalha autonomamente; do mágico que anima festas infantis etc. Mesmo
esses pequenos prestadores de serviços se inserem hoje no campo da empresa, ainda que como microempresários. Como
podemos perceber, a atual dinâmica social relega a plano secundário esse contrato. Cada vez mais raramente, contrata-se
com uma pessoa física. A pessoa jurídica, a empresa, pequena, média ou grande, e os grandes e pequenos detentores de
capital enfim, o próprio Estado são os que fornecem os bens e serviços para o consumidor final. Os contratos são negócios de
massa. O mesmo contrato, com idênticas cláusulas, é imposto a número indeterminado de pessoas que necessitam de certos
bens ou serviços. Não há outra solução para a economia de massa e para a sociedade de consumo.(...) A sociedade
contemporânea, de outro lado, é imediatista e consumista. OS bens e serviços são adquiridos para serem prontamente
utilizados e consumidos. Rareiam os bens duráveis. As coisas tornam-se descartáveis. A economia de massa é levada pela
mídia dos meios de comunicação. O que tem valor hoje não o terá amanhã e vice-versa. Nesse contexto, cumpre ao jurista
analisar a posição do contratante individual, aquele que é tratado como “consumidor”, o qual consegue, na sociedade
capitalista, ser ao mesmo tempo a pessoa mais importante e, paradoxalmente, mais desprotegida na relação negocial.(...)
Nesse diapasão, ao contrário do que inicialmente possa parecer, o contrato, e não mais a propriedade, passa a ser o
instrumento fundamental do mundo negocial, da geração de recursos e da propulsão da economia. É certo que se trata de um
contrato sob novas roupagens, distante daquele modelo clássico, mas se trata, sem sombra de dúvida, de contrato. Por
conseguinte, nesse momento histórico, não podemos afirmar que o contrato esteja em crise, estritamente falando, nem que a
crise seja do direito privado. A crise situa-se na própria evolução da sociedade, nas transformações sociais que exigem do
jurista respostas mais rápidas. O sectarismo do direito das obrigações tradicional é colocado em choque. O novo direito
privado exige do jurista e do juiz soluções prontas e adequadas aos novos desafios da sociedade. Daí por que se torna
importante a referência ao interesse social no contrato. E o direito das obrigações, e em especial o direito dos contratos, que
durante tantos séculos se manteve avesso a modificações de seus princípios, está a exigir reflexões que refogem aos dogmas
clássicos. Nesse cenário, este Código procura inserir o contrato como mais um elemento de eficácia social, trazendo a ideia
básica de que o contrato deve ser cumprido não unicamente em prol do credor, mas como benefício da sociedade.(...) Quando
se cuida de sociedade dinâmica, o perfil da geração de recursos já é determinado não mais pela propriedade, mas pela
empresa. No mundo atual, a empresa imiscui-se na vida de cada indivíduo. Os processos econômicos explodem com pequeno
espaço temporal nos vários países. Com o esfacelamento do mundo comunista, a atual época transcende a tudo que se podia
imaginar com relação à nova sociedade. Uns com mais, outros com menos vigor, todos querem inserir-se no contesto da
produção e consumo da empresa. Não há mais fronteiras para o capital. Abastado é aquele que consegue produzir e consumir.
Pobre será aquele que não produz e não consome! À empresa, pouco interessando as barreiras representadas pelas fronteiras
geográficas ou políticas, interessa que todos consumam. À empresa, pequena, média ou grande, nacional ou multinacional,
interessa que todos possam participar de sua atividade: que todos possam consumir, enfim, contratar”. In: VENOSA, Sílvio de
Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Código Civil interpretado. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2019.
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22
a operabilidade . Para lograr tal conclusão, basta a leitura do art. 421, recentemente
alterado pela Lei nº 13.874/19, e do art. 425 do CC, in verbis:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da


função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de
2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão
o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão
contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas


as normas gerais fixadas neste Código.

Como se observa, a liberdade contratual está expressamente limitada pela


função social do contrato, o que não poderia ser diferente à luz da função social da
propriedade, da dignidade da pessoa humana, do valor social da livre iniciativa e da justiça
social positivada nos arts. 1º, 3º, 5º e 170 da CF/88.

Ao discorrer sobre a função social do contrato, Maria Helena Diniz23


esclarece tratar-se de princípio geral de direito que atenua a autonomia privada, cuja
concreção autoriza o magistrado fazer valorações de cunho social, jurídico, moral ou
econômico no caso concreto:

Princípio da socialidade como limitação à liberdade contratual. A


liberdade contratual não é absoluta, pois está limitada não só
pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe
seja contrária e aos bons costumes, de forma que a vontade dos

22 Carlos Roberto Gonçalves sustenta que: “O Código Civil de 2002 tem, como princípios básicos, os da socialidade, eticidade e
operabilidade. O princípio da socialidade reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do
valor fundamental da pessoa humana. Com efeito, o sentido social é uma das características mais marcantes do novo diploma,
em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Beviláqua. Há uma convergência para a realidade
contemporânea, com a revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do direito privado tradicional, como
enfatiza Miguel Reale: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador. Essa adaptação passa pela
revolução tecnológica e pela emancipação plena da mulher, provocando a mudança do “pátrio poder” para o “poder familiar”,
exercido em conjunto por ambos os cônjuges, em razão do casal e da prole. Passa também pelo novo conceito de posse (posse-
trabalho ou pro labore), atualizado em consonância com os fins sociais da propriedade, em virtude do qual o prazo da
usucapião é reduzido, conforme o caso, se os possuidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado
investimento de interesse social e econômico. O princípio da eticidade funda-se no valor da pessoa humana como fonte de
todos os demais valores. Prioriza a equidade, a boa-fé, a justa causa e demais critérios éticos. Confere maior poder ao juiz para
encontrar a solução mais justa ou equitativa. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como
base ética de todo o direito obrigacional. (...) O princípio da operabilidade, por fim, leva em consideração que o direito é feito
para ser efetivado, para ser executado. Por essa razão, o novo Código evitou o bizantino, o complicado, afastando as
perplexidades e complexidades. Exempli desse posicionamento, dentre muitos outros, encontra-se na adoção de critério
seguro para distinguir prescrição de decadência, solucionando, assim, interminável dúvida.” GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva; 2015.
23 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15ª ed. São Paulo: Saraiva; 2010.

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contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas


também pela função social do contrato, que o condiciona ao
atendimento do bem comum e dos fins sociais.
Consequentemente, o órgão judicante, ante o caso sub judice,
para delimitar a função social do contrato, poderá fazer
aferições valorativas de ordem social, jurídica, moral ou
econômica. Consagrado está o princípio da socialidade. Repelido
está o individualismo, e os contratantes deverão sujeitar sua
vontade às normas de ordem pública, que fixam os interesses da
coletividade e as bases jurídicas fundamentais em que repousam
a ordem econômica e moral da sociedade e os bons costumes,
relativos à moralidade social. O art. 421 é um princípio geral de
direito, ou seja, uma norma que contém cláusula geral. A “função
social do contrato” prevista no art. 421 do Código Civil constitui
cláusula geral, que impõe a revisão do princípio da relatividade
dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela
externa do crédito; reforça o princípio de conservação do
contrato, assegurando trocas úteis e justas e não elimina o
princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance
desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou
interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.

Em igual medida, o princípio da função social exige que os contratos sejam


interpretados não só de acordo com os interesses das partes contratantes, mas de acordo
com a realidade social, econômica e jurídica que as circunda, atenuando, dessa forma, o
rigor do pacta sunt servanda, como didaticamente pontua Flávio Tartuce24. Lembre-se que
a função social da propriedade e dos contratos constitui preceito de ordem pública
incorporado ao Código Civil de 2002 pelo art. 2.03525, parágrafo único, razão pela qual se
sobrepõe aos interesses privados.

24
Sustenta Flávio Tartuce: “Conceitua-se o regramento em questão como um princípio de ordem pública - art. 2.035,
parágrafo único, do Código Civil -, pelo qual o contrato deve ser necessariamente, interpretado e visualizado de acordo de
acordo com o contexto da sociedade. A palavra função social deve ser visualizada com o sentido de finalidade coletiva, sendo
efeito do princípio em questão a mitigação ou a relativização da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), na
linha de se possível a intervenção do Estado nos contratos, especialmente nos casos de abuso ou de excessos de uma parte
perante outra. Nesse contexto, o contrato não pode ser visto como uma bolha, que isola as partes do meio social.
Simbolicamente, a função social funciona como uma agulha, que fura a bolha, trazendo uma interpretação social dos pactos.
Não se deve mais interpretar os contratos somente de acordo com aquilo que foi assinado pelas partes, mas sim levando-se
em conta a realidade social que os circunda. Na realidade, à luz da personalização e constitucionalidade do Direito Civil, pode-
se afirmar que a real função do contrato não somente é a segurança jurídica, mas sim atender aos interesses da pessoa
humana.”. In: TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 13ª ed. Rio de Janeiro: Método; 2023.
25 CC/02, Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código,

obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código,
aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por
este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
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Por essa razão, ao apreciar os temas submetidos a este incidente, é


necessário ter presente a realidade social dos consumidores que celebram contratos de
cartão de crédito consignado – em sua maioria hipervulneráveis, diga-se de passagem -,
bem como os efeitos nocivos que negociações dessa natureza, quando celebradas ao
arrepio do ordenamento jurídico, geram ao meio social.

Considerando as limitações impostas pela função social à liberdade


contratual, Flávio Tartuce26 anota que a noção de autonomia da vontade foi substituída
pela noção de autonomia privada. A respeito da incidência do princípio da função social ao
direito contratual, cito precedente do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO


RECURSO ESPECIAL. DECISÃO PROFERIDA SINGULARMENTE PELO
RELATOR. POSSIBILIDADE. ART. 557 DO CPC. ENSINO SUPERIOR.
CONTRATO DE CRÉDITO EDUCATIVO. FINALIDADE SOCIAL.
EXEGESE PECULIAR DAS SUAS DISPOSIÇÕES. MULTA CONTRATUAL
DE 10% NOS CASOS DE INADIMPLEMENTO. PERCENTUAL
DEMASIADAMENTE ONEROSO. EXCESSO. POSIÇÃO DOMINANTE.
INFRINGÊNCIA DE REGRAS PADRONIZADAS DO SISTEMA DE

26
Nas palavras de Flávio Tartuce: “Filia-se à parcela da doutrina que propõe a substituição do velho e superado princípio da
autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada, o que leva ao caminho sem volta da adoção do princípio da
função social dos contratos. A existência dessa substituição é indeclinável, pois, nos dizeres de Fernando Noronha “foi
precisamente em consequência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções
voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência à mais antiga autonomia da
vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a
autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante. (...) Essa diferenciação entre
autonomia da vontade e autonomia privada é precisa, reforçando a tese da superação da primeira. Ora, não há dúvida de que
a vontade perdeu a importância que exercia no passado para a formação dos contratos. Outros critérios entram em cena para
a concretização prática do instituto, como a boa-fé e a função social e econômica dos negócios jurídicos em geral. Concluindo,
à luz da personalização do Direito Privado, pode-se afirmar, na esteira da melhor doutrina espanhola que a autonomia não é
da vontade, mas da pessoa humana. Não se pode esquecer que o principal campo de atuação do princípio da autonomia
privada é o patrimonial, onde se situam os contratos como ponto central do Direito Privado. Esse princípio traz limitações
claras, principalmente relacionadas com a formação e reconhecimento da validade dos negócios jurídicos. A eficácia social
pode ser apontada como uma dessas limitações, havendo clara relação entre o preceito aqui estudado e o princípio da função
social dos contratos. Porém, é importante deixar claro que a função social não elimina totalmente a autonomia privada ou a
liberdade contratual, mas apenas atenua ou reduz o alcance desse princípio. Esse é o teor citado do Enunciado n. 23 do
CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, um dos mais importantes enunciados entre todos os aprovados nas Jornadas de
Direito Civil, que merece mais uma vez transcrição:(...).“A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,
não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses
metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.(...) O contrato de hoje é constituído por uma
soma de fatores, e não mais pela vontade pura dos contratantes, delineando-se o significado do princípio da autonomia
privada, pois outros elementos de cunho particular irão influenciar o conteúdo do negócio jurídico patrimonial. Na formação
do contrato, muitas vezes, percebe-se a imposição de cláusulas pela lei ou pelo Estado, o que nos leva ao caminho sem volta
da intervenção estatal nos contratos ou dirigismo contratual, quando esta for necessária, notadamente nos casos de abuso
contratual, tão comuns no Brasil. Como exemplo dessa ingerência estatal ou legal, pode-se citar o Código de Defesa do
Consumidor e mesmo o Código Civil de 2002, que igualmente determina a nulidade absoluta de cláusulas tidas como
abusivas.”. In: TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 13ª ed. Rio de Janeiro: Método; 2023.
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PROTEÇÃO DO EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO. AGRAVO


REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Nos termos do art. 557, é facultado ao Relator negar
seguimento a recurso manifestamente inadmissível,
improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou
jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo
Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.Assim, atendida uma das
condições previstas, pode o julgador negar seguimento ao
recurso, em apreço à celeridade dos julgamentos e ao princípio da
efetividade do processo.
2. Ademais, eventual impropriedade processual da decisão
monocrática fica superada, uma vez instado o órgão colegiado a
se pronunciar em sede de Agravo Regimental.
3. O Contrato de Crédito Educativo, dada a elevada finalidade
nitidamente social da sua instituição, não deve ser interpretado
sem levar-se em conta a sua especificidade, como se fosse uma
relação financeira comum, por isso que a sua compreensão
assimila as regras que servem de padrão ao sistema de proteção
ao equilíbrio das relações de crédito, em proveito da preservação
de sua teleologia.
4. Embora a jurisprudência desta Corte Superior seja no sentido da
não-aplicação do CDC aos Contratos de Crédito Educativo, não se
deve olvidar a ideologia do Código Consumerista consubstanciada
no equilíbrio da relação contratual, partindo-se da premissa da
maior vulnerabilidade de uma das partes. O CDC, mesmo não
regendo diretamente a espécie sob exame, projeta luz na sua
compreensão. Neste caso, o CDC foi referido apenas como
ilustração da orientação jurídica moderna, que valoriza o
equilíbrio entre as partes da relação contratual, porquanto essa
diretriz está posta hoje em dia, no próprio Código Civil.
5. Vale dar destaque as normas insertas nos arts. 421 e 422 do
CC, as quais tratam, respectivamente, da função social do
contrato e da boa-fé objetiva. A função social apresenta-se
hodiernamente como um dos pilares da teoria contratual. É um
princípio determinante e fundamental que, tendo origem na
valoração da dignidade humana (art. 1o. da CF), deve
determinar a ordem econômica e jurídica, permitindo uma visão
mais humanista dos contratos que deixou de ser apenas um
meio para obtenção de lucro.
6. Da mesma forma, a conduta das partes contratantes deve ser
fundada na boa-fé objetiva, que, independentemente do
subjetivismo do agente, as partes contratuais devem agir
conforme o modelo de conduta social, geralmente aceito
(consenso social), sempre respeitando a confiança e o interesse
do outro contratante.
7. Tratando-se no caso dos autos de Contrato de Crédito
Educativo e levando-se em conta a elevada finalidade social da
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sua instituição, mostra-se desarrazoada uma multa contratual no


valor de 10%.
8. Agravo Regimental do Estado do Rio Grande do Sul desprovido.
(AgRg no REsp n. 1.270.314/RS, relator Ministro Napoleão Nunes
Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 25/2/2014, DJe de
13/3/2014.)

Partindo da premissa de que o contrato, fruto da manifestação da vontade,


constitui instrumento de interesse social e no qual deve haver a convergência e a
compatibilização de interesses, o Código Civil de 2002, orientado pelo princípio da eticidade
que deve permear as relações civis, impôs às partes contratantes, no art.422, o dever de
boa-fé tanto na conclusão como na execução do contrato, in verbis:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na


conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.

Segundo Maria Helena Diniz27, o princípio da boa-fé objetiva impõe às


partes o dever de “agir com lealdade, honestidade, honradez, probidade (integridade de
caráter), denodo e confiança recíprocas, isto é, proceder com boa-fé, esclarecendo os fatos
e o conteúdo das cláusulas, procurando o equilíbrio nas prestações, respeitando o outro
contratante, não traindo a confiança depositada, procurando cooperar, evitando o
enriquecimento indevido, não divulgando informações sigilosas etc”. Para a autora, a boa-fé
“é uma norma que requer o comportamento leal e honesto dos contratantes, sendo
incompatível com quaisquer condutas abusivas, tendo por escopo gerar na relação
obrigacional a confiança necessária e o equilíbrio das prestações e da distribuição dos riscos
e encargos, ante a proibição do enriquecimento sem causa”.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald28 pontuam que a boa-fé a


que alude o art. 422 do CC é a objetiva, consubstanciada em um padrão de comportamento

27 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 3: teoria geral das obrigações contratuais e extracontratuais.
37ª ed. São Paulo: Saraiva Educação; 2021.
28 Ensinam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “Em sentido diverso, o princípio da boa-fé objetiva – localizado no

campo dos direitos das obrigações - é o objeto de nosso enfoque. Trata-se da “confiança adjetivada”, uma crença efetiva no
comportamento alheio. O princípio compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou
regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões de lisura, honestidade e
correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte.(...) O grande desafio relacionado ao princípio da boa-fé
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ético-social caracterizado, em síntese, pela lisura, pela honestidade e pela correção que se
espera das partes contratantes, e cuja concreção varia de acordo com as situações
peculiares dadas a conhecer no caso concreto. Com efeito, os autores29 sustentam que,
conforme interpretação conjunta dos arts. 113, 187 e 422 do CC, a boa-fé objetiva possui
tríplice função, qual seja, interpretativa, integrativa e de controle.

Logo, não seria equivocado afirmar que o princípio da boa-fé, ao lado do


princípio da função social do contrato, constitui valioso instrumento de controle colocado à
disposição do juiz para, à luz do caso concreto, decotar excessos cometidos pelas partes
contratantes no exercício da liberdade contratual e da autonomia privada.

Como decorrência lógica do padrão ético de conduta que deve ser


observado em todas as fases contratuais, a boa-fé objetiva também impõe às partes a
observância aos deveres anexos de proteção, de cooperação ou lealdade e de
esclarecimento ou informação. O dever de proteção, por óbvio, consiste em proteger a
parte ex adversa dos riscos e danos que podem resultar à sua pessoa e ao seu patrimônio
na vigência do contrato. O dever de cooperação ou lealdade consiste na abstenção de

concerne à sua mais exata concreção. A sua valoração terá em conta as circunstâncias objetivas do caso, plenamente
apreciado em suas particularidades. Ela é, portanto, adaptável e proteiforme, uma vez que o seu conteúdo será aferido por
juízos valorativos animados pelo tempo, pelo espaço e pelas pessoas que figuram na relação. Propicia o alargamento do
horizonte contratual, extravasando o perímetro da relação e dos fatores situacionais que só a ela respeitam, para se estender
aos dados estruturais que a condicionam e modelas. Portanto, é evidente que em cotejo com a autonomia privada, o peso da
boa-fé cresça à medida em que a assimetria das partes se evidencia (v.g. contrato de adesão), ou que o bem jurídico em jogo
possua caráter essencial (v.g. contrato educacional) - e não meramente supérfluo - e também nas relações contratuais
continuadas, formadas por instrumentos contratuais sucessivos (v.g. seguro de vida).” In: FARIAS, Cristiano Chaves de;
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 10ª ed. Salvador: JusPodium; 2020.
29 Sustentam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A boa-fé funciona como modelo capaz de nortear o teor geral da

colaboração intersubjetiva. Determina que o direito contratual deva ser controlado, e o exercício do poder limitado, de modo a
se atingir em parâmetro de decência. A profícua sistematização da boa-fé requer a sua divisão em três setores operativos
aptos a expor a sua multifuncionalidade. Em qualquer das três funções, residirá um confronto entre a atividade judicial de
aplicação do princípio e direito positivado na norma:
(a) função interpretativa – o art. 113 do Código Civil dispõe que os negócios jurídicos devem ser interpretados de acordo com a
boa-fé. O magistrado não apelará a uma interpretação literal do texto contratual, mas observará o sentido correspondente às
convenções sociais ao analisar a relação obrigacional que lhe é submetida.
(b) função integrativa – como estabelecido no 422, as partes devem guardar, tanto nas negociações que antecedem o contrato
como durante a execução deste, o princípio da boa-fé. Aqui prosperam os deveres de proteção e cooperação com os interesses
da outra parte – deveres anexos ou laterais -, o que propicia a realização positiva do fim contratual, na tutela aos bens e à
pessoa da outra parte, estendendo-se às fases pré e pós-contratual.
(c) função de controle – declara o art. 187 do novo Código Civil que comete ato ilícito que, ao exercer o seu direito, exceder
manifestamente os limites impostos pela boa-fé. O princípio atua como máxima de conduta ético-jurídica. O problema aqui
posto é do abuso do direito. O juiz poderá decidir além da lei, observando os limites sociais dos direitos subjetivos privados em
contraposição ao problema intersubjetivo dos limites da pretensão perante o sujeito passivo desta.”. In: FARIAS, Cristiano
Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 10ª ed. Salvador:
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condutas que possam frustrar a execução do negócio jurídico ou desequilibrar a relação


contratual. Já o dever de informação ou de esclarecimento, que permeia a relação
contratual em todas as suas etapas, relaciona-se ao fornecimento de todos os dados e
informações de que a parte adversa necessita para a celebração do contrato mediante
consentimento suficientemente esclarecido30.

A ilustrar a aplicação dos deveres anexos da boa-fé objetiva, cito


precedente do Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL E EMPRESARIAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO


CONTRATUAL. FRANQUIA. BOA-FÉ OBJETIVA. ART. 422 DO CC/02.
DEVERES ANEXOS. LEALDADE. INFORMAÇÃO. DESCUMPRIMENTO.
FASE PRÉ-CONTRATUAL. EXPECTATIVA LEGÍTIMA. PROTEÇÃO.
PADRÕES DE COMPORTAMENTO (STANDARDS). DEVER DE
DILIGÊNCIA (DUE DILIGENCE). HARMONIA. INADIMPLEMENTO.
CONFIGURAÇÃO. PROVIMENTO.
1. Cuida-se de ação de resolução de contrato de franquia
cumulada com indenização de danos materiais, na qual se alega
que houve descumprimento do dever de informação na fase pré-
contratual, com a omissão das circunstâncias que permitiriam ao
franqueado a tomada de decisão na assinatura do contrato, como
o fracasso de franqueado anterior na mesma macrorregião.
2. Recurso especial interposto em: 23/10/2019; conclusos ao
gabinete em: 29/10/2020; aplicação do CPC/15.
3. O propósito recursal consiste em definir se a conduta da
franqueadora na fase pré-contratual, deixando de prestar
informações que auxiliariam na tomada de decisão pela
franqueada, pode ensejar a resolução do contrato de franquia por
inadimplemento 4. Segundo a boa-fé objetiva, prevista de forma
expressa no art. 422 do CC/02, as partes devem comportar-se de
acordo com um padrão ético de confiança e de lealdade, de modo
a permitir a concretização das legítimas expectativas que
justificaram a celebração do pacto.
5. Os deveres anexos, decorrentes da função integrativa da boa-
fé objetiva, resguardam as expectativas legítimas de ambas as
partes na relação contratual, por intermédio do cumprimento de
um dever genérico de lealdade, que se manifesta
especificamente, entre outros, no dever de informação, que
impõe que o contratante seja alertado sobre fatos que a sua
diligência ordinária não alcançaria isoladamente.(...)
9. O princípio da boa-fé objetiva já incide desde a fase de
formação do vínculo obrigacional, antes mesmo de ser celebrado
o negócio jurídico pretendido pelas partes. Precedentes.

30FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 10ª
ed. Salvador: JusPodium; 2020.
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10. Ainda que caiba aos contratantes verificar detidamente os


aspectos essenciais do negócio jurídico (due diligence),
notadamente nos contratos empresariais, esse exame é pautado
pelas informações prestadas pela contraparte contratual, que
devem ser oferecidas com a lisura esperada pelos padrões
(standards) da boa-fé objetiva, em atitude cooperativa.
11. O incumprimento do contrato distingue-se da anulabilidade do
vício do consentimento em virtude de ter por pressuposto a
formação válida da vontade, de forma que a irregularidade de
comportamento somente é revelada de forma superveniente;
enquanto na anulação a irregularidade é congênita à formação do
contrato.
12. Na resolução do contrato por inadimplemento, em
decorrência da inobservância do dever anexo de informação, não
se trata de anular o negócio jurídico, mas sim de assegurar a
vigência da boa-fé objetiva e da comutatividade (equivalência) e
sinalagmaticidade (correspondência) próprias da função social do
contrato entabulado entre as partes.
12. Na hipótese dos autos, a moldura fática delimitada pelo
acórdão recorrido consignou que: a) ainda na fase pré-contratual,
a franqueadora criou na franqueada a expectativa de que o
retorno da capital investido se daria em torno de 36 meses; b)
apesar de transmitir as informações de forma clara e legal, o fez
com qualidade e amplitude insuficientes para que pudessem
subsidiar a correta tomada de decisão e as expectativas corretas
de retornos; e c) a probabilidade de que a franqueada recupere o
seu capital investido, além do caixa já perdido na operação até o
final do contrato, é mínima, ou quase desprezível.
11. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.862.508/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,
relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 24/11/2020, DJe de 18/12/2020.)

Veja-se que os efeitos da boa-fé também se fazem sentir nas disposições


legais relativas aos contratos de adesão, nos quais as cláusulas contratuais devem ser
interpretadas em benefício do aderente, isto é, daquele que não participou da sua
elaboração, conforme previsão dos arts. 423 e 424 do CC:

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas


ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação
mais favorável ao aderente.

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que


estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante
da natureza do negócio.
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De forma acertada, Maria Helena Diniz31 assevera que “Todos os princípios


contratuais estão ligados ao do respeito e proteção à dignidade humana (CF, art. 1º, III),
dando tutela jurídica aos contratantes para que se efetivem a função social da propriedade
(CC, art. 1.118), a do contrato (CC, art. 421) e a justiça social (CF, art. 170)”.

Nesse contexto, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald32 pontuam


que incumbe ao juiz, à luz das circunstâncias do caso concreto, concretizar os princípios da
função social do contrato e da boa-fé e, se necessário, invalidá-lo, resolvê-lo, retirar a sua
eficácia ou interpretá-lo para que, decotados os excessos, cumpra com a sua função social:

Além das normas imperativas que concretizam diretamente a


ordem pública constitucional, a liberdade contratual é também
modelada pela concreção por intermédio do juiz quando se
aplicam as cláusulas gerais. Nelas, como a equidade, a ordem
pública ou os bons costumes, a determinação do regulamento
contratual se reconduz fundamentalmente à atividade valorativa
do juiz.
Ao laborar com normas imperativas reveladas por cláusulas gerais
como as da função social do contrato (art. 421, CC), da boa-fé
(art. 422, CC), e do equilíbrio contratual (art. 428), CC), promove-
se a concretização da ordem pública constitucional pela
conformação do útil ao justo. Exemplificando, verificando o
magistrado que um negócio jurídico não atende à cláusula geral
da função social (art. 422), poderá, conforme as circunstâncias,
invalidar o negócio jurídico (art. 2.035, parágrafo único, CC),
retirar parte da sua eficácia, aplicar a resolução (art. 478, CC) ou
mesmo apenas interpretá-lo de forma a cumprir a sua função
social.

O exame da anulabilidade dos contratos de cartão de crédito consignado


perpassa, necessariamente, pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, que se
sobrepõem sobre o rigor do pacta sunt servanda, devendo-se aferir eventuais abusos no
exercício da liberdade contratual que impliquem em prejuízo à dignidade e ao patrimônio

31 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 3: teoria geral das obrigações contratuais e extracontratuais.
37ª ed. São Paulo: Saraiva Educação; 2021.
32 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 10ª

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da parte vulnerável da relação contratual e tenham como finalidade precípua favorecer a


parte mais forte.

A celebração de contratos de cartão de crédito mediante violação ao dever


de informação, em última análise, fere os princípios da função social dos contratos e da
boa-fé objetiva, bem como os deveres que lhe são anexos, cabendo ao Poder Judiciário
exercer o necessário controle por intermédio deste incidente de resolução de demandas
repetitivas.

2.2.2. VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR, BOA-FÉ E DIREITO DE


INFORMAÇÃO À LUZ DO CDC:

A retrospectiva anteriormente realizada demonstra que o Código de Defesa


do Consumidor é fruto da preocupação do legislador constituinte com a dignidade da
pessoa humana, a igualdade material, a função social da propriedade, a justiça social, a
desigualdade social e a solidariedade. A sistematização das normas protetivas do
consumidor, como visto, está intrinsecamente relacionada aos direitos fundamentais de 2ª
e 3ª dimensão que, amparados na noção de socialidade e solidariedade, remetem à
necessidade de tutela dos grupos sociais vulneráveis.

Sua criação foi determinada pelo próprio constituinte, que nos arts. 5º,
XXXII, da CF/88, determinou que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor”, e do art. 4833 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o que
demonstra o compromisso da Constituição Federal com a efetivação dos direitos e
garantias fundamentais e com a promoção da dignidade da pessoa humana, da igualdade
material e da justiça social, e, em última análise, com o bem-estar social.

Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe


Bessa34 afirmam que o Direito do Consumidor constitui disciplina transversal do direito

33 ADCT, Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de
defesa do consumidor.
34 Susntentam Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa: “O chamado direito do

consumidor é um ramo novo do direito, disciplina transversal entre o direito privado e o direito público, que visa proteger um
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brasileiro - justamente porque transita tanto no direito privado quanto no direito público -
caracterizado pela natureza tutelar (protetiva) e social. Sustentam que “a proteção do
consumidor é um valor constitucional da ordem econômica da Constituição Federal (art.
170, V), princípio limitador da autonomia da vontade dos fortes em relação aos fracos ou
vulneráveis (debilis), construindo um novo direito privado mais consciente de sua função
social”35.

Nessa perspectiva, o Código de Defesa do Consumidor, conforme previsto


em seu art. 1º, estabeleceu “normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública
e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal
e art. 48 de suas Disposições Transitórias”.

Embora seja de sabença geral, não custa lembrar que o Código de Defesa
do Consumidor se aplica às instituições financeiras, especialmente em relação a contratos
de empréstimo consignado e de cartão de crédito consignado, na medida em que as partes
contratantes amoldam-se aos conceitos legais de consumidor e fornecedor positivados
pelos arts. 2º36 e 3º37. Ademais, há muito o Superior Tribunal de Justiça definiu, por

sujeito de direitos, o consumidor, em todas as suas relações jurídicas frente ao fornecedor, um profissional, empresário ou
comerciante.(...) O ordenamento jurídico brasileiro é um sistema, um sistema ordenado de direito positivo. Sob essa ótica
sistemática, o direito do consumidor é um reflexo do direito constitucional de proteção afirmativa dos consumidores (art. 5º,
XXXI, e art. 170, V, da CF/1988; art. 48 ADCT-CF/1988). (...) Note-se aqui a importância da Constituição brasileira de 1988 ter
reconhecido este novo sujeito de direito, o consumidor, individual e coletivo, e assegurado sua proteção consitucionalmente,
tanto como direito fundamental no art. 5º, XXXII, como princípio da ordem econômica nacional no art. 170, V, da CF/1988. Em
outras palavras, a Constituição Federal de 1988 é a origem da codificação tutelar dos consumidores no Brasil, pois no art. 48
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias encontra-se o mandamento (Gebot) para que o legislador ordinário
estabelecesse um Código de Defesa e Proteção do Consumidor, o que aconteceu em 1990. É a Lei 8.078, de 1990, que aqui será
chamada de Código de Defesa do Consumidor e abreviada por CDC. O direito do consumidor será, assim, o conjunto de normas
e princípios especiais que visam cumprir com este triplo mandamento constitucional: 1) de promover a defesa dos
consumidores (Art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de 1988:(....)); 2) de observar e assegurar como princípio geral da
atividade econômica, como princípio imperativo da ordem econômica constitucional, a necessária “defesa” do sujeito de
direitos “consumidor” (Art. 170 da Constituição Federal de 1988:(...)); e 3) de sistematizar e ordenar esta tutela especial
infraconstitucionalmente através de um Código (microcodificação) que reúna e organize as nomas tutelares, de direito privado
e público, com base na ideia de proteção do sujeito de direitos (e não da relação de consumo ou do mercado de consumo), um
código de proteção e defesa do “consumidor” (art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988:(...)).” In: Benjamin, Antônio Herman V.; Marques, Cláudia Lima; Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de direito
do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
35 Benjamin, Antônio Herman V.; Marques, Cláudia Lima; Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª ed.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.


36 CDC, Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas
relações de consumo.
37 CDC, Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes

despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
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intermédio da súmula nº 297, que “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às


instituições financeiras”.

Nessa toada, a proteção do consumidor está orientada pela Política


Nacional das Relações de Consumo, nos termos do art. 4º38, caput, do CDC, e tem como
objetivos “o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade,
saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade
de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”. Para tanto, o art.
4º, I e III, do CDC estabelecem como princípios fundamentais, dentre outros,
“reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” e a
“harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores”.

O "reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de


consumo” (art. 4º, I, do CDC) é pressuposto fundamental para a compreensão e aplicação

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza
bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
38
CDC, Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor
com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a
ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do
mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços,
assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e
utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar
prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
IX - fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores;
X - prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.
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das normas protetivas previstas no Código de Defesa do Consumidor, a fim de que, no


julgamento deste incidente, se concretize o mandamento constitucional positivado no art.
5º, XXXII, da CF/88. Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques Leonardo Roscoe
Bessa39 rememoram que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor está calcado
na necessidade de tutela da igualdade formal-material nas relações de consumo.

Conforme lição doutrinária de Bruno Miragem40, a vulnerabilidade associa-


se à posição de fraqueza ou de debilidade de um dos sujeitos em virtude de condições ou
qualidades que lhe são inerentes, relacionando-a ao fato de não possuir o poder de direção
da relação contratual:

A noção de vulnerabilidade no direito associa-se à identificação de


fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em
razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são
inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser
identificada no outro sujeito da relação jurídica. Neste sentido, há
possibilidade de sua identificação ou determinação a prori, in
abstracto, ou, ao contrário, a posteriori, in concreto, dependendo,
neste último caso, da demonstração da situação de
vulnerabilidade. A opção do legislador brasileiro, como já
referimos, foi pelo estabelecimento de uma presunção de
vulnerabilidade do consumidor, de modo que todos os
consumidores sejam considerados vulneráveis, uma vez que a
princípio não possuem o poder de direção da relação de consumo,
estando expostos a práticas comerciais dos fornecedores no
mercado.

39 Sustentam Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques Leonardo Roscoe Bessa: “Assim, conclui-se que, para
realizar a igualdade, como ideal do justo, o direito privado necessitava de um pouco de imperium ou da intervenção do
Estado, típica do direito público, da hierarquia de suas normas (normas de ordem pública) e da força igualizadora dos direitos
humanos. Em outras palavras, para realizar a igualdade material, era necessário também limitada a liberdade de alguns,
impor uma maior solidariedade no mercado (favor debilis) e assegurar direito imperativos (indisponíveis por vontade das
partes, direitos de ordem púbica) aos mais fracos. Era necessário valorizar as desigualdades, as diferenças de poder, de
informação, de especialização e de posição entre os sujeitos livres do mercado de consumo, e aplicar normas e princípios,
como a boa-fé, a função social da propriedade e dos contratos, que ajudassem a reequilibrar com equidade as situações
diferenciadas, como as de consumo. Em outras palavras, igualdade supõe uma comparação, um contexto, uma identificação
no caso, como na relação entre o leigo e o profissional, o consumidor e o fornecedor de produtos e serviços. A igualdade só
pode ser abordada sob o pondo de vista de uma comparação. Eis aqui o desafio maior do direito privado brasileiro atual, em
face da unificação do regime das obrigações civis e comerciais no Código Civil de 2002 e em face do mandamento
constitucional de discriminar positivamente e tutelar de forma especial os direitos dos consumidores (art. 5º, XXXII, da
CF/1988), também em suas relações civis. A igualdade perante a lei e a igualdade na lei só podem realizar-se hoje, no direito
privado brasileiro, se existir distinção entre fracos e fortes, entre consumidor e fornecedor, e se for efetivo um direito tutelar do
consumidor, daí a importância desta nova visão tripartite do direito privado, que é centrada na dignidade da pessoa humana e
na ideia de proteção do vulnerável, o consumidor.” In: Benjamin, Antônio Herman V.; Marques, Cláudia Lima; Bessa, Leonardo
Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
40 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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Nessa perspectiva, o autor identifica quatro espécies básicas de


vulnerabilidade que ensejam o desequilíbrio entre consumidor e fornecedor nas relações
de consumo, quais sejam, a técnica, a jurídica, a fática e a informacional:

A vulnerabilidade técnica do consumidor se dá em face da


hipótese na qual o consumidor não possui conhecimentos
especializados sobre o produto ou serviço que adquire ou utiliza
em determinada relação de consumo. O fornecedor, por sua vez,
presume-se que tenha conhecimento aprofundado sobre o
produto ou o serviço que ofereça.(...) O que determina a
vulnerabilidade, neste caso, é a falta de conhecimentos
específicos pelo consumidor e, por outro lado, a presução ou
exigência destes conhecimentos pelo fornecedor. (...)
A vulnerabilidade jurídica, a nosso ver, se dá na hipótese da
falta de conhecimentos, pelo consumidor, dos direitos e deveres
inerentes à relação de consumo que estabelece, assim, como a
ausência da compreensão sobre as consequências jurídicas dos
contratos que celebra. Cláudia Lima Marques denomina esta
espécie de vulnerabilidade de jurídica ou científica, incluindo a
ausência de conhecimentos em economia ou contabilidade pelo
consumidor, o que determina sua incapacidade de compreensão
das consequências efetivas das relações que estabelece sobre o
seu patrimônio.(...)
A vulnerabilidade fática é espécie ampla, que abrange,
genericamente, diversas situações concretas de reconhecimento
da debilidade do consumidor. A mais comum, neste caso, é a
vulnerabilidade econômica do consumidor em relação ao
fornecedor. No caso, a fraqueza do consumidor situa-se
justamente na falta dos mesmos meios ou do mesmo porte
econômico do consumidor (suponha-se um consumidor pessoa
natural, não profissional, contratando com uma grande rede de
supermercados, ou com uma empresa multinacional). Por outro
lado, a vulnerabilidade fática também abrange situações
específicas relativas a alguns consumidores. Assim, é vulnerável
faticamente, ou duplamente vulnerável, o consumidor-criança
ou o consumidor-idoso, os quais podem ser, em razão de suas
qualidades específicas (reduzido discernimento, falta de
percepção), mais suscetíveis aos apelos dos fornecedores.
Também neste caso, podemos indicar o consumidor-analfabeto, a
quem faltará, certamente, a possibilidade de pleno acesso a
informações sobre a relação de consumo que estabeleça. Ou o
consumidor-doente, que apresenta espécie de vulnerabilidade
fática especial em vista da sua situação de debilidade física (neste
caso, considere-se a relação entre o paciente e o médico, a
instituição hospitalar, ou ainda, o plano de saúde privado). Neste
sentido, depreende-se daí como subespécie, a vulnerabilidade
informacional, em que o acesso às informações do produto, e a
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confiança despertada em razão da comunicação e da


publicidade, colocam o consumidor em uma posição passiva e
sem condições, a priori, de atestar a veracidade dos dados, bem
como suscetível aos apelos do marketing dos fornecedores.

No mesmo sentido, Cláudia Lima Marques41 destaca a condição de


debilidade do consumidor não profissional ao celebrar contratos bancários, atrelando-a ao
dever de informação imposto ao fornecedor:

A vulnerabilidade fática é aquela desproporção fática de forças,


intelectuais e econômicas, que caracteriza a relação de
consumo. Já a vulnerabilidade jurídica ou científica foi identificada
e protegida pela corte suprema alemã, nos contratos de
empréstimo bancário e financiamento, afirmando que o
consumidor não teria suficiente “experiência ou conhecimento
econômico, nem a possibilidade de recorrer a um especialista”. É a
falta de conhecimentos jurídicos específicos, de conhecimentos
de contabilidade ou de economia. Esta vulnerabilidade, no
sistema do CDC, é presumida para o consumidor não profissional e
para o consumidor pessoa física. Quanto aos profissionais e às
pessoas jurídicas vale a presunção em contrário, isto é, que devem
possuir conhecimentos jurídicos mínimos e sobre a economia para
poderem exercer a profissão, ou devem poder consultar
advogados e profissionais especializados antes de obrigar-se.
Considere-se, pois, a importância desta presunção de
vulnerabilidade jurídica do agente consumidor (não profissional)
como fonte irradiadora de deveres de informação do fornecedor
sobre o conteúdo do contrato, em face hoje da complexidade da
relação contratual conexa e dos seus múltiplos vínculos cativos
(por exemplo, vários contratos bancários em um formulário,
vínculos com várias pessoas jurídicas em um contrato de planos
de saúde) e da redação clara deste contrato, especialmente o
massificado e de adesão.

De fato, a vulnerabilidade constitui conceito-chave para o julgamento deste


incidente, já que a realidade que se apresenta, não só na causa-piloto, mas nas demandas
individuais relacionadas à celebração de contratos de cartão de crédito consignado, está
marcada pela clara disparidade entre o consumidor pessoa física - não raras vezes pessoas
idosas, de baixa renda, que auferem benefícios previdenciários módicos, desprovidas de

41MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do
Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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conhecimentos jurídicos, financeiros e econômicos - e o fornecedor, in casu, as instituições


financeiras.

De lembrar que os idosos são duplamente vulneráveis, ou hipervulneráveis,


pelo fato de se tratar de pessoas em estado de fragilidade física e intelectual, como deflui
da interpretação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/03. Por essa razão, a promoção e a
defesa dos seus interesses devem ser ainda mais intensas, já que receberam especial
atenção do legislador constituinte no art. 23042 da CF/88. Bruno Miragem43 esclarece que a
hipervulnerabilidade do consumidor idoso reside na redução das suas capacidades físicas e
mentais, o que dificulta o trato negocial com o fornecedor, e na necessidade de produtos e
serviços de natureza cativa:

A vulnerabilidade do consumidor idoso é demonstrada a partir


de dois aspectos principais: a) a diminuição ou perda de
determinadas aptidões físicas ou intelectuais que o torna
suscetível e débil em relação à atuação negocial de
fornecedores; b) a necessidade e catividade em relação a
determinados produtos ou serviços no mercado de consumo que
o coloca numa relação dependência em relação aos seus
fornecedores.
Em relação ao primeiro aspecto assinalado, note-se que as
mesmas regras de proteção da criança e do adolescente se
projetam também para a proteção do consumidor idoso. Isto
porque a publicidade que se aproveita da deficiência da
compreensão do idoso, ou ainda aproveita de qualquer modo esta
condição, para impingir-lhe produtos e serviços - mesmo sem
expressa indicação na norma - é qualificada como espécie de
publicidade abusiva, uma vez que desrespeita valores éticos
socialmente reconhecidos. Igualmente, a mesma regra do art. 39,
IV, que classifica como prática abusiva a conduta do fornecedor
que busca prevalecer-se do consumidor em razão - dentre outros
critérios - de sua idade tem aplicação na proteção do idoso.(...)
Em relação ao segundo aspecto distintivo da vulnerabilidade do
consumidor idoso, é evidente que uma maior necessidade em
relação a produtos ou serviços de parte do idoso faz presumir que
eventual inadimplemento por parte do fornecedor dê causa a
danos mais graves do que seriam de se indicar aos consumidores
em geral.

42 CF/88, Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação
na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
§ 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.
§ 2º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.
43 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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Com efeito, a hipervulnerabilidade do consumidor idoso tem sido


reconhecida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme precedente
abaixo colacionado:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL NOS


EMBARGOS INFRINGENTES. PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE DA
DEFENSORIA PÚBLICA PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL
PÚBLICA EM FAVOR DE IDOSOS. PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE EM
RAZÃO DA IDADE TIDO POR ABUSIVO. TUTELA DE INTERESSES
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFESA DE NECESSITADOS, NÃO SÓ
OS CARENTES DE RECURSOS ECONÔMICOS, MAS TAMBÉM OS
HIPOSSUFICIENTES JURÍDICOS. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA
ACOLHIDOS.
1. Controvérsia acerca da legitimidade da Defensoria Pública para
propor ação civil pública em defesa de direitos individuais
homogêneos de consumidores idosos, que tiveram seu plano de
saúde reajustado, com arguida abusividade, em razão da faixa
etária.
2. A atuação primordial da Defensoria Pública, sem dúvida, é a
assistência jurídica e a defesa dos necessitados econômicos,
entretanto, também exerce suas atividades em auxílio a
necessitados jurídicos, não necessariamente carentes de recursos
econômicos, como é o caso, por exemplo, quando exerce a função
do curador especial, previsto no art. 9.º, inciso II, do Código de
Processo Civil, e do defensor dativo no processo penal, conforme
consta no art. 265 do Código de Processo Penal.
3. No caso, o direito fundamental tutelado está entre os mais
importantes, qual seja, o direito à saúde. Ademais, o grupo de
consumidores potencialmente lesado é formado por idosos, cuja
condição de vulnerabilidade já é reconhecida na própria
Constituição Federal, que dispõe no seu art. 230, sob o Capítulo
VII do Título VIII ("Da Família, da Criança, do Adolescente, do
Jovem e do Idoso"): "A família, a sociedade e o Estado têm o
dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-
estar e garantindo-lhes o direito à vida."
4. "A expressão 'necessitados' (art. 134, caput, da Constituição),
que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria
Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em
sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente
carentes de recursos financeiros - os miseráveis e pobres -, os
hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou
excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras), enfim
todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua
real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de

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poder econômico ou político, 'necessitem' da mão benevolente e


solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o
próprio Estado. Vê-se, então, que a partir da ideia tradicional da
instituição forma-se, no Welfare State, um novo e mais
abrangente círculo de sujeitos salvaguardados processualmente,
isto é, adota-se uma compreensão de minus habentes
impregnada de significado social, organizacional e de
dignificação da pessoa humana" (REsp 1.264.116/RS, Rel.
Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
18/10/2011, DJe 13/04/2012).
5. O Supremo Tribunal Federal, a propósito, recentemente, ao
julgar a ADI 3943/DF, em acórdão ainda pendente de publicação,
concluiu que a Defensoria Pública tem legitimidade para propor
ação civil pública, na defesa de interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos, julgando improcedente o pedido de
declaração de inconstitucionalidade formulado contra o art. 5.º,
inciso II, da Lei n.º 7.347/1985, alterada pela Lei n.º 11.448/2007
("Art. 5.º - Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação
cautelar: ... II - a Defensoria Pública").
6. Embargos de divergência acolhidos para, reformando o
acórdão embargado, restabelecer o julgamento dos embargos
infringentes prolatado pelo Terceiro Grupo Cível do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que reconhecera a
legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar a ação civil
pública em questão.
(EREsp n. 1.192.577/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Corte
Especial, julgado em 21/10/2015, DJe de 13/11/2015.)

Não há como desconsiderar que consumidor e fornecedor estão em clara


situação de desigualdade social, econômica, jurídica e informacional em contratações dessa
natureza, não sendo possível, à luz dos preceitos constitucionais apontados, chancelar
posturas que atentem contra a dignidade da pessoa humana, a função social dos contratos
e a boa-fé.

Nessa perspectiva, o art. 4º, III, do CDC, estabelece como princípio da


Política Nacional das Relações de consumo “harmonização dos interesses dos participantes
das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade
de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se
funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”, reforçando o disposto no art.
170 da CF/88.
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Conforme doutrina de Cláudia Lima Marques44 a concretização da


harmonização das relações de consumo permite ao Estado (Legislativo, Executivo e
Judiciário) interferir nas relações privadas, muitas vezes relativizando a noção de ato
jurídico perfeito e do dogma absoluto da autonomia da vontade, a fim de que se alcance
um “caminho do meio” entre os a livre iniciativa e a defesa do consumidor.

Noutro giro, Bruno Miragem45 anota que a harmonização das relações de


consumo é corolário da boa-fé, tendo como finalidade precípua promover a igualdade
material das partes contratantes, o que pode ocorrer até mesmo pela declaração de
nulidade de cláusulas contratuais ou pela integração do negócio jurídico pelo Poder
Judiciário:

A noção de harmonia de interesses das partes, na verdade,


apresenta-se no direito já quando, com fundamento na boa-fé,
considera-se na relação jurídica moderna, que os interesses de
seus sujeitos não são contrapostos, mas complementares, com
vista a sua satisfação, levando a relação obrigacional à extinção.
A harmonia indicada pelo CDC, todavia, pressupõe a igualdade
substancial das partes, razão pela qual suas normas, na medida
em que protegem o consumidor, devem ter por objetivo a
garantia desta igualdade material. Contudo, a proteção da
harmonia e do equilíbrio, da mesma forma, não impõe ao

44
De acordo com Cláudia Lima Marques: “A Constituição Federal de 1988, ao regular os direitos e garantias fundamentais no
Brasil, estabelece em seu art. 5.º, XXXII, a obrigatoriedade da promoção pelo Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) da
defesa do consumidor. Igualmente, consciente da função limitadora desta garantia perante o regime liberal-capitalista da
economia, estabeleceu o legislador constitucional a defesa do consumidor como um dos princípios da ordem econômica
brasileira, a limitar a livre iniciativa e seu reflexo jurídico, a autonomia de vontade (art. 170, V). Ao garantir aos consumidores
a sua defesa pelo Estado, criou a Constituição uma antinomia necessária em relação a muitas de suas próprias normas,
flexibilizando-as, impondo em última análise uma interpretação relativizada dos princípios em conflito, que não mais podem
ser interpretados de forma absoluta ou estaríamos ignorando o texto constitucional. A procura deste caminho “do meio” é a
nova linha de interpretação conforme a Constituição imposta pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Em caso envolvendo os
estabelecimentos de ensino e a noção de livre iniciativa e defesa do consumidor (ADIn 319-4/DF), o Min. Moreira Alves ensina:
“havendo a possibilidade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse art. 170, se tomados
em sentido absoluto, mister se faz, evidentemente, que se lhes dê sentido relativo para que se possibilite a sua conciliação a
fim de que, em conformidade com os ditames da justiça distributiva, se assegure a todos – e, portanto, aos elementos de
produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos de consumo deles – existência digna. (...) Para se alcançar o
equilíbrio da relatividade desses princípios – que, se tomados em sentido absoluto, como já salientei, são inconciliáveis – e,
portanto, para se atender aos ditames da justiça social que pressupõem esse equilíbrio, é mister que se admita que a
intervenção indireta do Estado na ordem econômica não se faça apenas a posteriori, com o estabelecimento de sanções às
transgressões já ocorridas, mas também a priori, até porque a eficácia da defesa do consumidor ficará sensivelmente reduzida
pela intervenção somente a posteriori que, às mais das vezes, impossibilita ou dificulta a recomposição do dano sofrido” (DJ
30.04.1993). Esta nova linha de interpretação relativa ocorrerá, necessariamente, com a ofensa à mencionada noção de ato
jurídico perfeito ou com a violação de outro princípio constitucional, que é a defesa do consumidor, ao negar-se o juiz a
examinar a licitude da imposição contratual em face do novo mandamento de maior lealdade no mercado e relativização do
dogma absoluto da autonomia da vontade.” In: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno.
Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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fornecedor gravames excessivos, mas exclusivamente aqueles


vinculados à natureza da sua atividade de proteção dos interesses
legítimos dos sujeitos da relação. Neste sentido, é válido
considerar que o CDC protege o consumidor de boa-fé, não aquele
que se oculta por trás de suas normas para a obtenção de
vantagens indevidas.(...)
Em outros casos, como a hipótese de decretação da cláusula
abusiva, o direito do consumidor à manutenção do negócio
jurídico só se realiza quando o contrato vier a tornar-se
equilibrado sem a cláusula nula, ou ainda quando o juiz realizar a
sua integração. Caso contrário, resultando um desequilíbrio
insanável apesar dos esforços de integração do juiz (artigo 51,
§2º), haverá o reconhecimento da invalidade de todo o contrato.

Partindo dos objetivos e princípios fundamentais da Política Nacional das


relações de consumo, o art. 6º46 do CDC, sem prejuízo de outras disposições legais, tratados
e convenções internacionais, positivou o rol dos direitos básicos do consumidor.

Destes, o direito “à informação adequada e clara sobre os diferentes


produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (art. 6º,

46 CDC, Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços
considerados perigosos ou nocivos;
II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a
igualdade nas contratações;
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra
práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando,
a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
IX - (Vetado);
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de
superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação
da dívida, entre outras medidas;
XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de
crédito;
XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por
outra unidade, conforme o caso.
Parágrafo único. A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo deve ser acessível à pessoa com deficiência,
observado o disposto em regulamento.
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III, CDC) é de fundamental relevância para o julgamento deste incidente e para o exame da
temática relacionada à anulabilidade de contratos de cartão de crédito por violação ao
dever de informação.

O direito à informação, está intimamente relacionado ao reconhecimento


da vulnerabilidade do consumidor - fática, jurídica e informacional, à boa-fé objetiva, à
harmonização e à transparência das relações de consumo. Em linhas gerais, o consumidor
tem o direito de ser adequada e suficientemente informado sobre os produtos e serviços
disponibilizados no mercado de consumo a fim de que possa deliberar pela celebração do
contrato de forma esclarecida, ciente da sua natureza, do seu objeto e dos direitos e
obrigações dele decorrentes e exercer a liberdade de escolha que lhe garante o art. 6º, II,
do CDC, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. REDE CONVENIADA.


ALTERAÇÃO. DEVER DE INFORMAÇÃO ADEQUADA.
COMUNICAÇÃO INDIVIDUAL DE CADA ASSOCIADO. NECESSIDADE.
1. Os arts. 6º, III, e 46 do CDC instituem o dever de informação e
consagram o princípio da transparência, que alcança o negócio
em sua essência, na medida em que a informação repassada ao
consumidor integra o próprio conteúdo do contrato. Trata-se de
dever intrínseco ao negócio e que deve estar presente não
apenas na formação do contrato, mas também durante toda a
sua execução.
2. O direito à informação visa a assegurar ao consumidor uma
escolha consciente, permitindo que suas expectativas em
relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas,
manifestando o que vem sendo denominado de consentimento
informado ou vontade qualificada. Diante disso, o comando do
art. 6º, III, do CDC, somente estará sendo efetivamente cumprido
quando a informação for prestada ao consumidor de forma
adequada, assim entendida como aquela que se apresenta
simultaneamente completa, gratuita e útil, vedada, neste último
caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo
uso de informações soltas, redundantes ou destituídas de
qualquer serventia para o consumidor.
3. A rede conveniada constitui informação primordial na relação
do associado frente à operadora do plano de saúde, mostrando-se
determinante na decisão quanto à contratação e futura
manutenção do vínculo contratual.
4. Tendo em vista a importância que a rede conveniada assume
para a continuidade do contrato, a operadora somente cumprirá o
dever de informação se comunicar individualmente cada
associado sobre o descredenciamento de médicos e hospitais.
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5. Recurso especial provido.


(REsp n. 1.144.840/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira
Turma, julgado em 20/3/2012, DJe de 11/4/2012.)

De acordo com Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e


Bruno Miragem47, “A informação é, pois uma conduta de boa-fé, do fornecedor e como
direito do consumidor (Art. 6º, III) conduz a um dever (anexo de boa-fé) de informar do
fornecedor de produtos e serviços”, e “assegura igualdade material e formal (art. 5º, I, e
XXXII, da CF/1988), para o consumidor frente ao fornecedor, pois o que caracteriza o
consumidor é justamente seu déficit informacional, quanto ao produto ou serviço, suas
características, componentes e riscos quanto ao próprio contrato, no tempo e conteúdo”.

Nesse cenário, Bruno Miragem48 pondera que o conteúdo do dever de


informação não está discriminado no CDC, razão pela qual deve ser definido no caso
concreto, de acordo com a natureza da relação contratual entabulada entre as partes, e
que o seu cumprimento não se satisfaz com o fornecimento meramente formal de
informações, mas apenas com a efetiva compreensão pelo seu destinatário:

Dentro os direitos positivados pelo CDC, é o direito à informação


um dos que maior repercussão prática vai alcançar no cotidiano
das relações de consumo. Note-se, antes de outras considerações,
que o direito à informações apresenta sua eficácia correspectiva
na imposição aos fornecedores em geral de um dever de informar.
Em nosso direito, o desenvolvimento do dever de informar, por
marcada influência do direito europeu, decorre do princípio da
boa-fé.
Dentre os pressupostos, o tratamento favorável do consumidor
nas relações de consumo apoia-se no reconhecimento de um
déficit informacional entre consumidor e fornecedor, porquanto
este detém o conhecimento acerca de dados e demais dados
sobre o processo de produção e fornecimento dos produtos e
serviços no mercado de consumo.(...)
O conteúdo do direito à informação do consumidor não é
determinado a priori. Necessário que se verifique nos contratos e
relações jurídicas de consumo respectivas, quais as informações
substanciais cuja efetiva transmissão ao consumidor constitui
dever intransferível do fornecedor. Isto porque, não basta para

47
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do
Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
48 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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atendimento do dever de informar pelo fornecedor que as


informações consideradas relevantes sobre o produto ou serviço,
sejam transmitidas ao consumidor. É necessário que esta
informação seja transmitida de modo adequado, eficiente, ou
seja, de modo que seja percebida ou pelo menos perceptível pelo
consumidor. A eficácia do direito à informação do consumidor não
se satisfaz com o cumprimento formal do dever de indicar dados e
demais elementos informativos, sem o cuidado ou a preocupação
de que estejam sendo devidamente entendidos pelos destinatários
destas informações.

De fato, considerando o princípio da liberdade contratual positivado nos


arts. 421 e 425 do CC, é lícita a celebração de contratos atípicos cujo objeto e conteúdo são
os mais diversos possíveis. Partindo dessa premissa, não poderia o CDC tutelar amiúde o
direito/dever de informação nas relações de consumo, razão pela qual o art. 6º, III, contém
expressão de conteúdo indeterminado, mencionando que é direito básico do consumidor
“a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços”. Ao dispor que a
informação deve ser adequada e clara, o CDC deixou claro que o dever de informação deve
levar em consideração as circunstâncias do caso concreto, a natureza e o objeto do
contrato celebrado entre as partes, precisamente o que será realizado neste incidente em
relação aos contratos de cartão de crédito consignado.

Como esclarece Bruno Miragem, o dever de informação, embora


multifacetado, deve abranger as condições da contratação, as características do produto ou
do serviço adquiridos e a consequências e riscos da contratação:

O direito à informação do consumidor como referimos acima, é,


por sua natureza, multifacetado. Isto porque, seu conteúdo e
eficácia apresentam-se de diferentes modos, conforme a situação
de fato ou de direito sob enfoque. Em todas essas situações,
todavia, percebe-se dentre os requisitos da informação
transmitida ao consumidor, que seja adequada e veraz. Ou seja,
será adequada a informação apta a atingir os fins que se pretende
alcançar com a mesma, o que no caso é o esclarecimento do
consumidor. Em uma relação contratual, o conteúdo da
informação adequada deve abranger essencialmente: a) as
condições da contratação; b) as características dos produtos ou
serviços objetos da relação de consumo; c) eventuais
consequências e riscos da contratação.

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Ainda que a matéria seja diversa, oportuno citar precedente do Superior


Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial nº 1.349.188/RJ, sob a relatoria do
Ministro Luís Felipe Salomão, em que se discorreu sobre o dever de informação em
contratos bancários em relação aos consumidores hipervulneráveis:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSUMIDOR. PESSOA


PORTADORA DE DEFICIÊNCIA VISUAL. HIPERVULNERÁVEL.
CONTRATOS BANCÁRIOS. CONFECÇÃO NO MÉTODO BRAILLE.
NECESSIDADE. DEVER DE INFORMAÇÃO PLENA E ADEQUADA.
EFEITOS DA SENTENÇA. TUTELA DE INTERESSES DIFUSOS E
COLETIVOS STRICTO SENSU. SENTENÇA QUE PRODUZ EFEITOS EM
RELAÇÃO A TODOS OS CONSUMIDORES PORTADORES DE
DEFICIÊNCIA VISUAL QUE ESTABELECERAM OU VENHAM A
FIRMAR RELAÇÃO CONTRATUAL COM A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
DEMANDADA EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL.
INDIVISIBILIDADE DO DIREITO TUTELADO. DANO MORAL
COLETIVO. INOCORRÊNCIA.
1. Na ação coletiva ajuizada por associação em defesa de
interesses difusos e coletivos stricto sensu, em que toda uma
coletividade de deficientes visuais será beneficiada pelo
provimento jurisdicional, inclusive com eficácia prospectiva,
revela-se a natureza transindividual da discussão e a atuação da
entidade no campo da substituição processual, o que afasta a
necessidade de identificação dos seus associados.
2. O Código de Defesa do Consumidor estabelece entre os
direitos básicos do consumidor, o de ter a informação adequada
e clara sobre os diferentes produtos e serviços (CDC, art. 6°, III) e,
na oferta, que as informações sejam corretas, claras, precisas,
ostensivas e em língua portuguesa (art. 31), devendo as
cláusulas contratuais ser redigidas de maneira clara e
compreensível (arts. 46 e 54, § 3°).
3. A efetividade do conteúdo da informação deve ser analisada a
partir da situação em concreto, examinando-se qual será
substancialmente o conhecimento imprescindível e como se
poderá atingir o destinatário específico daquele produto ou
serviço, de modo que a transmissão da informação seja
adequada e eficiente, atendendo aos deveres anexos da boa-fé
objetiva, do dever de colaboração e de respeito à contraparte.
4. O método Braille é oficial e obrigatório no território nacional
para uso na escrita e leitura dos deficientes visuais e a sua não
utilização, durante todo o ajuste bancário, impede o referido
consumidor hipervulnerável de exercer, em igualdade de
condições, os direitos básicos, consubstanciando, além de
intolerável discriminação e evidente violação aos deveres de
informação adequada, vulneração à dignidade humana da pessoa
deficiente.

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5. É cabível, em tese, por violação a direitos transindividuais, a


condenação por dano moral coletivo, como categoria autônoma
de dano, a qual não se relaciona necessariamente com aqueles
tradicionais atributos da pessoa humana (dor, sofrimento ou
abalo psíquico).
6. Na hipótese, apesar de a forma de linguagem, por meio da
leitura do contrato, não ser apta a exaurir a informação clara e
adequada, não decorreram outras consequências lesivas além
daquelas experimentadas por quem, concretamente, teve o
tratamento embaraçado ou por aquele que se sentiu
pessoalmente constrangido ou discriminado, haja vista que a
instituição financeira seguiu as diretrizes emanadas pelo próprio
Estado, conforme Resolução n. 2.878/2001 do Bacen.
7. Os efeitos e a eficácia da sentença, na ação coletiva, não estão
circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e
subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto,
sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses
metaindividuais postos em juízo. Precedentes.
8. A sentença prolatada na presente ação civil pública, destinada
a tutelar direitos difusos e coletivos stricto sensu, deve produzir
efeitos em relação a todos os consumidores portadores de
deficiência visual que litiguem ou venham a litigar com a
instituição financeira demandada, em todo o território nacional.
9. Recursos especiais parcialmente providos.
(REsp n. 1.349.188/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão,
Quarta Turma, julgado em 10/5/2016, DJe de 22/6/2016.)

Densificando o dever de informação positivado no art. 6º, III, do CDC, o art.


4649 do mesmo diploma legal impõe ao fornecedor o dever de fornecer informações
relacionadas ao conteúdo do contrato. O dispositivo em comento consagra o dever de
informação sob perspectiva diversa, qual seja, sob o dever oportunizar o conhecimento do
consumidor a respeito da natureza e do objeto do contrato, conforme comentários de
Cláudia Lima Marques50:

Âmbito de aplicação. Dever de “oportunizar”, dever de informar:


Artigo de nítida inspiração no Código Civil italiano de 1942 (veja
hoje o Codice dei Consumo), o art. 46 introduz no Brasil o dever de
informar sobre o conteúdo do contrato a ser assinado. A melhor
expressão é “dever de oportunizar” o conhecimento sobre o
conteúdo do contrato, mas, por uma questão sistemática,

49 CDC, Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a
oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a
dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
50 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do

Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.


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usaremos aqui também o “dever de informar”, o que em última


análise não deixa de ser o dever instituído pelo art. 46.
O art. 46 do CDC surpreende pelo alcance de sua disposição.
Assim, se o fornecedor descumprir este seu novo dever de dar
oportunidade ao consumidor de tomar conhecimento do conteúdo
do contrato, sua sanção será: ver desconsiderada a manifestação
de vontade do consumidor, a aceitação deste, mesmo que o
contrato já esteja assinado e o consenso formalizado. Em outras
palavras, o contrato não tem seu efeito mínimo, seu efeito
principal e nuclear que é obrigar, vincular as partes. Se não
vincula, não há contrato; o contrato de consumo como que não
existe; é mais do que ineficaz, é como que inexistente, por força
do art. 46, enquanto a oferta, por força do art. 30, continua a
obrigar o fornecedor!
Finalidade educativa da norma: Mais uma vez o CDC tem forte
finalidade educativa, pois a ratio do art. 46 é evitar que o
consumidor, vítima de práticas de vendas agressivas, seja levado
a não tomar ciência das obrigações que está assumindo através
daquele contrato. É o caso do consumidor que assina proposta de
plano de saúde, ou de contrato de seguro, sob as promessas do
vendedor de que receberá após, em casa, pelo correio, o texto do
contrato, ou o carnet de pagamento com o valor da prestação
atual. Como também é o caso do consumidor que estaciona o
carro em garagem, ou que deixa roupas na lavanderia, e, quando
retorna e paga o serviço, recebe no verso do recibo a lista de
cláusulas que regulavam a relação contratual, incluindo uma de
não responsabilização pelos eventuais danos aos seus bens

A corroborar esse entendimento, cito precedente do Superior Tribunal de


Justiça:

CONTRATO BANCÁRIO. AUSÊNCIA DE OFENSA AO ARTIGO 535 DO


CPC. APRECIAÇÃO DE OFÍCIO. INOCORRÊNCIA. CLÁUSULAS
GERAIS. DESINFORMAÇÃO DO CONSUMIDOR. JUROS
REMUNERATÓRIOS. INEXISTÊNCIA DE PACTUAÇÃO.
CAPITALIZAÇÃO ANUAL DE JUROS EM CONTA CORRENTE.
POSSIBILIDADE. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. AUSÊNCIA DE
CONTRATAÇÃO.
- Não há ofensa ao Art. 535 do CPC se, embora rejeitando os
embargos de declaração, o acórdão examinou todas as questões
pertinentes.
- Não há revisão de ofício do contrato, pois os fundamentos do
acórdão recorrido não fazem coisa julgada.

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- É ineficaz, no contrato de adesão, cláusula inserida em


documento que - embora registrado em cartório - não foi exibido
ao consumidor, no momento da adesão (CDC, Arts. 46 e segs.).
- No caso de previsão potestativa da taxa de juros remuneratórios
ou sua inexistência, os juros devem ser aplicados consoante a
média de mercado. Precedente da Segunda Seção.
- É lícita a capitalização anual de juros em conta corrente.
- É defeso cobrar comissão de permanência não pactuada no
instrumento. Incide a Súmula 294.
(REsp n. 897.148/MT, relator Ministro Humberto Gomes de
Barros, Terceira Turma, julgado em 20/9/2007, DJ de 8/10/2007,
p. 274.)

Feitas essas considerações preliminares, constata-se que o dever de


informação é de fundamental relevância para o exame da tese relativa à anulabilidade dos
contratos de cartão de crédito consignado.

Sendo o consumidor vulnerável no mercado de consumo, o exercício da


liberdade contratual e da autonomia privada, consubstanciado na contratação, ou não, de
determinado serviço bancário depende da exatidão das informações, que devem ser
prestadas de forma clara e adequada pelo fornecedor.

Portanto, violado o direito de informação, a vontade em que se assenta o


negócio jurídico estará irremediavelmente maculada e poderá autorizar a anulação do
negócio jurídico.

2.2.3. ANULABILIDADE DE NEGÓCIOS JURÍDICOS POR ERRO


SUBSTANCIAL:

A anulabilidade de contratos de cartão de crédito consignado por vício de


consentimento – erro substancial - está umbilicalmente ligada à tutela da vulnerabilidade, à
boa-fé e seus deveres anexos, à harmonização das relações de consumo e ao direito/dever
de informação.

Os contratos, enquanto negócios jurídicos, sujeitam-se aos planos da


existência, da validade e da eficácia para surtirem os efeitos jurídicos almejados pelas

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partes, criando, extinguindo ou modificando direitos e relações jurídicas. A existência do


negócio jurídico está intrinsecamente relacionada ao fenômeno da juridicização, que nada
mais é do que a incidência da norma legal sobre determinado fato da vida, o chamado
suporte fático suficiente de incidência.

Para tanto, reclama a presença dos chamados elementos essenciais, quais


sejam, partes, vontade, objeto e forma. Como anota Arnaldo Rizzardo51, “a vontade
constitui o elemento principal ou o cerne do negócio jurídico, pois ela determina a criação, a
modificação ou a extinção da expressão do ser humano”.

Por essa razão, Sílvio de Salvo Venosa52 pontua que “Quando não existir
pelo menos aparência de declaração de vontade, não podemos sequer falar de negócio
jurídico” e que “A vontade, sua declaração, além de condição de validade, constitui
elemento do próprio conceito e, portanto, da própria existência do negócio jurídico”. Para o
autor, a vontade é composta por elementos internos e externos:

Nas declarações de vontade, podemos distinguir dois elementos


principais: (a) declaração propriamente dita ou elemento externo
e (b) vontade ou elemento interno:
a) Declaração de vontade propriamente dita ou elemento externo
resume-se no comportamento palpável do declarante, já
estudado. Nesse comportamento externo, estampa-se o
verdadeiro sentido da vontade, no sentido de que só ele é
pressuposto do negócio jurídico.
b) Vontade ou elemento interno é aquele impulso que se projetará
no mundo exterior e pressupõe essa projeção.
Nem sempre, porém, há exata correspondência entre o que foi
pensado e o que foi transmitido pelo declarante. Reside aí um dos
maiores problemas atinentes ao negócio jurídico. Quanto não há
correspondência entre o elemento interno e o elemento externo
do negócio, o declarante emite vontade defeituosa, o que será
estudado oportunamente.

51 Sustenta Arnaldo Rizzardo: A vontade constitui o elemento principal ou o cerne do negócio jurídico, pois ela determina a
criação, a modificação ou a extinção da expressão do ser humano. Salienta Sílvio Rodrigues que, tendo o Código Civil 'partido
do pressuposto de que o ato jurídico é o ato lícito de vontade, esta, naturalmente constitui o substrato daquele, e as regras a
seguir estatuídas são uma decorrência lógica de tal posição original'. Unicamente depois da manifestação da vontade adquire
forma o negócio jurídico, iniciando a ter validade. Concebe-se a ideia e direciona-se a mesma para conseguir determinado
efeito. Quando do direcionamento é que entra em ação a vontade. Uma vez realizada a ideia, surge o efeito, que o fruto da
união da ideia com a vontade.“. In: Rizzardo, Arnaldo. Parte geral do Código Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 6ª ed.. Rio de
Janeiro: Forense; 2008. P. 413.
52 VENOSA, Sílvio de Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Código Civil interpretado. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2019.

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Logo, para que o negócio jurídico gere os efeitos pretendidos pelas partes,
não basta a declaração pura e simples de vontade; é necessário que, além da sua
exteriorização, corresponda ao efetivo querer do declarante. Em outras palavras, é
necessário que esteja isenta de vícios de qualquer natureza, isto é, que seja válida.

Da divergência entre os elementos externo e interno da vontade ocupam-


se os vícios de consentimento, considerados pelo art. 17153 do CC como causas de
anulabilidade, e não de nulidade, dos negócios jurídicos. Oportuno lembrar que a
anulabilidade, por força dos arts. 17254, 17355, 17756 e 17857 do CC somente pode ser
suscitada pelos interessados por intermédio de ação própria, a quem se permite a
confirmação do negócio, sujeitando-se ao prazo decadencial de 04 (quatro) anos. As causas
de nulidade, por outro lado, estão previstas nos arts. 16858 e 16959 do CC, não são passíveis
de confirmação pelas partes e podem ser suscitadas por qualquer interessado, pelo
Ministério Público e ser, inclusive, declaradas de ofício pelo juiz, não se sujeitando a prazos
decadenciais ou prescricionais.

Feita essa distinção, o art. 138 do CC estabelece que “São anuláveis os


negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do
negócio”. Cristiano Chaves de Farias60 sustenta que o erro constitui vício de consentimento
caracterizado pela falsa representação da realidade:

53 CC/02, Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
I - por incapacidade relativa do agente;
II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
54
CC/02, Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.
55 CC/02, Art. 173. O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo.
56 CC/02, Art. 177. A anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de ofício; só os

interessados a podem alegar, e aproveita exclusivamente aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou
indivisibilidade.
57 CC/02, Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado:

I - no caso de coação, do dia em que ela cessar;


II - no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico;
III - no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.
58 CC/02, Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério

Público, quando lhe couber intervir.


Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as
encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes.
59
CC/02, Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.
60 Farias, Cristiano Chaves de; Netto, Felipe Braga; Rosenvald, Nelson. Direito Civil. Volume único. 4ª ed.. Salvador: Ed. Jus

Podium; 2019. P. 552.


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O erro é um defeito do negócio jurídico. Nada mais é do que uma percepção falsa
sobre algo (acho, por exemplo, que hoje é quarta e na verdade é quinta. Isto é um
exemplo prosaico de erro). Trata-se, portanto, de uma falsa representação da
realidade. Quem erra construiu uma ideia equivocada sobre algo no mundo
social. Quem erra imagina existir o que não existe, ou existe de forma diferente
do imaginado. Digamos que alguém aluga determinado apartamento porque
acredita - equivocadamente - que certo ator ou astro de música mora no mesmo
edifício.

Com efeito, para autorizar anulação do negócio jurídico, o erro deve ser
substancial, conforme definição do art. 139 do CC, ad litteram:

Art. 139. O erro é substancial quando:


I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma
das qualidades a ele essenciais;
II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a
declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;
III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único
ou principal do negócio jurídico.

Ao discorrer sobre a primeira hipótese do dispositivo supratranscrito - erro


substancial que interessa à natureza do negócio, seu objeto principal, ou de alguma das
suas qualidades -, Nelson Nery Júnior61 esclarece o quanto segue:

I.3. Erro que interessa à natureza do negócio. Este é o erro sobre a categoria
jurídica (error in negotio)(Pontes de Miranda. Tratado 2012, § 433, n.1, p.400). O
erro que interessa à natureza do negócio é aquele em que, por exemplo, A
transfere imóvel a B a título de compra e venda, mas B o recebe a título de
doação. Não existindo o imprescindível acordo de vontades sobre a própria
essência do negócio, há o erro substancial ensejando a anulação (Nery, Vícios,
n.4.1, p.30).

À toda evidência, a anulabilidade de contratos de cartão de crédito


consignado por violação ao dever de informação está relacionada à hipótese prevista no
inciso I do art. 139, do CC, isto é, o erro quanto à natureza do negócio. Nas diversas
demandas que aportam ao Poder Judiciário gaúcho, a parte autora afirma, em síntese, que
por não haver sido prévia e adequadamente informada, imaginou ter celebrado contrato de
empréstimo pessoal consignado, quando, na realidade, celebrou contrato de cartão de
crédito consignado.

61 Júnior, Nelson Nery. Código civil comentado. 13ª ed.. São Paulo: Thomson Reuters; 2019. p. 446.
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Como se observa, o erro - enquanto vício de consentimento - deve ser


substancial (ou essencial) - e não meramente acidental - ostentando tal proporção quando,
se de conhecimento fosse da parte contratante, não se realizaria o negócio jurídico.
Ademais, a menção do art. 138 do CC ao erro que "poderia ser percebido por pessoa de
diligência normal", deixa claro que, além de substancial, deve ser escusável, como adverte
Cristiano Chaves de Farias62:

Apenas, portanto, o erro substancial causa a anulabilidade do negócio, não a


causando o erro acidental, menos relevante. Diga-se que a diferença entre ambos
está não nos valores envolvidos, mas na relevância do erro para a conclusão do
negócio.
Além de ser substancial, o erro, para anular o negócio, deve ser escusável, isto é,
desculpável. Quem foi negligente ao concluir o negócio jurídico não pode,
posteriormente, invocar o erro. A ordem jurídica não pode premiar a negligência
ou a falta de zelo, razão pela qual é fundamental que o erro tenha sido
desculpável ou escusável(...).

Sobre a matéria, oportuno referir precedente do Superior Tribunal de


Justiça a título ilustrativo:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ANULAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO.COMPRA E


VENDA DE IMÓVEL. EXISTÊNCIA DE USUCAPIÃO EM FAVOR DO ADQUIRENTE.
OCORRÊNCIA DE ERRO ESSENCIAL. INDUZIMENTO MALICIOSO. DOLO
CONFIGURADO. ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO.
1. O erro é vício do consentimento no qual há uma falsa percepção da realidade
pelo agente, seja no tocante à pessoa, ao objeto ou ao próprio negócio jurídico,
sendo que para render ensejo à desconstituição de um ato haverá de ser
substancial e real.
2. É essencial o erro que, dada sua magnitude, tem o condão de impedir a
celebração da avença, se dele tivesse conhecimento um dos contratantes, desde
que relacionado à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração de
vontade, a qualidades essenciais do objeto ou pessoa.

(...)
7. Rercuso especial não provido.
(REsp 1163118/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 20/05/2014, REPDJe 05/08/2014, DJe 13/06/2014)

62Farias, Cristiano Chaves de; Netto, Felipe Braga; Rosenvald, Nelson. Direito Civil. Volume único. 4ª ed.. Salvador: Ed. Jus
Podium; 2019. P. 553.
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De qualquer sorte, resulta evidente que a declaração da vontade mediante


erro está intimamente relacionada à equivocada percepção e representação da realidade. É
dizer, há vício na formação do elemento interno da vontade, que está no âmago do agente.

Nas relações de consumo, a vontade do consumidor é formada a partir das


informações que lhe são prestadas pelo fornecedor. Deixando este de informar, prévia e
adequadamente, a natureza do negócio jurídico, o seu objeto, as características
elementares, os direitos, as obrigações e as consequências, não há dúvidas de que o
consumidor forma uma falsa representação da realidade negocial, muitas vezes anuindo
com a celebração de determinando negócio jurídico quando, na realidade, pretendia
celebrar outro.

De qualquer sorte, dispõe o art. 182 do CC que “Anulado o negócio jurídico,


restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível
restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. Logo, como consequência da anulação
do negócio jurídico, as partes devem ser restituídas ao status quo ante, assegurado ao
consumidor que celebrou o negócio jurídico mediante erro a restituição ou a compensação
dos valores pagos, conforme a dicção do art. 87763 do CC.

Por oportuno, de relembrar que Código de Processo Civil de 2015 adotou o


sistema da causa-piloto em incidentes de resolução de demandas repetitivas.

Como consequência, as teses definidas neste incidente devem guardar


estreita correlação com os limites objetivos traçados pela petição inicial da causa-piloto e
com o acórdão de admissão proferido em sessão realizada em 28/06/2022, sob pena de
ofensa aos princípios do contraditório e da congruência, positivado nos arts. 141 e 490 do
CPC, conforme doutrina de Fredie Didier Jr.:

Tanto o IRDR como os recursos repetitivos submetem-se a procedimento próprio,


precedido da escolha de causas tidas como representativas da controvérsia, que
viabilizarão o debate e o julgamento da questão de direito comum.
Escolhidos os casos paradigmas, deve ser identificada com precisão a questão a ser
submetida a julgamento. Com isso, facilita-se o reconhecimento dos demais casos
que tenham afinidade com a questão e que devam ser suspensos e,
posteriormente, atingidos pela tese fixada pelo tribunal.

63 CC/02, Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.
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A identificação da questão a ser decidida vincula o tribunal – que não poderá


decidir outra questão.
(...)
O contraditório qualificado do incidente tem por objeto a discussão da questão foi
delimitada; terceiros, Ministério Público e amici curiae contribuem com o debate
em torno da questão previamente identificada. Decidir fora desses limites é,
portanto, conduta contrária ao princípio do contraditório.
É imprescindível, por isso, que a questão de direito objeto do incidente esteja
sendo debatida nos casos-pilotos. Não é lícito definir, como objeto do incidente,
questão que não esteja sendo discutida em juízo. A legitimidade constitucional
desse tipo de procedimento de formação concentrada de precedente obrigatório
vem da circunstância, que é inerente à jurisdição de que o órgão julgador decide
questões que lhe são apresentadas, propondo soluções normativas para a
definição dessa mesma questão no futuro, caso ela volte a ser submetida a juízo.
Não pode o órgão jurisdicional propor soluções normativas para questões que
não lhe são propostas: no sistema brasileiro de separação de poderes, essa tarefa
é do Poder Legislativo.

Nesse particular, esclareço que a tese relativa à anulabilidade dos contratos


de cartão de crédito consignado por violação ao dever de informação guarda íntima relação
com a causa de pedir declinada na petição inicial da causa-piloto.

Na mesma linha, percebe-se que, na causa-piloto, o pedido foi de (item e.1


da inicial) ‘nulidade dos contratos de cartão de crédito (....) e (....), anulando assim os
valores cobrados ilicitamente, condenando o banco réu a restituir a parte autora o que foi –
e ainda será – descontado ilegalmente de seus vencimentos, nos termos do CDC’.

Por incidência lógica do princípio dispositivo a que está submetido o juiz, e


também porque o pedido deve ser certo e determinado, deduz-se a pretensão da parte
autora à simples repetição, justamente porque não formulado expressamente pedido de
repetição em dobro.

Logo, entendo não ser possível fixar tese neste incidente acerca da
repetição em dobro de valores com amparo no art. 42 do CDC, porque ausente discussão
nesse sentido na causa-piloto, tampouco afetada a matéria ao presente incidente.

Ad argumentandum tantum, e em atenção às manifestações protocoladas


pelos amici curiae defendendo ou impugnando a repetição dobrada de valores, bem como
ao disposto no art.984, §2º, do CPC, teço algumas considerações quanto à matéria.

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Saliento que, embora não existam dúvidas acerca da reprovabilidade da


violação ao dever de informação positivado nos arts. 6º, III, e 46 do CDC, a sanção imposta
às instituições financeiras consiste em obrigar o fornecedor a cumprir os termos da oferta,
na forma dos arts. 30 e 35, I, do mesmo diploma legal, mediante a conversão do contrato
de cartão de crédito consignado em contrato de empréstimo pessoal consignado.

A repetição em dobro de valores constitui sanção de natureza civil que,


conforme doutrina de Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo
Roscoe Bessa64, reclama a presença de pressupostos objetivos e subjetivos:
A pena do art. 42, parágrafo único, rege-se por três pressupostos objetivos e um
subjetivo (= “engano justificável”).
No plano objetivo, a multa civil só é possível nos casos de cobrança de dívida; além
disso, a cobrança deve ser extrajudicial; finalmente, deve ela ter por origem uma
dívida de consumo.
Sem que estejam preenchidos esses três pressupostos, aplica-se, no que couber, o
sistema geral do Código Civil.

Ainda, de acordo com a doutrina de Cláudia Lima Marques65, a cobrança


indevida a que alude o art. 42, parágrafo único, do CDC corresponde à cobrança desprovida
de amparo contratual, apta a gerar o enriquecimento sem causa do fornecedor:

Assim, vale repetir o que escrevi nas edições anteriores: “A ratio da devolução em
dobro não seria o princípio do enriquecimento ilícito (ato ilícito do fornecedor ou
de seus prepostos), mas o descumprimento de um dever contratual (e o
enriquecimento sem causa contratual). Se não houve este descumprimento do
dever anexo ao contrato de consumo, a devolução será simples, seguindo a regra
comum do Código Civil do pagamento indevido. Que não distingue a origem da
obrigação (tributária, contratual, extracontratual, natural). A jurisprudência
costuma não usar o parágrafo único do CDC e determinar a devolução simples,
argumentando que esta norma tutelar geraria “enriquecimento sem causa” do
consumidor. Tal posição não deve prosperar, pois retira do CDC todo o seu
potencial pedagógico: a devolução em dobro tem, sim, causa. A causa do
enriquecimento é a própria lei tutelar, o art. 42 do CDC, pois há ilicitude no
descumprimento dos deveres de conduta legal e correta perante os consumidores,
que, frise-se, são uma coletividade – sendo assim, aquele consumidor representa
todos e a devolução em dobro para ele é como uma “gota d’água em um oceano
de lucro”, este sim “sem causa” ou com causa ilícita, por pequenos erros de

64
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
65
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2019.
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cobrança. Esses pequenos erros de cobrança só podem ser combatidos com maior
eficiência, e só haverá a maior diligência e perícia exigida dos fornecedores pelo
CDC se a jurisprudência entender o art. 42 como uma sanção exemplar (exemplar
damages), que – certo - beneficia um, mas que leva á mudança da prática no
mercado.

A repetição de valores tem como fundamento o erro em que incorreu o


consumidor. Sob esse viés, inaplicável a repetição em dobro com amparo no art. 42 do
CDC, in verbis:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não


será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem
direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que
pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais,
salvo hipótese de engano justificável.

Veja-se que, na situação retratada pela causa-piloto, os descontos


realizados pelas instituições financeiras não podem ser equiparados à “cobrança em
quantia indevida” a que alude o art. 42 do CDC, não só porque foram previamente
autorizados pelo consumidor, mas também porque foram realizados com amparo em
contrato celebrado, então válido e vigente entre as partes.

A anulação do contrato a posteriori por decisão judicial proferida em


demanda anulatória proposta pelo consumidor, não torna, por si só, os descontos já
realizados indevidos, porque, quando efetuados, estavam respaldados pela regular
execução do contrato.

Não se verifica, portanto, erro inescusável tampouco conduta contrária à


boa-fé objetiva em relação à cobrança, em si mesma considerada, o que também afasta a
incidência da regra em comento.

Importante salientar que, conforme tese firmada pelo Superior Tribunal de


Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 1.413.542/RS66

6627. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. HERMENÊUTICA DAS NORMAS DE
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC.
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e nos Embargos de Divergência no Agravo em Recurso Especial nº 600.663/RS, sob a


relatoria do Ministro Antônio Herman V. Benjamin, “A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA
NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC, É CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA
CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE OCORRER
INDEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO”.

O acórdão paradigmático apreciou hipótese de cobrança indevida por


serviços de telefonia não contratados, conforme acórdãos proferidos por Egrégia Corte no
julgamento das apelações cíveis nºs 7005618434467 e 7005275677268.

REQUISITO SUBJETIVO. DOLO/MÁ-FÉ OU CULPA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DO CRITÉRIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.


MODULAÇÃO DE EFEITOS PARCIALMENTE APLICADA. ART. 927, § 3º, DO CPC/2015. IDENTIFICAÇÃO DA CONTROVÉRSIA 1.
Trata-se de Embargos de Divergência que apontam dissídio entre a Primeira e a Segunda Seções do STJ acerca da exegese do
art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor - CDC. A divergência refere-se especificamente à necessidade de
elemento subjetivo para fins de caracterização do dever de restituição em dobro da quantia cobrada
indevidamente.(...)Parece prudente e justo, portanto, que se deva modular os efeitos da presente decisão, de maneira que o
entendimento aqui fixado seja aplicado aos indébitos de natureza contratual não pública cobrados após a data da publicação
deste acórdão. TESE FINAL 28. Com essas considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência para, no mérito, fixar-se a
seguinte tese: A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC, É CABÍVEL QUANDO A
COBRANÇA INDEVIDA CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE OCORRER
INDEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS 29. Impõe-se MODULAR OS
EFEITOS da presente decisão para que o entendimento aqui fixado - quanto a indébitos não decorrentes de prestação de
serviço público - se aplique somente a cobranças realizadas após a data da publicação do presente acórdão. RESOLUÇÃO DO
CASO CONCRETO 30. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido fixou como requisito a má-fé, para fins do parágrafo único
do art. 42 do CDC, em indébito decorrente de contrato de prestação de serviço público de telefonia, o que está dissonante da
compreensão aqui fixada. Impõe-se a devolução em dobro do indébito. CONCLUSÃO 31. Embargos de Divergência providos.
(EREsp n. 1.413.542/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, relator para acórdão Ministro Herman Benjamin,
Corte Especial, julgado em 21/10/2020, DJe de 30/3/2021.)
67
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE COBRANÇA CUMULADA COM REPETIÇÃO DO INDÉBITO,
DANO MORAL E RESPONSABILIDADE CIVIL DISSUASÓRIA. SERVIÇO DE TELEFONIA. DEVOLUÇÃO DO INDÉBITO NA FORMA
SIMPLES. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. Legitimidade da Brasil Telecom para figurar no pólo passivo da lide, uma vez
que é a responsável pela cobrança do serviço ARREC TERC SEGURO QBE nas faturas mensais. Prescrição qüinqüenal aplicada à
repetição do indébito (art. 206, § 5º, I, do CC). Cabível a repetição do indébito em relação aos serviços impugnados, pois a ré
não comprovou a contratação pela consumidora. Devolução simples dos valores comprovadamente quitados nos autos, mas
não em dobro, tendo em vista que não restou comprovada a má-fé da demandada. Aborrecimentos pela cobrança indevida
não acarretam prejuízo moral, pois se trata de ilícito contratual, sem qualquer ofensa aos direitos da personalidade da
consumidora. Prejudicada a majoração do dano moral devido ao afastamento da indenização no apelo da ré, bem como a
majoração dos honorários advocatícios diante do redimensionamento da verba. Sentença parcialmente reformada para
afastar a condenação ao pagamento do dano moral, determinar a repetição simples do indébito, e reconhecer a prescrição
quinquenal. Sucumbência redimensionada. JULGARAM PREJUDICADO O RECURSO DA AUTORA E, POR MAIORIA, VENCIDO O
REVISOR, QUE PROVIA EM MAIOR EXTENSÃO, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DA RÉ.(Apelação Cível, Nº
70056184344, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson José Gonzaga, Julgado em: 26-09-2013)
68
APELAÇÕES CÍVEIS. DECISÃO MONOCRÁTICA. RESPONSABILIDADE CIVIL. TELEFONIA FIXA. COBRANÇA INDEVIDA. ATO
ILÍCITO CONFIGURADO. 1. PROTOCOLOS DE RECLAMAÇÃO NÃO ATENDIDOS. SITUAÇÃO QUE ULTRAPASSA MERO DISSABOR.
DANOS MORAIS EVIDENTES. De maneira geral, a cobrança indevida de valores gera prejuízos indenizáveis na forma de
reparação por danos morais, se os incômodos sofridos ultrapassarem os usuais em situações da espécie, o que é o caso. 2.
REPETIÇÃO DE INDÉBITO EM DOBRO. CONSUMIDOR. DESNECESSIDADE DE PROVA DA MÁ-FÉ. Em se tratando de relação
consumerista, não há exigência alguma no sentido de que o consumidor comprove existência de má-fé por parte do
fornecedor do serviço ao efetuar a cobrança indevida. 3. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. LIMITAÇÃO. CINCO ANOS ANTERIORES AO
AJUIZAMENTO DA AÇÃO. 4. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. INCIDÊNCIA DESDE A DATA DO PRIMEIRO DESCONTO. DESNECESSIDADE
DE COLAÇÃO DE TODAS AS FATURAS. 5. PEDIDOS PROCEDENTES. SUCUMBÊNCIA REDIMENSIONADA. APELAÇÃO DA RÉ A QUE
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Veja-se que, no mesmo aresto, o Ministro Luís Felipe Salomão consignou


que “há inúmeros precedentes das Turmas de Direito Privado que pugnam pela inexistência
de má-fé do fornecedor – ou seja, inexistência de conduta contrária à boa-fé objetiva e,
portanto, configurada hipótese de engano justificável –, quando: (i) o pagamento tiver sido
efetuado em decorrência de cláusula contratual posteriormente declarada nula; ou (ii)
houver controvérsia judicial em relação ao objeto da cobrança indevida”.(grifos meus).

Ora, a exceção acima grifada amolda-se justamente ao caso-piloto e ao


presente IRDR, já que a cobrança de valores com amparo em cláusula ou instrumento
contratual posteriormente anulado pelo Poder Judiciário é precisamente a temática sub
judice, e, como visto, não autoriza a repetição em dobro de valores com amparo no art. 42
do CDC.

Registro, por derradeiro, que por se tratar de nítida sanção civil, entendo
que o dispositivo em comento deve ser interpretado restritivamente, não sendo possível a
interpretação extensiva ou analógica.

As considerações acima espantam qualquer dúvida relativamente à


repetição de valores.

Ainda, oportuno rememorar que, nos termos do art. 170 do CC, é possível a
conversão do negócio jurídico em outro, se presentes os requisitos legais:

Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos


de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes
permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a
nulidade.

Sobre o dispositivo em comento, colaciono comentários de Nelson Nery


Júnior69:

3. Conversão. Conceito. É a modificação da qualificação de


negócio jurídico nulo, celebrado sem que tivessem sido cumpridos
os requisitos exigidos pela lei para sua validade, mas que
preenche os requisitos de outro negócio jurídico. Pela conversão, o

SE NEGA SEGUIMENTO. APELAÇÃO DO AUTOR PROVIDA.(Apelação Cível, Nº 70052756772, Nona Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 09-01-2013)
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negócio jurídico nulo (como concebido originariamente) é válido e


eficaz como outro negócio jurídico distinto dele (Flume.
Rechtsgeschäfte 4, § 32, 9, a, p. 589), justamente porque
preenche os requisitos legais de validade desse outro negócio
jurídico. Se a ilicitude não tiver sido o escopo perseguido pelas
partes, também o contrato ilícito pode ser objeto de conversão
(Sacco. Contratto [Trat.dir.privato-Rescigno, v. X, 3.ª ed., 2002, p.
616]; Cian-Trabucchi-Zaccaria, Comm.breve CC 12, coment. I CC
ital. 1424, p. 1536). O negócio jurídico realizado com ofensa aos
bons costumes não pode ser convertido (Herbert Roth [Staudinger.
Kommentar BGB, 14.ª ed., §§ 134-163, 2003, coment. 32 BGB §
140, IV, 3, c, p. 489]). Atua como instrumento de integração
parcial da vontade das partes, porque a conversão é a
exteriorização da vontade das partes que teriam celebrado o
outro negócio jurídico (convertido), se tivessem tido conhecimento
da nulidade do negócio jurídico originariamente concebido.

4. Requisitos. Para que seja possível fazer a conversão é preciso


que estejam presentes requisitos objetivos e subjetivos, apontados
pela lei. São requisitos da conversibilidade: I) objetivos: a) que, no
plano da existência, o negócio jurídico a ser convertido exista
(Pontes de Miranda. Tratado 2012, t. IV, § 374, n. 1, pp. 132-133);
b) que, no plano da validade, o negócio jurídico a ser convertido
seja nulo; c) que o negócio jurídico existente e nulo contenha os
requisitos de conteúdo e de forma exigidos para o outro negócio
no qual será convertido; II) subjetivos: a) que a vontade das partes
seja integrada, no sentido de que quereriam celebrar o outro
negócio jurídico, se tivessem tido conhecimento da nulidade do
negócio jurídico como originariamente concebido; b) que haja
ignorância das partes sobre a nulidade do negócio jurídico objeto
da conversão.

Dessa forma, constata-se que a violação ao dever de informação autoriza a


anulação de negócio jurídico celebrado mediante erro substancial, ou, havendo pedido da
parte, a sua conversão em outra modalidade contratual, conforme oportunamente será
examinado, devendo ser assegurada, em qualquer das hipóteses, a repetição/compensação
simples dos valores pagos pelo consumidor.

2.2.4. REGRAMENTO LEGAL DOS CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO


PESSOAL CONSIGNADO E CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO:

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O contrato de cartão de crédito consignado constitui nova modalidade de


cartão de crédito, e foi introduzido no direito brasileiro por intermédio da Medida
Provisória nº 656/2014, convertida na Lei nº 13.097/2015, posteriormente revogada pela
Medida Provisória nº 681/2015, convertida na Lei nº 13.172/2015, a qual alterou a redação
original do art. 1º da Lei nº 10.820/03(que dispõe sobre a autorização para desconto de
prestações em folha de pagamento e dá outras providências), que passou a ostentar o
seguinte teor:

Art. 1º Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do


Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio
de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o
desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração
disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos,
financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento
mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de
arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos
contratos.

Portanto, a partir dessa alteração legislativa, passou a ser permitido no


Brasil o pagamento das despesas realizadas pelo consumidor por intermédio de cartão de
crédito mediante desconto em folha de pagamento.

Conforme redação dos arts. 1º e 2º, §2º, da Lei nº 10.820/03, os descontos


autorizados pelo consumidor celetista não podem ultrapassar a 40% da sua renda mensal,
dos quais 35% destinam-se ao pagamento de obrigações decorrentes de contratos de
empréstimos consignados e 5% ao pagamento das obrigações decorrentes de contratos de
cartão de crédito consignado:

Art. 1º (...)
§ 1º O desconto mencionado neste artigo também poderá incidir
sobre verbas rescisórias devidas pelo empregador, se assim
previsto no respectivo contrato de empréstimo, financiamento,
cartão de crédito ou arrendamento mercantil, até o limite de 40%
(quarenta por cento), sendo 35% (trinta e cinco por cento)
destinados exclusivamente a empréstimos, financiamentos e
arrendamentos mercantis e 5% (cinco por cento) destinados
exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio
de cartão de crédito consignado ou à utilização com a finalidade
de saque por meio de cartão de crédito consignado.

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Art. 2o Para os fins desta Lei, considera-se:(...)


§ 2o No momento da contratação da operação, a autorização
para a efetivação dos descontos permitidos nesta Lei observará,
para cada mutuário, os seguintes limites:
I - a soma dos descontos referidos no art. 1º desta Lei não poderá
exceder a 40% (quarenta por cento) da remuneração disponível,
conforme definido em regulamento; (Redação dada pela Lei nº
14.431, de 2022)
a) (revogada); (Redação dada pela Lei nº 14.431, de 2022)
b) (revogada); (Redação dada pela Lei nº 14.431, de 2022)
II - o total das consignações voluntárias, incluindo as referidas no
art. 1o, não poderá exceder a quarenta por cento da remuneração
disponível, conforme definida em regulamento.

Embora o art. 1º faça menção, única e exclusivamente aos empregados


regidos pela CLT, o art. 6º da Lei nº 10.820/03 também conferiu aos beneficiários de
aposentadoria, pensão e benefícios de prestação continuada a possibilidade de autorizar a
retenção, pelo INSS, dos valores necessários ao pagamento de obrigações decorrentes de
empréstimos consignados e de cartões de crédito consignados:

Art. 6º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do


Regime Geral de Previdência Social e do benefício de prestação
continuada de que trata o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de
dezembro de 1993, poderão autorizar que o Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) proceda aos descontos referidos no art. 1º
desta Lei e, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição
financeira na qual recebam os seus benefícios retenha, para fins
de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de
empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de
arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em
contrato, na forma estabelecida em regulamento, observadas as
normas editadas pelo INSS e ouvido o Conselho Nacional de
Previdência Social.

Diversamente do que ocorre com os contratos celebrados por empregados


sujeitos à CLT, o §5º do dispositivo acima transcrito, recentemente alterado pela Lei nº
14.601/2023, majorou o teto, que era de 40%, para 45% do valor do benefício para
desconto em folha, dos quais 40% destinam-se ao pagamento de obrigações decorrentes
de contratos de empréstimos consignados e 5% ao pagamento das obrigações decorrentes
de contratos de cartão de crédito consignado:

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§ 5º Para os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do


Regime Geral de Previdência Social, os descontos e as retenções
referidos no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite
de 45% (quarenta e cinco por cento) do valor dos benefícios, dos
quais 35% (trinta e cinco por cento) destinados exclusivamente a
empréstimos, a financiamentos e a arrendamentos mercantis, 5%
(cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de
despesas contraídas por meio de cartão de crédito consignado ou
à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de
crédito consignado e 5% (cinco por cento) destinados
exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio
de cartão consignado de benefício ou à utilização com a finalidade
de saque por meio de cartão consignado de benefício.

Por outro lado, em relação aos titulares de benefícios de prestação


continuada, o §5º-A manteve o limite de 35%.

De acordo com os arts. 1º, §1º, e 6º, §5º, da Lei nº 10.820/03, admite-se
autorização de descontos em folha de pagamento e em benefícios previdenciários não só
para pagamento das “despesas contraídas por meio de cartão de crédito consignado”, mas
também de “saque por meio de cartão de crédito consignado”.

Importa referir que a Lei nº 10.820/2003, embora tenha introduzido uma


nova modalidade de empréstimo no direito brasileiro, não dedicou um dispositivo sequer
para discorrer acerca da formalização dos instrumentos contratuais respectivos e do dever
de informação.

Ao contrário, o art. 4º da lei, em claro descompasso com as disposições do


Código de Defesa do Consumidor e ignorando por completo a vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo, estabeleceu que as condições para a concessão do
crédito serão objeto de “livre negociação” entre a instituição financeira e o consumidor
mutuário:

Art. 4o A concessão de empréstimo, financiamento, cartão de


crédito ou arrendamento mercantil será feita a critério da
instituição consignatária, sendo os valores e as demais condições
objeto de livre negociação entre ela e o mutuário, observadas as
demais disposições desta Lei e seu regulamento.

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Não bastasse, o art. 6º, §1º, da Lei nº 10.820/03, atribuiu ao INSS a


responsabilidade de dispor, em ato próprio, sobre o procedimento aplicável à
implementação dos descontos em benefícios previdenciários:

Art. 6º (...).
§ 1o Para os fins do caput, fica o INSS autorizado a dispor, em ato
próprio, sobre:
I - as formalidades para habilitação das instituições e sociedades
referidas no art. 1o;
II - os benefícios elegíveis, em função de sua natureza e forma de
pagamento;
III - as rotinas a serem observadas para a prestação aos titulares
de benefícios em manutenção e às instituições consignatárias das
informações necessárias à consecução do disposto nesta Lei;
IV - os prazos para o início dos descontos autorizados e para o
repasse das prestações às instituições consignatárias;
V - o valor dos encargos a serem cobrados para ressarcimento dos
custos operacionais a ele acarretados pelas operações; e
V - os encargos a serem cobrados para remuneração dos serviços
de operacionalização das consignações, inclusive o ressarcimento
dos custos operacionais; e (Redação dada pela Medida
Provisória nº 922, de 2020) (Vigência encerrada)
V - o valor dos encargos a serem cobrados para ressarcimento dos
custos operacionais a ele acarretados pelas operações; e
VI - as demais normas que se fizerem necessárias.

Nesse contexto, a regulamentação dos contratos de empréstimo


consignado foi feita por intermédio da Instrução Normativa nº 28 do INSS, recentemente
revogada pela Instrução Normativa nº 138, conforme será abordado em tópico adiante.

O presente incidente, cabe ressaltar, não versa sobre a legalidade dos


contratos de cartão de crédito consignado, mas sobre a sua anulabilidade, quando
celebrados pelo consumidor mediante erro substancial provocado com inobservância ao
dever de informação pelo fornecedor.

2.2.5. TESE PROPOSTA:

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Inicialmente, saliento que as ponderações da ABBC – Associação Brasileira


de Bancos no tocante à usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal para
declaração de inconstitucionalidade, por via indireta, da Lei nº 10.820/03, não prosperam.

À toda evidência, a questão sob debate neste incidente não está


relacionada à legalidade dos contratos de cartão de crédito consignado, mas à sua
anulabilidade em virtude da violação do dever de informação por parte das instituições
financeiras e da configuração de erro substancial.

Dito de outro modo, tem como finalidade precípua conferir interpretação


aos arts. 6º, III, 46 e 52 do CDC, definindo o conteúdo e os contornos do dever de
informação em contratações dessa natureza.

Superada a questão, passo a propor a tese relativa à “a anulação do


contrato por falha na prestação do serviço por infringência ao dever de informação ao
consumidor, com a devida repetição e/ou compensação dos valores indevidamente pagos”.

Pois bem.

A causa-piloto apresenta cenário fático comum a diversas demandas


individuais que tramitam perante o Poder Judiciário gaúcho, permitindo a elaboração de
tese acerca da anulabilidade dos contratos de cartão de crédito consignado por violação ao
dever de informação.

Do relato fático-processual da causa, extrai-se que o consumidor DANILO


GIAZZON nega ter celebrado contrato de cartão de crédito consignado com o BANCO
CETELEM S/A, ao argumento de que não desejava, tampouco solicitou à instituição
financeira demandada, a emissão de qualquer cartão de crédito. Sustenta que não o
recebeu ou utilizou, assim como também não recebeu as faturas mensais, não tendo sido
informado em momento algum de que poderia quitar o saldo devedor da fatura, evitando,
dessa forma, o pagamento do valor mínimo mediante desconto em seu benefício
previdenciário.

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Imputa à instituição financeira a prática de ato ilícito consubstanciado na


falha na prestação dos serviços bancários em razão da violação ao dever de informação,
devendo ser reparados os danos materiais e morais que lhe foram causados.

Conforme exposto, o BANCO CETELEM S/A defende em sua contestação a


regularidade da contratação, ao argumento de que as partes celebraram “PROPOSTA DE
ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO”, conforme cópia juntada aos autos da
causa-piloto.

Lamentavelmente, o cenário fático que permeia a causa-piloto constitui


realidade que se repete diariamente no mercado de consumo, vindo a desaguar no Poder
Judiciário por intermédio das inúmeras demandas judiciais em que os consumidores
postulam a anulação do contrato porque não foram previamente informados sobre a
natureza, o objeto, as condições, os direitos e as obrigações do negócio jurídico celebrado.

Analisando detidamente o contexto fático-processual da causa-piloto,


percebe-se que a instituição financeira, a partir da concepção de que a livre-iniciativa, a
liberdade contratual e a autonomia privada são absolutas, redigiu uma contrato de adesão
para atender apenas aos seus interesses de forma propositalmente vaga e lacônica,
levando o consumidor ao erro e colocando-o em situação de grave prejuízo.

Ao assim agir, violou não só o dever de informação, mas também os


princípios da boa-fé, da transparência, do equilíbrio e da harmonização das relações de
consumo e da função social do contrato.

Inicialmente, convém rememorar que o perfil do consumidor que celebra


contratos de empréstimo pessoal consignado e de cartão de crédito consignado é o de
pessoas idosas, que auferem benefícios previdenciários equivalentes a 01 (um) salário-
mínimo, e de baixo grau de escolaridade, muitas das quais analfabetos funcionais, com
grande dificuldade de compreensão dos meandros contratuais. O autor da causa-piloto, sr.
DANILO GIAZZON, por exemplo, possui 73 (setenta e três) anos de idade e aufere benefício
previdenciário equivalente a R$ 927,43 mensais, conforme carteira de identidade e
histórico de créditos obtido junto ao INSS (volume 3, páginas 506 e 511-512).

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Em outras palavras, trata-se de consumidores hipervulneráveis à luz do


disposto no art. 4º, I, do CDC, gozando da tutela jurídica prevista nos art. 5º, XXXII, e 230 da
CF/88. Conforme considerações de Johannes Doll70, pode-se afirmar que DANILO é o típico
consumidor que recorre a contratos de empréstimo consignado:

Os participantes tinham, em média 69 anos de idade. Em relação


ao estado civil, se dividiam em dois grandes grupos, aqueles que
eram casados ou viviam em parcerias estáveis (39,1%) e aqueles
que tinham perdido o parceiro (39,5%). Dois grupos menores eram
constituídos pelos separados (11,6%) e solteiros (9,8%). (...)
Também a renda do grupo é dentro do esperado, pouco menor
que um terço (29,3%) possui renda até um salário mínimo (SM),
31,6% entre um e dois SM e um quarto (27,9%) entre dois e
quatro SM. Somente um grupo muito pequeno (1,9%) dispõe de
mais de 10SM.(...) Isso confirma que a renda dos participantes se
encontra dentro do universo brasileiro geral e que o grupo, de
fato, pertence à classe média baixa.
O nível educacional entre as pessoas idosas é geralmente menor
do que entre pessoas jovens o que se deve ao fato que o sistema
educacional no Brasil na época escolar dos hoje idosos não era
tão abrangente quando hoje. Muitos nunca foram para a escola e
daqueles que foram, muitos evadiram após poucos anos.(...)
Resumidamente, é possível afirmar que em torno de dois terços
(66,5%) possuem uma escolaridade bastante precária o que
sugere que a capacidade de lidar com a língua em forma escrita
seja bastante limitada. Isso é obviamente uma informação
altamente importante quando se trata da maneira como a
população dos idosos lida com contratos bancários.(...)
Resumidamente, pode-se dizer que os participantes
correspondem, em termos gerais, ao perfil de pessoas idosas no
Brasil. A maioria está integrada na sua família e possui uma
situação econômica estável, indicada pela posse de uma casa e de
uma renda regular, mesmo não sendo muito alta. A escolaridade
é fraca, como na maioria dos idosos brasileiro, dois terços tem
bastante problema com a leitura, quase um terço pode ser
considerado analfabeto funcional. Isso são informações
importantes quando se trata de assinar um contrato bancário.
Durante as entrevistas ficou evidente que a maioria dos idoso
teve uma visão muito rudimentar e confusa a respeito do seu
crédito e suas características, uma impressão que se confirmou
de forma impressionante em estudos qualitativos posteriores.

70
DOLL, Johannes. Algumas considerações sobre o crédito consignado para idosos: dados de uma pesquisa. In: MARQUES,
Cláudia Lima; LUNARDELLI, Rosângela; LIMA, Clarissa Costa (Org). Direitos do consumidor endividado II: vulnerabilidade e
inclusão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2016.
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No mesmo estudo, Johannes Doll71 aponta que os principais motivos para


contratação de empréstimos consignados são i) para ajudar familiares; ii) para reforma da
casa; iii) para pagamento de dívidas anteriores; iv) por problemas de saúde; e v) para
atendimento de necessidades básicas, dentre outros, e que muitos desses idosos são
vítimas de um círculo vicioso de endividamento:

A razão mais frequente para contratar um crédito consignado foi


para ajudar algum familiar. Por um lado, é compreensível que
frente aos juros altos parece bem razoável pedir aos pais ou avós
de fazerem um crédito consignado com juros menores. Quando
um familiar para quem o aposentado fez o empréstimo devolve o
dinheiro, não há problema. Mas o fato é que - frente ao banco –
somente a pessoa idosa que fez o crédito carrega a
responsabilidade de quitar a dívida. Quando o familiar não
consegue devolver o dinheiro, seja por questões de desemprego
ou outras razões, a responsabilidade da dívida fica exclusivamente
para a pessoa idosa.(...)
A segunda razão indicada para o empréstimo é fazer consertos e
reformas na própria casa. Esta razão parece bem razoável,
investir em condições melhores de moradia e, com isso, em
melhor qualidade de vida, é certamente uma boa forma de usar
dinheiro de um empréstimo. Já a próxima razão, o uso do crédito
consignado para pagar outras dívidas, parece problemático. Por
um lado é certamente melhor fazer um crédito consignado com
juros baixos e pagar com este dinheiro outras dívidas com juros
mais altos. Mas, como ficou evidente nas entrevistas, muitas
pessoas idosas se encontram em um círculo vicioso de
(contínuo)endividamento. Como foi relatado várias vezes por
entrevistados, muitos bancos entram em contato com as pessoas
idosas quando o crédito consignado é pago pela metade para
comunicar, que podem fazer, de novo, um outro crédito. Como a
grande maioria das pessoas idosas desconhecem as regras
bancárias ou possuem uma visão muito vaga, eles acabam por
contratar um outro crédito, às vezes não como crédito
consignado, mas como um crédito bancário regular, em condições
muito mais desvantajosas para os idosos. Este círculo vicioso ficou
evidente nas entrevistas com os participantes de Porto Alegre,
onde 16 participantes tiveram somente um crédito, mas 11
tiveram dois empréstimos ao mesmo tempo, 13 tinham três ou
mais ao mesmo tempo e o recorde foi um participante com oito
créditos. A partir destes dados podemos desconfiar que a razão de

71
DOLL, Johannes. Algumas considerações sobre o crédito consignado para idosos: dados de uma pesquisa. In: MARQUES,
Cláudia Lima; LUNARDELLI, Rosângela; LIMA, Clarissa Costa (Org). Direitos do consumidor endividado II: vulnerabilidade e
inclusão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2016.
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pagar um empréstimo com um outro, seja um forte indicador de


um superendividamento.
As rendas não muito altas das aposentadorias são, geralmente,
insuficientes para cobrir os gastos de um evento extraordinário
como, por exemplo, uma doença. Os dados da pesquisa
demonstraram que problemas com a saúde também são uma das
razões principais para contratar um crédito consignado. Porém, a
razão mais preocupante mesmo é o fato que o crédito torna-se
necessário para cobrir os gastos com as necessidades básicas,
uma razão que 16,3% dos participantes indicaram. Pois, quando a
renda normal já não é suficiente para pagar os gastos da vida
diária, como será a situação quando esta renda for reduzida ainda
mais pelas prestações do crédito, o que pode chegar a 35%?

Nessa perspectiva, as instituições financeiras, atentas às limitações próprias


dos consumidores com quem pretendem celebrar contratos bancários, devem adotar as
medidas necessárias para que os termos da contratação sejam facilmente compreendidos,
permitindo o exercício da liberdade contratual de forma suficientemente esclarecida. Ou
seja, deve cercar-se de todas as medidas necessárias para que a negociação seja permeada
pela transparência, pelo equilíbrio e pela boa-fé, como exige o art. 4º, I, e III, do CDC.

Considerando a vulnerabilidade fática - social, econômica, jurídica e


contábil - e informacional existente entre as partes, é necessário que a instituição
financeira, por vezes, precise dizer o óbvio para que o dever de informação seja observado
e para que o consumidor celebre o contrato com plena ciência das consequências jurídicas
e econômicas do seu ato.

Isso porque, o que é óbvio para o fornecedor não o é para o consumidor!

O empréstimo pessoal consignado e o cartão de crédito consignado foram


concebidos pelas instituições financeiras como serviços de crédito disponibilizados no
mercado de consumo. Não há dúvidas de que a própria regulamentação dessa modalidade
de crédito por intermédio da Lei nº 10.820/03 é demonstração clara do poder que as
instituições financeiras exercem no Brasil.

Consequentemente, têm pleno conhecimento das repercussões sociais,


econômicas, contábeis e jurídicas que envolvem contratações dessa natureza, tanto que

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inclusive redigem os instrumentos contratuais respectivos de acordo com os seus


interesses, cabendo aos consumidores apenas aderirem aos seus termos.

O consumidor, por outro lado, é um leigo, muitas vezes de baixa instrução,


humilde e pouca escolaridade (não raro, analfabetos funcionais), que almeja, única e
exclusivamente, a concessão de crédito para a satisfação das suas necessidades pessoais,
desconhecendo as diversas modalidades contratuais disponíveis, a natureza jurídica dessas
avenças, os direitos e as obrigações delas decorrentes e as suas consequências jurídicas e
econômicas. Muitos consumidores inclusive desconhecem a existência do próprio cartão de
crédito consignado, acreditando existir, única e exclusivamente, o contrato de empréstimo
pessoal consignado.

Nesse norte, o cumprimento do dever de informação imposto ao


fornecedor pelos arts. 6º, III, 46, 52, 54-B, 54-C, 54-D e 54-F do CDC, deve levar em
consideração se as cláusulas e condições previstas nos instrumentos contratuais permitem
a compreensão do conteúdo da avença, especialmente em relação: i) à natureza do
negócio jurídico celebrado; ii) ao objeto primordial do negócio jurídico; iii) às condições do
negócio jurídico; iv) aos direitos e obrigações das partes contratantes; v) às consequências
que resultarão ao consumidor.

Tomando-se a causa-piloto como exemplo, a“PROPOSTA DE ADESÃO –


CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO” apresentada pelo BANCO CETELEM S/A com o objetivo
de demonstrar a regularidade da contratação não permite a compreensão do conteúdo
contratual, pois não contém cláusulas dispondo, de forma clara e adequada, sobre: i) a
natureza e o objeto principal (cartão de crédito consignado); ii) a responsabilidade da
instituição financeira de emitir um cartão de crédito em nome do consumidor; iii) o direito
e a responsabilidade do consumidor em relação à utilização do cartão para realização de
compras de produtos e serviços a prazo na praça de comércio ou para a realização de
saques, bem como em relação à sua guarda e conservação; iv) a responsabilidade da
instituição financeira em relação ao envio mensal das faturas ao consumidor, com o
detalhamento de todas as transações realizadas; v) a responsabilidade do consumidor de
efetuar o pagamento das faturas devidas, na data dos seus vencimentos, sob pena de

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incidência de encargos moratórios; vi) a possibilidade de o consumidor efetuar o


pagamento total ou parcial da fatura, e, na hipótese de pagamento mínimo, o
refinanciamento do saldo devedor; vii) a possibilidade de cancelamento do cartão de
crédito mediante solicitação do consumidor a qualquer tempo; dentre outras.

Cláusulas dessa natureza constituem a essência do contrato de cartão de


crédito, conforme escólio doutrinário de Bruno Miragem72:

O contrato de cartão de crédito, embora, como a sua própria


denominação indica, tenha pro objeto a disponibilidade de crédito
ao consumidor para a aquisição de produtos e serviços no
mercado, merece exame apartado em face de certas
peculiaridades, seja do modo de financiamento, ou mesmo no
tocante ao conteúdo do contrato. Trata-se de meio de pagamento
direto pelo consumidor, mediante o uso de cartão físico (cartão
plátisco), ou registro eletrônico, em que a administradora de
cartão de crédito compromete-se ao pagamento da obrigação
assumida pelo consumidor que utiliza o cartão perante seu credor,
o qual de sua vez, tem vínculo contratual com a administradora,
comprometendo-se a aceitar aquele meio de pagamento na
realização dos seus negócios. Trata-se de um serviços de
intermediação da contratação entre um consumidor e um
integrante da rede de fornecedores, no qual, mediante
apresentação do cartão e registro da operação pelo fornecedor, a
administradora obriga-se a satisfazer a dívida contraída pelo
usuário do cartão, contra quem emite fatura mensal com a
cobrança dos valores da operação e respectiva remuneração pelo
serviço, em geral exigida sob a forma de anuidade (contribuição
anual, a qual pode ser normalmente parcelada, ou mesmo
diminuída conforme intensidade da utilização).

Ainda, de acordo com o autor73, o contrato de cartão de crédito tem como


objeto diversas prestações por parte da administradora do cartão de crédito, dentre as
quais a intermediação de transações realizadas junto aos estabelecimentos credenciados
mediante concessão de crédito:

O objeto do contrato de cartão de crédito comporta as seguintes


prestações: a) intermediação de pagamento à vista pelo
consumidor em relação a operação realizada em estabelecimento
pertencente a uma rede credenciada; b) cobertura dos valores

72 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
73 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
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utilizados para aquisição de produtos ou serviços junto a


estabelecimento pertencente à rede credenciada (operação de
crédito); c) outorga de crédito ao consumidor relativamente aos
pagamentos realizados aos estabelecimentos pertencentes à rede
credenciada, mediante financiamento da dívida, nos termos
ajustados entre a administradora de cartão de crédito e o
consumidor; d) outorga de crédito direto ao consumidor mediante
direito de saque de dinheiro, com uso do cartão de crédito em
terminais automáticos ou rede credenciada (crédito rotativo).
Neste último caso, o consumidor pagará à administradora de
cartão de crédito, juros contratados do dia do saque até a data de
vencimento da fatura em que esteja lançada a operação.

Nessa perspectiva, embora os contratos de cartão de crédito sejam atípicos


e ainda não gozem de regulamentação legal no Brasil, Waldo Fazzio Júnior74 aponta os
elementos essenciais a essa espécie de negócio jurídico:

Referidos instrumentos regulam a prestação dos serviços de


administração do cartão, que compreende:
- aprovação da proposta de adesão ao contrato de cartão de
crédito do titular e respectivos(s) adicional(is), conforme critérios
de análise estabelecidos pela emissora;
- cadastramento dos titulares;
- emissão, entrega e desbloqueio do cartão;
- administração do pagamento das obrigações decorrentes do uso
do cartão, mediante processamento das transações e suas
liquidações junto aos estabelecimentos;
- processamento dos pagamentos efetuados pelo titular, incluindo
aqueles decorrentes de cobrança extrajudicial e/ou judicial;
- financiamento de saques e despesas relativas às transações, na
forma contratada;
- garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do uso do
cartão, contraídas perante os estabelecimentos afiliados e as
instituições financeiras;
- prestação de contas ao titular, mediante remessa da fatura
mensal;
- bloqueio, impedimento suspensão do uso ou cancelamento do
cartão, nos casos previstos no contrato;
- manutenção de tecnologia de segurança contra o uso
fraudulento do cartão por terceiros, mediante monitoramento do
padrão de consumo do titular.

74 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Cartão de crédito, cheque e direito do consumidor. São Paulo: Atlas; 2011.
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Como se observa, cláusulas dessa natureza são essenciais à celebração de


contratos de cartão de crédito, as quais, por óbvio, deveriam estar presentes em contratos
de cartão de crédito consignado celebrados entre as instituições financeiras e os
consumidores, já que a única diferença entre uma e outra modalidade reside na
possibilidade de pagamento do valor mínimo da fatura mediante desconto em folha de
pagamento ou benefício previdenciário.

A ausência de disposições contratuais nesse sentido, além de afrontar o


dever de informação e autorizar a anulação de negócios jurídicos por erro substancial,
poderia, em última análise, autorizar a declaração de inexistência do negócio jurídico,
porque ausentes cláusulas e condições mínimas acerca dessa espécie de contratação.

Noutro giro, na ausência de cláusulas contratuais claras e precisas o


suficiente para permitir a compreensão do conteúdo contratual, especialmente da natureza
e do objeto do contrato de cartão de crédito consignado, não há como exigir que o
consumidor tenha conhecimento, pleno e inequívoco, de que celebrou um contrato de
cartão de crédito consignado.

A inclusão de ressalva ou observação de que a proposta ou formulário


assinado pelo consumidor fazem parte integrante de contrato arquivado em Cartório de
Títulos e Documentos, como sói ocorrer em negociações dessa natureza, também não
supre a ausência de cláusulas contratuais essenciais à avença e não atende ao dever de
informação, já que não oportunizado o prévio conhecimento ao consumidor, conforme
previsão do art. 46 do CDC e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Lembre-se que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de modo


mais benéfico ao consumidor, não lhes sendo oponíveis se não oportunizado prévio
conhecimento, como deflui da interpretação conjunta do art. 423 do CC e dos arts. 46 e 47
do CDC:

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas


ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação
mais favorável ao aderente.

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Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não


obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade
de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os
respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a
compreensão de seu sentido e alcance.

Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira


mais favorável ao consumidor.

Porque extremamente pertinente, valho-me do escólio doutrinário de


Cláudia Lima Marques acerca da incidência do art. 46 do CDC - cujo teor foi analisado em
tópico anterior - ao contrato de cartão de crédito consignado, ad litteram:

Abuso da ‘fraqueza’ do idoso, vedação ao assédio, a dificultar a


compreensão sobre os ônus e riscos da contratação e o cartão de
crédito consignado para idosos: O art. 46 do CDC pode ser usado
no caso dos cartões de crédito consignado para idosos. A
jurisprudência tem tido muito trabalho em virtude destas
contratações sem informações suficientes em que os idosos são
“alvo” de contratações que ocultam a verdadeira natureza da
contratação, que não é um crédito consignado e sim um cartão de
crédito,– com juros diferenciados do consignado – em que se paga
apenas o mínimo, levando a dívidas impagáveis. Aqui o art. 46 do
CDC pode ajudar face à dificuldade de entendimento desta
contratação pelos idosos, tanto na oferta pelos intermediários,
comissionados e “pastinhas”, como pela redação truncada de
forma a dificultar a compreensão sobre os ônus e riscos da
contratação, tendo como resultado desta aplicação que o
referido crédito “não obrigará” o consumidor idoso. A Lei
14.181/2021 veio ajudar nesta “interpretação” do art. 46 do CDC
e por isso pode ter aplicação imediata (conforme o art. 5º da
referida Lei) às práticas anteriores, que já violavam o art. 46
(combinado com o artigos 30, 31, 33, 34, 39, IV, 48, 51, IV e 54) do
CDC. Neste sentido, o art. 46 atua como sanção às práticas
abusivas contra consumidores especialmente vulneráveis, como
os idosos, sujeitos a proteger segundo a Constituição (art. 230
da CF/1988) tanto como idosos, como consumidores (art. 5º,
XXXII, da CF/1988). A atualização do CDC esclarece a figura já
prevista no art. 39, IV do CDC do assédio de consumo aos mais
fracos (“prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor,
tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição
social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”); e esclarece
agora no art. 54-C que o assédio não é só “impingir” produtos,
mas são técnicas de venda e marketing dirigido, que “distorcem”
a compreensão da contratação, ‘pressionam’ os mais vulneráveis

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entre os consumidores (o consumidor idoso, analfabeto, com


deficiência, ingênuo, doente ou em estado de necessidade) ou
exercem “influência indevida” na liberdade de contratar, que
deveria ser “informada”, “esclarecida” e racional. Assim o art. 54-
C introduzido pela Lei 14.181/2021, que se aplica desde o dia 2 de
julho de 2021 aos efeitos atuais dos contratos em curso (art. 3º da
Lei) também ajuda a interpretar as regras antigas do CDC, quando
afirma que viola a boa-fé o fornecedor de crédito que: “III –
ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da
contratação do crédito ou da venda a prazo; IV – assediar ou
pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de
produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de
consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de
vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio”.
O caso do cartão de crédito consignado para idosos não é
diferente e merece que se utilize o art. 46 do CDC para impedir
que esta prática abusiva de contratar com idosos dívidas
impagáveis, que eles acreditam ser um crédito consignado e
saques e valores que são depositados em suas contas (sem que
saibam que deveriam imediatamente devolver em sua
totalidade), perenize-se no país.

Há que se atentar que em muitas situações o limite do cartão é


integralmente transferido para conta bancária de titularidade do consumidor, que sequer
recebe uma via física ou as faturas mensais em suas residências.

Igualmente, há situações em que a instituição financeira alcança o


cartão(plástico) ao consumidor, o qual se atém a realizar uma única operação, qual seja, o
saque do valor total do limite de crédito concedido, sem que, da mesma forma, lhe sejam
enviadas as faturas mensais.

Como exigir que o consumidor, à míngua de informação clara e precisa


sobre a natureza e o objeto do negócio jurídico e inserido em realidade negocial como essa,
esteja ciente de que celebrou um contrato de cartão de crédito consignado?

Salvo melhor juízo, e atenta à função interpretativa da boa-fé, em


situações como essas, aquilo que se apresenta ao consumidor não guarda relação com a
celebração de contrato de cartão de crédito consignado, mas de um contrato de
empréstimo pessoal consignado, razão pela qual possível a conversão de uma modalidade

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contratual em outra com amparo no art. 113 do CC, conforme será abordado em tópico
próprio.

Registre-se que a inclusão de expressões e informações genéricas pelas


instituições financeiras em contratos dessa natureza não supre a ausência das referidas
cláusulas, tampouco prestam para cumprir o dever de informação. Dito de outro modo, o
nomen juris atribuído ao negócio jurídico não é, por si só, suficiente para a configuração do
contrato, devendo estar respaldado pelo teor das suas cláusulas e pela dinâmica negocial
entabulada entre as partes, devendo-se atentar, em última análise, para a boa-fé objetiva e
seus deveres anexos.

Na causa-piloto, por exemplo, o BANCO CETELEM S/A advoga pela validade


do contrato de cartão de crédito consignado com amparo em documento que, embora
denominado “PROPOSTA DE ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO”, não possui
qualquer cláusula afeta a essa espécie contratual, como já referido.

Como exemplifica o caso da causa-piloto, a proposta apresentada pelo


BANCO CETELEM S/A não contém qualquer cláusula prevendo a responsabilidade do
consumidor quanto ao pagamento do valor total da fatura de cartão de crédito – que não
foi emitido, tampouco entregue, diga-se de passagem -, assim como também não há
qualquer cláusula prevendo a possibilidade de quitação integral e antecipada do saldo
devedor.

Aliás, sequer há cláusulas evidenciando a obrigação da própria instituição


financeira em emitir o cartão de crédito e enviar as faturas mensais ao consumidor, como já
referido. Daí porque a declaração de ciência quanto ao refinanciamento automático do
saldo devedor, considerando a inexistência de cláusulas contratuais essenciais ao negócio e
a forma como se desenvolveu a relação contratual, nada significa para o consumidor, que,
relembre-se, recebeu a totalidade do crédito que lhe fora concedido mediante
transferência bancária e em momento algum recebeu o cartão de crédito ou as faturas
mensais.

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Oportuno lembrar que o pagamento mínimo da fatura do cartão de crédito


e o financiamento do saldo devedor são – ou pelo menos deveriam ser – a exceção, e não a
regra, como exemplifica a Resolução nº 4.549/2017 do BACEN.

Nesse norte, entendo que a proposta, formulário ou contrato, embora


assinadas pelo consumidor, não significam o cumprimento do dever de informação pela
instituição financeira, devendo-se verificar se o teor das cláusulas contratuais nelas
constantes têm o condão de informar, de forma suficiente, clara e adequada, a natureza do
negócio jurídico, seu objeto, as obrigações das partes contratantes e as consequências que
advêm ao consumidor.

Esse entendimento está respaldado não só pelas disposições do Código de


Defesa do Consumidor, mas também por resoluções expedidas pelo BACEN e pelo Conselho
Monetário Nacional, que orientam a atividade bancária.

Conquanto o dever de informação, nos termos do anteriormente apontado,


seja multifacetado, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu regras essenciais sobre
os contratos que envolvam a concessão de crédito ou financiamento no art. 52, in verbis:

Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva


outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor,
o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e
adequadamente sobre:
I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros;
III - acréscimos legalmente previstos;
IV - número e periodicidade das prestações;
V - soma total a pagar, com e sem financiamento.
§ 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de
obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por
cento do valor da prestação.
§ 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do
débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos
juros e demais acréscimos.
§ 3º (Vetado).

A despeito da sua clareza, a realidade inerente a negociações dessa


natureza demonstrou o reiterado descumprimento em relação ao dever de informação, o
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que contribuiu para o crescimento dos casos de superendividamento. Por essa razão, a Lei
do Superendividamento, Lei nº 14.818/2021, introduziu os arts. 54-B, 54-C e 54-D no CDC,
que impõem deveres especiais de informação e proteção ao fornecedor nos contratos de
fornecimento de crédito e de venda a prazo, in verbis:

Art. 54-B. No fornecimento de crédito e na venda a prazo, além


das informações obrigatórias previstas no art. 52 deste Código e
na legislação aplicável à matéria, o fornecedor ou o
intermediário deverá informar o consumidor, prévia e
adequadamente, no momento da oferta, sobre:
I - o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o
compõem;
II - a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de
mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para
o atraso no pagamento;
III - o montante das prestações e o prazo de validade da oferta,
que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias;
IV - o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;
V - o direito do consumidor à liquidação antecipada e não
onerosa do débito, nos termos do § 2º do art. 52 deste Código e
da regulamentação em vigor.
§ 1º As informações referidas no art. 52 deste Código e no caput
deste artigo devem constar de forma clara e resumida do
próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil
acesso ao consumidor.
§ 2º Para efeitos deste Código, o custo efetivo total da operação
de crédito ao consumidor consistirá em taxa percentual anual e
compreenderá todos os valores cobrados do consumidor, sem
prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do
sistema financeiro.
§ 3º Sem prejuízo do disposto no art. 37 deste Código, a oferta de
crédito ao consumidor e a oferta de venda a prazo, ou a fatura
mensal, conforme o caso, devem indicar, no mínimo, o custo
efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e
sem financiamento.

Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de


crédito ao consumidor, publicitária ou não:
I - (VETADO);
II - indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem
consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da
situação financeira do consumidor;

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III - ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos


da contratação do crédito ou da venda a prazo;
IV - assediar ou pressionar o consumidor para contratar o
fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se
tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de
vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;
V - condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o
início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas
judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos
judiciais.
Parágrafo único. (VETADO).

Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o


fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I - informar e esclarecer adequadamente o consumidor,
considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do
crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o
disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as
consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II - avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do
consumidor, mediante análise das informações disponíveis em
bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto
neste Código e na legislação sobre proteção de dados;
III - informar a identidade do agente financiador e entregar ao
consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do
contrato de crédito.
Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres
previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste
Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos
encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do
prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a
gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades
financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de
indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao
consumidor.

Art. 54-G. Sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código e na


legislação aplicável à matéria, é vedado ao fornecedor de
produto ou serviço que envolva crédito, entre outras condutas:
I - realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de
qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em
compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não
for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o
consumidor haja notificado a administradora do cartão com
antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de

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vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura


seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total
da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não
contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança
o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido
cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação;
II - recusar ou não entregar ao consumidor, ao garante e aos
outros coobrigados cópia da minuta do contrato principal de
consumo ou do contrato de crédito, em papel ou outro suporte
duradouro, disponível e acessível, e, após a conclusão, cópia do
contrato;
III - impedir ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do
cartão de crédito ou similar, que o consumidor peça e obtenha,
quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio do
pagamento, ou ainda a restituição dos valores indevidamente
recebidos.
§ 1º Sem prejuízo do dever de informação e esclarecimento do
consumidor e de entrega da minuta do contrato, no empréstimo
cuja liquidação seja feita mediante consignação em folha de
pagamento, a formalização e a entrega da cópia do contrato ou
do instrumento de contratação ocorrerão após o fornecedor do
crédito obter da fonte pagadora a indicação sobre a existência
de margem consignável.
§ 2º Nos contratos de adesão, o fornecedor deve prestar ao
consumidor, previamente, as informações de que tratam o art.
52 e o caput do art. 54-B deste Código, além de outras
porventura determinadas na legislação em vigor, e fica obrigado
a entregar ao consumidor cópia do contrato, após a sua
conclusão

Em última análise, os dispositivos em exame consagram os princípios da


transparência, da vulnerabilidade e da boa-fé, concretizando o dever de informação nas
relações de consumo. A respeito do dever qualificado de informar positivado no art. 54-B
do CDC, que conferiu contornos mais precisos ao dever de informação em contratos que
envolvem a concessão de crédito, oportunos os comentários de Cláudia Lima Marques75:

Dever de informar. Resumo do contrato: O §1º do art. 54-B faz


referência a que tanto as informações exigidas do fornecedor
segundo o art. 52, quanto as da norma em comento, devem
constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura
ou de instrumento apartado.

75MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do
Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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Trata-se de privilegiar objetividade e clareza das informações,


considerando a capacidade do consumidor de identificá-las e
compreendê-las antes da decisão de contratação do crédito, ou
mesmo durante a execução do contrato, para ser advertido das
repercussões da opção por eventual financiamento ou não
pagamento do valor total da dívida, submetendo-se à obrigação
de juros. A locução “do próprio contrato, da fatura ou de
instrumento apartado” se deve tomar em dois sentidos, no
tocante ao momento da informação. No contrato, privilegia-se o
momento da celebração, pressupondo o atendimento de acesso
prévio do consumidor ao seu conteúdo. No caso da fatura,
abrange, igualmente, os contratos de cumprimento contínuo,
como o são os que envolvam cartão de crédito ou outra relação
duradoura, permitindo ao consumidor a tomada de crédito ou
financiamento a qualquer tempo (e.g. serviços de
crédito/financiamento para aquisição em redes de varejistas, por
exemplo). As informações em instrumento apartado tanto podem
integrar a oferta pré-contratual quanto ser entregues ao
consumidor por ocasião da celebração do negócio, para efeito de
permitir-lhe fácil acesso ou recuperação das informações do
contrato, quando necessário. O fácil acesso ao consumidor às
informações exigidas pela lei, representa um ônus do qual deve-
se desincumbir o fornecedor. Não basta apenas tornar
disponíveis informações. É necessário que tome em consideração
o destinatário e sua capacidade real de compreensão das
informações, assim como eventuais obstáculos que possa ter à
compreensão dos elementos que integram a oferta ou o
contrato. Trata-se de avaliação a ser feita em vista da situação
concreta. Quem oferte crédito ao consumidor idoso, por
exemplo, deve ter em conta as limitações naturais à
compreensão de certo modo de oferta, ou o tempo mais
dilatado para apreensão das informações, conforme o caso. Ao
dizer-se “fácil acesso”, orienta-se à norma a um resultado que
deve ser obtido, para o que exige-se o comportamento ativo do
consumidor no sentido de cumprir autêntico dever de
esclarecimento.

No plano normativo, a Resolução nº 3.694/2009 do BACEN, que vigorou até


01/03/2022 e que dispunha “sobre a prevenção de riscos na contratação de operações e na
prestação de serviços por parte de instituições financeiras e demais instituições autorizadas
a funcionar pelo Banco Central do Brasil”, impunha às instituições financeiras a observância
em relação aos deveres de transparência, informação e boa-fé, a fim de que o consumidor

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possa optar pelo serviço de crédito que melhor atende aos seus interesses, conforme
dicção do seu art. 1º:

Art. 1º As instituições financeiras e demais instituições


autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, na
contratação de operações e na prestação de serviços, devem
assegurar:
I - a adequação dos produtos e serviços ofertados ou
recomendados às necessidades, interesses e objetivos dos
clientes e usuários;
II - a integridade, a confiabilidade, a segurança e o sigilo das
transações realizadas, bem como a legitimidade das operações
contratadas e dos serviços prestados;
III - a prestação das informações necessárias à livre escolha e à
tomada de decisões por parte de clientes e usuários, explicitando,
inclusive, direitos e deveres, responsabilidades, custos ou ônus,
penalidades e eventuais riscos existentes na execução de
operações e na prestação de serviços;
IV - o fornecimento tempestivo ao cliente ou usuário de
contratos, recibos, extratos, comprovantes e outros documentos
relativos a operações e a serviços;
V - a utilização de redação clara, objetiva e adequada à natureza
e à complexidade da operação ou do serviço, em contratos,
recibos, extratos, comprovantes e documentos destinados ao
público, de forma a permitir o entendimento do conteúdo e a
identificação de prazos, valores, encargos, multas, datas, locais
e demais condições;
VI - a possibilidade de tempestivo cancelamento de contratos;
VII - (Revogado, a partir de 1º/3/2022, pela Resolução BCB nº 96,
de 19/5/2021.)
VIII - o encaminhamento de instrumento de pagamento ao
domicílio do cliente ou usuário ou a sua habilitação somente em
decorrência de sua expressa solicitação ou autorização; e
IX - a identificação dos usuários finais beneficiários de pagamento
ou transferência em demonstrativos e faturas do pagador,
inclusive nas situações em que o serviço de pagamento envolver
instituições participantes de diferentes arranjos de pagamento.
Parágrafo único. Para fins do cumprimento do disposto no inciso
III, no caso de abertura de conta de depósitos ou de conta de
pagamento, deve ser fornecido também prospecto de informações
essenciais, explicitando, no mínimo, as regras básicas, os riscos
existentes, os procedimentos para contratação e para rescisão, as
medidas de segurança, inclusive em caso de perda, furto ou roubo
de credenciais, e a periodicidade e forma de atualização pelo
cliente de seus dados cadastrais.

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A Resolução nº 3.694/2009 do BACEN, foi revogada pela Resolução nº


4.949/2021 do Conselho Monetário Nacional, que entrou em vigor em 1º de março de 2022
e “Dispõe sobre princípios e procedimentos a serem adotados no relacionamento com
clientes e usuários de produtos e de serviços”. Prevê o art. 2º que “As instituições de que
trata o art. 1º, no relacionamento com clientes e usuários de produtos e de serviços, devem
conduzir suas atividades com observância de princípios de ética, responsabilidade,
transparência e diligência, propiciando a convergência de interesses e a consolidação de
imagem institucional de credibilidade, segurança e competência”. Em redação semelhante,
o art. 4º76 dessa resolução manteve as diretrizes previstas no art. 1º da Resolução nº
3.694/2009 do BACEN.

Logo, está claro que as instituições financeiras integrantes do Sistema


Financeiro Nacional estão submetidas ao teor dessas resolução, razão pela qual devem
observar e cumprir os seus preceitos nas relações que mantiverem com consumidores.

Não se ignora a preocupação da FEBRABAN no tocante à autorregulação do


mercado bancário por intermédio do Sistema de Autorregulação Bancária.

76 Resolução nº 4.949/2021 CMN, Art. 4º As instituições de que trata o art. 1º, na contratação de operações e na prestação de
serviços, devem assegurar:
I - adequação dos produtos e serviços ofertados ou recomendados às necessidades, aos interesses e aos objetivos dos clientes
e usuários;
II - integridade, conformidade, confiabilidade, segurança e sigilo das transações realizadas, bem como legitimidade das
operações contratadas e dos serviços prestados;
III - prestação, de forma clara e precisa, das informações necessárias à livre escolha e à tomada de decisões por parte de
clientes e usuários, explicitando, inclusive, direitos e deveres, responsabilidades, custos ou ônus, penalidades e eventuais
riscos existentes na execução de operações e na prestação de serviços;
IV - utilização de redação clara, objetiva e adequada à natureza e à complexidade da operação ou do serviço, em contratos,
recibos, extratos, comprovantes e documentos destinados ao público, de forma a permitir o entendimento do conteúdo e a
identificação de prazos, valores, encargos, multas, datas, locais e demais condições;
V - identificação dos usuários finais beneficiários de pagamento ou transferência em demonstrativos e extratos de contas de
depósitos e contas de pagamento pré-paga, inclusive nas situações em que o serviço de pagamento envolver instituições
participantes de diferentes arranjos de pagamento;
VI - encaminhamento de instrumento de pagamento ao domicílio do cliente ou usuário ou a sua habilitação somente em
decorrência de sua expressa solicitação ou autorização; e
VII - tempestividade e inexistência de barreiras, critérios ou procedimentos desarrazoados para:
a) o atendimento a demandas de clientes e usuários, incluindo o fornecimento de contratos, recibos, extratos, comprovantes
e outros documentos e informações relativos a operações e a serviços;
b) a extinção da relação contratual relativa a produtos e serviços, incluindo o cancelamento de contratos; e
c) a transferência de relacionamento para outra instituição, se aplicável.
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Conforme previsão do art. 1º77 do Normativo SARB 010/2013, o programa


de autorregulação de crédito responsável às pessoas físicas pretende contribuir para a
melhoria da qualidade, segurança, sustentabilidade e harmonia nas relações de consumo e
das operações financeiras, e tem como finalidade estabelecer diretrizes e orientações
visando à concessão de crédito responsável a pessoas físicas. Conforme art. 2º desse ato
normativo, “O compromisso com o respeito ao consumidor integra as políticas e diretrizes
de comunicação, publicidade e oferta de operações de crédito, as quais devem ser
claramente estabelecidas, divulgadas e disseminadas internamente pelas Signatárias, de
modo a abranger todas as áreas da organização”.

O art. 3º, caput e §1º, reforçam o teor do art. 6º, III, do CDC ao dispor que
“Respeitadas as características e limitações de cada mídia e veículo, a publicidade dos
produtos de crédito deverá conter elementos e procedimentos que orientem
adequadamente o uso responsável do crédito”, e que “A publicidade sobre o
fornecimento de produto, serviço ou crédito deverá conter, de forma clara e objetiva,
todas as informações e orientações necessárias que permitam ao consumidor a plena
compreensão sobre os ônus e os riscos decorrentes da contratação”.

Ao tratar da concessão de crédito responsável, o art. 6º dispõe que


“Considera-se contratação de crédito responsável aquela que possibilite verificar a
adequação da oferta de crédito realizada ao perfil econômico e à capacidade de
pagamento do consumidor contratante, sob avaliação da instituição financeira,
especialmente quando se tratar de público potencialmente vulnerável, com base nas
informações declaradas e disponíveis nos bancos de dados públicos e privados de crédito”.
Como se observa, o dispositivo em comento reforça a boa-fé que deve permear as relações
entabuladas entre as instituições financeiras e os consumidores, notadamente em relação
aos deveres anexos de proteção, lealdade e informação.

77 Normativo SARB 010/2013, Art. 1º Fica instituído o programa de autorregulação de crédito responsável às pessoas físicas, o
qual contribuirá para a melhoria da qualidade, segurança, sustentabilidade e harmonia nas relações de consumo das
operações financeiras.
Parágrafo único. O programa de autorregulação de crédito responsável estabelece diretrizes e procedimentos a serem
observados nas etapas de oferta e contratação de crédito, bem como na prevenção e no tratamento dos consumidores em
situação de superendividamento. (redação dada pela Deliberação nº 040, de 26 de outubro de 2022)
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Recentemente, foram introduzidos os arts. 14 e 15 no Normativo SARB


010/2013, que dispõem sobre a disponibilização de informações prévias que permitam ao
consumidor a comparação entre os diferentes produtos e serviços disponibilizados no
mercado de consumo no ato da contratação, in verbis:

Art. 14. Considera-se orientação prévia de comparabilidade as


informações colocadas à disposição dos contratantes,
preferencialmente por meio virtual, sobre os produtos de crédito
semelhantes oferecidos ao consumidor e os canais de acesso à
Signatária para solucionar dúvidas e obter esclarecimentos.
(renumerado pela Deliberação nº 040, de 26 de outubro de 2022)
Parágrafo Único. No ato da contratação, o consumidor que teve
acesso às informações de comparabilidade terá esclarecidas suas
eventuais dúvidas sobre o produto contratado.

Art. 15. No momento da contratação serão esclarecidos para o


consumidor, de forma objetiva, clara e precisa: (renumerado pela
Deliberação nº 040, de 26 de outubro de 2022)
I - as consequências da falta de pagamento; e
II - o procedimento a ser observado pelo consumidor para solicitar
a liquidação antecipada de pagamento, total ou parcial.

O Normativo SARB 015/2014, por outro lado, tem como finalidade precípua
estabelecer regras sobre a concessão de crédito consignado, dispondo em seu art. 1º que
“O normativo de crédito consignado tem por objetivo contribuir para a prevenção de
conflitos, a melhoria da qualidade, segurança e harmonia nas relações de consumo
relacionadas às operações financeiras cuja forma de pagamento seja a consignação
diretamente em folha de pagamento”.
Dispõe o parágrafo único desse dispositivo que “Nenhum princípio, diretriz ou procedimento
deste Normativo deve ser interpretado ou resultar em menor proteção aos direitos dos
consumidores, conforme previsto nas normas e regulamentação existentes.

O art. 3º, por sua vez, estabelece orientações às instituições financeiras


com o objetivo de atender ao dever de informação no que tange a proposta contratual:

Art. 3º A proposta contratual observará as regras aprovadas em


normativo específico da Autorregulação – Normativo SARB
12/2014 - complementada pelas disposições específicas deste
normativo.
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Parágrafo único. Caso no momento da apresentação da proposta


contratual pelo correspondente ao cliente não for possível indicar
todas as informações referidas no caput, ela conterá, no mínimo,
o valor solicitado pelo cliente, a quantidade e o valor de parcelas
pretendidas e os juros remuneratórios incidentes, ficando a
Instituição Signatária, nesse caso, obrigada a enviar as demais
informações ao cliente antes da efetiva contratação da operação
de crédito proposta e da sua averbação na folha de pagamento.

Como se observa, os dispositivos acima transcritos fazem menção aos


ditames do Normativo SARB 12/2014, o qual “tem por objetivo estabelecer os elementos
mínimos que integram o resumo contratual de crédito e assegurar transparência, lealdade,
informações objetivas e eficiência nas relações de consumo entre as Signatárias e os
consumidores”. Os arts. 3º78 e 4º79 desse ato normativo estabelecem as informações
mínimas que devem constar dos instrumentos contratuais em relação às informações
econômicas da transação e aos direitos do consumidor.

78 Art. 3º O resumo contratual tem por objetivo assegurar de forma transparente, clara e precisa a informação sobre as
principais cláusulas do contrato de crédito entre o consumidor e as Signatárias. Parágrafo único. O resumo contratual não
substitui ou afasta o contrato celebrado entre as partes, mas suas informações vinculam, nos termos das normas em vigor, os
respectivos contratantes.
79 Art. 4º O resumo contratual deverá conter, sem prejuízo de outras complementações pelas Signatárias, as seguintes

informações econômicas e de direitos dos consumidores:


I – Econômicas da transação, que compreenderá:
a. valor do empréstimo contratado pelo consumidor (valor entregue em conta e eventuais IOF + tarifas + seguros);
b. valor a ser recebido pelo consumidor;
c. valor das tarifas cobradas;
d. valor dos tributos incidentes;
e. eventual valor da contratação do seguro;
f. outros valores incidentes, quando houver, devidamente especificados;
g. taxa de juros ao mês e ao ano;
h. quantidade de parcelas; e
i. valor da parcela mensal.
II – Custo Efetivo Total, mensal e anual, e a descrição dos elementos que o compõem; (redação dada pela Deliberação nº 041,
de 26 de outubro de 2022)
III - Encargos de atraso;
IV - O nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor; (incluído pela Deliberação nº 041, de 26 de outubro de 2022)
V – Direitos do Consumidor: (renumerado pela Deliberação nº 041, de 26 de outubro de 2022)
a. exercício da liquidação antecipada e portabilidade;
b. canais de atendimento disponíveis e
c. exercício do direito de desistência, nos termos do artigo 12 do Normativo SARB 10/2013. (redação dada pela Deliberação nº
041, de 26 de outubro de 2022)
§1º Nos casos de financiamento para aquisição de bens ou serviços, será informada a soma total a pagar, com ou sem
financiamento do contrato de crédito celebrado.
§2º Nos casos de contratação por telefone, haverá uma leitura das informações constantes do presente artigo, devendo-se,
ao final, indagar o consumidor sobre eventuais dúvidas existentes.
§3º O resumo contratual será disponibilizado aos consumidores, respeitada a política de cada Signatária, por meio
previamente informado e de fácil acesso. (redação dada pela Deliberação nº 041, de 26 de outubro de 2022)
§4º Nos casos de contratações pelos terminais de autoatendimento, as informações constantes do inciso IV do presente
artigo poderão constar apenas no documento disponibilizado pela Signatária para impressão.
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Ainda que, como referido, os atos normativos de autorregulação expedidos


pela FEBRABAN não sejam cogentes, suas disposições servem para orientar a atuação das
instituições financeiras a ela vinculadas, especialmente em relação ao dever de informação,
com o nítido propósito de tutelar a harmonia, o equilíbrio e a transparência nas relações de
consumo.

Noutro giro, embora tenha introduzido uma nova modalidade de


empréstimo no direito brasileiro, a Lei nº 10.820/2003 não dedicou um dispositivo sequer
para discorrer sobre a formalização dos instrumentos contratuais respectivos e sobre o
dever de informação. Ao contrário, o art. 4º dessa lei, em claro descompasso com as
disposições do Código de Defesa do Consumidor dispôs que “A concessão de empréstimo,
financiamento, cartão de crédito ou arrendamento mercantil será feita a critério da
instituição consignatária, sendo os valores e as demais condições objeto de livre negociação
entre ela e o mutuário, observadas as demais disposições desta Lei e seu regulamento”.

Em atenção ao disposto no art. 6º80, §1º, da Lei nº 10.820/03, o INSS


regulamentou os procedimentos relacionados aos contratos de empréstimo consignado e
de cartão de crédito consignado por intermédio da Instrução Normativa nº 28 do INSS, que
estabeleceu “critérios e procedimentos operacionais relativos à consignação de descontos
para pagamento de empréstimos e cartão de crédito, contraídos nos benefícios da
Previdência Social”.

Conquanto essa instrução normativa tenha sido revogada recentemente


pela Instrução Normativa nº 138/2022, reputo oportuno tecer considerações sobre os seus

80 Lei nº 10.820/03, Art. 6º (...).


§ 1o Para os fins do caput, fica o INSS autorizado a dispor, em ato próprio, sobre:
I - as formalidades para habilitação das instituições e sociedades referidas no art. 1o;
II - os benefícios elegíveis, em função de sua natureza e forma de pagamento;
III - as rotinas a serem observadas para a prestação aos titulares de benefícios em manutenção e às instituições consignatárias
das informações necessárias à consecução do disposto nesta Lei;
IV - os prazos para o início dos descontos autorizados e para o repasse das prestações às instituições consignatárias;
V - o valor dos encargos a serem cobrados para ressarcimento dos custos operacionais a ele acarretados pelas operações; e
V - os encargos a serem cobrados para remuneração dos serviços de operacionalização das consignações, inclusive o
ressarcimento dos custos operacionais; e (Redação dada pela Medida Provisória nº 922, de 2020) (Vigência
encerrada)
V - o valor dos encargos a serem cobrados para ressarcimento dos custos operacionais a ele acarretados pelas operações; e
VI - as demais normas que se fizerem necessárias.
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dispositivos, porque em vigor à época em que celebrados grande parte dos contratos de
cartão de crédito consignado discutidos em demandas individuais.

De acordo com o art. 3º81 da referida instrução normativa, para a


implementação dos descontos em folha de pagamento, era necessária a celebração de
contrato escrito com instituição financeira credenciada ao INSS, o qual deveria ser instruído
com cópia do documento de identificação do consumidor mutuário e de autorização
expressa por este firmada. Conforme previsão do art. 4º82 da instrução normativa, os
contratos de empréstimo consignado deveriam ser realizados na própria instituição
financeira, ou por intermédio de correspondente bancário por ela contratado com amparo
na Resolução nº 3.110 do BACEN, limitada à quantidade máxima de 09 (nove) contratos de
empréstimo pessoal e 01 (um) contrato de cartão de crédito, independentemente da
existência de margem consignável.

Visando coibir fraudes, o art. 9º da instrução normativa dispunha que “A


contratação de empréstimo e cartão de crédito somente poderá ser efetivada no Estado em
que o beneficiário tem seu benefício mantido”. Em clara proteção ao consumidor, os arts.
1583, 1684 e 1785 estabeleciam limitações em relação ao conteúdo do negócio jurídico,

81
IN nº 28, INSS, Art. 3º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão por morte, pagos pela Previdência Social,
poderão autorizar o desconto no respectivo benefício dos valores referentes ao pagamento de empréstimo pessoal e cartão
de crédito concedidos por instituições financeiras, desde que:
I - o empréstimo seja realizado com instituição financeira que tenha celebrado Convênio e/ou Acordo com o INSS/Empresa de
Tecnologia e Informações da Previdência – Dataprev, para esse fim;
II - mediante contrato firmado e assinado com apresentação do documento de identidade e/ou Carteira Nacional de
Habilitação - CNH, e Cadastro de Pessoa Física - CPF, junto com a autorização de consignação assinada, prevista no convênio; e
III - a autorização seja dada de forma expressa, por escrito ou por meio eletrônico e em caráter irrevogável e irretratável, não
sendo aceita autorização dada por telefone e nem a gravação de voz reconhecida como meio de prova de ocorrência.
82 IN nº 28 INSS, Art. 4º A contratação de operações de crédito consignado só poderá ocorrer, desde que:

I - a operação financeira tenha sido realizada na própria instituição financeira ou por meio do correspondente bancário a ela
vinculada, na forma da Resolução Conselho Monetário Nacional nº 3.110, de31 de julho de 2003, sendo a primeira
responsável pelos atos praticados em seu nome; e nº 89, de 18 de outubro de 2017)
II - respeitada a quantidade máxima de nove contratos ativos para pagamento de empréstimo pessoal e um para o cartão de
crédito do mesmo benefício, independentemente de eventuais saldos da margem consignável, sendo somente permitida a
averbação de um novo contrato, condicionada à exclusão de um já existente.
83
IN nº 28 INSS, Art. 15. Os titulares dos benefícios previdenciários de aposentadoria e pensão por morte, pagos pela
Previdência Social, poderão constituir RMC para utilização de cartão de crédito, de acordo com os seguintes critérios,
observado no que couber o disposto no art. 58 desta Instrução Normativa:
I - a constituição de RMC somente poderá ocorrer após a solicitação formal firmada pelo titular do benefício, por escrito ou
por meio eletrônico, sendo vedada à instituição financeira: emitir cartão de crédito adicional ou derivado; e cobrar taxa de
manutenção ou anuidade;
II - a instituição financeira poderá cobrar até R$ 15,00 (quinze reais) de taxa pela emissão do cartão que, a critério do
beneficiário, poderá ser parcelada em até três vezes.
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dispondo que: i) a constituição de reserva de margem consignável para pagamento de


despesas decorrentes de cartão de crédito consignado depende de prévio requerimento
formal por parte do titular do benefício; ii) o limite de crédito máximo para compras e
saques não pode superar a 1,60 vez o valor da renda mensal do beneficiário; iii) a taxa
máxima de juros aplicável é equivalente a 2,70%; iv) é vedada a cobrança de TAC ou outras
tarifas administrativas; v) é vedada a cobrança de despesas adicionais relativas à
manutenção ou anuidade do cartão; vi) a instituição financeira deve enviar mensalmente
aos mutuários extratos contendo a descrição detalhada das operações realizadas.

Suprindo a lacuna da Lei nº 10.820/03 e sem prejuízo do disposto no art. 52


do CDC e na Resolução nº 3.694 do BACEN, o art. 21 e da Instrução Normativa nº 28 do
INSS impunha às instituições financeiras um dever de informação qualificado, tendo em
consideração as particularidades dessa modalidade contratual:

Art. 21. A instituição financeira, ao realizar as operações de


consignação/retenção/constituição de RMC dos titulares de
benefícios deverá, sem prejuízo de outras informações legais
exigidas (art. 52 do Código de Defesa do Consumidor – CDC),
observar a regulamentação expedida pelo Conselho Monetário
Nacional e pelo Banco Central do Brasil, em especial as
disposições constantes da Resolução nº 3.694, de 26 de março de

Parágrafo único. O valor previsto no inciso II do caput poderá ser atualizado anualmente, a partir de 1º de janeiro de 2020, de
acordo com a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA do ano anterior.
84 IN nº 28 INSS, Art. 16. Nas operações de cartão de crédito serão considerados, observado, no que couber, o disposto no art.

58 desta Instrução Normativa:


I – revogado;
II - o limite máximo concedido no cartão de crédito para o pagamento de despesas contraídas com a finalidade de compras e
saques é de 1,60 (um inteiro e sessenta centésimos) vez o valor da renda mensal do benefício previdenciário;
III - a taxa de juros não poderá ser superior a dois inteiros e setenta centésimos por cento (2,70%) de forma que expresse o
custo efetivo;
IV - é vedada a cobrança da TAC e quaisquer outras taxas administrativas, exceto a prevista no inciso II do art. 15 e § 1º deste
artigo; e V - o beneficiário, ao constituir a RMC, não poderá ser onerado com a cobrança de qualquer custo adicional de
manutenção ou anuidade, excetuando o previsto nesta Instrução Normativa, de forma que a taxa de juros expresse o custo
efetivo do cartão de crédito.
85 IN nº 28 INSS, Art. 17-A. O beneficiário poderá, a qualquer tempo, independentemente de seu adimplemento contratual,

solicitar o cancelamento do cartão de crédito junto à instituição financeira.


§ 1º Se o beneficiário estiver em débito com a instituição financeira, esta deverá conceder-lhe a faculdade de optar pelo
pagamento do eventual saldo devedor por liquidação imediata do valor total ou por meio de descontos consignados na RMC
do seu benefício, observados os termos do contrato firmado entre as partes, o limite estabelecido na alínea "b" do § 1º do art.
3º, bem como as disposições constantes nos arts. 15 a 17.
§ 2º A instituição financeira que receber uma solicitação do beneficiário para cancelamento do cartão de crédito, deverá
enviar o comando de exclusão da RMC à Dataprev, via arquivo magnético, no prazo máximo de cinco dias úteis, contados da
data da solicitação, quando não houver saldos a pagar, ou da data da liquidação do saldo devedor.
§ 3º Durante o período compreendido entre a solicitação do cancelamento do cartão de crédito pelo beneficiário e a efetiva
exclusão da RMC, pela Dataprev, não se aplica o disposto no § 3º do art. 3º.
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2009, e alterações posteriores, bem como dar ciência prévia ao


beneficiário, no mínimo, das seguintes informações:
I - valor total com e sem juros;
II - taxa efetiva mensal e anual de juros;
III - todos os acréscimos remuneratórios, moratórios e tributários
que eventualmente incidam sobre o valor do crédito contratado;
IV - valor, número e periodicidade das prestações;
V - soma total a pagar com o empréstimo pessoal ou o limite
máximo previsto para cartão de crédito; e
VI - data do início e fim do desconto.
VII - valor da comissão paga aos terceirizados contratados pelas
instituições financeiras para a operacionalização da venda do
crédito, quando não for efetuado por sua própria rede. (incluído
pela Instrução Normativa INSS/PRES nº 43, de 19 de janeiro de
2010)
VIII - o CNPJ da agência bancária que realizou a contratação
quando realizado na própria rede, ou, o CNPJ do correspondente
bancário e o CPF do agente subcontratado pelo anterior,
acrescido de endereço e telefone.

Interessante anotar que, por força de acordo homologado judicialmente


nos autos da Ação Civil Pública nº 0106890-28.2015.4.01.3700, proposta pela Defensoria
Pública da União em face do INSS e que tramitou perante a 3ª Vara Federal da Seção
Judiciária de São Luís/MA, foi inserido o art. 21-A na Instrução Normativa nº 28, por
intermédio da Instrução Normativa nº 94 de 2018, segundo o qual, os contratos de cartão
de crédito consignado devem ser instruídos com “Termo de Consentimento Esclarecido do
Cartão de Crédito Consignado” devidamente assinado pelo consumidor, in verbis:

Art. 21-A Sem prejuízo das informações do art. 21, nas


autorizações de descontos decorrentes da celebração de contratos
de Cartão de Crédito com Reserva de Margem Consignável, o
contrato firmado entre o beneficiário do INSS e a instituição
consignatária deverá, obrigatoriamente, nos termos da decisão
homologatória de acordo firmado na Ação Civil Pública nº
0106890-28.2015.4.01.3700, ser acompanhado de Termo de
Consentimento Esclarecido – TCE, que constará de página única,
reservada exclusivamente para tal documento, constituindo-se
instrumento apartado de outros que formalizem a contratação do
Cartão de Crédito Consignado, e conterá, necessariamente:

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I - expressão "TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO DO


CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO", inserida na parte superior do
documento e com fonte em tamanho quatorze;
II - abaixo da expressão referida no inciso I do caput, em fonte
com tamanho onze, o texto: "Em cumprimento à sentença judicial
proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 106890-
28.2015.4.01.3700, 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de São
Luís/MA, proposta pela Defensoria Pública da União";
III - nome completo, CPF e número do beneficio do cliente;
IV - logomarca da instituição financeira;
V - imagem em tamanho real do cartão de crédito contratado,
ainda que com gravura meramente ilustrativa;
VI - necessariamente como última informação do documento,
espaço para preenchimento de local, data e assinatura do cliente;
VII - as seguintes inscrições, todas registradas em fonte com
tamanho doze e na ordem aqui apresentada:
a) Contratei um Cartão de Crédito Consignado;
b) Fui informado que a realização de saque mediante a
utilização do meu limite do Cartão de Crédito Consignado
ensejará a incidência de encargos e que o valor do saque,
acrescido destes encargos, constará na minha próxima fatura do
cartão;
c) A diferença entre o valor pago mediante consignação
(desconto realizado diretamente na remuneração/beneficio) e o
total da fatura poderá ser paga por meio da minha fatura
mensal, o que é recomendado pelo (nome da instituição
financeira), já que, caso a fatura não seja integralmente paga
até a data de vencimento, incidirão encargos sobre o valor
devido, conforme previsto na fatura;
d) Declaro ainda saber que existem outras modalidades de
crédito, a exemplo do empréstimo consignado, que possuem
juros mensais em percentuais menores;
e) Estou ciente de que a taxa de juros do cartão de crédito
consignado é inferior à taxa de juros do cartão de crédito
convencional;
f) Sendo utilizado o limite parcial ou total de meu cartão de
crédito, para saques ou compras, em uma única transação, o
saldo devedor do cartão será liquidado ao final de até (número de
meses), contados a partir da data do primeiro desconto em folha,
desde que:
1. eu não realize outras transações de qualquer natureza, durante
todo o período de amortização projetado a partir da última
utilização;
2. não ocorra a redução/perda da minha margem consignável de
cartão;
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3. os descontos através da consignação ocorram mensalmente,


sem interrupção até o total da dívida;
4. eu não realize qualquer pagamento espontâneo via fatura; e
5. não haja alteração da taxa dos juros remuneratórios;
g) Para tirar dúvidas acerca do contrato ora firmado, inclusive
sobre informações presentes neste Termo de Consentimento, o
cliente poderá entrar em contato gratuitamente com o (nome da
instituição financeira) através do Serviço de Atendimento ao
Consumidor – SAC (identificar número telefônico) e de sua
Ouvidoria (identificar número telefônico).

A Instrução Normativa nº 138 do INSS, que passou a regulamentar a


implementação de descontos em benefícios beneficiários em virtude de contratos de
empréstimo pessoal consignado e de cartão de crédito consignado pouco alterou em
relação ao regramento anterior. Ao que interessa para o dever de informação, cumpre
destacar o disposto em seu art. 15, in verbis:

Art. 15. Os beneficiários, sem limite de idade, poderão constituir


RMC para utilização de cartão de crédito e RCC para utilização do
cartão consignado de benefício, observados os seguintes critérios
pela instituição consignatária acordante:
I - a constituição de RMC/RCC está condicionada à solicitação
formal firmada pelo titular do benefício, por reconhecimento
biométrico;
II - em todos os casos deverá ser utilizado o Termo de
Consentimento Esclarecido - TCE, nos termos da decisão
homologatória de acordo firmado na Ação Civil Pública nº
0106890-28.2015.4.01.3700, que constará de página única
reservada exclusivamente para este fim, constituindo-se
instrumento apartado para formalização desta contratação, o
qual deverá conter as informações descritas no Anexo I;
III - deverá ser feito o envio, no ato da contratação, do material
informativo para melhor compreensão do produto;
IV - o limite máximo concedido no cartão para o pagamento de
despesas contraídas com a finalidade de compras e saques é de
1,60 (um inteiro e sessenta centésimos) vez o valor da renda
mensal do benefício;
V - o valor disponível para saque é de até 70% (setenta por
cento) do limite do cartão;
VI - a taxa de juros não poderá ser superior a 3,06% (três inteiros
e seis centésimos por cento) ao mês, e deverá expressar o custo
efetivo total (CET);

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VII - a entrega do cartão, em meio físico, deverá ser feita ao


titular do benefício;
VIII - enviar, mensalmente, fatura em meio físico ou eletrônico,
respeitada a opção do beneficiário, com informações essenciais
mínimas em destaque, descrição detalhada das operações
realizadas, na qual conste o valor de cada operação e, sendo o
caso, a quantidade de parcelas, o local onde foram efetivadas,
bem como o número de telefone e o endereço para a solução de
dúvidas;
IX - é vedado à instituição consignatária acordante:
a) emitir cartão de crédito adicional ou derivado;
b) cobrar taxa de abertura de crédito, manutenção ou anuidade;
c) formalizar o contrato por telefone; e
d) aplicar juros sobre o valor das compras pagas com cartão
quando o beneficiário consignar a liquidação do valor total da
fatura em uma única parcela na data de vencimento;
X - a instituição consignatária acordante poderá cobrar até R$
15,00 (quinze reais) de taxa pela emissão do cartão que, a critério
do beneficiário, poderá ser parcelada em até 3 (três) vezes.
§ 1º O valor previsto no inciso X do caput poderá ser atualizado
anualmente, de acordo com a variação do Índice de Preços ao
Consumidor Amplo - IPCA do ano anterior.(...)

Salvo melhor juízo, a Resolução nº 3.694/2009 do BACEN, a Resolução nº


4.949/2021 do Conselho Monetário Nacional, a Instrução Normativa nº 28 do INSS, o
Normativo SARB 10/2013 e o Normativo SARB 15/2014, ambos da FEBRABAN, fornecem os
elementos necessários para a definição dos contornos e do conteúdo do dever de
informação positivado no arts. 6º, III, 52, 54-B, 54-C e 54-D, do CDC em contratos de cartão
de crédito consignado.

Da interpretação desses atos normativos extrai-se em síntese, que as


instituições financeiras devem não só fornecer ao consumidor todos dados e informações
necessárias à compreensão do serviço contratado, sua finalidade, seus custos e
consequências, mas também para que possa compará-lo com outros serviços
disponibilizados no mercado de consumo, que possam atender às suas necessidades e lhes
sejam menos onerosos. Nesse contexto, emerge cristalino o dever de aconselhamento ao
consumidor como decorrência lógica do dever anexo de proteção da boa-fé, cabendo à

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instituição financeira, à luz das condições econômicas do consumidor, auxiliá-lo na


contratação de serviços que lhe sejam mais benéficos, ou, não sendo possível, adverti-lo de
forma clara e ostensiva sobre os riscos e as consequências da contratação que pretende
realizar.

Não se desconhece que em muitos casos o consumidor não goza de


margem consignável disponível em folha de pagamento ou benefício previdenciário, o que
impede a contratação de empréstimo pessoal consignado. Empecilhos como esses, no
entanto, não aproveitam ao fornecedor.

Sabido que as instituições financeiras e seus correspondentes omitem


informações dessa natureza ao consumidor, conduzindo para a celebração de contrato de
natureza diversa da pretendida e que lhe é consideravelmente mais oneroso, sem que
tenha conhecimento. Postura dessa natureza, no entanto, se revela abusiva, pois afronta a
boa-fé objetiva, especialmente os deveres anexos de proteção e lealdade e transparência,
pois além de restringir a liberdade do consumidor, causado-lhes danos patrimoniais.

Logo, pretendendo demonstrar a lisura da contratação, é dever das


instituições financeiras comprovar que o consumidor foi devidamente advertido da
indisponiblidade de margem consignável para a celebração de empréstimo pessoal
consignado e que a celebração de contrato de cartão de crédito consignado é fruto da
manifestação de vontade qualificada do consumidor, antecedida de prévio esclarecimento
sobre o serviço contratado.

Dessa forma, entendo que o dever de informação em contratos de cartão


de crédito consignado não é cumprido pela mera apresentação em juízo de contrato,
formulário ou proposta assinada pelo consumidor.

O dever de informação, conforme dicção dos arts. 6º, III, 46, 52, 54-B, 54-C
e 54-D do CDC de demais atos normativos aplicáveis, somente estará cumprido nos casos
em que os instrumentos contratuais contiverem cláusulas que permitam ao consumidor
compreender o conteúdo do negócio e o seu alcance, devendo ficar claro, para o
consumidor, especialmente: a) que, a par do contrato de cartão de crédito consignado, é
possível a celebração de empréstimo pessoal consignado, esclarecendo as diferenças entre
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uma e outra contratações, seus custos e características essenciais; b) a disponibilidade, ou


não, de margem disponível para a celebração de empréstimo pessoal consignado; c) a
natureza e o objeto do contrato de cartão de crédito consignado, seus direitos, obrigações
e as consequências essa espécie de contratação; d) que a fatura do cartão de crédito
poderá ser paga total ou parcialmente até a data do vencimento; e) que, não efetuado o
pagamento total da fatura, será efetivado o pagamento mínimo mediante desconto na
folha de pagamento ou em benefício previdenciário, e refinanciado o saldo devedor, sobre
o qual incidirão juros.

Não demonstrando o fornecedor ter informado, prévia e adequadamente o


consumidor, o contrato de cartão de crédito será passível de anulação, porque celebrado
mediante erro substancial quanto à natureza do negócio jurídico, em razão de uma falsa
percepção da realidade. Não se trata, por conseguinte, da inversão do ônus probatório
prevista no art. 6º, VIII, do CDC, mas da distribuição ordinária a que alude o art. 373, II, do
CPC.

Com efeito, a inobservância ao dever de informação constitui fato negativo


alegado pelo consumidor, que pode ser elidido ou infirmado pela instituição financeira
mediante prova do fato positivo, qual seja, a demonstração da regularidade contratação e
da fiel observância ao dever de informação por intermédio da apresentação em juízo dos
instrumentos contratuais claros e precisos, conforme sugerido na parte final da tese
proposta.

Dito de outra forma, a demonstração da regularidade da contratação nada


mais é do que a comprovação dos fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito
da parte autora, conforme dicção do art. 373, II, do CPC.

Não há dúvidas de que a inversão do ônus da prova ope judicis, com


amparo o art. 6º, VIII, do CDC constitui valioso instrumento que pode ser utilizado pelo juiz
nas inúmeras demandas individuais que tramitam no judiciário gaúcho. A sua pertinência,
no entanto, deve levar em consideração as particularidades dadas a conhecer em cada caso
concreto.

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Não se pode perder de vista, porém, que os temas afetados ao presente


incidente não dizem respeito à possibilidade de inversão do ônus probatório em demandas
dessa natureza, tampouco à interpretação que deve ser conferida ao art. 6º, VIII, do CDC.

A interpretação acima conferida ao dever de informação em contratos de


cartão de crédito consignado coaduna-se com a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais da livre iniciativa, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com o
desenvolvimento nacional, com a promoção do bem-estar social, com a proteção do
consumidor, fundamentos, objetivos e garantias previstas na Constituição Federal de 1988,
com os princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, e com a harmonia, o
equilíbrio e a transparência das relações de consumo, promovendo-se a igualdade material
do consumidor em face dos fornecedores.

Registro, por outro lado, que a situação fática apresentada pela causa-
piloto e que serve como substrato para a elaboração de tese, não se confunde com aquelas
em que o consumidor recebe o contrato de cartão de crédito em sua residência, solicita o
seu desbloqueio e o utiliza para a realização de operações no mercado de consumo. Nesses
casos, a despeito de eventual precariedade técnica da redação do contrato, afigura-se
nítida, pela conduta do consumidor, a compreensão da natureza e do objeto da avença,
razão pela qual ter-se-á por pactuado contrato de cartão de crédito consignado, como
pontua Bruno Miragem86:

Em geral, aliás, em face das condições gerais estabelecidas em


muitos contratos de consumo, o comportamento concludente, a
caracterizar a aceitação do consumidor, poderá se dar apenas
pela utilização do produto ou serviço, o apertar de um botão ou
acionar um dispositivo, ou como no caso dos contratos via
internet, pelo simples ato de clicar em determinada alternativa
em um determinado sítio eletrônico. Em algumas dessas
situações, estaremos diante do que a doutrina alemã
convencionou denominar como relações contratuais fáticas ou
também denominadas de contrato social, caracterizados pela não
utilização de formas jurídicas pré-determinadas para “celebração”
do contrato, senão que esta se supõe da conduta concreta dos
indivíduos na vida social.

86 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
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Dito isso, relativamente à anulabilidade de contratos de cartão de crédito


por ofensa ao dever de informação, proponho a seguinte tese:

É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando celebrado


pelo consumidor em erro substancial quanto à sua natureza, decorrente de
falha na prestação de serviços bancários por inobservância ao dever de
informação. Os instrumentos contratuais devem conter as cláusulas
essenciais a essa modalidade de negociação, sendo ônus da instituição
financeira comprovar que informou ao consumidor, prévia e
adequadamente: a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as
consequências decorrentes do contrato de cartão de crédito consignado; b)
a existência de modalidades e serviços de crédito diversos, como o
empréstimo pessoal consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e
outra contratações, seus custos e características essenciais; c) a
disponibilidade, ou não, de margem disponível para a celebração de
empréstimo pessoal consignado; d) que a fatura do cartão de crédito
poderá ser paga total ou parcialmente até a data do vencimento; e) que, se
não realizado o pagamento total da fatura, será efetuado o pagamento
mínimo mediante desconto na folha de pagamento ou em benefício
previdenciário, com o refinanciamento do saldo devedor, acrescido de
juros.

2.3. CONVERSÃO DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO


CONSIGNADO EM EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO:

Ultrapassado o exame do primeiro tema, passo a apreciar o tema relativo à


adaptação do contrato de cartão de crédito consignado à modalidade empréstimo
consignado em folha de pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se, a título de juros
remuneratórios, a taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central para a modalidade
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de crédito pessoal consignado na época da contratação, abatidos os valores já descontados


do autor.

2.3.1. BOA-FÉ E INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL:

O princípio da boa-fé objetiva também é de fundamental importância para


o exame do tema relativo à adaptação do contrato de cartão de crédito consignado em
empréstimo consignado.

A tratar da interpretação dos negócios jurídicos, o art. 112 do CC dispõe


que:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção


nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Sobre o dispositivo, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho87


relembram que a vontade constitui elemento essencial do negócio jurídico, razão pela qual
este deve ser interpretado a partir dela e da boa-fé, e não da sua mera declaração:

A regra geral positivada de interpretação dos negócios jurídicos é,


sem sombra de dúvida, o já transcrito art. 112 do CC/2002, em
que se vislumbra, claramente, a ideia de que a manifestação de
vontade é seu elemento mais importante, muito mais, inclusive,
do que a forma com que se materializou.
Isso porque se a palavra é, sem sombra de dúvida, o instrumento
de trabalho do jurista, o seu eventual manejo impreciso não deve
lesionar mais do que os limites da boa-fé.
Essa boa-fé objetiva torna-se, indubitavelmente, o barema de
interpretação de todo e qualquer negócio jurídico, o que é
extremamente valorizado pelo CC/2002, tanto na regra geral do
seu art. 113 (...) quanto nas disposições genéricas sobre os
contratos.

No mesmo sentido, Maria Helena Diniz88 sustenta acertadamente que “o


intérprete negocial não deve ater-se, unicamente, à exegese do negócio jurídico, ou seja, ao

87 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil - Parte geral - volume 1. 23ª ed. São Paulo;
Saraiva Educação; 2021.
88 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - volume 1: teoria geral do direito civil. 38ª ED. São Paulo: Saraiva

Educação; 2021.
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exame gramatical de seus termos, mas sim, em fixar a vontade, procurando suas
consequências jurídicas, indagando sua intenção, sem se vincular estritamente, ao teor
linguístico do ato negocial. O que importa é a vontade real e não a declarada; daí a
importância de se desvendar a intenção consubstanciada na declaração”.

Conforme exposto em tópico anterior, não há dúvidas de que a


interpretação das cláusulas contratuais e do negócio jurídico como um todo devem
corresponder à vontade real das partes – e não apenas à sua declaração - e à boa-fé.
Conforme já asseverado neste voto, além das funções integrativa e de controle, a boa-fé
objetiva também goza de função interpretativa, conforme previsão expressa contida no art.
113 do CC, alterado pela Lei nº 13.874/2019:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme


a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o
sentido que:
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à
celebração do negócio;
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado
relativas ao tipo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se
identificável; e
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes
sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do
negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as
informações disponíveis no momento de sua celebração.
§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de
interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos
negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

Como observa Nelson Nery Júnior89, “O novo sistema jurídico de direito


privado impõe às partes que resguardem, tanto na conclusão quanto na execução do
contrato, os princípios da probidade e da boa-fé (CC 422). Igualmente, nas disposições finais
e transitórias, prescreve que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de
ordem pública, tais como os estabelecidos pelo CC para o resguardo da função social da

89FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil. Volume único. 4ª ed.. Salvador: Ed. Jus
Podium; 2019.
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propriedade e da função social dos contratos (CC 2035 par.ún.). Ao intérprete, por sua vez,
incumbe a exegese do negócio jurídico em consonância com a principiologia do sistema”.
No mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald90 pontuam que “o dever
de interpretar todo e qualquer negócio conforme a boa-fé objetiva encontra-se, sem dúvida,
informado pelos princípios constitucionais fundamentais para atividade privada – a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV), a
solidariedade social (art. 3º, I) e a igualdade substancial (art. 3º, III, e 5º)”.

Maria Helena Diniz91 sustenta que “A interpretação do negócio jurídico pode


ser: declaratória, se tiver por escopo expressar a intenção dos interessados; integrativa, se
pretender preencher lacunas contidas no negócio, por meio de normas supletivas, costumes,
etc., e construtiva, se objetivas reconstruir o ato negocial com o intuito de salvá-lo”. De bom
alvitre salientar que a reconstrução do negócio jurídico por intermédio da interpretação
segundo a boa-fé objetiva guarda direta correlação com os direitos básicos do consumidor
positivados no art. 6º, IV e V, do CDC, que lhe asseguram “a proteção contra a publicidade
enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas
e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” e “a modificação
das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em
razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”, como será
abordado em tópico infra.

Sílvio de Salvo Venosa92 sustenta que a aplicação da boa-fé como método


de interpretação dos contratos deve buscar a real intenção das partes ao celebrar o

90 FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, volume 1. Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald. 13ª ed. São Paulo: Atlas; 2015.
91
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - volume 1: teoria geral do direito civil. 38ª ED. São Paulo: Saraiva
Educação; 2021.
92 De acordo com Sílvio de Salvo Venosa: “O presente diploma orienta o legislador para, ao procurar o sentido de uma

manifestação de vontade, ter sempre em mira os princípios de boa-fé, regra geral dos contratos, bem como a orientação dos
costumes que cercam a realização do negócio. Esse Código, em várias disposições busca uma aplicação social do Direito,
dentro de um sistema aberto, ao contrário do espírito do de 1916, de cunho essencialmente patrimonial e individualista. Sob
esse prisma, o princípio da denominada boa-fé objetiva, aqui colimado é um elemento dessa manifestação. Nos contratos e
nos negócios jurídicos em geral, temos que entender que os declarantes buscam, em princípio, o melhor cumprimento das
cláusulas e manifestação a que se comprometem. O que se tem em vista é o correto cumprimento do negócio jurídico, ou
melhor, a correção desse negócio jurídico. Cumpre que se busque, no caso concreto, um sentido que não seja estranho às
exigências específicas das partes no negócio jurídico.”. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Código Civil
interpretado. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2019.
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negócio, sempre tendo em vista a socialidade que permeia o Código Civil e 2002. De acordo
com Maria Helena Diniz93:

O princípio da boa-fé objetiva está intimamente ligado não só à


interpretação do negócio jurídico, pois, segundo ele, o sentido
literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção
inferida da declaração de vontade das partes, mas também ao
interesse social da segurança das relações jurídicas, uma vez que
as partes devem agir com lealdade, retidão e probidade durante
as negociações preliminares, a formação, execução e extinção do
ato negocial, e também de conformidade com os usos do local
(p.ex., no que atina ao alqueire, variável em cada região) em que
o ato negocial foi por elas celebrado.

Os §§1º e 2º do art. 113 do CC foram introduzidos pela Lei nº 13.874/2019,


constatando-se a preocupação do legislador em conferir contornos mais precisos ao
conteúdo da boa-fé como instrumento de interpretação dos negócios jurídicos, sem
prejuízo da própria atuação supletiva das partes nesse sentido. A interpretação conjunta
dos incisos I, III, IV e V do §1º do art. 113 do CC remete as partes contratantes e aqueles
que se dispuserem a interpretar o negócio jurídico à observância da realidade fática e
material que permeou a sua celebração, abstraindo-se o rigor e o formalismo da avença,
bem como o sentido literal das suas cláusulas.

Nesse contexto, a interpretação do negócio jurídico deve levar em


consideração o comportamento das partes após a sua celebração, a boa-fé objetiva e os
seus deveres anexos, a interpretação mais favorável à parte que não redigiu o instrumento
contratual e a negociação que as partes pretendiam entabular, considerada a racionalidade
econômica e as informações disponíveis no momento da celebração.

Como anotam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “a regra


constante do inciso I dialoga com a regra proibitiva do comportamento contraditóro (venire
contra factum proprium), porquanto, se a conduta posterior das partes reafirma o correto
sentido interpretativo do negócio, a conduta contraditória, salvo se justificada, não
autorizaria ao intérprete extrair conclusão favorável ao comportamento antípoda ou

93DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - volume 1: teoria geral do direito civil. 38ª ED. São Paulo: Saraiva
Educação; 2021.
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paradoxal”. De fato, não se pode perder de vista que uma das funções da boa-fé objetiva
consiste na limitação ao exercício abusivo de direitos que estejam em contradição com a
conduta contratual de uma das partes e que, como consequência, gerem justa expectativa
em seu adversário.

Por força do disposto no art. 423 do CC94, e do art. 4795 do CDC, as cláusulas
constantes de contratos de adesão devem ser interpretadas de modo mais favorável à
parte que não participou da elaboração do negócio jurídico, em atenção à máxima
interpretatio contra proferentem (interpretatio contra stipulatorum) como pontua Nelson
Nery Júnior96. Com efeito, não pode a parte que redigiu o negócio jurídico se valer do seu
erro ou da sua própria torpeza para prejudicar aquele que não participou da sua
elaboração. Ao discorrer sobre o art. 113, §1º, IV, do CC, Flávio Tartuce97 reforça a
necessidade de tutela dos interesses do contratante de boa-fé:

Assinala-se que os negócios jurídico em geral, principalmente os


contratos, devem ser interpretados da maneira mais favorável
àquele que esteja de boa-fé. Em alguns casos, a lei acaba
presumindo de forma relativa essa boa-fé objetiva, guiando a
interpretação do magistrado. Podem ser citados os casos de
interpretação mais favorável ao aderente (art. 423 do CC) e ao
consumidor (art. 47 do CDC).(...)
Sobre a penúltima previsão, há uma ampliação da tutela dos
aderentes negociais e contratuais, aqueles para quem o conteúdo
do negócio é imposto. Isso porque qualquer cláusula passa a ser
interpretada contra aquele que redigiu o seu conteúdo. Amplia-se,
portanto, o sentido do art. 423 do Código Civil, segundo o qual,
“quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou
contraditórias, dever-se-á adotar interpretação mais favorável ao
aderente”.

94 CC/02, Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao aderente.
95 CDC, Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
96 Pontua Nelson Nery Júnior: “A interpretação das cláusulas contratuais que gerem dúvida quanto ao seu conteúdo e sentido

deverá seguir a máxima interpretatio contra stipulatorem, de sorte que não apenas nos contratos de adesão, mas em todo e
qualquer contrato que se encontre na situação mencionada no dispositivo comentado a interpretação das cláusulas duvidosas
será feita contra aquele contratante que – ele próprio ou por ordem dele – redigiu ou estipulou a cláusula.”. In: JÚNIOR,
Nelson Nery. Código civil comentado. 13ª ed.. São Paulo: Thomson Reuters; 2019..
97 TARTUCE, Flávio. Manual de direito Civil: volume único. 11ª ed.. Rio de Janeiro: Forense/Método; 2021.

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O mesmo jurista assevera que o art. 113, §1º, V, do CC criou mais um


conceito jurídico indeterminado, cujo conteúdo deverá ser definido pelo aplicador do
Direito, e valorizou as negociações preliminares entabuladas entre as partes:

A respeito do último inciso do art. 113 do Código Civil, valoriza-se


a negociação prévia das partes, especialmente a troca de
informações e de mensagens pré-negociais entre elas. Essas
negociações devem ser confrontadas com as demais cláusulas do
negócio pactuado, bem como da racionalidade econômica das
partes. A expressão destacada é mais uma cláusula geral, a ser
preenchida pelo aplicador do Direito nos próximos anos, assim
como ocorreu com a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Para tanto, a título de exemplo, devem ser considerados os
comportamentos típicos das partes perante o mercado e em
outras negociações similares, os riscos alocados nos negócios e as
expectativas de retorno dos investimentos, entre outros, o que já
é considerado em julgamento de muitos painéis arbitrais.

Salvo melhor juízo, o dispositivo em comento permite ao magistrado


estabelecer o conteúdo da racionalidade econômica das partes a partir dos usos e
costumes em que celebrado o negócio jurídico, podendo recorrer às regras de experiência.

Logo, à luz dos dispositivos acima transcritos, constata-se que os negócios


jurídicos não podem ser interpretados literalmente, mas à luz da vontade das partes e da
boa-fé, cabendo ao magistrado integrá-lo ou (re)construí-lo a partir das circunstâncias
dadas a conhecer no caso concreto.

2.3.2. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR CONTRA PRÁTICAS


COMERCIAIS ABUSIVAS E MÉTODOS COMERCIAIS DESLEAIS E
MODIFICAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS:

A integração e a (re)construção do negócio jurídico com amparo na boa-fé


objetiva guarda íntima relação com os direitos básicos do consumidor previstos no art. 6º,
IV e V, do CDC, quais sejam, “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos
comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e serviços” e “a modificação das cláusulas

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contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos


supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Ambas têm como fundamento o “reconhecimento da vulnerabilidade do


consumidor no mercado de consumo” e a “harmonização dos interesses dos participantes
das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade
de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se
funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”, princípios da Política Nacional
das Relações de Consumo, na forma do art. 4º, I e III, do CDC.

Os dispositivos em comento tutelam, em última análise, a transparência, a


harmonia, a vulnerabilidade e boa-fé objetiva que devem permear as relações de consumo,
assegurando ao consumidor que o Estado tutele a dignidade da pessoa humana e a
igualdade material, recompondo o equilíbrio contratual.

Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe


Bessa98 discorrem que:

O inciso IV do art. 6º, do CDC proíbe o abuso do direito e impõe


transparência e boa-fé nos métodos comerciais, na publicidade e
nos contratos. Como vimos, é possível afirmar que a boa-fé é o
princípio máximo orientador do CDC; aqui também o princípio da
transparência (art. 4º, caput) atua como um reflexo da boa-fé
exigida aos agentes contratuais. O CDC preocupa-se com os
aspectos pré-contratuais como os de formação e execução dos
contratos de consumo.
Essas normas do CDC aparecem como instrumentos do direito
para restabelecer também o equilíbrio, para restabelecer a força
da “vontade”, das expectativas legítimas, do consumidor,
compensando, assim, sua vulnerabilidade fática, assim como as
normas sobre cláusulas e práticas abusivas (arts. 39 e 51).

Em sentido amplo, Bruno Miragem99 esclarece que “Por práticas abusivas


considera-se toda a atuação do fornecedor no mercado de consumo, que caracterize o
desrespeito a padrões de conduta negociais regularmente estabelecidos, tanto na oferta de

98
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
99 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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produtos e serviços, quanto na execução de contratos de consumo, assim como na fase pós-
contratual”. Ou seja, “Em sentido amplo, as práticas abusivas englobam toda a atuação do
fornecedor em desconformidade com padrões de conduta reclamados, ou que estejam em
desacordo com a boa-fé e a confiança dos consumidores”. Para o autor, “A natureza da
abusividade da conduta dos fornecedores, neste particular, observa-se tanto pelo exercício
de uma posição dominante na relação jurídica (Machtposizion), quanto pela contrariedade
da conduta em exame aos preceitos de proteção da confiança e à boa-fé”.

O catálogo das práticas abusivas constante do art. 39100 do CPC é


exemplificativo, o que permite a constatação de outras situações não previstas
expressamente em lei, como a de impor ao consumidor a celebração de contrato mediante
violação ao dever de informação. Dentre as hipóteses legalmente previstas, destaca-se a
conduta de “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua
idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou

100 CDC, Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa
causa, a limites quantitativos;
II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de
conformidade com os usos e costumes;
III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição
social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as
decorrentes de práticas anteriores entre as partes;
VII - repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos;
VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos
oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra
entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);
IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto
pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;
X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.
XI - Dispositivo incluído pela MPV nº 1.890-67, de 22.10.1999, transformado em inciso XIII, quando da conversão na Lei nº
9.870, de 23.11.1999
XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo
critério.
XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido.
XIV - permitir o ingresso em estabelecimentos comerciais ou de serviços de um número maior de consumidores que o fixado
pela autoridade administrativa como máximo.
Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso
III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento.
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serviços”. Noutro giro, em rol igualmente exemplificativo, o art. 51101 do CDC dispõe sobre
as cláusulas contratuais abusivas, inquinando-as de nulidade.

A corroborar esse entendimento, cito precedente do Superior Tribunal de


Justiça:

CONSUMIDOR. PRÁTICA ABUSIVA. CLÁUSULAS ABUSIVAS EM


CONTRATO DE ADESÃO A CARTÃO DE CRÉDITO. MULTA
ADMINISTRATIVA APLICADA PELO PROCON AO FORNECEDOR.
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS PARA FINS DE REDUÇÃO DA
SANÇÃO. INVIABILIDADE. SÚMULA 5/STJ. REEXAME DE PROVAS.
DESCABIMENTO. SÚMULA 7/STJ. CONTRATO DE DURAÇÃO.
INCIDÊNCIA DO CDC E DE SUAS ALTERAÇÕES.

101 CDC, Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e
serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor
pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;
III - transfiram responsabilidades a terceiros;
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em Desvantagem exagerada, ou
sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
V - (Vetado);
VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;
VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;
IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;
X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;
XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido
contra o fornecedor;
XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;
XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;
XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.
XVII - condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário; (Incluído pela Lei nº 14.181, de
2021)
XVIII - estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento
integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os
credores; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
XIX - (VETADO). (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
i - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou
equilíbrio contratual;
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse
das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos
esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.
§ 3° (Vetado).
§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente
ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não
assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.
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1. O Procon-MG instaurou processo administrativo contra


fornecedora de serviços de cartão de crédito, resultando na
aplicação de multa por: cobrança de tarifa de administração;
cobrança de taxa de emissão de boleto bancário para emissão
mensal de fatura, independentemente de o pagamento ser
realizado por meio de débito em conta, dinheiro ou cheque pós-
datado; cobrança de tarifa de débito em conta corrente;
contratação adesiva de cláusula de débito em conta corrente do
cliente; cobrança de seguro por perda ou roubo do cartão; e envio
de produtos e/ou serviços sem solicitação do consumidor.
2. Prática abusiva (lato sensu) é aquela que contraria as regras
mercadológicas de boa e leal conduta com os consumidores,
sendo, de rigor, sua prevenção, reparação e repressão. O Código
de Defesa do Consumidor traz rol meramente exemplificativo de
práticas abusivas (art. 39), cabendo ao juiz identificar, no caso
concreto, hipóteses de violação dos princípios que orientam o
microssistema.
3. Independentemente do número de consumidores lesados ou do
abuso de poder econômico pelo fornecedor, a presença da
cláusula abusiva no contrato é, por si só, reprovável, pois
contrária à ordem econômica e às relações de consumo. O Código
de Defesa do Consumidor elenca as cláusulas abusivas de modo
não taxativo (art. 51), o que admite o enquadramento de outras
abusividades que atentem contra o equilíbrio entre as partes.
4. O Código de Defesa do Consumidor (e suas alterações) pode ser
aplicado "ao contrato que se renovou sob sua égide e que, por
isso, não pode ser qualificado como ato jurídico perfeito" (REsp
735.168/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
DJe 26/3/2008.).
5. O Tribunal de origem, ao examinar as provas dos autos e
interpretar o contrato, concluiu pela existência de cláusulas
abusivas. Modificar o entendimento da instância ordinária, na via
do recurso especial, encontra óbice nas Súmulas 5 e 7 do STJ.
6. A multa administrativa fixada pelo Procon é "graduada de
acordo com a gravidade da infração, a vantagem auferida e a
condição econômica do fornecedor" (art. 57 do CDC). O reexame
de sua proporcionalidade é vedado, em recurso especial, pela
Súmula 7 do STJ.
Recurso especial da CETELEM Brasil S.A. - Crédito, Financiamento
e Investimento parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido.
PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. MAJORAÇÃO DE MULTA
ADMINISTRATIVA APLICADA PELO PROCON. INVIABILIDADE NA
VIA ESPECIAL. MAJORAÇÃO DA VERBA FIXADA A TÍTULO DE
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SÚMULA 7/STJ.
1. A multa administrativa fixada pelo Procon baseia-se em
critérios como "a gravidade da infração, a vantagem auferida e a
condição econômica do fornecedor" (art. 57 do CDC). O reexame
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de sua proporcionalidade para majorá-la ou reduzi-la é vedado


em recurso especial por exigir revolvimento do conjunto fático-
probatório dos autos (Súmula 7 do STJ).
2. A fixação da verba honorária sucumbencial compete às
instâncias ordinárias, já que envolve a apreciação equitativa e a
avaliação subjetiva do julgador no quadro fático dos autos
(Súmula 7 do STJ).
3. Eventual desproporção entre o valor da causa e o valor fixado a
título de honorários advocatícios nem sempre indica irrisoriedade
ou exorbitância da verba honorária, pois a fixação desta envolve a
análise da efetiva complexidade da causa e do trabalho
desenvolvido pelo advogado no patrocínio dos interesses da parte
que representa.
Agravo do Estado de Minas Gerais conhecido para negar
seguimento ao recurso especial.
(REsp n. 1.539.165/MG, relator Ministro Humberto Martins,
Segunda Turma, julgado em 23/8/2016, DJe de 16/11/2016.)

De qualquer sorte, o art. 6º, V, do CDC, ao reconhecer a modificação das


cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em
razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas como direito
básico, confere ao consumidor o instrumento necessário para reestabelecer o equilíbrio
econômico, informacional e de direção da relação contratual por intermédio da
modificação ou da revisão das cláusulas contratuais, como pontua Bruno Miragem102. Com
efeito, Cláudia Lima Marques sustenta que “o art. 6º, V, do CDC institui como direito do
consumidor, a modificação das cláusulas contratuais, fazendo pensar que não só a nulidade
absoluta serviria como sanção, mas também que seria possível ao juiz modificar o conteúdo
negocial”.

Conquanto seja possível a modificação das cláusulas e do conteúdo


contratual, o Poder Judiciário, em atenção ao princípio da função social dos contratos, deve

102 Nas palavras de Bruno Miragem: “O direito subjetivo do consumidor ao equilíbrio contratual constitui efeito da
principiologia do direito do consumidor, muito especialmente dos princípios da boa-fé, da vulnerabilidade e, especialmente, do
próprio princípio do equilíbrio. O equilíbrio contratual é antes de tudo o equilíbrio dos interesses dos contratantes, consumidor
e fornecedor. Neste sentido, parece-nos desenvolver-se em uma tríplice perspectiva: a) o equilíbrio econômico do contrato; b)
a equiparação ou equidade informacional das partes; e c) o equilíbrio de poder na direção da relação contratual.”. In:
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
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envidar esforços visando à integração e manutenção da avença, conforme dicção do art.


51103, §2º, do CDC, conforme escólio doutrinário de Bruno Miragem104:

Neste sentido, uma vez que o direito à revisão do contrato, seja


em razão de desproporção das prestações por fato superveniente,
ou mesmo com vista à decretação da nulidade de cláusula
contratual abusiva, não se cogita a princípio da extinção por
resolução ou a anulação do contrato. Ao contrário, quando se
trate de cláusulas abusivas, o art. 51, §2º, do CDC, expressamente
prevê o dever de integração do juiz, para suprir a lacuna
determinada pela nulidade da cláusula, e apenas em caso de
impossibilidade, caracterizada pelo dato de “apesar dos esforços
de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes” é
que se vai admitir então que a nulidade da cláusula contamine
todo o contrato, acarretando o reconhecimento de sua invalidade.
A providência do CDC teve em vista a proteção do consumidor que
necessita do contrato, e que por isso mesmo não pode
simplesmente admitir sua invalidade com a restituição da
situação das partes ao estado anterior. Daí porque sustenta com
precisão o mestre argentino Ricardo Lorenzetti, que este direito à
manutenção ou conservação do contrato constitui-se em espécie
de mandato constitucional de otimização da autonomia privada.

Em idêntico sentido, Cláudia Lima Marques105 sustenta que “A abusividade


da cláusula contratual é o descompasso de direitos e obrigações entre os contratantes,

103 CDC, Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que:(...)
§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos
esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.
104 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
105 Sustenta Cláudia Lima Marques: “Revisão do contrato e espécies de abusividade das cláusulas: A abusividade das cláusulas

do contrato de consumo ou se dão por desequilíbrio das prestações, ou por violação ao princípio da boa-fé e aos direitos
estabelecidos no CDC. A abusividade da cláusula contratual é o descompasso de direitos e obrigações entre os contratantes,
direitos e obrigações típicos daquele tipo de contrato, é a unilateralidade excessiva, é o desequilíbrio contrário à essência, ao
objetivo contratual, aos interesses básicos presentes naquele tipo de relação, é a autorização da atuação desleal, maliciosa, de
má-fé subjetiva, que esta cláusula, se cumprida, irá ocasionar. A abusividade é, assim, potencial, abstrata porque ataca
direitos ou impõe obrigações, lesões, que ainda não antecederam. A presença da cláusula abusiva no contrato celebrado ou na
relação individual é que a torna atual; é a execução do contrato que vai esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual.
A cláusula abusiva é uma “bomba-relógio”, pronta para agir, para desequilibrar, para impedir a realização do objetivo do
contrato, para lesar o contratante mais fraco. Em outras palavras, a estipulação de cláusulas abusivas é concomitante com a
celebração dos contratos, mas a descoberta de sua abusividade é geralmente posterior, é atividade do intérprete do contrato,
do aplicador da lei, face aos reclamos daquele que, ao executar o contrato, verificou o abuso cometido. Os arts. 51 a 54 do
CDC estabelecem a lista de cláusulas abusivas e os cuidados que devem ter os fornecedores ao informar e alertar os
consumidores sobre cláusulas que limitam ou reduzem seus direitos. O inciso V do art. 6.º do CDC traz este direito de revisão,
de forma mais ampla do que o CC/2002, seja porque não exige a vantagem excessiva do fornecedor (como o art. 478 do
CC/2002), seja porque prevê que os contratos bilaterais e não só os unilaterais (e reais) como o mútuo previstos no art. 478 do
CC/2002, podem ser revisados. As cláusulas abusivas estão desde o início no contrato, mas muitas vezes sua “descoberta” se
dá a posteriori, quando o fornecedor deseja dar eficácia a um seu direito, assegurado pelo CDC ou pelo standard de conduta
objetiva da boa-fé e o fornecedor tenta fazer valer a cláusula prevista naquele contrato. A solução do sistema geral é
geralmente de rescisão ou melhor resilição do contrato, mas o CDC (art. 51, § 1º) privilegia a continuidade do vínculo, daí ter
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direitos e obrigações típicos daquele tipo de contrato, é a unilateralidade excessiva, é o


desequilíbrio contrário à essência, ao objetivo contratual, aos interesses básicos presentes
naquele tipo de relação, é a autorização da atuação desleal, maliciosa, de má-fé subjetiva,
que esta cláusula, se cumprida, irá ocasionar”, e que “A cláusula abusiva é uma ‘bomba-
relógio’, pronta para agir, para desequilibrar, para impedir a realização do objetivo do
contrato, para lesar o contratante mais fraco”. Para a autora “a estipulação de cláusulas
abusivas é concomitante com a celebração dos contratos, mas a descoberta de sua
abusividade é geralmente posterior, é atividade do intérprete do contrato, do aplicador da
lei, face aos reclamos daquele que, ao executar o contrato, verificou o abuso cometido”.

Plenamente possível, portanto, a modificação ou a revisão do contrato de


consumo, conforme tranquila jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REVISÃO. CLÁUSULAS


CONTRATUAIS. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. TR. AUSÊNCIA DE PACTUAÇÃO. VEDAÇÃO DE SUA
UTILIZAÇÃO. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE
CUMULAÇÃO COM CORREÇÃO MONETÁRIA, JUROS
REMUNERATÓRIOS, MORATÓRIOS E MULTA CONTRATUAL.
SÚMULAS 30 E 294/STJ.
1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de admitir a
revisão ampla dos contratos e a conseqüente modificação das
cláusulas abusivas, à luz do Código de Defesa do Consumidor.
2. Conforme orientação da Segunda Seção desta Corte (Súmula
295), a TR somente pode ser utilizada como índice de correção
monetária quando pactuada, o que in casu, não ocorre, ante a
inexistência de previsão contratual específica.
3. A comissão de permanência, por sua vez, é devida para o
período de inadimplência, não podendo ser cumulada com
correção monetária (súmula 30/STJ), juros remuneratórios,
moratórios e multa contratual (AGREsp 712.801/RS), calculada
pela taxa média dos juros de mercado, apurada pelo Banco
Central do Brasil, tendo como limite máximo a taxa do contrato
(Súmula 294/STJ).
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp n. 763.245/RS, relator Ministro Fernando
Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 15/9/2005, DJ de
3/10/2005, p. 283.)

assegurado ao consumidor este direito de revisão.”. In: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM,
Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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2.3.3. FORÇA VINCULANTE DA OFERTA:

A interpretação e a (re)construção do negócio jurídico à luz da boa-fé, além


de guardar clara relação com os direitos do consumidor à proteção contra práticas
comerciais e cláusulas abusivas e à modificação e à revisão de cláusulas contratuais,
também está intimamente relacionado com a força vinculante da oferta nas relações de
consumo.

Dispõe o art. 30 do CDC:

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa,


veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com
relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga
o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o
contrato que vier a ser celebrado.

Como se observa, o dispositivo em comento tutela a transparência, a boa-fé


e o equilíbrio das relações de consumo, obrigando o fornecedor a cumprir os termos da
oferta realizada, guardando nítida correlação com o dever de informação previsto nos arts.
6º, III, e 46 do CDC e com a formação da vontade do consumidor, conforme comentários de
Cláudia Lima Marques106:

Informação e transparência: Na formação dos contratos entre


consumidores e fornecedores, o princípio básico norteador é
aquele instituído pelo art. 4.º, caput, do CDC, o da transparência
(a expressão Transparenzgebot já existe no direito alemão, mas
com um sentido estrito; aqui gostaríamos de utilizá-la, segundo o
caput do art. 4.º do CDC, como um gênero). A ideia central é
possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais
sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor.
Transparência significa informação clara e correta sobre o
produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa
lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor,
mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos
contratos de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor regulará, assim, inicialmente,
aquelas manifestações do fornecedor que tentam atrair o

106MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do
Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
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consumidor para a relação contratual, que tentam motivá-lo a


adquirir seus produtos e a usar os serviços que oferece. Regula,
portanto, o Código a oferta feita pelo fornecedor, incluindo aqui
também a publicidade veiculada por ele. O fim destas normas
protetoras é assegurar a seriedade e a veracidade destas
manifestações, criando uma nova noção de “oferta contratual”.
Como afirmamos anteriormente, transparência é clareza, é
informação sobre os temas relevantes da futura relação
contratual. Eis por que institui o Código de Defesa do Consumidor
um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar ao
consumidor não só sobre as características do produto ou serviço,
como também sobre o conteúdo do contrato. Pretendeu, assim, o
legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois, sem
ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações que
estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que não pode
suportar ou que simplesmente não deseja. Assim, também
adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas
sobre suas qualidades e características, pode adquirir um produto
que não é adequado ao que pretende ou que não possui as
qualidades que o fornecedor afirma ter, ensejando mais
facilmente o desfazimento do vínculo contratual.
Princípio da transparência e fase pré-contratual: O princípio da
transparência rege o momento pré-contratual, rege a eventual
conclusão do contrato. É mais do que um simples elemento
formal, afeta a essência do negócio, pois a informação repassada
ou requerida integra o conteúdo do contrato (arts. 30, 33, 35, 46 e
54), ou, se falha, representa a falha na qualidade do produto ou
serviço oferecido (arts. 18, 20 e 35). Tal princípio concretiza a ideia
de reequilíbrio de forças nas relações de consumo, em especial na
conclusão de contratos de consumo, imposto pelo Código de
Defesa do Consumidor como forma de alcançar a almejada justiça
contratual.

Pontua a autora107 que “A oferta ou proposta é a declaração inicial de


vontade direcionada à realização de um contrato”, tratando-se de elemento inicial da sua

107
Sustenta Cláudia Lima Marques: “Conceito de oferta: A oferta ou proposta é a declaração inicial de vontade direcionada à
realização de um contrato (assim Beviláqua, Código Civil, p. 244). Como o contrato é o acordo de duas ou mais vontades, é
necessário que um dos futuros contraentes tome a iniciativa de propor o negócio, dando início à formação do contrato; ele
como que solicita a manifestação de vontade, a concordância do outro contraente (aceitação) ao negócio que está propondo.
A oferta é o elemento inicial do contrato. A oferta no regime do Código Civil: Na visão tradicional, a oferta traduziria uma
vontade definitiva de contratar naquelas bases oferecidas, traria em si os elementos essenciais do futuro contrato – eis porque
o direito sempre reconheceu efeitos jurídicos próprios à oferta. A oferta ou proposta é obrigatória, tem força vinculante em
relação a quem a formula, devendo ser mantida por certo tempo. Basta, pois, o consentimento (aceitação) do outro parceiro
contratual e estará concluído o contrato (art. 1.080 e ss. do CC/1916 e art. 427 e ss. do CC/2002). O Código Civil/2002 prefere
utilizar a expressão proposta, repetindo em seu art. 427 a norma do art. 1.080 do CC/1916 e afirmando que “a proposta de
contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do
caso”. Já as propostas ao público em geral denominam-se ofertas, como o próprio Código de Defesa do Consumidor. A
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formação. No entanto, ressalva que o regime do CDC reformulou a noção de invitatio ad


offerendum da oferta, conforme o Código Civil, considerando-a um verdadeiro negócio
jurídico ao lhe imprimir força vinculante.

Atento à transparência, à boa-fé, ao equilíbrio das relações de consumo e


ao dever de informação, Bruno Miragem pontua que “A função da oferta, neste sentir, é
dar a conhecer o conteúdo do que será o negócio jurídico”108.

O art. 30 do CDC impôs à oferta do fornecedor força vinculante, a exemplo


do que dispõe o art. 427 do CC sobre a obrigatoriedade da proposta contratual, ao
estabelecer que “A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar
dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. A diferença, no
entanto, reside no fato de que o CDC, diversamente do que dispõe o art. 429109 do CC, é
mais ampla, não exigindo que a proposta ao consumidor contenha todos os elementos
essenciais ao contrato.

Como pontuam Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e


Leonardo Roscoe Bessa110, basta que a informação ou a publicidade veiculadas pelo
fornecedor sejam suficientemente precisas:

O art. 30 dá caráter vinculante à informação e à publicidade –


andou bem o legislador ao separar as duas modalidades de
manifestação do fornecedor, considerando que aquela é mais
ampla do que esta. Por informação, quis o CDC, no art. 30, incluir
todo tipo de manifestação do fornecedor que não seja

diferença está na sua finalidade, pois existem ofertas voltadas para o consumidor (varejo) e ofertas voltadas para os
comerciantes (atacado), agora reguladas pelo Código Civil/2002. As primeiras continuaram reguladas pelo Código de Defesa
do Consumidor, como vimos; já as segundas encontram especial regulação, se ofertas ao público, no art. 429 do CC/2002, que
impõe: “A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário
resultar das circunstâncias ou dos usos”. No mais, o CC/2002 repetiu exatamente as normas sobre proposta do CC/1916, à
exceção do reproduzido art. 429. A oferta no regime do CDC: A oferta do Código de Defesa do Consumidor nada mais é,
portanto, do que um negócio jurídico. Acostumados a examinar negócios jurídicos bilaterais (especialmente os contratos),
demonstramos dificuldade em separar os efeitos autônomos da oferta e aqueles oriundos da união entre oferta e aceitação
para a formação de um novo ser, o contrato. Não podemos, porém, esquecer da existência dos negócios jurídicos unilaterais,
aqueles que criam obrigações para um indivíduo.”. In: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM,
Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.
108 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.
109 CC/02, Art. 429. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o

contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.


Parágrafo único. Pode revogar-se a oferta pela mesma via de sua divulgação, desde que ressalvada esta faculdade na oferta
realizada.
110 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª

ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.


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considerado anúncio, mas que, mesmo assim, sirva para induzir o


consentimento (=decisão) do consumidor. Aí estão incluídas as
informações prestadas por representantes do fornecedor ou por
ele próprio, bem como as que constam em bulas ou em rótulos
(não em todos, pois certos rótulos ou partes deles apresentam
caráter publicitário).

Para os referidos autores111, “A vinculação atua de duas maneiras: primeiro,


obrigando o fornecedor, mesmo que se negue a contratar; segundo, introduzindo-se (e
prevalecendo) em contrato eventualmente celebrado, inclusive quando seu texto o diga de
modo diverso, pretendendo afastar o caráter vinculante. Anote-se que que o art. 30 do CDC
não exige qualquer solenidade em relação para que a oferta seja vinculante, afirmando que
toda informação ou publicidade pode ser veiculadas por “qualquer forma ou meio de
comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados”.

Bruno Miragem112 pontua que o efeito vinculante da oferta independe da


vontade do fornecedor, bastando que desperte a confiança do consumidor a respeito da
contratação do produto ou serviço:

Em relação à oferta de consumo, embora o fato de que nas


situações em que seja feita conscientemente pelo fornecedor
mantenha esta característica negocial, quando se examina o teor
do artigo 30, que faz referência a “qualquer informação
suficientemente precisa”, estabelecendo para logo seu feito
vinculativo, de modo independente à vontade manifestada pelo
fornecedor, esta conduz à situação deque a conduta do
fornecedor não seja considerada relevante. Importante será
apenas o seu resultado, que consiste na geração e divulgação da
informação ou publicidade suficientemente precisa, no que se
aproxima fortemente da categoria do ato-fato jurídico ou ainda
do contrato social uma vez que – conforme ensina Adalberto
Pasqualotto – a mera “atuação dos anunciantes, voltada para o
incremento dos seus negócios é fonte de deveres e obrigações”.
Não se de considerar, portanto, tendo a oferta ou informação
qualidades que despertem a confiança do consumidor, a
possibilidade do fornecedor alegar erro ou equívoco na sua
formulação. Não há relevância do elemento volitivo, razão pela
qual descabe fazer referência a qualquer espécie de defeito da
vontade do fornecedor (erro de objeto, por exemplo) como óbice
ao seu caráter vinculativo.

111
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
112 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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Observe-se, pois, que, a teor do artigo 30 do CDC, o caráter


vinculativo da oferta não apenas obriga o fornecedor a contratar,
mas também a fazê-lo nos termos da informação ou publicidade
veiculada. Neste sentido, é possível identificar em relação aos
efeitos da oferta de consumo a origem de dois deveres jurídicos
principais em relação ao fornecedor. Primeiro, é o dever de
contratar, ou seja, de realizar o contrato a que se refira a oferta.
Segundo, o dever de contratar nos termos da oferta. Isto porque o
artigo 30, que a informação ou publicidade suficientemente
precisa integra o contrato que vier a ser celebrado, encaminha o
legislador importante solução prática visando evitar a dissociação
entre o prometido e o efetivamente contratado. Neste sentido, em
vista do princípio da boa-fé, o efeito vinculativo da conduta das
partes e a rejeição ao comportamento contraditório, ao
estabelecer que a oferta de consumo integra o contrato de
consumo, vincular o fornecedor ao cumprimento do que se
comprometeu na fase pré-contratual, na qual o objetivo de
atração do consumidor para contratar pode muitas vezes
estimular o oferecimento de vantagens que posteriormente não
estejam contempladas no contrato. A solução do art. 30 do CDC
evita essa dissociação. A oferta de consumo e o contrato se
identificam pela simples razão de que a primeira constitui-se por
força de lei, em parte integrante do segundo. E neste sentido, há
um nítido privilégio aos termos da oferta em relação ao que venha
a ser posteriormente contratado, sobretudo quando existe
divergência entre estes dois momentos, sem que seja muitas vezes
percebido pelo consumidor, em face da sua vulnerabilidade (que
se pode apresentar no tocante à redação e compreensão do
contrato, por exemplo).

Nesse cenário, Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e


Leonardo Roscoe Bessa113 defendem que “A regra do Código é ‘prometeu, cumpriu’”, de
modo que “o consumidor, em caso de oferta desconforme com aquilo que o fornecedor
efetivamente se propõe a entregar, tem a sua escolha três opções: a) exigir o cumprimento
forçado da obrigação; b) aceitar um outro bem de consumo equivalente; c) rescindir o
contrato já firmado, cabendo-lhe, ainda, a restituição do que já pagou, monetariamente
atualizado, e perdas e danos (inclusive danos morais)”.

113BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
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Em outras palavras, havendo recusa por parte do fornecedor, o art. 35 do


CDC confere ao consumidor o direito de exigir o cumprimento forçado da oferta,
apresentação ou publicidade:

Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar


cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o
consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:
I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da
oferta, apresentação ou publicidade;
II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;
III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia
eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a
perdas e danos.

Atente-se que a proteção prevista no dispositivo acima transcrito abrange


não só os atos praticados pelo fornecedor, mas também aqueles praticados pelos seus
prepostos ou representantes, conforme dicção do art. 34 do CDC:

Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente


responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes
autônomos.

A título ilustrativo, cito precedentes do Superior Tribunal de Justiça a


respeito do efeito vinculante da oferta:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSUMIDOR.


"REESTILIZAÇÃO" DE PRODUTO. VEÍCULO 2006 COMERCIALIZADO
COMO MODELO 2007. LANÇAMENTO NO MESMO ANO DE 2006
DE NOVO MODELO 2007. CASO "PÁLIO FIRE MODELO 2007".
PRÁTICA COMERCIAL ABUSIVA. PROPAGANDA ENGANOSA.
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. ALEGAÇÃO DE REESTILIZAÇÃO
LÍCITA AFASTADA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
DIREITO INDIVIDUAL HOMOGÊNEO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO
NO ACÓRDÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROCEDENTE.
1.- Embargos de Declaração destinam-se a corrigir eventual
omissão, obscuridade ou contradição intrínsecos ao julgado (CPC,
art. 535), não constituindo via própria ao rejulgamento da causa
2.- O Ministério Público tem legitimidade processual para a
propositura de ação Civil Pública objetivando a defesa de direitos
individuais homogêneos, de origem comum (CDC, art. 81, III), o
que se configura, no caso, de modo que legitimado, a propor,

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contra a fabricante, Ação Civil Pública em prol de consumidores


lesados por prática comercial abusiva e propaganda enganosa.
3.- Embora lícito ao fabricante de veículos antecipar o lançamento
de um modelo meses antes da virada do ano, prática usual no
país, constitui prática comercial abusiva e propaganda enganosa
e não de "reestilização" lícita, lançar e comercializar veículo no
ano como sendo modelo do ano seguinte e, depois, adquiridos
esses modelos pelos consumidores, paralisar a fabricação desse
modelo e lançar outro, com novos detalhes, no mesmo ano, como
modelo do ano seguinte, nem mesmo comercializando mais o
anterior em aludido ano seguinte. Caso em que o fabricante, após
divulgar e passar a comercializar o automóvel "Pálio Fire Ano
2006 Modelo 2007", vendido apenas em 2006, simplesmente
lançou outro automóvel "Pálio Fire Modelo 2007", com alteração
de vários itens, o que leva a concluir haver ela oferecido em 2006
um modelo 2007 que não viria a ser produzido em 2007, ferindo a
fundada expectativa de consumo de seus adquirentes em terem,
no ano de 2007, um veículo do ano.
4.- Ao adquirir um automóvel, o consumidor, em regra, opta pela
compra do modelo do ano, isto é, aquele cujo modelo deverá
permanecer por mais tempo no mercado, circunstância que
minimiza o efeito da desvalorização decorrente da depreciação
natural.
5.- Daí a necessidade de que as informações sobre o produto
sejam prestadas ao consumidor, antes e durante a contratação,
de forma clara, ostensiva, precisa e correta, visando a sanar
quaisquer dúvidas e assegurar o equilíbrio da relação entre os
contratantes, sendo de se salientar que um dos principais
aspectos da boa-fé objetiva é seu efeito vinculante em relação à
oferta e à publicidade que se veicula, de modo a proteger a
legítima expectativa criada pela informação, quanto ao
fornecimento de produtos ou serviços.
6.- Adequada a condenação, realizada pelo Acórdão ora
Recorrido, deve-se, a fim de viabilizar a mais eficaz liquidação
determinada (Ementa do Acórdão de origem, item 5), e
considerando o princípio da demora razoável do processo, que
obriga prevenir a delonga na satisfação do direito, observa-se
que, resta desde já arbitrado o valor do dano moral individual
(item 5 aludido) em 1% do preço de venda do veículo,
devidamente corrigido, a ser pago ao primeiro adquirente de cada
veículo, com juros de mora a partir da data do evento danoso, que
se confunde com o da aquisição à fábrica (Súmula 54/STJ).
7.- Pelo exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.
(REsp n. 1.342.899/RS, relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira
Turma, julgado em 20/8/2013, DJe de 9/9/2013.)

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PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. PANFLETOS PUBLICITÁRIOS


PROPAGANDA ENGANOSA POR OMISSÃO. NÃO CONFIGURADA.
RECURSO ESPECIAL PROVIDO 1. No presente caso, trata-se da
legalidade de multa imposta ao Makro Atacadista S/A em razão
de publicidade enganosa por não ter veiculado em seus encartes
promocionais distribuídos aos consumidores o preço nos produtos.
2. A propaganda comercial, consubstanciada em panfletos
comerciais, para que atenda aos preceitos encartados no CDC,
deve levar ao conhecimento do consumidor - a título de
informação essencial do produto ofertado - o preço, podendo esse
englobar custo, formas e condições de pagamento do produto ou
serviço.
3. O artigo 30 do CDC confere à oferta - tida como espécie de
publicidade apta a veicular uma forma de informação - caráter
vinculante e, como tal, disposta a criar vínculo entre fornecedor e
consumidor, surgindo uma obrigação pré-venda, no qual deve o
fornecedor se comprometer a cumprir o que foi ofertado.
4. No caso do encarte publicitário in comento, verifica-se duas
formas distintas de publicidade. Uma delas - que ora se examina -
denominada de "uma super oferta de apenas um dia", apesar de
não expor expressamente o preço numérico da promoção,
afirmou o compromisso de garantir o menor preço nos produtos
ali mencionados, sendo esses apurados com base em pesquisa
realizada em concorrentes.
5. A veiculação de informação no sentido de que o valor a ser
praticado seria menor do que o da concorrência, somado à
fixação na entrada do estabelecimento de ampla pesquisa de
preço, são elementos aptos a fornecer ao consumidor as
informações das quais ele necessita a despeito do numerário a ser
utilizado para adquirir a mercadoria, podendo, a partir de então,
fazer uma opção livre e consciente quanto à aquisição dos
produtos.
6. O encarte em tela, apesar de não especificar o preço, não é
capaz de se consubstanciar em propaganda enganosa, pois traz
outra informação, igualmente prevista no norma, que o substitui,
qual seja, forma de aquisição do produto pelo menor custo.
7. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.370.708/RN, relator Ministro Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, julgado em 28/4/2015, DJe de
1/7/2015.)

Em conclusão, o efeito vinculante da oferta e das informações que o


fornecedor disponibiliza ao consumidor nas negociações preliminares ou na celebração do
negócio jurídico são de suma importância para aferir a possibilidade de conversão do
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contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo consignado, já que, em última


análise, pretende o consumidor fazer valer a oferta que lhe foi feita nas negociações
preliminares e no ato da celebração do negócio jurídico, ainda que em desacordo com o
instrumento assinado.

2.3.4. TESE PROPOSTA

O arcabouço téorico invocado demonstra ser possível a conversão do


contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal.

Conforme exposto anteriormente, a real intenção do consumidor nessas


negociações consiste na obtenção de empréstimo pessoal consignado, seja porque
desconhece o cartão de crédito consignado, seja porque os custos relativos à primeira
opção são consideravelmente menores. Pelo fato de não haver sido adequadamente
informado, acredita haver celebrado contrato de pessoal empréstimo, porque o valor do
crédito foi disponibilizado mediante transferência para conta bancária de sua titularidade, e
porque não recebeu a via física do cartão (plástico), tampouco as faturas mensais.

Aos olhos do consumidor, que é vulnerável, a operação realizada no plano


fático é de um típico empréstimo pessoal consignado, modalidade de mútuo feneratício,
como deflui da interpretação conjunta dos arts. 586114, 587115, 591116 592117 do CC, o que
constitui típico contrato real118. O empréstimo bancário, afora o fato de ser concedido por

114 CC/02, Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele
recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
115 CC/02, Art. 587. Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os

riscos dela desde a tradição.


116 CC/02, Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não

poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
117 CC/02, Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:

I - até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo, como para semeadura;
II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;
III - do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer outra coisa fungível.
118 Conforme Nelson Nery Júnior: “2. Conceito e natureza jurídica. O mútuo é um contrato real, pois exige a efetiva entrega da

coisa dele objeto, para que esteja aperfeiçoado. A entrega da coisa é elemento de existência do contrato de mútuo e não de
sua validade ou eficácia (Pontes de Miranda. Tratado, t. XLII4, § 4586, 1, p. 8). Sem que se dê a entrega da coisa ao mutuário,
não há mútuo. Porém, neste caso, diferentemente do que ocorre com o comodato, o mutuário se obriga a restituir outra coisa,
porém de igual quantidade, gênero e qualidade que a outra, do que resulta peculiar característica do mútuo: a propriedade da
coisa transmite-se ao mutuário, fato esse de que deriva o poder de o mutuário dispor da coisa, consumindo-a. A partir daí,
conclui-se que o mutuante deve ser proprietário da coisa emprestada, e que o mutuário suporta o risco da coisa, pois assume a
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instituição financeira integrante do Sistema Financeiro Nacional, em nada difere do mútuo


feneratício ordinário119.

É dizer, a realidade fática que permeia contratações dessa natureza


amolda-se aos contornos jurídicos de um típico contrato de mútuo, e não de cartão de
crédito, razão pela qual afigura-se possível interpretá-lo como tal. Conquanto a
formalização do negócio jurídico tenha sido realizada em outra roupagem e em outros
termos, deve-se tutelar e privilegiar a real intenção do consumidor, desconsiderando-se ou
relativizando-se a literalidade das cláusulas contratuais, que devem ser interpretadas do
modo que lhe for mais favorável.

Salvo melhor juízo, a modificação das cláusulas contratuais tem como


finalidade precípua não só a reconstrução do negócio jurídico à luz da boa-fé objetiva e da
real intenção do consumidor, como permitem os arts. 112 e 113 do CC, mas também a
harmonização e o equilíbrio da relação de consumo, colocando-se o consumidor, em
situação de igualdade com o fornecedor, coibindo-se práticas comerciais abusivas e
desleais tipificadas nos arts. 39, IV, e 54-C, III, do CDC.

Em última análise, em demandas como a causa-piloto, o consumidor


pretende o cumprimento da oferta que lhe fora realizada nas negociações preliminares e
no ato da celebração do negócio, a qual foi posteriormente confirmada pelo
comportamento da própria instituição financeira, como já exposto. Pretensão dessa

disponibilidade dela, como dono (Nery-Nery. Instituições DC, v. III, n. 119, p. 309). 3. Mútuo de dinheiro. Em se tratando de
mútuo de dinheiro, a entrega efetiva da quantia em dinheiro é elemento essencial do contrato real de mútuo, sem o qual
inexiste o próprio mútuo e não se gera qualquer espécie de obrigação de crédito. Vale dizer, o crédito e a obrigação decorrente
de pagar não decorrem da promessa de transferir o dinheiro frente à promessa de aceitá-lo para pagamento futuro, mas sim
da transferência efetiva do valor ao mutuário.”. In: JÚNIOR, Nelson Nery. Código civil comentado. 13ª ed.. São Paulo:
Thomson Reuters; 2019.
119 Sustenta Arnaldo Rizzardo: “Dentre as múltiplas operações atinentes à atividade bancária, destaca-se o empréstimo

bancário.
Iguala-se o empréstimo bancário praticamente ao mútuo comum, regrado pelo Código Civil. Há mútuo sempre que alguém
entrega a outrem uma certa quantidade de coisas fungíveis, para que a consuma, comprometendo-se este a devolver, na
forma e no prazo avençados, não as próprias coisas recebidas, mas coisas ou bens equivalentes em quantidade, qualidade e
gênero.(...) O empréstimo bancário constitui um mútuo, com a especialidade de ser concedido por uma entidade creditícia
submetida à disciplina da Lei 4.595, de 31.12.1964. Basicamente, vem a ser um contrato que expressa o fornecimento de
crédito aos interessados.(...) Os bancos empregam considerável parcela dos valores que arrecadam do público em geral para a
concessão de empréstimos aos seus clientes, a prazo fixo, com juros e comissões, o que permite aos mesmos o investimento
nos mais variados setores da atividade em que atuam. Sem dúvida, trata-se o empréstimo de uma das operações centrais da
atividade bancária. Na sua função intermediadora no crédito, ou dispondo simplesmente de seu próprio capital, o banco
empresta dinheiro habitual e profissionalmente, angariando, com isso, rendas, comissões, taxas pela prestação de serviços e
juros moratórios no caso de inadimplemento do devedor.”. In: RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de Crédito Bancário. Revista dos
Tribunais. 2014.
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natureza encontra amparo nos arts. 30 e 35 do CDC, sendo de rigor salientar que a
manutenção do contrato é direito básico do consumidor.

Veja-se que, embora o BANCO CETELEM S/A, a FEBRABAN e ABBC –


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS sustentem a impossibilidade de conversão do
contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal consignado, não
trouxeram qualquer argumento técnico ou jurídico para respaldar suas teses, que estão
fundamentadas apenas na natureza jurídica distinta de um e outro contratos.

A fundamentação ora expendida, concessa maxima venia, demonstra que


tais teses não prosperam, já que no plano fático, há um contrato de mútuo entre as partes,
embora travestido de contrato de cartão de crédito consignado, o qual foi celebrado
mediante erro substancial do consumidor em virtude da violação ao dever de informação.

Nessa perspectiva, em atenção à intenção do consumidor, o contrato de


cartão de crédito consignado deve ser convertido em contrato de empréstimo pessoal
consignado, com amparo nos arts. 112 e 113 do CC e nos arts. 6º, IV e V, 30 e 35 do CDC.

Para tanto, a instituição financeira, deverá: 1) realizar o recálculo do débito


desde a celebração do contrato, aplicando a taxa média de juros remuneratórios vigente na
data da contratação para esta modalidade contratual, conforme divulgado pelo BACEN,
assegurada a compensação/repetição dos valores pagos a maior; 2) cancelar os descontos
relativos à margem consignável para cartão de crédito; 3) inserir os descontos relativos à
margem consignável para empréstimos pessoais.

Salienta-se que a impossibilidade de cumprimento da tutela específica,


consubstanciada na conversão do contrato de cartão de crédito consignado em
empréstimo pessoal consignado, somente poderá ser aferida em cumprimento de
sentença.

Constatada a impossibilidade de cumprimento da obrigação, porque


ausente margem consignável em folha de pagamento ou benefício previdenciário, por
exemplo, será possível a sua conversão em perdas e danos com amparo no art. 84, §1º, do
CDC, in verbis:

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Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da


obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela
específica da obrigação ou determinará providências que
assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será
admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela
específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
§ 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da
multa (art. 287, do Código de Processo Civil).
§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo
justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz
conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado
o réu.
§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor
multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se
for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo
razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado
prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas
necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e
pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva,
além de requisição de força policial.

A corroborar esse entendimento, cito precedente do Superior Tribunal de


Justiça:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE


OBRIGAÇÃO DE FAZER. COMÉRCIO ELETRÔNICO. COMPRA E
VENDA DE MERCADORIA PELA INTERNET. RECURSA AO
CUMPRIMENTO DA OFERTA. ART. 35 DO CDC. ANTECIPAÇÃO DA
TUTELA. AUSÊNCIA DE PRODUTO EM ESTOQUE. CUMPRIMENTO
FORÇADO DA OBRIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO.
1. Cuida-se de ação de obrigação de fazer, com pedido de
antecipação de tutela, ajuizada em razão do descumprimento da
entrega de mercadoria adquirida pela internet, fundada na
alegação de ausência de estoque do produto.
2. Recurso especial interposto em: 05/08/2019; conclusos ao
gabinete em: 02/03/2020; aplicação do CPC/15.
3. O propósito recursal consiste em determinar se, diante da
vinculação do fornecedor à oferta, a alegação de ausência de
produto em estoque é suficiente para inviabilizar o pedido do
consumidor pelo cumprimento forçado da obrigação, previsto no
art. 35, I, do CDC.

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4. No direito contratual clássico, firmado entre pessoas que se


presumem em igualdades de condições, a proposta é uma firme
manifestação de vontade, que pode ser dirigida a uma pessoa
específica ou ao público em geral, que somente vincula o
proponente na presença da firmeza da intenção de concreta de
contratar e da precisão do conteúdo do futuro contrato,
configurando, caso contrário, mero convite à contratação.
5. Como os processos de publicidade e de oferta ao público
possuem importância decisiva no escoamento da produção em
um mercado de consumo em massa, conforme dispõe o art. 30 do
CDC, a informação no contida na própria oferta é essencial à
validade do conteúdo da formação da manifestação de vontade
do consumidor e configura proposta, integrando efetiva e
atualmente o contrato posteriormente celebrado com o
fornecedor.
6. Como se infere do art. 35 do CDC, a recusa à oferta oferece ao
consumidor a prerrogativa de optar, alternativamente e a sua
livre escolha, pelo cumprimento forçado da obrigação, aceitar
outro produto, ou rescindir o contrato, com direito à restituição
de quantia eventualmente antecipada, monetariamente
atualizada, somada a perdas e danos.
7. O CDC consagrou expressamente, em seus arts. 48 e 84, o
princípio da preservação dos negócios jurídicos, segundo o qual
se pode determinar qualquer providência a fim de que seja
assegurado o resultado prático equivalente ao adimplemento da
obrigação de fazer, razão pela qual a solução de extinção do
contrato e sua conversão em perdas e danos é a ultima ratio, o
último caminho a ser percorrido.
8. As opções do art. 35 do CDC são intercambiáveis e produzem,
para o consumidor, efeitos práticos equivalentes ao
adimplemento, pois guardam relação com a satisfação da
intenção validamente manifestada ao aderir à oferta do
fornecedor, por meio da previsão de resultados práticos
equivalentes ao adimplemento da obrigação de fazer ofertada
ao público.
9. A impossibilidade do cumprimento da obrigação de entregar
coisa, no contrato de compra e venda, que é consensual, deve
ser restringida exclusivamente à inexistência absoluta do
produto, na hipótese em que não há estoque e não haverá mais,
pois aquela espécie, marca e modelo não é mais fabricada.
10. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido impôs à recorrente
a adequação de seu pedido às hipóteses dos incisos II e III do art.
35 do CDC, por considerar que a falta do produto no estoque do
fornecedor impediria o cumprimento específico da obrigação.
11. Recurso especial provido.

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(REsp n. 1.872.048/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira


Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 1/3/2021.)

Logo, em situações tais, admitir-se-á, por exemplo, a recomposição das


partes ao status quo ante, mediante restituição à instituição financeira da quantia mutuada
e, ao consumidor, dos valores indevidamente pagos a maior, na forma simples, admitida a
compensação.

Com essas considerações, em relação à possibilidade de “adaptação do


contrato de cartão de crédito consignado à modalidade empréstimo consignado em folha
de pagamento/benefício previdenciário, aplicando-se a título de juros remuneratórios a
taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central, na modalidade de crédito pessoal
consignado para a época da contratação, abatidos os valores já descontados do autor”,
proponho a seguinte tese:

O contrato de cartão de crédito consignado que tenha sido


celebrado mediante violação ao dever de informação é
passível de conversão em contrato de empréstimo pessoal
consignado, devendo a este ser aplicada a taxa média de
mercado divulgada pelo BACEN, vigente na data da
contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a
compensação dos valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela
instituição financeira, como na hipótese de inexistência de
margem consignável, o que deverá ser aferido em
cumprimento de sentença, a obrigação será convertida em
perdas e danos com a recomposição das partes ao status
quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC, mediante
restituição à instituição financeira da quantia mutuada e, ao
consumidor, dos valores indevidamente pagos a maior, na
forma simples, admitida a compensação.

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2.4. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS:

Por fim, passo a analisar a configuração de danos morais nas hipóteses de


anulação de contratos de cartão de crédito consignado celebrados mediante falha na
prestação de serviços bancários, caracterizada pela violação ao dever de informação.

2.4.1. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR PELA REPARAÇÃO DE


DANOS MORAIS:

Conforme art. 4º, caput, do CDC, a Política Nacional das Relações de


Consumo tem como objetivo o respeito à dignidade, à saúde e à segurança do consumidor
e a proteção de seus interesses econômicos. Nessa perspectiva, o art. 6º, VI, estabelece
como direito básico do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais
e morais, individuais, coletivos e difusos”.

Como se observa, o inciso em comento tutela tanto a prevenção quanto a


reparação de danos materiais e morais causados ao consumidor, interessando, para os fins
deste incidente, a tutela reparatória. A reparação de danos materiais e morais já é
assegurada pelos arts. 186120 e 927121 do CC. A inovação do CDC sobre a matéria reside na
consagração, em direito do consumidor, do princípio da reparação integral, conforme
doutrina de Bruno Miragem122:

Todavia, não são poucos os efeitos que se retiram da norma do


artigo 6º, VI, do CDC, no que diz respeito à utilização da expressão
“efetiva reparação” ali consignada. Não parece ter o legislador,
neste caso, pretendido reforçar a necessidade de reparação do
consumidor, o que desde logo seria desnecessário, considerando a

120 CC/02, Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
121 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem.
122 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2010.

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reparabilidade de danos consagrada pelo sistema geral de direito


privado, no que diz respeito à responsabilidade civil. O direito à
efetiva reparação, neste particular, consagra um direito do
consumidor o princípio da reparação integral dos danos. Ou seja,
devem ser reparados todos os danos causados, sejam os prejuízos
diretamente causados pelo fato, assim como aqueles que sejam
sua consequência direta.

Sabido, por outro lado, que o regime da responsabilidade civil previsto no


CDC em relação aos acidentes de consumo diverge daquele previsto no Código Civil, já que
a responsabilidade do fornecedor de serviços pela reparação dos danos causados ao
consumidor é, em regra, objetiva, como deflui da interpretação do art. 14123. Sobre o tema,
transcrevo os comentários de Cláudia Lima Marques124:

Responsabilidade objetiva nos acidentes de consumo envolvendo


serviços. Fato do serviço: A responsabilidade imposta pelo art. 14
do CDC é objetiva, independente de culpa e com base no defeito,
dano e nexo causal entre o dano ao consumidor-vítima (art. 17) e
o defeito do serviço prestado no mercado brasileiro. Com o CDC, a
obrigação conjunta de qualidade-segurança, na terminologia de
Antonio Herman Benjamin, isto é, de que não haja um defeito na
prestação do serviço e consequente acidente de consumo danoso
à segurança do consumidor-destinatário final do serviço, é
verdadeiro dever imperativo de qualidade (arts. 24 e 25 do CDC),
que expande para alcançar todos os que estão na cadeia de
fornecimento, ex vi art. 14 do CDC, impondo a solidariedade de
todos os fornecedores da cadeia, inclusive aqueles que a
organizam, os servidores diretos e os indiretos (parágrafo único
do art. 7.º do CDC).

123 CDC, Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em
consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
124 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRARGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do

Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2013.


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Logo, a configuração do dever de indenizar exige a demonstração de: i) ato


ilícito, caracterizado pelo defeito do serviço; ii) dano; e iii) nexo de causalidade.

De acordo com Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e


Leonardo Roscoe Bessa125, “Ao contrário do que sucede no art. 12, o Código, no art. 14, não
fragmenta a responsabilidade, colocando de um lado o comerciante (distribuidor ou
varejista) e de outros, o fabricante, o produtor, o construtor e o importador. Fala-se apenas
em ‘fornecedor’, gênero, que inclui todos os partícipes da cadeia de produção e
distribuição”. Lembram os autores que o defeito do serviço pode ser prestação, de
concepção ou de comercialização.

A despeito do regime de responsabilidade civil objetiva previsto no art. 14


do Código de Defesa do Consumidor, não se pode perder de vista que é do consumidor o
ônus de comprovar os danos morais experimentados, haja vista tratar-se de fato
constitutivo do seu direito, na forma do art. 373, I, do CPC.

Sabido que a tutela jurídica dos danos extrapatrimoniais está positivada nos
arts. 5º, V e X126, da CF/88 e no art. 186127 do CC. Na linha do que foi referido em tópico
introdutório, a reparabilidade dos danos morais encontra o seu fundamento na tutela
jurídica da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil,
conforme previsto no art. 1º, III, da CF/88.

O delineamento dos contornos jurídicos desse instituto, à míngua de


previsão legal, coube à doutrina e à jurisprudência. Nesse contexto, inicio o exame do tema
a partir de reflexão de Sérgio Cavalieri Filho128:

O que configura e que não configura dano moral? Na falta de


critérios objetivos, essa questão vem-se tornando tormentosa na

125
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014.
126 CF/88, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:(...)
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem;(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação; (...).
127
CC/02, Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
128 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas; 2009.

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doutrina e na jurisprudência, levando o julgador a situação de


perplexidade. Ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano
moral e da sua inacumulabilidade com o dano material, corremos,
agora, o risco de ingressar na fase da sua industrialização, onde o
aborrecimento banal ou mera sensibilidade são apresentados
como dano moral, em busca de indenizações milionárias.
Este é um dos domínios onde mais necessárias se tornam as
regras da boa prudência, do bom-senso prático, da justa medida
das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida. Tenho
entendido que, na solução dessa questão, cumpre ao juiz seguir a
trilha da lógica do razoável, em busca da concepção ético-jurídica
dominante na sociedade. Deve tomar por paradigma o cidadão
que se coloca a igual distância do homem frio, insensível, e o
homem de extrema sensibilidade.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho129, por sua vez,


caracterizam o dano moral como “lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem
comercialmente redutível a dinheiro”, caracterizando-se pela violação à “esfera
personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade, violando, por exemplo, sua
intimidade, vida privada, honra imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente”. Na
mesma linha, Maria Helena Diniz130 sustenta que “O dano moral vem a ser a lesão de
interesses não patrimoniais de pessoa natural ou jurídica (art. 52; Súmula 227 do STJ),
provocada pelo fato lesivo”. Para a autora, “O dano moral é, na verdade, lesão ao direito da
personalidade”.

Nesse diapasão, a doutrina majoritária entende que os danos morais -


também denominados imateriais ou extrapatrimoniais - constituem ofensa à dignidade da
pessoa humana e a direitos da personalidade, conforme magistério de Cristiano Chaves de
Farias131:

O dano moral é categoria cuja construção é fundamentalmente


jurisprudencial, apoiada nos contributos de gerações sucessivas
de juristas. Quem quiser conhecê-lo deve ir à doutrina e aos
julgados.(...)

129 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil – Responsabilidade civil - volume 3. 19ª ed.
São Paulo; Saraiva Educação; 2021.
130 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 7: responsabilidade civil. 35ª ed. São Paulo: Saraiva

Educação. 2021.
131 Farias, Cristiano Chaves de; Netto, Felipe Braga; Rosenvald, Nelson. Direito Civil. Volume único. 4ª ed.. Salvador: Ed. Jus

Podium; 2019. P. 260-263.


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Aproximar o dano moral com o princípio da dignidade da pessoa


humana é um exercício indispensável para todos que
verdadeiramente queiram construir um direito civil
constitucional.
A dignidade é um valor ético, parte da própria existência do ser
humano. Por isso, ela antecede e fundamenta a ordem política,
inserindo a pessoa como protagonista do sistema jurídico em duas
dimensões: uma negativa, no sentido de evitar qualquer atendado
à necessária estima e respeito à inerente dignidade de cada ser
humano; uma positiva, determinando que o ordenamento
propicie um ambiente de liberdade com a concessão de um
mínimo invulnerável para que todos possam desenvolver as suas
aptidões e exercitar os seus fins de acordo com condições
verdadeiramente humanas.
Conceituando os danos morais como ofensa a atributo da personalidade,
precisa é a lição de Anderson Schreiber132:

Figura de notável importância na prática judicial brasileira, o dano


moral consiste justamente na lesão a um atributo da
personalidade humana. Assim, a lesão a qualquer dos direitos da
personalidade, sejam expressamente reconhecidos ou não pelo
Código Civil, configura dano moral.
À conceituação do dano moral como lesão à personalidade opõe-
se outro entendimento bastante difundido na doutrina e
jurisprudência brasileiras, segundo o qual o dano moral consistiria
na 'dor, vexame, sofrimento ou humilhação'. Tal entendimento,
frequente em nossas cortes, tem a flagrantes desvantagem de
deixar a configuração do dano moral ao sabor das emoções
subjetivas da vítima.

Daí porque, segundo Sérgio Cavalieri Filho133, “Mero dissabor,


aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano
moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho,
no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e
duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”. Maria Helena Diniz
ressalva que “O dano moral, ensina-nos Zannoni, não é a dor, a angústia, o desgosto, a

132 Schreiber, Anderson. Direitos da personalidade. 2ª ed. São Paulo: Atlas; 2013. P. 16.
133 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas; 2009.
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aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois estes
estados de espírito constituem o conteúdo, ou melhor, a consequência, do dano”134.

De fato, o enunciado nº 44 da V Jornada de Direito Civil é claro ao dispor


que “o dano moral indenizável não pressupõe sentimentos humanos desagradáveis como
dor ou sofrimento”, sendo de rigor salientar que o Superior Tribunal de Justiça135, trilhando
a mesma linha de entendimento, reconhece a reparabilidade de danos morais aos
absolutamente incapazes.

De qualquer sorte, como pontua Sérgio Cavalieri Filho136, “mero


inadimplemento contratual, mora ou prejuízo econômico não configuram, por si sós, dano
moral, porque não agridem a dignidade humana”. Para o autor, “Os aborrecimentos dele
decorrentes ficam subsumidos pelo dano material, salvo se os efeitos do inadimplemento
contratual, por sua natureza e gravidade, exorbitarem o aborrecimento normalmente
decorrente de uma perda patrimonial e também repercutirem na esfera da dignidade da
vítima, quando, então, configurarão dano moral”.

De fato, nos casos de inadimplemento contratual não se constata, como


regra, dano moral direto, que “consiste na lesão a um interesse que visa a satisfação ou
gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade (como a

134
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Educação. 2021.
135 RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. SAQUE INDEVIDO EM CONTA- CORRENTE. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO.

RESPONSABILIDADE DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. SUJEITO ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. ATAQUE A DIREITO DA


PERSONALIDADE. CONFIGURAÇÃO DO DANO MORAL. IRRELEVÂNCIA QUANTO AO ESTADO DA PESSOA. DIREITO À
DIGNIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL. PROTEÇÃO DEVIDA.
1. A instituição bancária é responsável pela segurança das operações realizadas pelos seus clientes, de forma que, havendo
falha na prestação do serviço que ofenda direito da personalidade daqueles, tais como o respeito e a honra, estará
configurado o dano moral, nascendo o dever de indenizar. Precedentes do STJ.
2. A atual Constituição Federal deu ao homem lugar de destaque entre suas previsões. Realçou seus direitos e fez deles o fio
condutor de todos os ramos jurídicos. A dignidade humana pode ser considerada, assim, um direito constitucional subjetivo,
essência de todos os direitos personalíssimos e o ataque àquele direito é o que se convencionou chamar dano moral.
3. Portanto, dano moral é todo prejuízo que o sujeito de direito vem a sofrer por meio de violação a bem jurídico específico. É
toda ofensa aos valores da pessoa humana, capaz de atingir os componentes da personalidade e do prestígio social.
4. O dano moral não se revela na dor, no padecimento, que são, na verdade, sua consequência, seu resultado. O dano é fato
que antecede os sentimentos de aflição e angústia experimentados pela vítima, não estando necessariamente vinculado a
alguma reação psíquica da vítima.
5. Em situações nas quais a vítima não é passível de detrimento anímico, como ocorre com doentes mentais, a configuração
do dano moral é absoluta e perfeitamente possível, tendo em vista que, como ser humano, aquelas pessoas são igualmente
detentoras de um conjunto de bens integrantes da personalidade.
6. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.245.550/MG, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/3/2015, DJe de 16/4/2015.)
136 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas; 2009.

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vida, a integridade corporal e psíquica, a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os


sentimentos afetivos, a própria imagem) ou nos atributos da pessoa (como nome, a
capacidade, o estado de família)”137, mas dano moral indireto, que “consiste na lesão a um
interesse tendente à satisfação ou gozo de bens jurídicos patrimoniais, que produz um
menoscabo a um bem extrapatrimonial, ou melhor, é aquele que provoca prejuízo a
qualquer interesse não patrimonial, devido a uma lesão a um bem patrimonial da
vítima”138.

Logo, não há como se compreender pela configuração de danos morais in


re ipsa nos casos de inadimplemento contratual, porque a ofensa ao patrimônio imaterial
do consumidor ocorre por via reflexa, como resultado da lesão a direitos patrimoniais. Cabe
ao consumidor, portanto, demonstrar que, do descumprimento contratual e da lesão a
direitos patrimoniais, resultou abalo à dignidade da pessoa humana e a direitos da
personalidade.

A corroborar esse entendimento, cito precedentes do Superior Tribunal de


Justiça:

CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.


INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ATRASO NA
ENTREGA DE UNIDADE IMOBILIÁRIA. CLÁUSULA PENAL
MORATÓRIA. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO COM LUCROS
CESSANTES. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA NO STJ. DANOS
MORAIS. SIMPLES ATRASO. AUSÊNCIA.
1. Ação ajuizada em 29/08/2014. Recurso especial interposto em
06/06/2016 e distribuído a este gabinete em 22/09/2016.
2. É possível cumular a cláusula penal decorrente da mora com
indenização por lucros cessantes quando há atraso na entrega do
imóvel pela construtora. Precedentes.
3. Danos morais: ofensa à personalidade. Precedentes.
Necessidade de reavaliação da sensibilidade ético-social comum
na configuração do dano moral. Inadimplemento contratual não
causa, por si, danos morais. Precedentes.
4. O atraso na entrega de unidade imobiliária na data estipulada
não causa, por si só, danos morais ao promitente-comprador.

137 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 7: responsabilidade civil. 35ª ed. São Paulo: Saraiva
Educação. 2021.
138 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – volume 7: responsabilidade civil. 35ª ed. São Paulo: Saraiva

Educação. 2021.
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5. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.


(REsp n. 1.642.314/SE, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira
Turma, julgado em 16/3/2017, DJe de 22/3/2017.)

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESCISÃO


CONTRATUAL CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO E
INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. EMPREENDIMENTO
IMOBILIÁRIO. PROPAGANDA ENGANOSA. DANO MORAL.
PRESUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PROVAS DO DANO. AUSÊNCIA.
MERO ABORRECIMENTO. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO
ESPECIAL PROVIDO.
1. O mero descumprimento contratual não enseja indenização
por dano moral, devendo haver situação específica que justifique
ofensa ao direito da personalidade, situação não demonstrada
nos autos. A Corte estadual cingiu-se a justificar a configuração de
dano moral em razão de o consumidor ter sido privado de utilizar
o bem adquirido na forma que anunciada pela agravante, sem
especificar concretamente alguma possível ofensa a direito da
personalidade da parte autora.
2. Agravo interno provido para conhecer do agravo e dar
provimento ao recurso especial.
(AgInt no AREsp n. 1.963.018/MG, relator Ministro Raul Araújo,
Quarta Turma, julgado em 10/10/2022, DJe de 21/10/2022.)

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.


IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO DE
INADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA
PRESIDÊNCIA DO STJ. RECONSIDERAÇÃO. DIREITO DO
CONSUMIDOR. ATRASO EXCESSIVO NA ENTREGA DA OBRA.
DANOS MORAIS CONFIGURADOS. SÚMULA 83 DO STJ. VALOR DA
CONDENAÇÃO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.
AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO E NÃO
CONHECER DO RECURSO ESPECIAL.
1. A agravante realizou a impugnação específica dos fundamentos
da decisão de inadmissibilidade do recurso especial. Decisão da
Presidência reconsiderada.
2. A jurisprudência desta Corte "tem entendido que, muito embora
o simples descumprimento contratual não provoque danos morais
indenizáveis, circunstâncias específicas da controvérsia podem
configurar a lesão extrapatrimonial" (REsp 1.642.314/SE, Relatora
Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJe de 22/3/2017).
3. No caso dos autos, a fixação do dano moral encontra-se
justificada, tendo a Corte estadual destacado que o atraso
excessivo na entrega do bem imóvel destinado à moradia, após 12
(doze) meses da data prevista, acarretou dano moral.

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4. Agravo interno provido para conhecer do agravo e não


conhecer do recurso especial.
(AgInt no AREsp n. 2.215.393/RJ, relator Ministro Raul Araújo,
Quarta Turma, julgado em 3/4/2023, DJe de 27/4/2023.)

Portanto, ressalvada a demonstração de situação excepcional,


caracterizada pela violação à dignidade da pessoa humana ou a direitos da personalidade
que importem em desequílibrio psíquico ou anímico intensos, o descumprimento
contratual não basta para a configuração dos danos morais.

2.4.2. TESE PROPOSTA:

Não desconhecendo a origem constitucional dos danos morais, tampouco o


regramento pertinente, seja no âmbito do Código Civil, seja no Código de Defesa do
Consumidor, entendo que a celebração de contratos de cartão de crédito consignado
mediante violação ao dever de informação não configura danos morais in re ipsa.

Analisando os argumentos invocados pelo autor da causa-piloto, sr. DANILO


GIAZZON, igualmente invocados por inúmeros outros consumidores, constato que a
pretensão indenizatória está fundamentada no fato de haver celebrado o contrato de
cartão de crédito consignado mediante erro, do qual lhe causou prejuízos materiais em
razão dos descontos mensais em seu benefício previdenciário e da cobrança de encargos
contratuais a maior.

Conforme exposto anteriormente, a violação ao dever de informação


constitui afronta à boa-fé objetiva e aos seus deveres anexos, bem como à transparência
que deve permear as relações de consumo. A consequência, como visto, é a celebração,
pelo consumidor, de contrato diverso do desejado, porque não foi adequada e
suficientemente informado sobre a natureza, o objeto, os direitos e obrigações e as
consequências do contrato de cartão de crédito consignado.

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Não se ignora o desconforto e o aborrecimento que situações tais geram ao


consumidor que, na maioria dos casos, sente-se injustiçado e indignado pela conduta
desleal do fornecedor.

Todavia, entendo que sentimentos dessa natureza não são aptos, por si sós,
para extrapolar o dissabor e o desconforto afeto às relações de consumo em uma
sociedade de massa, e, como consequência, aviltar a dignidade da pessoa humana e os
direitos da personalidade do consumidor. Sentimentos dessa natureza, lamentavelmente,
são inerentes ao descumprimento contratual.

Veja-se que o dano efetivamente experimentado e que guarda relação


direta com o ato ilícito é eminentemente material, consubstanciado na celebração de
contrato de natureza diversa (cartão de crédito consignado) da desejada (empréstimo
pessoal consignado) e no pagamento de encargos contratuais superiores.

Dito de outro modo, o descumprimento ao dever de informação não lesa


diretamente atributos da personalidade do consumidor, não se tratando, pois, de dano
moral direto. A lesão a atributos da personalidade, se configurada, dá-se pela via reflexa à
lesão a direitos patrimoniais, tratando-se, portanto, de dano moral indireto.

Nessa linha de compreensão, os danos causados pela conduta ilícita do


fornecedor, como regra, são passíveis de reparação pela repetição ou pela compensação
dos valores indevidamente pagos a maior pelo consumidor e pela possibilidade de
conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal
consignado, conforme teses anteriormente propostas.

A atuação do Poder Judiciário em demandas dessa natureza, de modo a


restabelecer o equilíbrio contratual e a obrigar as instituições financeiras a cumprir com a
oferta realizada ao consumidor durante as negociações preliminares e a contratação dos
serviços, é suficiente para compensar sentimentos de injustiça e indignação
experimentados.

Por essa razão, afastada a configuração in re ipsa de dano moral, cabe ao


consumidor demonstrar a efetiva ocorrência de abalo psíquico ou emocional.

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Não se desconhece a argumentação expendida, não só na causa-piloto, mas


também em inúmeras outras demandas individuais, no sentido de que a celebração de
contratos de cartão de crédito consignado importa na realização de descontos na folha de
pagamento ou em benefício previdenciário do consumidor, ou seja, em verbas de natureza
alimentar, reduzindo a renda líquida mensal disponível para a satisfação de suas
necessidades essenciais.

Contudo, entendo que tal argumentação não é apta para a configuração


dos danos morais, na medida em que, em diversas demandas, o consumidor sustenta que,
na realidade, pretendia a celebração de empréstimo pessoal consignado, razão pela qual
postula a anulação e a conversão do contrato de cartão de crédito consignado. Assim, ainda
que o desconto tenha sido realizado pela modalidade contratual incorreta (cartão de
crédito consignado), era de conhecimento do consumidor que a celebração da modalidade
contratual por ele desejada (empréstimo pessoal consignado), também daria azo ao
desconto de valores em folha de pagamento ou em benefício previdenciário, com o que
consentiu, cônscio da redução da sua renda mensal líquida.

Dessa forma, a configuração da lesão imaterial depende da demonstração,


pelo consumidor, de abalo psíquico ou emocional intensos o suficiente para lhe causar
desequilíbrio anímico.

Com essas considerações, relativamente à configuração de danos morais,


proponho a seguinte tese:

A celebração de contrato de cartão de crédito consignado mediante


violação ao dever de informação não configura, por si só, dano moral in re
ipsa, cabendo ao consumidor demonstrar a violação à dignidade da pessoa
humana ou a direitos da personalidade.

2.5. DISPOSITIVO DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS


REPETITIVAS:

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Com essas considerações, em relação ao Incidente de Resolução de


Demandas Repetitivas, proponho sejam fixadas as seguintes teses:

1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando


celebrado pelo consumidor em erro substancial quanto à sua natureza,
decorrente de falha na prestação de serviços bancários por
inobservância ao dever de informação. Os instrumentos contratuais
devem conter as cláusulas essenciais a essa modalidade de negociação,
sendo ônus da instituição financeira comprovar que informou ao
consumidor, prévia e adequadamente:

a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as


consequências decorrentes do contrato de cartão de crédito
consignado;

b) a existência de modalidades e serviços de crédito diversos,


como o empréstimo pessoal consignado, esclarecendo as
diferenças entre uma e outra contratações, seus custos e
características essenciais;

c) a disponibilidade, ou não, de margem disponível para a


celebração de empréstimo pessoal consignado;

d) que a fatura do cartão de crédito poderá ser paga total ou


parcialmente até a data do vencimento;

e) que, se não realizado o pagamento total da fatura, será


efetuado o pagamento mínimo mediante desconto na folha de
pagamento ou em benefício previdenciário, com o
refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.

2. O contrato de cartão de crédito consignado que tenha sido celebrado


mediante violação ao dever de informação é passível de conversão em

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contrato de empréstimo pessoal consignado, devendo a este ser


aplicada a taxa média de mercado divulgada pelo BACEN, vigente na
data da contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a
compensação dos valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela instituição
financeira, como na hipótese de inexistência de margem consignável, o
que deverá ser aferido em cumprimento de sentença, a obrigação será
convertida em perdas e danos com a recomposição das partes ao
status quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC, mediante restituição
à instituição financeira da quantia mutuada e, ao consumidor, dos
valores indevidamente pagos a maior, na forma simples, admitida a
compensação.

3. A celebração de contrato de cartão de crédito consignado mediante


violação ao dever de informação não configura, por si só, dano moral
in re ipsa, cabendo ao consumidor demonstrar a ofensa à dignidade da
pessoa humana ou a direitos da personalidade.

3. JULGAMENTO DA CAUSA-PILOTO:

Eminentes Colegas.

Superado o exame dos temas afetados ao presente incidente de resolução


de demandas repetitivas e propostas as teses respectivas, passo ao julgamento da causa-
piloto, como determina o art. 978, parágrafo único, do CPC.

Inicialmente, conheço do recurso, porque preenchidos os requisitos


intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade aplicáveis à espécie.

Reporto-me ao relatório fático-processual da causa-piloto realizado no item


1 deste voto.

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Sem preliminares a apreciar, passo diretamente ao julgamento do recurso


de apelação em seu mérito.

3.1. Anulabilidade do Contrato de Cartão de Crédito Consignado:

Analisando os documentos acostados aos autos da causa-piloto, constata-


se que o autor logrou êxito em comprovar a realização de descontos a título de cartões de
crédito consignado em benefícios percebidos do INSS.

Conforme extratos de empréstimos consignados acostados aos autos, é


possível verificar o desconto mensal da quantia de R$ 44,00 no benefício nº 157.049.295-3
(pensão por morte previdenciária) relativo ao contrato de cartão de crédito consignado nº
97-820743464/16, e o desconto mensal da quantia de R$ 57,92 no benefício
nº145.840.010-4 (aposentadoria por tempo de contribuição), relativo ao contrato de cartão
de crédito consignado nº 97-820742995/16.

A contestação apresentada pela instituição financeira demandada foi


instruída com: i) comprovante de transferência bancária realizada no dia 17/10/2016 para
conta de titularidade do autor junto à Caixa Econômica Federal (Banco 104), agência 457,
conta 1512495, no valor de R$ 1.476,06; ii) com cópia de “PROPOSTA DE ADESÃO – CARTÃO
DE CRÉDITO CONSIGNADO” relativa ao contrato cartão de crédito consignado nº 97-
820742995/16, datada de 17/10/2016; e iii) planilha de evolução do débito relativa a esse
contrato.

Não foram apresentados o contrato, o comprovante de transferência e a


planilha de evolução do débito relativos ao contrato de cartão de crédito consignado nº 97-
820743464/16.

Embora, na réplica, o autor tenha impugnado os documentos apresentados


pela demandada, especialmente o comprovante de transferência de valores para conta
bancária de sua titularidade e a planilha de evolução da dívida, nas razões recursais,
sustentou que “nunca quis aderir a empréstimo consignado em modalidade cartão de

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crédito, muito mais desvantajoso financeiramente, apenas queria fazer empréstimo


consignado, como já havia feito em outras oportunidades”.

Portanto, não há dúvida de que as contratações foram realizadas, ainda que


não tenham sido apresentados os documentos relativos ao contrato nº 97-820743464/16.

A defesa, de fato, foi instruída com 04 (quatro) vias de documento


denominado “PROPOSTA DE ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO”, relativo ao
contrato nº 97-820743464/16, datada de 17/10/2016 e assinadas pelo consumidor.
Todavia, apenas uma delas está devidamente preenchida (volume 3, páginas 566-567), o
que fornece indícios de que a referida proposta foi assinada em branco.

De qualquer sorte, a instituição financeira não trouxe aos autos a cópia do


contrato de cartão de crédito consignado, tampouco as condições gerais que balizaram essa
avença.

Analisando o teor da “PROPOSTA DE ADESÃO – CARTÃO DE CRÉDITO


CONSIGNADO”, constata-se se tratar de documento singelo, que contém cláusulas sobre: i)
os dados do cliente; ii) os dados do correspondente bancário responsável pela contratação;
iii) o termos da proposta (valor do crédito, taxa de emissão do cartão e taxa de juros
mensal e anual); iv) a opção do consumidor pela realização de saque do limite total do
crédito do cartão de crédito consignado; v) pessoa politicamente exposta; vi) autorização
para desconto, em caráter irrevogável e irretratável, em benefício previdenciário; vii)
declaração de residência do consumidor; viii) condições gerais da contratação, nas quais o
consumidor declara ciência de diversas cláusulas e condições; e ix) considerações finais
estabelecendo que “Esta Proposta de Adesão é parte integrante do ‘Contrato de Prestação
de Serviços de Emissão e Administração dos Cartões de Crédito Cetelem’, registrado no
Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Cidade de Barueri-SP, sob nº 1.131.490”.

Conforme exposto anteriormente, não se verificam cláusulas típicas a


qualquer contrato de cartão de crédito dispondo, de forma clara e adequada, sobre: i) a
natureza e o objeto principal (cartão de crédito consignado); ii) a responsabilidade da
instituição financeira de emitir um cartão de crédito em nome do consumidor; iii) os
direitos, as obrigações e as responsabilidades do consumidor em relação à utilização do
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cartão para realização de compras de produtos e serviços a prazo na praça de comércio ou


para a realização de saques, bem como em relação à sua guarda e conservação; iv) a
responsabilidade da instituição financeira em relação ao envio mensal das faturas ao
consumidor, com o detalhamento de todas as transações realizadas; v) a responsabilidade
do consumidor de efetuar o pagamento das faturas devidas, na data dos seus vencimentos,
sob pena de incidência de encargos moratórios; vi) a possibilidade de o consumidor efetuar
o pagamento total ou parcial da fatura, e, na hipótese de pagamento mínimo, o
refinanciamento do saldo devedor; vii) a possibilidade de cancelamento do cartão de
crédito mediante solicitação do consumidor a qualquer tempo; dentre outras.

Ora, cláusulas dessa natureza são essenciais à celebração de contratos de


cartão de crédito, conforme exposto anteriormente, razão pela qual deveriam estar
presentes no contrato entabulado entre as partes.

O disposto na cláusula “IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS” da proposta, no


sentido de que as condições gerais da contratação estão registradas em Cartório de Títulos
e Documentos não tem o condão de supri-las, porque não oportunizado o conhecimento
prévio pelo consumidor, conforme previsão dos arts. 46 e 54-G do CDC e prededente do
Superior Tribunal de Justiça proferido no Recurso Especual nº 897.148/MT cuja ementa foi
anteriormente transcrita.

A nomenclatura atribuída ao negócio jurídico – “PROPOSTA DE ADESÃO –


CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO” – também não basta para cumprir o dever de
informação, justamente porque ausentes cláusulas essenciais que permitam a
compreensão, pelo consumidor, sobre sua natureza, objeto, direitos, obrigações e
consequências.

O fato de haver declaração genérica de ciência do consumidor em relação


ao financiamento do saldo devedor da fatura, caso não realizado o pagamento integral,
conforme cláusula “VII. CONDIÇÕES GERAIS”, item H, também não supre a ausência de
cláusulas essenciais anteriormente apontadas, porque a emissão do cartão de crédito e a
entrega ao consumidor não foram comprovados pela instituição financeira demandada.

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Declaração nesse sentido nada significa ao consumidor, que, relembre-se,


recebeu a totalidade do crédito mediante transferência bancária, não foi devidamente
informado e em momento algum recebeu o cartão de crédito ou as faturas mensais em sua
residência.

Evidente a violação ao dever de informação imposto à instituição financeira


demandada pelos arts. 6º, III, 46, 52, 54-B, 54-C e 54-D do CDC.

A ausência de informações claras sobre o conteúdo da avença, aliada ao


comportamento da ré, demonstram que o autor assinou a proposta de adesão mediante
erro a respeito da natureza do negócio jurídico, formando em seu âmago a convicção de
que estava a celebrar contrato de empréstimo pessoal consignado, quando, na realidade,
estava celebrando contrato de cartão de crédito consignado cujo teor e cláusulas não lhes
foram previamente informados de forma adequada.

Portanto, a situação retratada nos autos autoriza a anulação do negócio


jurídico com fulcro nos arts. 138, 139, I, e 171 do CC, porque celebrado mediante erro
substancial quanto à sua natureza.

Todavia, considerando que o autor formulou pedidos alternativos, deixo de


anular os contratos de cartão de crédito consignado, conforme postulado no pedido de
letra “e.1” da exordial, e passo a analisar o pedido de letra “e.2” visando à sua conversão
para a modalidade de empréstimo pessoal consignado.

3.2. Conversão do Contrato de Cartão de Crédito Consignado em


Empréstimo Pessoal Consignado:

Demonstrada a falha nos serviços prestados pela instituição financeira


demandada, caracterizada pela violação ao dever de informação, afigura-se possível a
conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal
consignado, modalidade contratual desejada consumidor, com amparo nos arts. 112 e 113
do CC e nos 6º, IV e V, 30 e 35 do CDC.

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Conforme exposto no recurso de apelação, o autor “nunca quis aderir a


empréstimo consignado em modalidade cartão de crédito, muito mais desvantajoso
financeiramente, apenas queria fazer empréstimo consignado, como já havia feito em
outras oportunidades”.

Logo, deve ser respeitada e tutelada a intenção do consumidor, parte


vulnerável da relação de consumo, como orienta o art. 112 do CC.

Veja-se que à luz dos critérios hermenêuticos contidos no art. 113, §1º, do
CC - especialmente o comportamento das partes após a celebração do contrato, os usos, os
costumes e as práticas comerciais relativas a essa espécie de contratação, a boa-fé e a
racionalidade econômica – não há dúvidas de que as partes entabularam contrato de
empréstimo pessoal consignado, e não de cartão de crédito consignado.

O comprovante de transferência apresentado pela ré demonstra que a


quantia de R$ 1.476,06, relativa ao contrato nº 97-820742995/16, foi creditada em conta
bancária de titularidade do autor, que autorizou a restituição dos valores mutuados por
intermédio de descontos em benefício previdenciário.

Após a liberação dos recursos ao autor, a instituição financeira ré não


emitiu, tampouco enviou, a via física do cartão de crédito ao consumidor, assim como
também não enviou as faturas mensais respectivas. Por essa razão, não foram realizadas
quaisquer transações com o aludido cartão de crédito.

Em relação ao contrato nº 97-820743464/16, a demandada também não


comprou a emissão, a remessa e a utilização pelo consumidor.

Portanto, lícito concluir que a ré abordou a operação como se mero


empréstimo bancário fosse, pois seu comportamento não corresponde à celebração de
contrato de cartão de crédito consignado.

De igual sorte, o autor - que não foi previa e adequadamente informado


sobre o conteúdo do contrato de cartão de crédito consignado - também agiu como se as
partes houvessem celebrado simples contratos de empréstimo pessoal consignado, pois
não realizou quaisquer transações com o cartão de crédito, limitando-se a efetuar o

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pagamento mensal dos valores devidos mediante desconto em seu benefício


previdenciário.

Logo, à míngua de provas a demonstrar que o consumidor tenha sido prévia


e adequadamente informado pela ré sobre o conteúdo do contrato de cartão de crédito e à
luz dos critérios do art. 113 do CC, contata-se que, aos olhos daquele, o serviço que lhe foi
oferecido e contratado é de típico contrato de empréstimo pessoal consignado, conclusão
reforçada pelo comportamento das partes, como dito.

Considerando o caráter vinculante da oferta, nos termos do art. 30 do CDC,


lícito ao consumidor exigir, por intermédio da conversão contratual, a respectivo
cumprimento em face da instituição financeira, com amparo nos arts. 35, I, e 46 do CDC.
Ainda, conforme exposto anteriormente, modificação das cláusulas contratuais constitui
direito básico do consumidor.

Forte nesses argumentos, entendo que o recurso dever ser provido para
reformar a sentença e julgar procedente o pedido de conversão dos contratos de cartão de
crédito consignado nºs 97-820743464/16 e 97-820742995/16 em contratos de empréstimo
pessoal consignado, devendo a instituição financeira ré realizar o recálculo dos contratos de
acordo com a taxa média de juros divulgada pelo BACEN na data da celebração dos
contratos, assegurada a compensação/repetição simples dos valores pagos a maior.

3.3. Indenização por Danos Morais:

Em que pesem os argumentos recursais, entendo que a sentença não


comporta reforma em relação à improcedência do pedido de indenização por danos
morais.

Conquanto o consumidor tenha celebrado o contrato de cartão de crédito


consignado mediante erro substancial provocado pela violação ao dever de informação, há
demonstração de que do descumprimento contratual tenha resultado ofensa à dignidade

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da pessoa humana ou a direitos da personalidade, tampouco interferido de forma intensa


em seu estado anímico e seu psiquismo.

Conforme exposto em tópico anterior, em situações tais os danos morais


não são in re ipsa, pois a consequência primordial do descumprimento ao dever de
informação pela instituição financeira consiste na celebração de negócio jurídico de
natureza diversa da pretendida pelo autor, o que acarreta em danos de índole patrimonial
em razão da cobrança de encargos contratuais em patamares superiores.

O fato de a instituição financeira ré haver realizado o desconto dos valores


devidos do beneficio previdenciário do autor não é suficiente para a configuração do abalo
moral, pois evidenciada a intenção deste em relação à contratação de empréstimo pessoal
consignado.

Ainda que se trate de verba alimentar, não há dúvidas de que o autor


estava ciente de que a restituição dos valores mutuados seria realizada por intermédio de
descontos em seu benefício previdenciário, com os quais anuiu. Portanto, embora por
modalidade contratual diversa, os descontos seriam realizados e redundariam na redução
da sua renda mensal líquida, razão pela qual não prospera a alegação de que o desconto
“causou e vem causando prejuízos insustentáveis na vida da parte autora, que as vezes
sequer tem dinheiro para comprar seus remédios, pois é descontado quase R$ 100,00 (cem
reais) mesais, por quase dois anos”.

De igual sorte, não se pode desconsiderar o fato de que os valores


mutuados foram creditados na conta bancária do autor, que poderia utlizá-los para a
satisfação das suas necessidades pessoais.

Nesse contexto, ausente prova de ofensa à dignidade da pessoa humana ou


a direitos da personalidade, entendo que a sentença de improcedência do pedido de
indenização por danos morais deve ser mantida por seus próprios fundamentos, razão pela
qual nego provimento ao recurso.

3.4. Dispositivo da Causa-Piloto:

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Com essas considerações, voto por dar parcial provimento ao recurso de


apelação interposto por DANILO GIAZZON para julgar parcialmente procedente a Ação
Anulatória c/c Indenização por Danos Morais que propôs contra Banco Cetelem S/A, ao
efeito de determinar a conversão dos contratos cartão de crédito consignado nºs 97-
820743464/16 e 97-820742995/16 em contratos de empréstimo pessoal consignado,
devendo a instituição financeira demandada promover o recálculo dos contratos, desde a
sua origem, de acordo com a taxa média de juros remuneratórios divulgada pelo BACEN
relativa a essa modalidade contratual, considerada a data da sua celebração, assegurada a
repetição simples dos valores pagos a maior, atualizados pelo IPCA desde cada desembolso
e acrescidos de juros de 1% ao mês a partir da citação, admitida a compensação.

Face ao resultado do julgamento, o autor arcará com 30% das custas


processuais e com os honorários de sucumbência em favor dos procuradores da instituição
financeira ré, que arbitro em 20% sobre o proveito econômico por esta última auferido
(improcedência do pedido de indenização por danos morais), tudo com amparo no art. 85,
§2º, do CPC, considerando o tempo decorrido e o trabalho realizado. Outrossim, arcará a ré
com 70% das custas processuais e com os honorários em favor do procurador do autor, que
arbitro em 20% sobre o proveito econômico, com amparo no art. 85, §2º, do CPC,
consideradas as mesmas circunstâncias supra, não podendo, porém, resultar em quantia
inferior a R$ 1.500,00, para não aviltar a nobre profissão.

Suspendo a exigibilidade dos encargos de sucumbência em relação ao autor


com fulcro no art. 99, §3º, do CPC, porque beneficiário da gratuidade judiciária.

4. DISPOSITIVO:

Com essas considerações, voto por dar parcial provimento ao recurso de


apelação interposto na causa-piloto, conforme dispositivo lançado no item 3.4.

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Outrossim, voto por acolher o Incidente de Resolução de Demandas


Repetitivas para estabelecer as seguintes teses:

1. ANULABILIDADE DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO


CONSIGNADO POR VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO. É
anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando celebrado
pelo consumidor em erro substancial quanto à sua natureza,
decorrente de falha na prestação de serviços bancários por
inobservância ao dever de informação. Os instrumentos contratuais
devem conter as cláusulas essenciais a essa modalidade de negociação,
sendo ônus da instituição financeira comprovar que informou ao
consumidor, prévia e adequadamente:

a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as


consequências decorrentes do contrato de cartão de crédito
consignado;

b) a existência de modalidades e serviços de crédito diversos,


como o empréstimo pessoal consignado, esclarecendo as
diferenças entre uma e outra contratações, seus custos e
características essenciais;

c) a disponibilidade, ou não, de margem disponível para a


celebração de empréstimo pessoal consignado;

d) que a fatura do cartão de crédito poderá ser paga total ou


parcialmente até a data do vencimento;

e) que, se não realizado o pagamento total da fatura, será


efetuado o pagamento mínimo mediante desconto na folha de
pagamento ou em benefício previdenciário, com o
refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.

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2. CONVERSÃO DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO


EM EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO. O contrato de cartão de
crédito consignado que tenha sido celebrado mediante violação ao
dever de informação é passível de conversão em contrato de
empréstimo pessoal consignado, devendo a este ser aplicada a taxa
média de mercado divulgada pelo BACEN, vigente na data da
contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a
compensação dos valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela instituição
financeira, como na hipótese de inexistência de margem consignável, o
que deverá ser aferido em cumprimento de sentença, a obrigação será
convertida em perdas e danos com a recomposição das partes ao
status quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC, mediante restituição
à instituição financeira da quantia mutuada e, ao consumidor, dos
valores indevidamente pagos a maior, na forma simples, admitida a
compensação.

3. DANOS MORAIS. A celebração de contrato de cartão de crédito


consignado mediante violação ao dever de informação não configura,
por si só, dano moral in re ipsa, cabendo ao consumidor demonstrar a
ofensa à dignidade da pessoa humana ou a direitos da personalidade.

É o voto.

DES. RICARDO PIPPI SCHMIDT

Registro, incialmente, o reconhecimento à eminente Relatora,


não só pela condução deste IRDR - oportunizando debate efetivo, com a
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participação inclusive de instituições que atuaram como amicus curi -, como


também pelo excelente voto lançado nos autos, com valiosas lições
doutrinárias e jurisprudenciais, acompanhadas de reflexões aprofundadas
sobre o tema, em toda a sua extensão, e que nos permite agora julgar este
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas de forma segura.

O tema tem enorme relevância e imenso alcance social neste


momento em que o país vive o fenômeno do superindividamento, com
reflexos importantes para o Judiciário Gaúcho diante do enorme contingente
de processos envolvendo dívidas decorrentes da contratação de crédito
consignado, os quais aguardam por esta uniformização de jurisprudência.

Diante da profundidade com que a ilustre Relatora apresentou


seu voto e elaborou as teses propostas, vou me limitar a trazer algumas
ponderações de cunho prático, buscando colaborar na construção de uma
possível solução de consenso sobre esse difícil tema tão bem enfrentado no
voto condutor, ao qual estou aderindo, com divergência pontual e
apresentação de algumas questões complementares que me parecem
devam ser tratadas neste julgado para não deixar dúvidas acerca do alcance
do que estamos decidindo, já que este julgamento, em sede de IRDR,
servirá como parâmetro e paradigma para a solução dos milhares de
processos.

Nesse sentido destaco alguns pontos, para além do que já foi


analisado pela ilustre Relatora, que, entendo, devam merecer nossa reflexão
e eventual inclusão na fixação das teses que serão aqui aprovadas, o que
faço, para facilitar e para melhor compreensão, a partir dos tópicos em que
dividido o voto condutor:

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I – ANULABILIDADE DE CONTRATOS DE CARTÃO DE


CRÉDITO CONSIGNADO POR VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO
(ITEM 1 DA TESE):

No ponto, estou integralmente de acordo com o entendimento


da eminente Relatora, quer no tocante aos “princípios aplicáveis” (2.2.1),
quer quanto ao reconhecimento da “vulnerabilidade do consumidor” e
necessidade da incidência da “boa-fé objetiva” e do “direito à informação
adequada e clara, à luz do CDC” (2.2.2), quer em relação à “anulabilidade
dos contratos de cartões de crédito consignado, por erro essencial”, a teor
do art. 139, I, do CCB, porque celebrados “violação ao dever de informação”
(2.2.3), e a correlata tese proposta (2.2.5), que abaixo transcrevo, mas que
sugiro seja complementada, a partir das questões que trago a seguir:

“1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado


quando celebrado pelo consumidor em erro substancial
quanto à sua natureza, decorrente de falha na prestação de
serviços bancários por inobservância ao dever de informação.
Os instrumentos contratuais devem conter as cláusulas
essenciais a essa modalidade de negociação, sendo ônus da
instituição financeira comprovar que informou ao consumidor,
prévia e adequadamente: a) a natureza, o objeto, os direitos,
as obrigações e as consequências decorrentes do contrato de
cartão de crédito consignado; b) a existência de modalidades
e serviços de crédito diversos, como o empréstimo pessoal
consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e outra
contratações, seus custos e características essenciais; c) a
disponibilidade, ou não, de margem disponível para a
celebração de empréstimo pessoal consignado; d) que a
fatura do cartão de crédito poderá ser paga total ou
parcialmente até a data do vencimento; e) que, se não
realizado o pagamento total da fatura, será efetuado o
pagamento mínimo mediante desconto na folha de
pagamento ou em benefício previdenciário, com o
refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.

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É que, s.m.j., faz-se necessário complementar este ponto da


tese para distinguir as situações em que o consumidor, induzido a erro por
informações incompletas e obscuras, celebra o contrato de cartão de crédito
consignado por meio do qual lhe é disponibilizado depósito em conta do
montante contratado, mas não utiliza o cartão de crédito, daquelas
situações em que o consumidor firma o pacto, recebe e utiliza o cartão de
crédito para compras.

De efeito, penso que neste último caso, havendo utilização do


cartão de crédito pelo consumidor para efetuar compras, e desde que
demonstrado pelo conjunto probatório que houve tal utilização para além de
saque - ônus da prova da instituição financeira -, restará, em princípio,
afastado, se não convolado, o vício de consentimento apto à anulação do
negócio jurídico.

Ainda que não seja o mais comum, como bem retrata o estudo
apresentado no voto condutor acerca dos que contratam esse tipo de
produto, fato é que há situações em que consumidores, ausente margem
consignável para empréstimo, conscientemente contratam um cartão de
crédito consignado e passam a utilizá-lo para efetuar compras a crédito,
hipótese em que, confirmada a prestação adequada e suficiente das
informações (ônus da prova da instituição financeira), afastada estará a
hipótese de erro substancial e, consequentemente, não há falar em anulação
nem conversão. Também os casos em que, embora ausente prova da
prestação adequada e suficiente de informações, ou inexistente formalização
apropriada da avença, a conduta subsequente do consumidor evidencie
adesão ao contrato, mediante utilização efetiva do cartão de crédito que lhe
foi disponibilizado, efetuando compras de bens e serviços, denotando assim,

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em princípio, compreensão da funcionalidade do produto recebido e tácita


adesão ao pacto.

Nesse sentido, lembro que o próprio Código Civil, em seu art.


172, diz que “o negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes,
salvo direito de terceiro”, prevendo o art. 174, ser “escusada a confirmação
expressa quando, quando o negócio já foi cumprido em parte, pelo devedor,
ciente do vício que o inquinava”.

Considerando, todavia, as possibilidades fáticas que se


apresentam nos casos concretos, a exigir análise de contexto em que se deu
o uso do cartão, modo eventual ou por equívoco, peculiaridades que só no
caso a caso é possível avaliar, e para não engessar completamente, penso
que se poderia abrir um subitem na tese que estamos a aprovar,
contemplando essa situação dos consumidores que fizeram uso do cartão,
para que não passe a impressão de que neste julgado estamos
tratando igualmente situações que, para mim, não são iguais.

Nesse sentido, tomo a liberdade de propor uma redação


alternativa ao item 1 da TESE sugerida pela Relatora, grifando os trechos
que contêm as modificações propostas, nos seguintes termos:

1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando


celebrado pelo consumidor em erro substancial quanto à sua
natureza, decorrente de falha na prestação de serviços
bancários por inobservância ao dever de informação. 1.1. Na
análise do alegado erro, incumbe ao fornecedor o ônus da
prova quanto ao cumprimento do dever de informação; 1.2.
Os instrumentos contratuais devem conter as cláusulas
essenciais a essa modalidade de negociação, sendo ônus da
instituição financeira comprovar que informou ao consumidor,
prévia e adequadamente: a) a natureza, o objeto, os direitos, as
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obrigações e as consequências decorrentes do contrato de


cartão de crédito consignado; b) a existência de modalidades e
serviços de crédito diversos, como o empréstimo pessoal
consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e outra
contratações, seus custos e características essenciais; c) a
disponibilidade, ou não, de margem disponível para a celebração
de empréstimo pessoal consignado; d) que a fatura do cartão de
crédito poderá ser paga total ou parcialmente até a data do
vencimento; e) que, se não realizado o pagamento total da
fatura, será efetuado o pagamento mínimo mediante desconto
na folha de pagamento ou em benefício previdenciário, com o
refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros. 1.3. No
exame do cumprimento do dever de informação e da
caracterização do erro substancial, deve ser observado o
critério de verossimilhança das alegações do consumidor
(art. 6º, inc. VIII, do CDC), contrastada com a sua conduta
prática quanto à eventual utilização de funcionalidades
específicas da modalidade do cartão de crédito consignado,
como a efetuação de compras de mercadorias ou serviços.

Com isso, e se esse for de fato o entendimento da maioria,


daremos um parâmetro aos juízes que, a partir desse precedente, poderão
julgar os processos que versam sobre o tema, com critérios mais objetivos, à
luz das situações concretas e suas variáveis.

II – CONVERSÃO DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO


CONSIGNADO, CELEBRADO MEDIANTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE
INFORMAÇÃO, EM EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO (ITEM 2 DA
TESE):

Neste tópico, estou de pleno acordo com o voto condutor


quanto às bases do entendimento firmado acerca da aplicação da “boa-fé
objetiva como critério para interpretação contratual” (2.3.1), a necessidade
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de “proteção do consumidor contra práticas comerciais abusivas e métodos


comerciais desleais”, a possibilidade de “modificação das cláusulas
contratuais (2.3.2), e a observância à “força vinculante da oferta” (2.3.3),
concordando, em parte, com a tese apresentada no item 2, que abaixo
transcrevo, para em seguida apresentar proposta de
complementação/alteração pontual, conforme a seguir explicado:

2. O contrato de cartão de crédito consignado que


tenha sido celebrado mediante violação ao dever de
informação é passível de conversão em contrato de
empréstimo pessoal consignado, devendo a este ser
aplicada a taxa média de mercado divulgada pelo
BACEN, vigente na data da contratação, assegurada a
repetição na forma simples ou a compensação dos
valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela
instituição financeira, como na hipótese de inexistência
de margem consignável, o que deverá ser aferido em
cumprimento de sentença, a obrigação será convertida
em perdas e danos com a recomposição das partes ao
status quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC,
mediante restituição à instituição financeira da quantia
mutuada e, ao consumidor, dos valores indevidamente
pagos a maior, na forma simples, admitida a
compensação.

Como dito, concordo que o contrato de cartão de crédito


consignado que tenha sido celebrado mediante violação ao dever de
informação é passível de conversão em contrato de empréstimo pessoal
consignado, devendo ser aplicada a taxa média de mercado divulgada pelo
BACEN, vigente na data da contratação, assegurada a repetição ou
compensação dos valores pagos a maior.

A minha única divergência diz com a forma de restituição, pois


penso que a repetição/compensação dos valores indevidos pagos a
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maior pelo consumidor deva em dobro, e não na forma simples, como


proposto na tese.

É que, ao se reconhecer a existência de erro substancial na


contratação de cartão de crédito consignado, em decorrência de falha na
prestação de serviços bancários, por inobservância do dever de informação,
a ensejar, agora, a anulação do respectivo contrato, o convertendo em
contrato de empréstimo consignado, resta caracterizada hipótese de
cobrança indevida de que trata o parágrafo único do art. 42 do Código de
Defesa do Consumidor:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não


será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida


tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do
que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros
legais, salvo hipótese de engano justificável.

Veja-se que a pretensão do consumidor era contratar


empréstimo consignado em folha ou benefício previdenciário, cujas taxas
de juros são, sabidamente, menores se comparadas às de cartão de crédito
consignado. Neste (cartão de crédito), além da ausência de informações
claras sobre a peculiar forma de pagamento, bem assim sobre o número de
parcelas, o respectivo valor (pois este depende do pagamento integral da
fatura) ou de quando findará o débito, a prática utilizada pelas instituições
financeiras, no intuito de cobrar juros a taxas mais elevadas, leva o
consumidor a crer tratar-se de um mero empréstimo consignado, a
consubstanciar verdadeira cobrança indevida, inclusive, porque
absolutamente ciente o fornecedor da discrepância entre os juros de cada

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um destes contratos, do que não deu clara e transparente ciência à parte


aderente.

Tratando-se de relação de consumo, deve a questão ser


analisada com base na hermenêutica de todo o sistema consumerista, não
podendo ser enfrentada como se apartada de tudo o que se disse sobre a
prática perpetrada pelos bancos em casos tais e a ausência, em casos tais,
de boa-fé objetiva.

E nesse sentido prevê o CDC que é direito básico do


consumidor obter informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços, com a especificação de suas características, preço,
riscos, etc (art. 6º, III). Também é direito fundamental do consumidor a
garantia de práticas de crédito responsável e de prevenção e tratamento de
situações de superendividamento, preservando-se o mínimo existencial,
admitida, inclusive, a repactuação da dívida (art. 6º, XI, do CDC).

A violação consciente desses direitos fundamentais, por parte


das instituições financeiras, nas hipóteses em que vende cartão de crédito
consignado como se empréstimo consignado fosse, implica cobrança de
valores superiores e indevidos, quer porque a taxa dos juros remuneratórios
é sabidamente mais elevada no cartão de crédito consignado do que no
empréstimo consignado, quer porque o empréstimo contratado sob a forma
de cartão de crédito resulta pagamento interminável, quando não
impagável, capturando o consumidor como devedor cativo, conforme bem
destacado no voto condutor.

Nesse conjunto de ideias, a sanção civil de repetição em


dobro deve ser aplicada, quando mais considerando o perfil dos
consumidores envolvidos, bem demonstrado no estudo apresentado pela
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Relatora, em sua grande maioria de pessoas idosas, com baixa renda e


baixa escolaridade, já endividados, hipervulneráveis, portanto, e que
sobrevivem com parcos salários, pensões ou aposentadorias
indiscutivelmente insuficientes para fazerem frente a todas suas
necessidades, tanto que se veem frequentemente compelidos a se socorrer
de empréstimos.

A esse propósito, merece relevo a manifestação, em razões


finais, da Defensoria Pública do Estado, por meio do seu Núcleo de Defesa
do Consumidor e Tutelas Coletivas – NUDECONTU -, pois, para além dos
fundamentos jurídicos muito bem delineados, lastreados também em
decisões de diversos Tribunais de Justiça do País, traz o registro da
realidade que exsurge dos relatos dos seus assistidos:

“(…).

Neste sentido, tem se observado um aumento na utilização do


cartão de crédito consignado de maneira absolutamente indevida,
cuja oferta vem sendo embutida em diversos contratos de
empréstimos, pelas instituições financeiras. Ou seja, além da
segurança de reaverem os valores emprestados com juros e
correções monetárias, as instituições financeiras “cativam” seus
consumidores por meio da oferta de um cartão de crédito
indesejado e desnecessário, realidade esta que é vivenciada
diariamente pela Instituição Gaúcha que é voltada ao atendimento
dos hipossuficientes técnicos, organizacionais e financeiros, como
é a DPE/RS.

Ocorre que, na maior parte dos casos, o consumidor não se


encontra verdadeiramente ciente das cláusulas ou mesmo
consequências de um cartão de crédito consignado, desejando, no
momento da assinatura do contrato, tão somente obter um
crédito, quando muito!

Além disso, o consumidor, mal informado – muitas vezes de


maneira proposital – não entende que o valor descontado em seu
contracheque é apenas o mínimo da fatura devida, ou seja, que

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sua obrigação reside sobre o pagamento integral daquela “conta”,


sob pena de entrar numa “dança” sem fim de crédito rotativo, cuja
dívida somente faz crescer a cada mês.

É necessário, outrossim, observar que o perfil do consumidor que


vem aderindo à modalidade de cartão de crédito consignado, em
sua maioria, é de pessoa idosa, hipervulnerável, que percebe
parcos rendimentos provenientes de benefícios previdenciários,
restando-lhe praticamente impossível realizar o pagamento integral
da fatura que lhe é encaminhada.

Nesse diapasão, relevante lembrar que os contratos não mais


podem ser interpretados tendo em vista, exclusivamente, os
interesses privados. Há valores maiores que devem ser
observados na análise de qualquer pacto, valores estes que
transcendem os interesses individuais, repercutindo na esfera de
todos os componentes da sociedade.

Face ao arrocho econômico e a necessidade de crédito, a


quantidade de operações de cartão de crédito consignado
explodiu, gerando um sem número de processos
questionando a legalidade desse tipo de contratação, a
necessidade de devolução em dobro do que resultar em
valores excessivos de desconto e indenização por danos
morais. Neste sentido, a base fática da realidade atendida de
maneira corriqueira, diária e muito triste pela Defensoria
Pública é sempre a mesma: falta de conhecimento a respeito
do produto contratado. Completa e absoluta ignorância a
respeito do que consiste o cartão de crédito consignado,
quais as obrigações dele decorrentes, a possibilidade de
contratação de outro produto em seu lugar e, muitas vezes,
até mesmo a ignorância a respeito da própria existência deste
produto incidente sobre seu benefício ou contracheque.

Nessa esteira, Cláudia Lima Marques esclarece que o contrato


possui uma nova concepção, que é a social, fazendo-se, desse
modo, necessária, além da existência do consenso, a verificação
das condições sociais e econômicas das pessoas envolvidas. A
doutrinadora vai além, afirma que “a justiça contratual encontra-
se justamente na equivalência das prestações ou sacrifícios,
na prestação da confiança e da boa-fé de ambas as partes”.

Percebe-se e repita-se, na atuação diária da Defensoria


Pública, que os consumidores são, em sua grande parte,

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induzidos a contraírem empréstimos que imaginam ser


consignado em seus benefícios, mas, em realidade, possui um
duplo desconto, como já explicado, um, em seu benefício
previdenciário ou contracheque; outro, por meio de fatura que,
caso não pago em sua integralidade, gerará juros e encargos a
perder de vista, fazendo incidir os descontos sobre do mínimo da
fatura sobre o seu benefício e o restante, já com a incidência dos
juros de mora, a se eternizar. Aliás, juros estes acima daqueles
previstos em um empréstimo consignado puro.

Como todo cartão de crédito, no consignado, são enviadas aos


consumidores as faturas em valor mínimo e máximo, sendo que,
por uma questão de obviedade, a pessoa que recorre a
empréstimos/créditos de valores relativamente baixos,
decerto assim o faz por não ter condição nenhuma de
adimplir, na integralidade, de uma só vez, com o pagamento
do empréstimo efetuado.

Eis aí o grande problema para os consumidores de cartão de


crédito consignado e, para as instituições financeiras, uma
maneira de os tornar cativos por sua eternidade, gerando-lhes
um superendividamento cuja principiologia tratada pela Lei
14.181 de julho de 2021 é absoluta e frontalmente ignorada
pelas instituições financeiras, uma vez que a contratação do
cartão de crédito consignado não atende aos deveres de
informação adequada, de entrega de cópia do contrato, de
explicação a respeito dos juros incidentes (sobre a remuneração e
no caso de mora), sobre a possibilidade de contratação de um
produto menos custoso e, tampouco, no que diz respeito às
próprias obrigações assumidas, naquela ocasião, pelo consumidor
hipervulnerável na grande maioria das vezes”.

Agregue-se, ainda, o fato de que a controvérsia acerca do


cartão de crédito consignado é de âmbito nacional, a revelar o êxito das
instituições financeiras em suas práticas de violação do dever de
informação, e o infortúnio de milhares de consumidores, a exigir, decisão
com caráter prospectivo e pedagógico.

Por tudo quanto aqui fundamentado, tenho por caracterizada a


cobrança indevida nas hipóteses em que o consumidor, por ausência de

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informações claras e objetivas no contrato, foi induzido a erro quando da


contratação e teve deduzidos de seu salário ou benefício previdenciário
parcelas de cartão de crédito consignado valores em excesso, pagos a
maior, por conta dos encargos financeiros exigidos em patamar superior
aos do empréstimo consignado que pensara ter contratado.

Assim, em decorrência do erro substancial reconhecido, a


restituição do que foi pago a maior deve ser feita em dobro, não se
podendo caracterizar a conduta dos bancos, nestes casos, como "engano
justificável", pois divorciada dos parâmetros da boa-fé objetiva, cientes e
conscientes do abuso de direito que praticam, não se podendo admitir o
indevido enriquecimento dessas instituições financeiras em detrimento do
consumidor.

Até porque, no julgamento do EAREsp nº 600.663, a Corte


Superior pacificou a controvérsia acerca da (des)necessidade da
demonstração de má-fé do fornecedor como requisito à repetição em dobro.
Portanto, não se perquire mais a respeito da existência de má-fé para que
seja determinada a devolução em dobro, bastando que a cobrança indevida
resulte de conduta contrária à boa-fé objetiva.

Pela pertinência, transcrevo trecho do voto-vista do Ministro


Luís Felipe Salomão, no referido precedente, em que bem analisa a
questão posta:

"O princípio da boa-fé objetiva figura como parâmetro principal de


valoração do comportamento das partes, sobretudo do
fornecedor, que, sendo titular de posição privilegiada, deve
adotar as cautelas necessárias para evitar a quebra de
confiança e a frustração das legítimas expectativas da parte
vulnerável da relação de consumo".

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(…).

4. Deveras, o parágrafo único do artigo 42 do CDC tem por


escopo coibir o exercício abusivo e opressivo da posição
dominante do fornecedor, cominando a penalidade de
devolução em dobro da quantia indevidamente cobrada da
parte vulnerável da relação de consumo, que, muitas vezes,
demora a ter ciência do excesso exigido (…). De fato, o código
consumerista introduziu novidade no ordenamento jurídico
brasileiro, ao adotar a concepção objetiva do abuso do direito,
que se traduz em uma cláusula geral de proteção da lealdade
e da confiança nas relações jurídicas, prescindindo da
verificação da intenção do agente (dolo ou culpa) para
caracterização de uma conduta como abusiva."

(…)

Assim, a falta de cuidado (diligência, zelo) imposto ao fornecedor,


quando da cobrança da dívida, é que qualifica o engano como
injustificável e, consequentemente, caracteriza a conduta contrária
à boa-fé objetiva, ou seja, a má-fé. Nesse sentido, não há que se
perquirir sobre a existência de dolo ou culpa do fornecedor, mas,
objetivamente, verificar se o engano/equívoco/erro na
cobrança era ou não justificável. Deve-se analisar, no caso
concreto, se a cobrança indevida decorreu ou não de conduta
deliberada – inobservância do dever anexo de lealdade – ou
mesmo leviana do fornecedor, ao descumprir seu dever anexo
de proteção (cuidado) para com a integridade pessoal e
patrimonial do consumidor."

Em verdade, o “engano” das instituições financeiras aqui é


injustificável, pois, diante da violação de direitos elementares do
consumidor, os bancos olvidaram das cautelas que lhe são exigidas
justamente pela posição jurídica que ostentam na contratação, cuja torpeza
não os pode beneficiar.

Em sendo acolhida a presente proposta, de repetição em


dobro nas hipóteses de conversão do contrato de cartão de crédito

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consignado em empréstimo consignado, impõe-se observar a modulação


dos efeitos da decisão exarada no EAREsp nº 600.663, na medida em que
essa nova orientação firmada somente é aplicável a fatos ocorridos a partir
da data de publicação do respectivo acórdão, o que ocorreu em 30/03/2021.

Por fim, com relação a parte final da redação do item 2 da Tese


proposta, aderindo aos fundamentos de fato e de direito constantes do voto
da Relatora, estou de pleno acordo com as conclusões, salvo, também aqui,
em relação à forma da restituição dos valores indevidamente cobrados do
consumidor, pois entendo que a devolução a ele deve ser feita em dobro, e
não de forma simples, por força do art. 42, § único do CDC, tal como
explicado nos parágrafos acima.

Assim, proponho que o item 2 da TESE proposta no voto


condutor tenha a seguinte redação:

2. O contrato de cartão de crédito consignado que tenha sido


celebrado mediante violação ao dever de informação é passível
de conversão em contrato de empréstimo pessoal consignado,
devendo a este ser aplicada a taxa média de mercado divulgada
pelo BACEN vigente na data da contratação, assegurada a
repetição ou a compensação dos valores pagos a maior, em
dobro, na forma do art. 42, parágrafo único, do CDC.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela instituição
financeira, como na hipótese de inexistência de margem
consignável, o que deverá ser aferido em cumprimento de
sentença, a obrigação será convertida em perdas e danos com a
recomposição das partes ao status quo ante, na forma do art.
84, §1º, do CDC, mediante restituição à instituição financeira da
quantia mutuada, de forma simples, e, ao consumidor, dos
valores indevidamente pagos a maior, em dobro, admitida a
compensação.

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III – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS (ITEM 3 DA TESE):

Acompanho, na íntegra, o entendimento da ilustre Relatora, no


sentido de que, nada obstante a responsabilidade objetiva das instituições
financeiras, não é razoável que descontos no benefício previdenciário do
consumidor, mesmo que reconhecidamente indevidos, possam, por si só,
dar ensejo à reparação por danos morais in re ipsa.

Por certo que a natureza alimentar do benefício previdenciário


se reporta ao conceito de dignidade da pessoa humana, um dos direitos de
personalidade, mas o só fato de haver desconto, mesmo que indevido, em
margem consignável, sem consequências outras, não se mostra suficiente
ao reconhecimento de risco à subsistência, cumprindo ao consumidor
comprovar concretamente que por conta de tal fato houve comprometimento
de renda, risco à sobrevivência e concreto abalo de ordem moral.

De acordo, pois, com a eminente Relatora quando conclui que


não há como compreender pela configuração de danos morais in re ipsa nos
casos de inadimplemento contratual, porque em tais situações a ofensa ao
patrimônio imaterial do consumidor ocorre por via reflexa, como resultado da
lesão a direitos patrimoniais, cumprindo ao consumidor, portanto,
demonstrar que, do descumprimento contratual resultou concreto abalo à
sua dignidade e a seus direitos de personalidade.

Adiro, pois, integralmente com a redação dada ao item 3 da


TESE proposta:

3. A celebração de contrato de cartão de crédito


consignado mediante violação ao dever de informação
não configura, por si só, dano moral in re ipsa,
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cabendo ao consumidor demonstrar a ofensa à


dignidade da pessoa humana ou a direitos da
personalidade.

IV – COMUNICAÇÃO DA TESE APROVADA AO BACEN, PARA


FISCALIZAÇÃO DA SUA EFETIVA APLICAÇÃO PELOS SUJEITOS À
REGULAÇÃO, NA FORMA DO ART. 985, § 2º, CPC:

Por fim, proponho que o resultado deste julgamento seja


comunicado ao órgão competente responsável pela fiscalização da
efetiva aplicação, por parte das instituições financeiras, da tese aqui
adotada, nos termos do disposto no § 2º do art. 985 do CPC:

Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:

I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica


questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo
tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do
respectivo Estado ou região;

II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham
a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do
art. 986.

§1º Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação.

§2º Se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de


serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento
será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora
competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes
sujeitos a regulação, da tese adotada.

No caso, como longamente explicado no voto condutor, as


instituições financeiras estão submetidas à fiscalização do BACEN no
tocante à oferta e fornecimento de produtos e serviços relativos aos
contratos de empréstimo e cartão de crédito consignados, sujeitos à
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regulação e fiscalização deste órgão, como se verifica inclusive das


normativas invocadas no voto da Relatora, mais especificamente a
Resolução nº 3.694/2009 do BACEN, a Resolução nº 4.949/2021 do
Conselho Monetário Nacional e a Instrução Normativa nº 28 do INSS, dentre
outros.

Daí a necessidade de comunicar ao BACEN, para que cumpra


o disposto no art. 985, §2º, do CPC, procedendo à fiscalização da efetiva
aplicação por parte das instituições financeiras, da tese aprovada por este
Tribunal de Justiça do RS, no âmbito da respectiva competência regulatória.

Tal é absolutamente necessário à prevenção de futuros litígios,


pois não é possível que precedentes vinculantes dos tribunais, como é o
caso do julgamento do IRDR, e inclusive os Superiores julgados em recursos
repetitivos dos tribunais superiores, vinculem apenas os magistrados e
operadores do direito, mas não vinculem os agentes econômicos, que
seguem olimpicamente descumprindo-os, como vêm ocorrendo, por
exemplo, com várias decisão do STJ que reconhecem abusividade de
determinadas práticas bancárias ou cláusula contratuais insertas nos
contratos bancários, mas que os bancos sequem incluindo em seus
contratos de adesão, sem qualquer tipo de fiscalização por parte de quem a
lei atribui tal tarefa.

Não sendo assim, seguiremos nós, no Judiciário, secando gelo


nesse cenário de múltiplas irregularidades flagradas em contratos de
empréstimos e cartões de crédito consignados e de advocacia de massa
instalada em casuísticas semelhantes, impedindo que possamos dar conta
dos demais processos que exigem nossa pronta resposta.

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É como VOTO.

DES. JOÃO MORENO POMAR

Eminentes Colegas!

Acompanho o voto da eminente Relatora com as seguintes e breves


considerações.

A eminente Relatora, assim vota:

Outrossim, voto por acolher o Incidente de Resolução de Demandas


Repetitivas para estabelecer as seguintes teses:

1. ANULABILIDADE DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO


POR VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO. É anulável o contrato de cartão de
crédito consignado quando celebrado pelo consumidor em erro substancial quanto
à sua natureza, decorrente de falha na prestação de serviços bancários por
inobservância ao dever de informação. Os instrumentos contratuais devem conter
as cláusulas essenciais a essa modalidade de negociação, sendo ônus da instituição
financeira comprovar que informou ao consumidor, prévia e adequadamente:
a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações e as consequências decorrentes
do contrato de cartão de crédito consignado;
b) a existência de modalidades e serviços de crédito diversos, como o empréstimo
pessoal consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e outra contratações,
seus custos e características essenciais;
c) a disponibilidade, ou não, de margem disponível para a celebração de
empréstimo pessoal consignado;
d) que a fatura do cartão de crédito poderá ser paga total ou parcialmente até a
data do vencimento;
e) que, se não realizado o pagamento total da fatura, será efetuado o pagamento
mínimo mediante desconto na folha de pagamento ou em benefício previdenciário,
com o refinanciamento do saldo devedor, acrescido de juros.

2. CONVERSÃO DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO EM


EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO. O contrato de cartão de crédito consignado
que tenha sido celebrado mediante violação ao dever de informação é passível de
conversão em contrato de empréstimo pessoal consignado, devendo a este ser
aplicada a taxa média de mercado divulgada pelo BACEN, vigente na data da

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contratação, assegurada a repetição na forma simples ou a compensação dos


valores pagos a maior.
Não sendo possível o cumprimento da obrigação pela instituição financeira, como
na hipótese de inexistência de margem consignável, o que deverá ser aferido em
cumprimento de sentença, a obrigação será convertida em perdas e danos com a
recomposição das partes ao status quo ante, na forma do art. 84, §1º, do CDC,
mediante restituição à instituição financeira da quantia mutuada e, ao consumidor,
dos valores indevidamente pagos a maior, na forma simples, admitida a
compensação.

3. DANOS MORAIS. A celebração de contrato de cartão de crédito consignado


mediante violação ao dever de informação não configura, por si só, dano moral in
re ipsa, cabendo ao consumidor demonstrar a ofensa à dignidade da pessoa
humana ou a direitos da personalidade.

Assim tenho decidido, no julgamento da matéria, agora submetida ao IRDR:

- Quando não há prova do uso do cartão converto o contrato em empréstimo pessoal


com incidência dos juros remuneratórios à época da contratação; e não condeno em dano
moral.

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE


NULIDADE DE CONTRATO. - CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. RESERVA DE MARGEM
CONSIGNÁVEL. NULIDADE. PROVA. A CONTRATAÇÃO DE CRÉDITO COM RESERVA
DE MARGEM CONSIGNÁVEL (RMC). É LÍCITA QUANDO O SEU DESTINO É A
UTILIZAÇÃO POR CARTÃO DE CRÉDITO; E O RECONHECIMENTO DE SUA NULIDADE
EXIGE PROVA DE VÍCIO NA PACTUAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE,
EMBORA A CONTRATAÇÃO, O CRÉDITO FOI UTILIZADO PARA PAGAMENTO DE
MÚTUO FRAUDANDO O PROPÓSITO DE USO POR CARTÃO DE CRÉDITO; E SE IMPÕE
A REFORMA DA SENTENÇA PARA A CONVERSÃO EM EMPRÉSTIMO PESSOAL
CONSIGNADO. - REPETIÇÃO DE INDÉBITO. FORMA SIMPLES. A COBRANÇA
INDEVIDA IMPLICA NO DEVER DE RESTITUIR OS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE.
A REPETIÇÃO É DEVIDA NA FORMA SIMPLES INDEPENDENTE DA COMPROVAÇÃO
DE ERRO, ENQUANTO A REPETIÇÃO EM DOBRO REQUISITA PROVA DE MÁ-FÉ,
AINDA QUE SE TRATE DE RELAÇÃO DE CONSUMO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM
QUE AUSENTE PROVA DA MÁ-FÉ; E SE IMPÕE A CONDENAÇÃO NA FORMA SIMPLES.
- DANO MORAL. PROVA. O RECONHECIMENTO À COMPENSAÇÃO POR DANO
MORAL EXIGE A PROVA DE ATO ILÍCITO, A DEMONSTRAÇÃO DO NEXO CAUSAL E O
DANO INDENIZÁVEL QUE SE CARACTERIZA POR GRAVAME AO DIREITO
PERSONALÍSSIMO, SITUAÇÃO VEXATÓRIA OU ABALO PSÍQUICO DURADOURO. A
PRETENSÃO NÃO SE JUSTIFICA DIANTE DE MEROS TRANSTORNOS OU DISSABORES
NA RELAÇÃO SOCIAL, CIVIL OU COMERCIAL. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE
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SE IMPÕE AFASTAR A PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RECURSO


EM PARTE PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 50050426120218210029, Décima Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Moreno Pomar, Julgado em:
25-07-2022)

- Quando há prova do uso do cartão pelo consumidor que aderiu à


modalidade da reserva de margem consignável, adoto a linha de improcedência da ação:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE


FAZER. - CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL.
NULIDADE. PROVA. A CONTRATAÇÃO DE CRÉDITO COM RESERVA DE MARGEM
CONSIGNÁVEL (RMC). É LÍCITA QUANDO O SEU DESTINO É A UTILIZAÇÃO POR
CARTÃO DE CRÉDITO; E O RECONHECIMENTO DE SUA NULIDADE EXIGE PROVA DE
VÍCIO NA PACTUAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE RESTOU
DEMONSTRADA A UTILIZAÇÃO DO CARTÃO DE CRÉDITO; NÃO HÁ NULIDADE A SER
RECONHECIDA; E SE IMPÕE MANTER A SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO
DESPROVIDO. (Apelação Cível, Nº 50039845220218216001, Décima Oitava Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Moreno Pomar, Julgado em: 25-07-
2022)

- Quanto à repetição, adoto a repetição na forma simples:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE


NULIDADE DE CONTRATO. - CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. RESERVA DE MARGEM
CONSIGNÁVEL. NULIDADE. PROVA. A CONTRATAÇÃO DE CRÉDITO COM RESERVA
DE MARGEM CONSIGNÁVEL (RMC). É LÍCITA QUANDO O SEU DESTINO É A
UTILIZAÇÃO POR CARTÃO DE CRÉDITO; E O RECONHECIMENTO DE SUA NULIDADE
EXIGE PROVA DE VÍCIO NA PACTUAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE,
EMBORA A CONTRATAÇÃO, O CRÉDITO FOI UTILIZADO PARA PAGAMENTO DE
MÚTUO FRAUDANDO O PROPÓSITO DE USO POR CARTÃO DE CRÉDITO; E SE IMPÕE
A REFORMA DA SENTENÇA PARA A CONVERSÃO EM EMPRÉSTIMO PESSOAL
CONSIGNADO. - REPETIÇÃO DE INDÉBITO. FORMA SIMPLES. A COBRANÇA
INDEVIDA IMPLICA NO DEVER DE RESTITUIR OS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE.
A REPETIÇÃO É DEVIDA NA FORMA SIMPLES INDEPENDENTE DA COMPROVAÇÃO
DE ERRO, ENQUANTO A REPETIÇÃO EM DOBRO REQUISITA PROVA DE MÁ-FÉ,
AINDA QUE SE TRATE DE RELAÇÃO DE CONSUMO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM
QUE AUSENTE PROVA DA MÁ-FÉ; E SE IMPÕE A CONDENAÇÃO NA FORMA SIMPLES.
- DANO MORAL. PROVA. O RECONHECIMENTO À COMPENSAÇÃO POR DANO
MORAL EXIGE A PROVA DE ATO ILÍCITO, A DEMONSTRAÇÃO DO NEXO CAUSAL E O
DANO INDENIZÁVEL QUE SE CARACTERIZA POR GRAVAME AO DIREITO
PERSONALÍSSIMO, SITUAÇÃO VEXATÓRIA OU ABALO PSÍQUICO DURADOURO. A
PRETENSÃO NÃO SE JUSTIFICA DIANTE DE MEROS TRANSTORNOS OU DISSABORES
NA RELAÇÃO SOCIAL, CIVIL OU COMERCIAL. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE
SE IMPÕE AFASTAR A PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RECURSO
EM PARTE PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 50050426120218210029, Décima Oitava

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Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Moreno Pomar, Julgado em:
25-07-2022)

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE


VALORES C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. – (...) - RECURSO DA PARTE
AUTORA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. FORMA SIMPLES. A COBRANÇA INDEVIDA
IMPLICA NO DEVER DE RESTITUIR OS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE. A
REPETIÇÃO É DEVIDA NA FORMA SIMPLES INDEPENDENTE DA COMPROVAÇÃO DE
ERRO, ENQUANTO A REPETIÇÃO EM DOBRO REQUISITA PROVA DE MÁ-FÉ, AINDA
QUE SE TRATE DE RELAÇÃO DE CONSUMO. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE SE
IMPÕE MANTER A SENTENÇA QUE LIMITOU A REPETIÇÃO NA FORMA SIMPLES. -
DANO MORAL. PROVA. O RECONHECIMENTO À COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL
EXIGE A PROVA DE ATO ILÍCITO, A DEMONSTRAÇÃO DO NEXO CAUSAL E O DANO
INDENIZÁVEL QUE SE CARACTERIZA POR GRAVAME AO DIREITO PERSONALÍSSIMO,
SITUAÇÃO VEXATÓRIA OU ABALO PSÍQUICO DURADOURO. A PRETENSÃO NÃO SE
JUSTIFICA DIANTE DE MEROS TRANSTORNOS OU DISSABORES NA RELAÇÃO SOCIAL,
CIVIL OU COMERCIAL. CIRCUNSTÂNCIA DOS AUTOS EM QUE SE IMPÕE MANTER A
SENTENÇA QUE AFASTOU A PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.
RECURSOS DESPROVIDOS. (Apelação Cível, Nº 50015405820198210038, Décima
Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Moreno Pomar,
Julgado em: 28-06-2021)

Consigno, assim, que o voto da eminente Relatora contempla aqueles


entendimentos; e ainda, se orienta por maior amplitude em linha que acompanho neste
voto.

Ante o exposto, acompanho o voto da eminente Relatora, no julgamento


do IRDR e do recurso piloto.

É como voto!

DES. EDUARDO JOÃO LIMA COSTA

Vistos etc.
Inicialmente, estou de acordo com as linhas gerais do excelente voto
proferido pela digna Desembargadora MYLENE MARIA MICHEL, porquanto a pertinência
dos argumentos lançados para solver esse Incidente de Resolução de Demanda Repetida é
substancial e de grande valia.

ANULABILIDADE DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO


POR VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO
Acompanho o voto da ilustre Relatora, uma vez que expressa o meu
entendimento acerca da anulabilidade dos contratos em discussão, inclusive é orientação

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pacifica no âmbito da 19ª Câmara Cível, a qual integrava, o que não discrepa da linha de
compreensão da 25ª Câmara Cível que sou integrante, atualmente.
Diante da inescusável aplicação das regras do Código de Defesa do
Consumidor aos contratos bancários, conforme doutrinas e jurisprudências citadas, há que
se perceber que a solução do tema perpassa pelo escrutínio do Princípio da Informação que
implica em ofensa ao Princípio da Boa-Fé Objetiva.
Nesta linha, a não observância das instituições financeiras em respeitarem
o Princípio da Informação viola a autonomia da vontade do consumidor e importa em
malferir o princípio da boa-fé objetiva, quando a escolha do mutuário é em
desconformidade com sua real intenção.
Portanto, o ônus da prova de que houve cumprimento do dever de
informação é da instituição financeira, especialmente com base nas ponderações fáticas
expressadas no voto da Relatora.
Ademais, a prova do erro substancial, em regra, é do consumidor, quando
detém melhores condições para demonstração do vício de consentimento que foi
submetido. Entrementes, deverá haver a ponderação de que a mera ofensa ao princípio da
informação já impunha por si só, a anulabilidade do mútuo requer cautela do julgador, uma
vez que a existência de eventuais elementos objetivos existentes na lide, quer por conduta
da instituição financeira, quer pelo consumidor, poderá gerar a convicção que inexiste o
alegado erro substancial.
Nestes casos, o uso do cartão de crédito no comércio em geral, os saques
reiterados de empréstimos (situação admitida como demonstração da informação prévia
ao consumidor, conforme jurisprudência do STJ), termo de consentimento esclarecidos,
contratos firmados, via whatsApp, ou outro meio eletrônico, autoriza a formação do
convencimento do julgado acerca do erro substancial do mutuário.
Enfim, há concordância deste subscritor com o ônus da instituição
financeira em provar do respeito ao princípio da informação, porém havendo elementos
objetivos, ou indícios veementes da conduta do mutuário de que sabia ou concordou com a
natureza do contrato em discussão poderá afastar o erro substancial para ensejar a
anulabilidade requerida.

CONVERSÃO DE CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO EM


EMPRÉSTIMO CONSIGNADO
Acompanho o voto em relação a conversão do contrato de cartão de
crédito consignado em empréstimo consignado, uma vez que a intenção do consumidor era
pactuar mútuo com a instituição financeira. E isso afasta possível alegação de nulidade, pois
remanesce o interesse no empréstimo com taxa de juros remuneratórios mais compatíveis
com a média do mercado.
É importante preservar a boa-fé dos contratantes e a força dos contratos,
modo pelo qual sua existência é perfeitamente admitida no âmbito do Código Civil e do
Código de Defesa do Consumidor.
Por fim, há a situação exposta nas ponderações da FENABRAN acerca da
dificuldade entre essa conversão e o respeito à ordem de preferência do mútuo em relação

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a outros de mesma natureza. Todavia, da leitura atenta dos argumentos dos envolvidos,
transparece que a melhor solução é a indicada no voto da Relatora.
Noutro ponto, a conversão do contrato impõe a adoção da taxa de juros
remuneratórios em sintonia com a média de mercado para contratos similares.
Relembro que o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial n.
1.061.530/RS) refere que a taxa média aferida pelo Banco Central do Brasil é meramente
informativa, porquanto outros elementos fáticos importam na glosa do percentual a ser
fixado.
Aliás, atualmente, o Superior Tribunal de Justiça determina o rejulgamento
de ações revisionais que não procedam na aferição de elementos fáticos que possam
orientar na taxa de juros remuneratórios ao tempo da contratação, quando aquelas
somente adotam a taxa média informado pelo Banco Central do Brasil.
Neste sentido, reproduzo ementa do Recurso Especial n. 2.009.614 – SC:

RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO. JUROS


REMUNERATÓRIOS. REVISÃO. CARÁTER ABUSIVO. REQUISITOS.
NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA.
1- Recurso especial interposto em 19/4/2022 e concluso ao
gabinete em 4/7/2022.
2- O propósito recursal consiste em dizer se: a) a menção genérica
às “circunstâncias da causa” não descritas na decisão,
acompanhada ou não do simples cotejo entre a taxa de juros
prevista no contrato e a média praticada no mercado, é suficiente
para a revisão das taxas de juros remuneratórios pactuadas em
contratos de mútuo bancário; e b) qual o incide a ser aplicado, na
espécie, aos juros de mora.
3- A Segunda Seção, no julgamento REsp n. 1.061.530/RS,
submetido ao rito dos recursos especiais repetitivos, fixou o
entendimento de que "é admitida a revisão das taxas de juros
remuneratórios em situações excepcionais, desde que
caracterizada a relação de consumo e que a abusividade (capaz
de colocar o consumidor em desvantagem exagerada - art. 51, §
1°, do CDC) fique cabalmente demonstrada, ante as
peculiaridades do julgamento em concreto."
4- Deve-se observar os seguintes requisitos para a revisão das
taxas de juros remuneratórios: a) a caracterização de relação de
consumo; b) a presença de abusividade capaz de colocar o
consumidor em desvantagem exagerada; e c) a demonstração
cabal, com menção expressa às peculiaridades da hipótese
concreta, da abusividade verificada, levando-se em consideração,
entre outros fatores, a situação da economia na época da
contratação, o custo da captação dos recursos, o risco envolvido
na operação, o relacionamento mantido com o banco e as
garantias ofertadas.

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5- São insuficientes para fundamentar o caráter abusivo dos juros


remuneratórios: a) a menção genérica às “circunstâncias da
causa” – ou outra expressão equivalente; b) o simples cotejo entre
a taxa de juros prevista no contrato e a média de mercado
divulgada pelo BACEN e c) a aplicação de algum limite adotado,
aprioristicamente, pelo próprio Tribunal estadual.
6- Na espécie, não se extrai do acórdão impugnado qualquer
consideração acerca das peculiaridades da hipótese concreta,
limitando-se a cotejar as taxas de juros pactuadas com as
correspondentes taxas médias de mercado divulgadas pelo BACEN
e a aplicar parâmetro abstrato para aferição do caráter abusivo
dos juros, impondo-se, desse modo, o retorno dos autos às
instâncias ordinárias para que aplique o direito à espécie a partir
dos parâmetros delineados pela jurisprudência desta Corte
Superior. 7- Recurso especial parcialmente provido.

Entrementes, a questão central aqui é que os contratos de crédito


consignados obedecem, em regra, a taxa média de mercado e as diretrizes normativas do
INSS, conforme ficou grifado no voto da Relatora, modo pelo qual o enunciado no sentido
de que a taxa de juros deverá ser a média informada pelo Banco Central do Brasil, em
princípio, poderá violar a regra administrativa do INSS e a jurisprudência do STJ.
Então, a título de ponderação, votaria para que o item 2 da proposta de
enunciado da Relatora apenas fizesse referência de ser aplicada a taxa média de mercado
para contratos similares.

REPETIÇÃO DO INDÉBITO
Divirjo, neste ponto, apenas em relação a repetição do indébito de forma
simples, conforme fundamentação deduzida da digna Relatora.
Não obstante em votos deste subscritor em órgão fracionário expressar a
repetição do indébito na forma simples, a alteração do meu entendimento deriva da
circunstância que a solução da controvérsia deste IRDR advém da violação do princípio da
informação que implica em malferir o princípio da boa-fé objetiva do consumidor. Logo, a
forma de devolução deverá ser dobrada naquilo que é excesso.
Então, a cooptação da vontade do consumidor radica violação da sua boa-fé
objetiva no sentido que almejava um tipo de contrato que lhe era mais favorável na taxa de
juros remuneratórios. Todavia, a adoção de outro tipo de contrato gera uma burla
inescusável da instituição financeira que obtém maior bonificação com juros modificados
ao arrepio da vontade daquele. E isso é muito diferente, s.m.j., que juros abusivos para o
mesmo tipo de contrato, em ações revisionais em geral, cuja repetição é na forma simples.
O Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento dos EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 600.663 - RS, expressou que a
demonstração de má-fé ou culpa do fornecedor é despiciente para repetição em dobro, eis
que basta a violação do princípio da boa-fé objetiva na cobrança dos encargos.

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Em suma, o voto da Relatora, no meu sentir, tem como escólio a ofensa ao


princípio da boa-fé objetiva do consumidor, a partir da má informação da instituição
financeira, razão pela qual a repetição do indébito será em dobro em razão direta de se
manter lógica interna neste julgamento.

DANO MORAL
Alinho-me a tese de que o dano moral do mutuário, em casos similares,
deverá ser por ele provado, porquanto não se trata de dano in re ipsa.
Impositiva a demonstração exauriente de fato excepcional para justificar
dano moral em razão do empréstimo diverso daquele que visava contratar, pois (a) recebeu
valores e os consumiu, (b) eventual taxa de juros pactuada deverá honrar, em parte
mínima, e (c) o excesso, quiçá inexpressivo, mesmo sobre salários exige comprovação de
ofensa extrapatrimonial.

CAUSA PILOTO
Acompanho, em parte, o voto da Relatora, mas divirjo em relação a
devolução que deverá ser em dobro, conforme fundamentação anteriormente deduzida.

DISPOSITIVO
Acompanho o voto, em parte, em relação ao IRDR, mas com a divergência
em relação à repetição do indébito que deverá ser em dobro e que a os juros
remuneratórios, quando da conversão do contrato de cartão de crédito em empréstimo
consignado deverá ser com base na taxa média de mercado para contratos similares.
Acompanho o voto, na causa piloto, em parte, para admitir a repetição em
dobro com observância do EARESP 600.663 - RS.

DES.ª JUCELANA LURDES PEREIRA DOS SANTOS

Acompanho a ilustre Relatora, no seu bem lançado e estudado voto, uma


vez que está adstrito aos termos do IRDR, e apesar de nos precedentes mais recentes do
STJ, estar sendo reconhecido a repetição dobrada, na causa piloto, o pedido é de
restituição simples, sendo este o entendimento que venho adotando na Câmara.

DES. DILSO DOMINGOS PEREIRA

Adiro ao minucioso voto da douta Relatora, embasado em criteriosa


pesquisa, como notáveis lições doutrinárias e jurisprudenciais, de forma a permitir uma
análise percuciente da matéria em discussão, exceto no tocante à restituição, em dobro,
dos valores descontados do consumidor.
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A proteção da parte vulnerável ou hipervulnerável na contratação de cartão


de crédito com reserva de margem consignável, normalmente caracterizada por idosos,
com parcos recursos financeiros recebidos da previdência oficial e, muitas vezes,
analfabetos, demanda acurada análise do cumprimento, pela instituição financeira, do
dever de informação prévia e adequada sobre o produto contratado.

Não apenas daquela informação pro forma, que muitas vezes se vê nos
contratos, fazendo o consumidor assinalar positivamente, no espaço do formulário
adequado para tanto, que lhe foram prestadas todas as informações sobre o produto
adquirido e que está ciente dos riscos que dele poderão advir, mas da efetiva prestação de
informação de modo a permitir a constatação de que realmente teve a clareza e
compreensão do que estava assinando.

É bem verdade que, do exame de demandas como a ora em debate,


depreende-se que o cartão de crédito RMC ou RCC era a última ou única opção de que
ainda dispunha a parte para o recebimento de valores imprescindíveis para a sua
manutenção ou de sua família, diante do superendividamento causado pela pactuação de
inúmeros outros empréstimos, para os quais já não há mais margem consignável, limitada a
35%.

Contudo, é justamente por isso que essa análise do cumprimento do dever


de informação pela instituição financeira se torna mais necessária, evitando, por
conseguinte, que a parte vulnerável da contratação seja ainda mais prejudicada pela
pactuação de dívidas infinitas e impagáveis.

Nesse contexto, estimo que uma das principais informações que devem ser
prestadas ao consumidor é sobre a diferença entre a modalidade de operação contratada –
cartão de crédito RMC ou RCC e o empréstimo consignado.

A diferença entre uma contratação e outra é expressiva, pois enquanto


no empréstimo pessoal consignado o mutuário tem conhecimento do valor e das
quantidades de parcelas que serão debitados em sua folha de pagamento ou de benefícios,
no cartão de crédito ele tem apenas uma nuance desses dados, já que o valor da parcela
nem sempre corresponde aquele que, efetivamente, é descontado do benefício.
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A contratação do cartão de crédito RMC e RCC, ainda que num momento de


extrema necessidade possa ser útil ao mutuário, torna a dívida impagável, pois com o
adimplemento do valor mínimo da parcela, o que será pago são apenas os juros, de modo
que o valor do empréstimo permanecerá sempre em aberto, gerando novos juros e, assim,
excessiva onerosidade.

Importante, assim, que o consumidor tenha ciência da diferença entre os


juros de uma e outra e modalidade, assim como de que, no cartão de crédito, não será
debitado na folha de benefícios o valor da parcela integral do valor mutuado, mas apenas a
chamada parcela mínima, cujo pagamento rende ensejo a novos juros, que se somam aos já
incidentes por ocasião do empréstimo e assim sucessivamente, tornando a dívida
impagável.

Demais disso, necessário que, ao contratar o empréstimo, essa informação


tenha sido passada ao mutuário com clareza suficiente para que a problemática desse tipo
de transação possa ser por ele compreendida.

Ora, sendo operação complexa, em que ocorre uma verdadeira mistura de


empréstimo consignado com cartão de crédito, a obrigação de a instituição financeira
informar ao mutuário a operação que está sendo contratada deve ser executada de forma a
não permitir interpretações dúbias, como decorre do disposto nos artigos 46, 51 e 52 do
CDC:

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo


não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a
oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu
conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos
de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance. (...)
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços
que: (...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade; (...)

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X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente,


variação do preço de maneira unilateral; (...)
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a
vantagem que: (...)
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o
interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao
caso.
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que
envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento
ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros
requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: I -
preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; II
- montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de
juros; III - acréscimos legalmente previstos; IV - número e
periodicidade das prestações; V - soma total a pagar, com e
sem financiamento.

Inexistindo tal demonstração, impositiva a reposição das partes ao “status


quo ante”.

Há situações, no entanto, em que a parte autora, na inicial, requer, em um


primeiro momento, a anulação do contrato, com a devolução dos descontos realizados
mensalmente a título de empréstimo sobre a RMC.

Num segundo momento, no entanto, postula a readequação do contrato de


cartão de crédito, a fim de seja convertido em empréstimo pessoal consignado, o que se
mostra mais plausível e consentâneo com a realidade, pois celebrado com erro essencial
por força da ausência de informação e em desconformidade com a boa-fé objetiva.

Outrossim, uma vez convolada a contratação do cartão de crédito em


empréstimo consignado, de rigor a utilização da taxa média BACEN alusiva a essa
modalidade de operação para recálculo de encargos, bem como para apuração de saldo a
ser restituído.

Na impossibilidade de disponibilização de margem consignável para tanto,


viável a convolação do contrato em perdas e danos, a ser apurados na liquidação de

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sentença, com a restituição, em dobro, do indébito, acrescido de correção monetária, pelo


IPC-A, a contar do desembolso e de juros de mora de 1% ao mês, a contar da citação.

No tocante à restituição em dobro, perfilho o entendimento exposto pelo


Desembargador Ricardo Pippi Schimidt, pelo qual não se pode menosprezar conduta
deletéria das instituições financeiras, tampouco enquadrá-la como engano justificável, pois
têm ciência do abuso de direito praticado em desfavor da boa-fé e do consumidor.

No que pertine ao dano moral, outrora, negava-se a possibilidade de


qualquer reparação. Posteriormente, admitida a compensação pecuniária, discutiu-se a
cumulação com o dano material. Hoje, superada esta questão (Súmula 37 do STJ), a
dificuldade que se apresenta é saber o que caracteriza o dano moral. E nesse andar há que
se ter muito cuidado de modo a não permitir que mero dissabor ou sensibilidade
exacerbada sirvam para justificar pleitos indenizatórios.

A configuração do dano moral, hodiernamente, não se limita à ausência de


caráter patrimonial, nem se subordina a alguma reação psicológica, como a dor, vergonha,
sofrimento, vexame, etc. Se assim não o fosse, os doentes mentais, as pessoas em estado
vegetativo e as crianças de tenra idade jamais seriam vítima de dano moral. Com efeito, o
dano moral corresponde à ofensa à dignidade da pessoa humana e a todo e qualquer bem
personalíssimo.

Assim situado, indaga-se: como provar o dano moral? A doutrina aqui é


uníssona no sentido de que o dano moral é insuscetível de prova, sob pena de retornarmos
à fase da irreparabilidade. Então, concluiu-se que a sua configuração resulta do próprio
fato, ou seja, é in re ipsa, provado o fato, demonstrado está o dano moral. Mas que fatos
são aptos a caracterizá-lo? Eis a grande dificuldade do momento. Estabelecer critérios é o
que desafia a imaginação dos operadores do direito. Entendido o dano moral como uma
agressão à dignidade humana, não se pode aceitar que qualquer contrariedade possa
configurá-lo. Meros transtornos, incômodos ou aborrecimentos não se revelam suficientes
à configuração do dano moral. O direito deve reservar-se à tutela de fatos graves, que
atinjam bens jurídicos relevantes, sob pena de se levar à banalização do instituto com a
constante reparação de diminutos desentendimentos do cotidiano.
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A propósito do tema, leciona Sergio Cavalieri Filho (in Programa de


Responsabilidade Civil, 10.ª ed., p. 93):

(...) só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame,


sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade,
interfira intensamente no comportamento psicológico do
indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio
em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa,
irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita
do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da
normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito,
entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não
são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio
psicológico do indivíduo. Se assim não se entender,
acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações
judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais
aborrecimentos. (...)
Não obstante o alerta de Cavalieri, que, com sua peculiar sapiência, bem
posicionou o tema, o que se vê no dia-a-dia forense é o dano moral transformado numa
indústria de indenizações. Pedidos de reparações são deduzidos, normalmente, de forma
genérica, fundados em incômodos mínimos, que fazem parte do nosso cotidiano.

Diante dessa postura que banaliza o dano moral, deve o Poder Judiciário
estar atento, repelindo com veemência os pleitos, até para preservar um instituto de
tamanha importância.

Em situações como a presente, o que normalmente ocorre é tão-somente


um descumprimento contratual que, por si só, não configura danos morais indenizáveis, já
que ausente efetiva ofensa a dignidade humana.

Para tal indenização, assim, imprescindível demonstração do dano moral


pelo consumidor, que não se insere na categoria daqueles que decorrem do próprio fato.

Com essas breves considerações, adiro ao voto da eminente Relatora,


exceto no tocante à restituição, em dobro, dos valores pagos indevidamente pelo
consumidor, na esteira do voto proferido pelo ilustre Desembargador Ricardo Pippi
Schimidt.

É o voto.

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DES. CAIRO ROBERTO RODRIGUES MADRUGA

Com a devida vênia, divirjo em parte da eminente Relatora, apenas quanto


a possibilidade de conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo
pessoal consignado, tanto na proposta de tese “II”, como no julgamento da causa-piloto.

Com efeito, o art. 6º da Lei nº 10.820/2003, com redação dada pela Lei nº
14.431/22, regulamentado pela Instrução Normativa do INSS nº 28/2008 e alterações
posteriores, possibilitou a consignação por instituições financeiras de descontos em folha,
mediante autorização expressa, por escrito ou por meio eletrônico, do titular do benefício,
para pagamento de empréstimos pessoal e cartão de crédito, contraídos pelos beneficiários
da Previdência Social (art. 3º, alterado pela IN nº 39/2009).

Portanto, pelo regramento normativo de regência, há possibilidade de duas


espécies de consignações em benefício previdenciário do INSS, uma para empréstimos,
inicialmente no percentual de 30%, e outra para cartões de crédito, de mais 05% (art. 1º, §
1º c/c art. 6º, ambos da Lei nº 10.820/2003, com redação dada pela Lei nº 13.172/15),
percentuais esses ampliados posteriormente para 35% para empréstimos, mantidos os 05%
para cartões de crédito, durante a vigência da MP nº 1006/20, convertida na Lei nº
14.131/21, que vigorou somente até 31/12/2021, sendo que tais percentuais foram
retomados, a partir de 17.03.2022, por força da MP nº 1.106/2022, transformada na Lei nº
14.431, de 03/08/2022.

O presente IRDR tem por objeto apreciar as seguintes questões jurídicas: I)


a validade de contratos de cartão de crédito consignado; II) a possibilidade de conversão
dessa avença em contratos de empréstimo pessoal consignado; III) a configuração de danos
morais indenizáveis.

Com relação à validade do contrato de cartão de crédito consignado, a


eminente Relatora abordou com propriedade a matéria, ao assentar que os instrumentos
contratuais devem conter as cláusulas essenciais a essa modalidade, sendo ônus da
instituição financeira comprovar que informou ao consumidor, prévia e adequadamente,

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sob pena de ser passível de anulação, razão pela qual acompanho integralmente seu voto
quanto ao particular.

Todavia, no que diz com a possibilidade de conversão dessa avença em


contratos de empréstimo pessoal consignado, tenho posicionamento divergente da
Relatora, na esteira do entendimento da Câmara que integro, a 24ª Câmara Cível, o qual é
no sentido de que o contrato de cartão de crédito consignado, que não contenha as
cláusulas essenciais a essa modalidade contratual ou sobre o qual não foram prestadas
informações prévias e adequadas ao consumidor, e que seja elaborado para simular
empréstimo pessoal consignado, modalidade que a parte desejava e acreditava estar
contratando, mas que restara inviabilizada, normalmente pelo fato de não mais existir
margem consignável para tal, desde que não seja disponibilizada a tarjeta ao contratante
ou que não haja sua utilização para a finalidade própria (por exemplo compras), ocorrendo
simplesmente o depósito do numerário na conta bancária do consumidor, e a consequente
consignação das parcelas fixas em seu benefício, a título de pagamento mínimo das faturas,
como se empréstimo consignado fosse, tudo isso para burlar as disposições cogentes
relativas ao limite consignável (fraudar lei imperativa), configura negócio jurídico nulo de
pleno direito, e não meramente anulável, por força do que dispõe o art. 166, VI, do Código
Civil, e arts. 6º, III, 51, IV, e 52, do Código de Defesa do Consumidor.

Além disso, a contratação do cartão de crédito nessas condições,


invariavelmente importa em onerosidade excessiva ao consumidor e vantagem
desproporcional ao banco, o qual aplica taxas de juros sabidamente bem superiores às
taxas do empréstimo consignado, passando a ter um crédito praticamente eterno, já que a
consignação no benefício, a título de pagamentos mínimos das faturas, no percentual fixo
de 05% (cinco por cento), amortiza parcela ínfima do montante devido, por vezes sequer
cobre o valor dos encargos mensais incidentes, o que também afronta o que dispõe o art.
39, V, do CDC.

Nesse sentido, precedente da 24ª Câmara Cível:

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"APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE
CIVIL DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. A responsabilidade
contratual do banco é objetiva, nos termos do art. 14 do
CDC, respondendo, independentemente de culpa, pela
reparação dos danos causados a seus clientes por
defeitos/falhas decorrentes dos serviços que lhes presta.
Trata-se, portanto, de responsabilidade civil pelo fato do
serviço fundada na teoria do risco do empreendimento.
RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL. NULIDADE DA
CONTRATAÇÃO. Modalidade contratual em que a parte
autora pretende realizar empréstimo consignado, todavia,
recebe cartão de crédito com saque do valor que pretende a
título de empréstimo, e posteriormente são descontadas
parcelas do pagamento mínimo relativo ao saque em folha
de pagamento. Ainda, verifica-se que os valores da dívida
continuam crescendo, resultando em um débito eterno,
salientando que os juros dos cartões são os mais altos do
mercado. Ademais, o que comprova a nulidade do negócio
jurídico é que o cartão de crédito consignado não é
efetivamente utilizado pela parte autora, tornando-se
evidente a simulação e/ou erro na realização do contrato.
Tal situação é abusiva pois configura uma dívida eterna,
gerando, com isso, lucros exorbitantes ao banco e,
principalmente, desvantagem exagerada ao consumidor, o
que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor, nos
termos do seu art. 52 e artigos 166, VI, e 167, II, do Código
Civil. Assim, diante do reconhecimento da nulidade dos
contratos de cartão de crédito consignado, deverão as
partes retornar ao status quo ante, conforme previsão do
art. 182 do Código Civil. DANO MORAL. NÃO
CONFIGURADO. Na hipótese em comento, não houve o
cadastramento indevido no rol de inadimplentes, de modo
que o dano moral não é presumido e, assim, dependia de
prova, a qual não foi produzida pela parte autora. A parte
demandante não carreou aos autos qualquer elemento
concreto para comprovar o dano moral alegadamente
suportado. Desse modo, tenho que os fatos narrados pela
parte requerente não passam de meros dissabores, que não
se revelam suficientes à configuração do dano moral, pois
deve o direito reservar-se à tutela de fatos graves, que
atinjam bens jurídicos relevantes. APELAÇÃO DO RÉU
DESPROVIDA. APELAÇÃO DA AUTORA
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DESPROVIDA."(Apelação Cível, Nº 70083466276, Vigésima


Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Jorge Alberto Vescia Corssac, Julgado em: 22-04-2020).

Nesse contexto, uma vez declarado nulo o contrato de cartão consignado,


entendo que o negócio jurídico não pode ser aproveitado como empréstimo pessoal
consignado, pois este não contém os mesmos requisitos daquele, conforme exige o art.
170 do Código Civil, em especial porque as margens consignáveis de ambos são distintas
(empréstimo 35% e cartão 05%), devendo, assim, as partes retornar de plano ao status
quo ante, já que negócio jurídico nulo não é suscetível de convalidação ou confirmação,
nos termos dos arts. 169 e 182 do Código Civil, com restituição automática dos valores
dispendidos por ambas, inclusive dos saques complementares, independentemente de
pedido expresso nesse sentido, pois o “efeito repristinatório se subsume no desfazimento
do contrato;”139

Nesse sentido:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.


AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE. PREPARO.
COMPLEMENTAÇÃO ADEQUADA. PRINCÍPIO DA
COLEGIALIDADE. PRESERVAÇÃO. JULGAMENTO EXTRA
PETITA. INEXISTÊNCIA. PEDIDO DE NULIDADE DO NEGÓCIO
JURÍDICO FORMULADO EM AÇÃO DECLARATÓRIA
INCIDENTAL. RESTITUIÇÃO DE VALORES. DECORRÊNCIA
LÓGICA. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL
NÃO PROVIDO. 1. A insuficiência do preparo enseja a
complementação do recolhimento das custas na forma
simples, nos termos do art. 1.007, § 2º, o que ocorreu na
hipótese. 2. A possibilidade de interposição de recurso
afasta qualquer alegação de ofensa ao princípio da
colegialidade. 3. Havendo pedido expresso de nulidade da
escritura pública de compra e venda, formulado
incidentalmente à ação de imissão na posse, não há que se
falar em julgamento extra petita quanto à declaração de
nulidade do negócio jurídico.4. Declarada a nulidade do
negócio simulado, é imprescindível o retorno das partes ao

139
Assis, Araken de, in em “Resolução do Contrato por Inadimplemento”, p.130.

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estado anterior, por meio da determinação de que o


agravado restitua aos agravantes o valor por eles
emprestado, que se constitui decorrência lógica da anulação
do contrato, sob pena de enriquecimento ilícito. 5. Agravo
interno provido. Agravo conhecido para negar provimento
ao recurso especial.” (AgInt no AREsp 1127461 / MG, Rel.
Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO) -T4 - QUARTA TURMA -
Data do Julgamento - 16/08/2018 - DJe 23/08/2018).

“RECURSO ESPECIAL DE GABRIEL CONTINO. CIVIL.


CONTRATO DE PARCERIA DE ATLETA DE
FUTEBOL. NULIDADE DECRETADA EX OFFICIO PELO JUIZ.
DIREITO À RESTITUIÇÃO DOS VALORES ADIANTADOS PELOS
CONTRATANTES. INDEPENDE DE PEDIDO DA PARTE.
RECURSO PROVIDO. 2. RECURSO ESPECIAL DE LONDRINA
ESPORTE CLUBE. PEDIDO DE MAJORAÇÃO DOS
HONORÁRIOS. PERDA DE OBJETO. 1. A nulidade do
contrato, por se operar ex tunc, acarreta o retorno das
partes ao status quo ante, de maneira que o provimento
jurisdicional de decretação de nulidade do ajuste contém
em si eficácia restituitória -, nasce o direito de as partes
serem ressarcidas pelo que despenderam na vigência do
contrato nulo – e liberatória, pois desobriga ambos da
relação contratual. 2. No provimento judicial que decreta a
rescisão ou a nulidade contratual está ínsito o direito de
devolução das quantias eventualmente adiantadas pelos
contratantes, independentemente de requerimento
expresso nesse sentido, sob pena de enriquecimento sem
causa. 3. O provimento do recurso especial de um dos
recorrentes, com a inversão dos ônus sucumbenciais, torna
prejudicado o recurso interposto pela parte contrária
visando à majoração dos honorários advocatícios fixados na
origem. 4. Recurso especial de Gabriel Contino provido.
Recurso especial de Londrina Esporte Clube prejudicado.”
(REsp 1611415/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE,
TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2017, DJe
07/03/2017).

Assim, divirjo da eminente Relatora nesse ponto, tanto na proposta de


tese “II”, como na causa-piloto, para assentar que declarado nulo o contrato de cartão,
uma parte deverá restituir à outra os valores recebidos, corrigidos monetariamente pelo
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IGP-M, a contar dos respectivos desembolsos, e com juros legais do trânsito em julgado,
admitida a compensação, a fim de evitar enriquecimento indevido de ambas, o que
torna prejudicados os pedidos de conversão em empréstimo consignado e de repetição de
valores.

Por fim, quanto à existência de danos morais indenizáveis, acompanho


integralmente a ilustre Relatora.

De fato, embora não se olvide os dissabores que uma cobrança indevida


traz consigo, a verdade é que não é toda a situação desagradável que pode ser considerada
passível de causar dano moral à pessoa.

Como é sabido, para o reconhecimento do dano moral, necessária a


configuração de autêntica lesão a atributo da personalidade, o que não ocorre
automaticamente em tais casos.

A cobrança de valores, com base contratual, não traduz modalidade de


dano moral in re ipsa, reclamando, portanto, prova da ocorrência de um dano concreto
significativo, ou seja, de que a parte sofrera algum constrangimento, uma privação
financeira significativa, ou que tenha tido algum negócio frustrado, em razão do ocorrido,
porém geralmente não há sequer alegação nesse sentido, como no caso.

Dispositivo:

Diante do exposto, voto por DIVERGIR EM PARTE da eminente Relatora,


nos termos da fundamentação, para: a) quanto à proposta da tese “II”, votar no sentido de
que a anulação do contrato de cartão de crédito consignado, inviabiliza o aproveitamento
do negócio jurídico como contrato de empréstimo pessoal consignado, pois este não
contém os mesmos requisitos daquele, conforme exige o art. 170 do Código Civil, devendo,
assim, as partes retornar ao status quo ante, já que negócio jurídico nulo não é suscetível
de convalidação ou confirmação, nos termos dos arts. 169 e 182 do Código Civil; b) no que
diz com a causa-piloto, votar por DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO EM MENOR
EXTENSÃO, a fim de determinar o retorno das partes ao status quo ante, julgando

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prejudicados os pedidos de conversão do cartão consignado em empréstimo pessoal


consignado e de repetição de valores, e c) vencido nas propostas dos itens “a” e “b”,
acompanho a Relatora tanto na tese do IRDR como na causa-piloto, para que a repetição de
valores em ambas se dê na forma simples.

DES.ª DEBORAH COLETO ASSUMPÇÃO DE MORAES

Eminentes Colegas,

Acompanho o voto prolatado pela Eminente Desembargadora Relatora.

DES.ª VIVIAN CRISTINA ANGONESE SPENGLER

Acompanho a E. Desa. Relatora, com exceção à restituição dos valores, cuja


forma entendo pode integrar a tese, devendo ocorrer de forma dobrada, nos termos da
divergência parcial inaugurada pelo E. Des. Ricardo Pippi Schmidt.

DES. ROBERTO CARVALHO FRAGA

Colegas.

Face estar-se, nitidamente, numa relação contratual ao amparo do Código


cosumeirista, tenho que se deve traçar novas luzes as cláusulas contratuais abusivas ( arts
46 e seguintes do CDC) .

Assim, é que acompanho na integralidade a em. Relatora

DES. FERNANDO ANTONIO JARDIM PORTO

Eminentes colegas!

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Em que pese a solução adotada no incidente em análise através do voto da


MMª. Desembargadora Relatora, entendo em apresentar a seguinte divergência, o que
peço vênia para fundamentar.

Em relação a conclusão e base de fato e direito que ensejaram a fixação da


primeira tese no tocante a anulabilidade de contratos de cartão de crédito consignado por
violação do dever de informação, nada a acrescentar ou divergir, eis que o entendimento
da Nobre Desembargadora Relatora coincide com aquele já aplicado pelo colegiado que
integro (11ª Câmara Cível), motivo pelo qual adiro a definição nela veiculada.

O mesmo não se dá com a segunda tese a respeito da conversão de


contratos de cartão de crédito consignado em empréstimo pessoal consignado, tão
somente em relação a questão da repetição de indébito simples tanto em relação da
conversão do contrato original em empréstimo pessoal consignado ou na hipótese de
conversão em perdas e danos, calhando, a meu juízo, a aplicação do precedente qualificado
do STJ, sem prejuízo da adesão das demais conclusões nela fixadas e aqui não impugnadas.
Neste sentido, a antiga discussão do elemento volitivo (boa-fé ou má-fé) a regular a
devolução simples ou dobrada restou superada a partir do novo entendimento do STJ sobre
a dispensabilidade da prova da má-fé, ante a aplicação da tese de violação da boa-fé
objetiva que permeia a relação de consumo, consagrada no EREsp. 1.413.542/RS, a qual
encontra aplicabilidade prática no caso em concreto, tendo em vista que tal entendimento
passou a ser válido e aplicável aos pagamentos a maior efetuados após a publicação do
acórdão, ou seja, após 31/03/2021, sendo passível de aplicação no caso em comento. Nesse
sentido, segue o aresto do STJ ao qual me refiro:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR.


EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. HERMENÊUTICA DAS
NORMAS DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. REPETIÇÃO DE
INDÉBITO. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. PARÁGRAFO ÚNICO DO
ART. 42 DO CDC. REQUISITO SUBJETIVO. DOLO/MÁ-FÉ OU
CULPA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DO CRITÉRIO DA BOA-
FÉ OBJETIVA. MODULAÇÃO DE EFEITOS PARCIALMENTE
APLICADA. ART. 927, § 3º, DO CPC/2015. IDENTIFICAÇÃO DA

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CONTROVÉRSIA 1. Trata-se de Embargos de Divergência que


apontam dissídio entre a Primeira e a Segunda Seções do
STJ acerca da exegese do art. 42, parágrafo único, do
Código de Defesa do Consumidor - CDC. A divergência
refere-se especificamente à necessidade de elemento
subjetivo para fins de caracterização do dever de restituição
em dobro da quantia cobrada indevidamente.
2. Eis o dispositivo do CDC em questão: "O consumidor
cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do
indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso,
acrescido de correção monetária e juros legais, salvo
hipótese de engano justificável" (art. 42, parágrafo único,
grifo acrescentado). ENTENDIMENTO DA EMINENTE
MINISTRA RELATORA 3. Em seu judicioso Voto, a eminente
Relatora, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, lúcida e
brilhante como sempre, consignou que o entendimento das
Turmas que compõem a Seção de Direito Privado do STJ é o
de que "a devolução em dobro só ocorre quando
comprovada a má-fé do fornecedor". Destacou que os
arestos indicados como paradigmas "firmam ser suficiente
para que haja a devolução em dobro do indébito a
verificação da culpa."
4. A solução do dissídio, como antevê a eminente Relatora,
pressupõe seja definido o que se deve entender, no art. 42,
parágrafo único, pelo termo "engano justificável". Observa
ela, corretamente, que "a conclusão de que a expressão
'salvo hipótese de engano justificável' significa
'comprovação de má-fé do credor' diminui o alcance do
texto legal em prejuízo do consumidor, parte vulnerável na
relação de consumo" (grifo acrescentado). Dessa forma, dá
provimento aos Embargos de Divergência, pois, "ao
contrário do que restou consignado no acórdão embargado,
não é necessária a comprovação da má-fé do credor, basta
a culpa."
5. Por não haver óbices processuais, irreparável a
compreensão da eminente Relatoria original quanto ao
conhecimento do recurso.
6. A Relatora, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, com
precisão cirúrgica, aponta dois pressupostos fundamentais
do modelo hermenêutico que rege a aplicação do CDC: a)
vedação à interpretação e à analogia que diminuam "o
alcance do texto legal em prejuízo do consumidor" e b)
valorização ético-legislativa da "parte vulnerável na relação
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de consumo". DIVERGÊNCIA ENTRE A PRIMEIRA SEÇÃO


(DIREITO PÚBLICO) E A SEGUNDA SEÇÃO (DIREITO PRIVADO)
DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 7. Para fins de
Embargos de Divergência - resolver teses jurídicas
divergentes dentro do STJ -, estamos realmente diante de
entendimentos discrepantes entre a Primeira e a Segunda
Seções no que tange à aplicação do parágrafo único do art.
42 do CDC, dispositivo que incide sobre todas as relações de
consumo, privadas ou públicas, individuais ou coletivas.
8. "Conhecidos os embargos de divergência, a decisão a ser
adotada não se restringe às teses suscitadas nos arestos em
confronto - recorrido e paradigma -, sendo possível aplicar-
se uma terceira tese, pois cabe a Seção ou Corte aplicar o
direito à espécie" (EREsp 513.608/RS, Rel. Ministro João
Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe 27.11.2008). No
mesmo sentido: "O exame dos embargos de divergência não
se restringe às teses em confronto do acórdão embargado e
do acórdão paradigma acerca da questão federal
controvertida, podendo ser adotada uma terceira posição,
caso prevalente" (EREsp 475.566/PR, Rel. Ministro Teori
Albino Zavascki, Primeira Seção, DJ 13/9/2004). Outros
precedentes: EREsp 130.605/DF, Rel. Ministro Ruy Rosado
de Aguiar, Segunda Seção, DJ 23/4/2001; e AgRg nos EREsp
901.919/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, Terceira Seção, DJe
21/9/2010. HERMENÊUTICA DAS NORMAS DE PROTEÇÃO
DO CONSUMIDOR E O ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC
9. Em harmonia com os ditames maiores do Estado Social
de Direito, na tutela de sujeitos vulneráveis, assim como de
bens, interesses e direitos supraindividuais, ao
administrador e ao juiz incumbe exercitar o diálogo das
fontes, de modo a - fieis ao espírito, ratio e princípios do
microssistema ou da norma - realizarem material e não
apenas formalmente os objetivos cogentes, mesmo que
implícitos, abonados pelo texto legal. Logo, interpretação e
integração de preceitos legais e regulamentares de
proteção do consumidor, codificados ou não, submetem-se
a postulado hermenêutico de ordem pública segundo o
qual, em caso de dúvida ou lacuna, o entendimento
administrativo e o judicial devem expressar o
posicionamento mais favorável à real superação da
vulnerabilidade ou mais condutivo à tutela efetiva dos bens,
interesses e direitos em questão. Em síntese, não pode "ser
aceita interpretação que contradiga as diretrizes do próprio
Código, baseado nos princípios do reconhecimento da
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vulnerabilidade do consumidor e da facilitação de sua


defesa em juízo" (REsp 1.243.887/PR, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Corte Especial, DJe 12/12/2011). Na mesma
linha da interpretação favorável ao consumidor: AgRg no
AREsp 708.082/DF, Rel. Ministro João Otávio de Noronha,
Terceira Turma, DJe 26/2/2016;
REsp 1.726.225/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira
Turma, DJe 24/9/2018; e REsp 1.106.827/SP, Rel. Ministro
Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 23/10/2012. Confira-se
também: "O mandamento constitucional de proteção do
consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico,
em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do
CDC" (REsp 1.009.591/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi,
Terceira Turma, DJe 23/8/2010).
10. A presente divergência deve ser solucionada à luz do
princípio da vulnerabilidade e do princípio da boa-fé
objetiva, inarredável diretriz dual de hermenêutica e
implementação de todo o CDC e de qualquer norma de
proteção do consumidor. O art. 42, parágrafo único, do CDC
faz menção a engano e nega a devolução em dobro
somente se for ele justificável. Ou seja, a conduta-base ou
ponto de partida para a repetição dobrada de indébito é o
engano do fornecedor. Como argumento de defesa, a
justificabilidade (= legitimidade) do engano, para afastar a
devolução em dobro, insere-se no domínio da causalidade, e
não no domínio da culpabilidade, pois esta se resolve, sem
apelo ao elemento volitivo, pelo prisma da boa-fé objetiva.
11. Na hipótese dos autos, necessário, para fins de parcial
modulação temporal de efeitos, fazer distinção entre
contratos de serviços públicos e contratos estritamente
privados, sem intervenção do Estado ou de concessionárias.
REPOSICIONAMENTO PESSOAL DO RELATOR PARA O
ACÓRDÃO SOBRE A MATÉRIA 12. Ao apresentar a tese a
seguir exposta, esclarece-se que o Relator para o acórdão
reposiciona-se a respeito dos critérios do parágrafo único do
art. 42 do CDC, de modo a reconhecer que a repetição de
indébito deve ser dobrada quando ausente a boa-fé objetiva
do fornecedor na cobrança realizada. É adotada, pois, a
posição que se formou na Corte Especial, lastreada no
princípio da boa-fé objetiva e consequente descasamento de
elemento volitivo, consoante Voto-Vista do Ministro Luis
Felipe Salomão e manifestações apresentadas pelos
eminentes Pares, na esteira de intensos e ricos debates nas

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várias sessões em que o tema foi analisado. Realça-se,


quanto a esses últimos, trecho do Voto do Ministro Og
Fernandes: "A restituição em dobro de indébito (parágrafo
único do art. 42 do CDC) independe da natureza do
elemento volitivo do agente que cobrou o valor indevido,
revelando-se cabível quando a cobrança indevida
consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva".
CONTRATOS QUE ENVOLVAM O ESTADO OU SUAS
CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS 13. Na
interpretação do parágrafo único do art. 42 do CDC, deve
prevalecer o princípio da boa-fé objetiva, métrica
hermenêutica que dispensa a qualificação jurídica do
elemento volitivo da conduta do fornecedor.
14. A esse respeito, o entendimento prevalente nas Turmas
da Primeira Seção do STJ é o de dispensar a exigência de
dolo, posição sem dúvida inspirada na preeminência e
inafastabilidade do princípio da vulnerabilidade do
consumidor e do princípio da boa-fé objetiva.
A propósito: REsp 1.085.947/SP, Rel. Ministro Francisco
Falcão, Primeira Turma, DJe 12/11/2008; AgRg no REsp
1.363.177/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda
Turma, DJe 24/5/2013; REsp 1.300.032/RJ, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 13/3/2013;
AgRg no REsp 1.307.666/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, DJe 12/3/2013; AgRg no REsp
1.376.770/RS, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma,
DJe 13/9/2016; AgRg no REsp 1.516.814/RS, Rel. Ministro
Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 25/8/2015; AgRg no
REsp 1.158.038/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,
Primeira Turma, DJe 3/5/2010; AgInt no REsp 1.605.448/SP,
Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe
13/12/2017; AgRg no AgRg no AREsp 550.660/RJ, Rel.
Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe
15/12/2015; AgRg no AREsp 723.170/RS, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 28/9/2015; AgRg
no Ag 1.400.388/RJ, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira
Turma, DJe 10/11/2014.
15. Na Segunda Seção há também precedente que rechaça
o requisito do dolo para repetição do indébito em dobro:
"Somente na presença de má-fé ou culpa o pagamento em
dobro é devido" (AgRg no AREsp 162.232/RJ, Rel. Ministro
Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 20.8.2013).

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16. Agrega-se ao raciocínio construído na Primeira Seção a


regra geral de que a responsabilidade do Estado e das
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço
público é objetiva em relação a danos causados a terceiros
(art. 37, § 6º, da CF/1988).
Cito precedentes do STJ sobre o tema: REsp 1.299.900/RJ,
Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe
13/3/2015; AgInt no REsp 1.581.961/SP, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 14/9/2016;
AgInt no REsp 1.711.214/MT, Rel. Ministro Francisco Falcão,
Segunda Turma, DJe 18/11/2020; REsp 1.736.039/SP, Rel.
Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 7/6/2018;
AgInt no AREsp 1.238.182/PE, Rel. Ministro Og Fernandes,
Segunda Turma, DJe 17/9/2018; AgInt no AREsp
937.384/PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma,
DJe 26/6/2018; REsp 1.268.743/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, DJe 7/4/2014; REsp 1.038.259/SP,
Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 22/2/2018.
17. Quanto ao art. 37, § 6º, da Carta Magna, o Supremo
Tribunal Federal sedimentou, sob o rito da Repercussão
Geral, a posição de que "a responsabilidade civil das
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço
público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-
usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da
Constituição Federal" (RE 591.874, Relator Ministro Ricardo
Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 26.8.2009,
Repercussão Geral - Mérito, DJe 18.12.2009). Na mesma
linha: ARE 1.043.232 AgR, Relator Ministro Alexandre de
Moraes, Primeira Turma, DJe 13/9/2017; RE 598.356,
Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe
1º/8/2018; ARE 1.046.474 AgR, Relator Ministro Celso de
Mello, Segunda Turma, DJe 12/9/2017; e ARE 886.570 ED,
Relator Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe
22/6/2017.
18. Ora, se a regra da responsabilidade civil objetiva impera,
universalmente, em prestações de serviço público, como
admitir que, nas relações de consumo - na presença de
sujeito (consumidor) caracterizado ope legis como
vulnerável (CDC, art. 4º, I) -, o paradigma jurídico seja o da
responsabilidade subjetiva (com dolo ou culpa)? Seria
contrassenso atribuir tal privilégio ao fornecedor, mormente
por ser fato notório que dezenas de milhões dos
destinatários finais dos serviços públicos, afligidos por

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cobranças indevidas, personificam não só sujeitos


vulneráveis, como também sujeitos indefesos e
hipossuficientes econômica e juridicamente, ou seja,
carentes em sentido lato, destituídos de meios financeiros,
de informação e de acesso à justiça.
19. Compreensão distinta, centrada na necessidade de
prova de elemento volitivo, na realidade inviabiliza a
devolução em dobro, p.
ex., de pacotes de serviços telefônicos jamais solicitados
pelo consumidor, bastando ao fornecedor invocar uma
justificativa qualquer para seu engano. Nas condições do
mercado de consumo massificado, impingir ao consumidor
prova de dolo ou culpa corresponde a castigá-lo com ônus
incompatível com os princípios da vulnerabilidade e da boa-
fé objetiva, legitimando, ao contrário dos cânones do
microssistema, verdadeira prova diabólica, o que contraria
frontalmente a filosofia e ratio eticossocial do CDC.
Assim, a expressão "salvo hipótese de engano justificável"
do art. 42, parágrafo único, do CDC deve ser apreendida
como elemento de causalidade, e não como elemento de
culpabilidade. CONTRATOS QUE NÃO ENVOLVAM
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS 20. Como se sabe,
recursos em demandas que envolvam contratos sem
natureza pública, como os bancários, de seguro,
imobiliários, de planos de saúde, entre outros, são de
competência da Segunda Seção.
Tendo em vista a controvérsia existente nos contratos de
natureza bancária, o eminente Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino submeteu o REsp 1.517.888/SP ao rito dos
recursos repetitivos, no âmbito da Corte Especial, ainda
pendente de julgamento. Em sessão da Corte Especial que
examinava os EAREsp 622.897/RS, deliberou-se dar
continuação ao julgamento dos Embargos de Divergência
sobre o mesmo tema, sem necessidade de sobrestar o feito
em virtude da afetação da matéria como repetitivo.
21. Tal qual ocorre nos contratos de consumo de serviços
públicos, nas modalidades contratuais estritamente
privadas também deve prevalecer a interpretação de que a
repetição de indébito deve ser dobrada quando ausente a
boa-fé objetiva do fornecedor na cobrança realizada. Ou
seja, atribui-se ao engano justificável a natureza de variável
da equação de causalidade, e não de elemento de
culpabilidade, donde irrelevante a natureza volitiva da
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conduta que levou ao indébito. RESUMO DA PROPOSTA DE


TESE RESOLUTIVA DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL 22. A
proposta aqui trazida - que procura incorporar, tanto
quanto possível, o mosaico das posições, nem sempre
convergentes, dos Ministros MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA, NANCY ANDRIGHI, LUIS FELIPE SALOMÃO, OG
FERNANDES, JOÃO OTÁVIO DE NORONHA E RAUL ARAÚJO -
consiste em reconhecer a irrelevância da natureza volitiva
da conduta (se dolosa ou culposa) que deu causa à
cobrança indevida contra o consumidor, para fins da
devolução em dobro a que refere o parágrafo único do art.
42 do CDC, e fixar como parâmetro excludente da repetição
dobrada a boa-fé objetiva do fornecedor (ônus da defesa)
para apurar, no âmbito da causalidade, o engano
justificável da cobrança.
23. Registram-se trechos dos Votos proferidos que
contribuíram diretamente ou serviram de inspiração para a
posição aqui adotada (grifos acrescentados):
23.1. MINISTRA NANCY ANDRIGHI: "O requisito da
comprovação da má-fé não consta do art. 42, parágrafo
único, do CDC, nem em qualquer outro dispositivo da
legislação consumerista. A parte final da mencionada regra
- 'salvo hipótese de engano justificável' - não pode ser
compreendida como necessidade de prova do elemento
anímico do fornecedor."
23.2. MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA: "Os
requisitos legais para a repetição em dobro na relação de
consumo são a cobrança indevida, o pagamento em excesso
e a inexistência de engano justificável do fornecedor. A
exigência de indícios mínimos de má-fé objetiva do
fornecedor é requisito não previsto na lei e, a toda
evidência, prejudica a parte frágil da relação."
23.3. MINISTRO OG FERNANDES: "A restituição em dobro de
indébito (parágrafo único do art. 42 do CDC) independe da
natureza do elemento volitivo do agente que cobrou o valor
indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida
consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva."
23.4. MINISTRO RAUL ARAÚJO: "Para a aplicação da sanção
civil prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, é
necessária a caracterização de conduta contrária à boa-fé
objetiva para justificar a reprimenda civil de imposição da
devolução em dobro dos valores cobrados indevidamente."

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23.5. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: "O código


consumerista introduziu novidade no ordenamento jurídico
brasileiro, ao adotar a concepção objetiva do abuso do
direito, que se traduz em uma cláusula geral de proteção da
lealdade e da confiança nas relações jurídicas, prescindindo
da verificação da intenção do agente - dolo ou culpa - para
caracterização de uma conduta como abusiva (...) Não há
que se perquirir sobre a existência de dolo ou culpa do
fornecedor, mas, objetivamente, verificar se o
engano/equívoco/erro na cobrança era ou não justificável."
24. Sob o influxo da proposição do Ministro Luis Felipe
Salomão, acima transcrita, e das ideias teórico-dogmáticas
extraídas dos Votos das Ministras Nancy Andrighi e Maria
Thereza de Assis Moura e dos Ministros Og Fernandes, João
Otávio de Noronha e Raul Araújo, fica assim definida a
resolução da controvérsia: a repetição em dobro, prevista
no parágrafo único do art. 42 do CDC, é cabível quando a
cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-
fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da
natureza do elemento volitivo. PARCIAL MODULAÇÃO
TEMPORAL DOS EFEITOS DA PRESENTE DECISÃO 25. O art.
927, § 3º, do CPC/2015 prevê a possibilidade de modulação
de efeitos não somente quando alterada a orientação
firmada em julgamento de recursos repetitivos, mas
também quando modificada jurisprudência dominante no
STF e nos tribunais superiores.
26. Na hipótese aqui tratada, a jurisprudência da Segunda
Seção, relativa a contratos estritamente privados, seguiu
compreensão (critério volitivo doloso da cobrança indevida)
que, com o presente julgamento, passa a ser
completamente superada, o que faz sobressair a
necessidade de privilegiar os princípios da segurança
jurídica e da proteção da confiança dos jurisdicionados.
27. Parece prudente e justo, portanto, que se deva modular
os efeitos da presente decisão, de maneira que o
entendimento aqui fixado seja aplicado aos indébitos de
natureza contratual não pública cobrados após a data da
publicação deste acórdão. TESE FINAL 28. Com essas
considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência
para, no mérito, fixar-se a seguinte tese: A REPETIÇÃO EM
DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO
CDC, É CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA
CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ

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OBJETIVA, OU SEJA, DEVE OCORRER INDEPENDENTEMENTE


DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO. MODULAÇÃO DOS
EFEITOS 29. Impõe-se MODULAR OS EFEITOS da presente
decisão para que o entendimento aqui fixado - quanto a
indébitos não decorrentes de prestação de serviço público -
se aplique somente a cobranças realizadas após a data da
publicação do presente acórdão. RESOLUÇÃO DO CASO
CONCRETO 30. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido
fixou como requisito a má-fé, para fins do parágrafo único
do art. 42 do CDC, em indébito decorrente de contrato de
prestação de serviço público de telefonia, o que está
dissonante da compreensão aqui fixada.
Impõe-se a devolução em dobro do indébito. CONCLUSÃO
31. Embargos de Divergência providos.
(EREsp n. 1.413.542/RS, relatora Ministra Maria Thereza de
Assis Moura, relator para acórdão Ministro Herman
Benjamin, Corte Especial, julgado em 21/10/2020, DJe de
30/3/2021.)

Portanto, em ambos casos definidos na segunda tese, possível a aplicação


modulada do precedente vinculante acima referenciado, ou seja, a repetição simples para
pagamentos a maior efetivados até o termo ad quem de 31/03/2021 e, dobrada, após tal
marco temporal, argumento que proponho seja agregado na tese apresentada, até como
corolário da necessidade da aplicação do tema em comento, na medida em que não
encontro fundamentos para distinção ou superação das bases de fato e de direito nele
assentadas, pena de fixação de tese em desacordo com as suas lindes.

Nesta medida, apresento a presente divergência em relação a repetição de


indébito nos moldes da fundamentação acima, ou seja, de forma simples para pagamentos
a maior efetivados até 31/03/2021 e, de forma dobrada, para pagamentos verificado a
maior após aquele marco.

Como corolário do acima consignado, por questão de coerência com a


divergência apresentada, entendo mantido o julgamento da causa piloto em relação a
aplicação da repetição de débito dos valores nela estabelecidos na forma do precedente
suscitado, ou seja, devolução simples,por adstrição ao pedido.

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Igual modo, também trago divergência em relação ao julgamento da causa


piloto em relação aos danos morais nela pretendidos, já que os comemorativos de fato
relatados dão conta de recebimento de montante pela parte apelante por conta de
benefício previdenciário de montante não muito distante do conceito legal do denominado
mínimo existencial para o sustento pessoal e familiar da parte recorrente, dado que, a meu
juízo, pedindo vênia ao entendimento contido no voto condutor, encerra a concretização
de ofensa a direito da personalidade da vítima, na medida em que o desconto efetivado
traz em si supressão de acesso de verba alimentar e essencial a parte, dado constante dos
descontos não impugnados de lado a lado, o que consagra a incidência de ato ilícito apto a
configurar lesão a ser reparada no plano moral, ainda que decorrente de contratação alvo
de adesão pela parte autora hipervulnerável, mas de forma viciada em relação as bases de
informação e erro contidas do incidente cujo julgamento conjunto neste momento se dá, as
quais se reconhece como incidentes no caso concreto.

Nesta medida, novamente me valendo do entendimento da 11ª Câmara


Cível que integro, possível a condenação da parte recorrida em indenização por danos
morais em favor da parte autora no montante de R$.8.000,00, valor a ser acrescido de
correção monetária pela variação do IGP-m/FGV desde a presente data, além do acréscimo
de juros de mora de 12% ao ano a contar da citação, montante que considera o tempo da
efetivação dos descontos reclamados, inação do banco demandado em solver a questão no
plano administrativo, condição econômica de ambas as partes e a origem contratual do
ilícito verificado. Neste sentido é o posicionamento da jurisprudência de alguns órgãos
integrantes desta Corte:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO E DESCONTOS C/C PEDIDO DE TUTELA DE
URGÊNCIA ANTECIPADA, REPETIÇÃO DO INDÉBITO E
CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS E MATERIAIS. RESERVA
DE MARGEM CONSIGNÁVEL. ATENDIDO O PEDIDO DE
ANULAÇÃO DO CONTRATO. ABUSIVIDADE VERIFICADA.
DEVER DE PRESTAR INFORMAÇÃO CLARA E ADEQUADA
DESCUMPRIDO. TODAVIA, DETERMINADA A CONVERSÃO
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DO EMPRÉSTIMO DE CARTÃO CONSIGNADO (RMC) PARA


EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO, DIANTE DO
INTERESSE DA PARTE EM CELEBRAR CONTRATO DESSA
NATUREZA. REPETIÇÃO EM DOBRO. O CONSUMIDOR
COBRADO EM QUANTIA INDEVIDA FAZ JUS À REPETIÇÃO
EM DOBRO DO INDÉBITO, EXCETO SE OCORRER ENGANO
JUSTIFICÁVEL, CUJO ÔNUS DA PROVA É DA INSTITUIÇÃO
FINANCEIRA. DE ACORDO COM O ENTENDIMENTO DESTA
CÂMARA, A RESTITUIÇÃO DEVERÁ SER EM DOBRO.
INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 42 DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. DANO MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM
FIXADO. REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA. À
UNANIMIDADE, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO
RECURSO.(Apelação Cível, Nº 50161665920228210141,
Vigésima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Katia Elenise Oliveira da Silva, Julgado em: 20-06-
2023)

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


DE RESTITUIÇÃO DE VALORES CUMULADA COM
INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CONTRATO DE CARTÃO
DE CRÉDITO CONSIGNADO EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO.
DESCONTOS A TÍTULO DE RESERVA DE MARGEM
CONSIGNÁVEL – RMC. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS (Súmula
n. 297 do STJ). DEVER DE PRESTAR INFORMAÇÃO CLARA E
ADEQUADA DESCUMPRIDO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO
SERVIÇO. CONVERSÃO DO EMPRÉSTIMO DE CARTÃO
CONSIGNADO (RMC) PARA EMPRÉSTIMO PESSOAL
CONSIGNADO. REVISÃO DOS DÉBITOS. Inobstante tenha
sido comprovada a contratação de empréstimo consignado
pela modalidade cartão de crédito, autorizando a
constituição da Reserva de Margem Consignável (RMC),
está demonstrada a prática comercial abusiva, uma vez que
o autor jamais utilizou o serviço. Correta a conversão do
empréstimo de cartão de crédito consignado (RMC) para
empréstimo pessoal consignado, com revisão dos débitos
utilizando a taxa média anual de juros remuneratórios
divulgados pelo BACEN para contratados de empréstimos
consignado pessoa física, vigente na data dos saques.
Autorizado o prosseguimento dos descontos se constatado
débito ou repetição de valores em favor do consumidor, na
hipótese inversa, calculada em liquidação de sentença.

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REPETIÇÃO EM DOBRO. O consumidor cobrado em quantia


indevida faz jus à repetição em dobro do indébito, exceto se
ocorrer engano justificável, cujo ônus da prova é da
instituição financeira. De acordo com o entendimento desta
Câmara a restituição deverá ser em dobro. Inteligência do
art. 42 do CDC. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.
CABIMENTO. As instituições bancárias respondem
objetivamente pelos danos causados por vício na prestação
de serviços, ressalvada a culpa exclusiva do consumidor ou
de terceiro, consoante art. 14 do Código de Defesa do
Consumidor. A ofensa a direito da personalidade e a
privação ou diminuição de bem jurídico decorrente da falha
na prestação do serviço pela instituição financeira pode
acarretar dano moral. Verificada a violação dos princípios
da informação e da boa-fé objetiva - que gerou descontos
indevidos no benefício previdenciário da parte autora, com
redução dos recursos disponíveis para o seu sustento - e
diante da necessidade de ingressar com a presente
demanda para ser reconhecido o vício de vontade na
contratação, com a consequente restituição de valores,
mostra-se caracterizado o dano moral. MONTANTE
RESSARCITÓRIO. QUANTIFICAÇÃO. ARBITRAMENTO
EQUITATIVO. O valor da indenização é fixado de forma
equitativa, analisando o interesse jurídico lesado e as
circunstâncias do caso concreto, amparada nos princípios
da razoabilidade e da proporcionalidade. O método bifásico,
adotado pelo e. STJ, para fixação do quantum indenizatório,
permite um arbitramento equitativo. Na primeira fase,
estabelece o valor básico da indenização considerando o
interesse jurídico lesado, consoante entendimento
jurisprudencial em situações similares. Na segunda fase, fixa
o valor definitivo da indenização conforme as peculiaridades
do caso. Manutenção quantum indenizatório. APELAÇÃO
PROVIDA.(Apelação Cível, Nº 50020233820218210032,
Vigésima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 25-10-2022)

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA,
RESTITUIÇÃO DE VALORES EM DOBRO C/C DANOS
EXTRAPATRIMONIAIS. RMC. CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EVIDENCIADA. SENTENÇA RATIFICADA. AS PROVAS

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CONSTANTES NO FEITO CORROBORAM A ALEGAÇÃO DA


AUTORA DE QUE FOI INDUZIDA EM ERRO PELA PREPOSTA
DO BANCO NA CONTRATAÇÃO DO CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO, EIS QUE ACREDITAVA QUE TRATAVA-SE DE
MONTANTE A SER RESTITUÍDO PELA RETENÇÃO INDEVIDA
DE VALORES PELO BANCO. ASSIM, IMPOSITIVA A
DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DO DÉBITO. MANTIDO O
DEFERIMENTO DA RESTITUIÇÃO EM DOBRO DOS VALORES
DESCONTADOS INDEVIDAMENTE DO BENEFÍCIO
PREVIDENCIÁRIO DA DEMANDANTE, EIS QUE EVIDENCIADA
A MÁ-FÉ NA CONDUTA ADOTADA PELO BANCO. DANO
MORAL CONFIGURADO. VERBA HONORÁRIA MAJORADA
(ART. 85, § 11 DO CPC). APELAÇÃO IMPROVIDA.(Apelação
Cível, Nº 50060464520218210026, Décima Primeira Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Guinther Spode,
Julgado em: 23-08-2023)

Deixo de acolher a integralidade do pedido contido na inicial a respeito do


tema (dano moral), eis que fora das bases de fato e direito acima explicitadas, pena de
violação aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, sem que encerre imposição
de sucumbência em desfavor da parte autora por aplicação da Súmula 326 do STJ.

Por decorrência, considerando o decaimento mínimo da parte autora na


causa piloto, imputo a parte ré o pagamento da integralidade das custas processuais
incidentes naqueles autos e honorários do patrono da parte autora que fixo em 15% do
valor atualizado da condenação pecuniária fixada em desfavor do banco, forte no disposto
no art. 85, § 2º, do CPC, relevando a complexidade da causa, tempo de tramitação do
processo e trabalho desenvolvido ao seu deslinde.

FACE AO EXPOSTO, VOTO por acolher o incidente de resolução de


demandas repetitivas de acordo com as teses fixadas no voto condutor MMª.
Desembargadora Relatora, a exceção da questão da repetição de indébito a ser aplicada
nos moldes da fundamentação da presente divergência, bem como ainda para julgar
procedente a causa piloto conforme as disposições de fato e de direito acima explicitadas.
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DES. JOSÉ VINÍCIUS ANDRADE JAPPUR

Colegas!

Acompanho integralmente o voto da ilustre Relatora, Desa. Mylene Maria


Michel, que demonstrou todo o seu conhecimento acerca da matéria, apresentando um
judicioso voto com muita profundidade e sapiência. Os fundamentos ali exarados dão
ingente concretude ao Código de Defesa do Consumidor, que, sem dúvida, adveio, a partir
do comando constitucional, com desiderato de intervir nas relações de consumo para a
proteção do sujeito vulnerável, desigual na relação com o fornecedor com vistas a manter a
isonomia e equilíbrio dessa relação consumerista.

Lembro que a Constituição Federal de 1988, de maneira inovadora,


introduziu a figura do consumidor como agente econômico e social, estabelecendo de
forma expressa como princípio da ordem econômica “defesa do consumidor” (art. 170, V),
possibilitando a intervenção do Estado nas relações privadas, de modo a garantir os direitos
fundamentais dos cidadãos, muito debatido no denso voto.

Por este viés constitucional, a defesa do consumidor não é incompatível


com a livre iniciativa e o crescimento econômico. Ambos coexistem como princípios da
ordem econômica constitucional, consoante determina o disposto no art. 170, da CF. Logo,
o CDC visa compatibilizar a defesa do consumidor com a livre iniciativa, impondo ao
empresário o respeito aos direitos do consumidor.

O vetor da decisão acompanhada segue essa lógica na concretude do caso.

DES. LUÍS ANTÔNIO BEHRENSDORF GOMES DA SILVA

Eminentes Colegas.

Inicio apresentando reconhecimento à ilustrada Relatora pelo brilhante


voto, enfrentando com sensibilidade e comprometimento esse tema que está afligindo a
rotina de julgamentos de diversas Câmaras deste Tribunal de Justiça.
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Os contratos de cartão de crédito com margem consignada reiteradamente


não vêm sendo compreendidos em sua sistemática, gerando no consumidor expectativa
que vem sendo quebrada. Trata-se, como já referido pelos votos antecedentes, de
contratantes absolutamente vulneráveis, com visível dificuldade de compreensão do
mecanismo de funcionamento, em especial no concernente à aferição das conveniências de
pagamento mínimo, via consignação, conduzindo, no mais das vezes, à eternização da
relação creditícia.

Portanto, a exigência de cuidado com a plenitude do dever de informação,


observado o grupo vulnerável envolvido, se revela crucial para a preservação de direitos
inerentes.

Neste sentido, tenho que a proposta trazida à apreciação pela eminente


Relatora se revela juridicamente perfeita, assim como produz equilíbrio entre contratantes,
o que é fundamental na relação contratual.

No que toca à devolução simples, manifesto-me igualmente em aderência à


proposta da Relatora.

Penso que a sanção prevista no artigo 42, § único, do CDC está direcionada
ao fornecedor que atua ao arrepio da contratualidade ajustada, exigindo valores que são
indevidos. Na hipótese em apreço, saliento que há contrato – anulável - que justifica a
cobrança e, até que venha a ser descaracterizado, os pagamentos derivados de
consignação estavam pautados pelas regras avençadas pelas partes. Identifico, portanto,
que o fornecedor, apesar de laborar na maioria dos casos com falha no dever de
informação, tinha na operação de cobrança o pressuposto da boa-fé objetiva, elemento
trazido pelo STJ como requisito para sustentar a devolução simples. Ou seja, a instituição
financeira – até porque não sabe quem se sente prejudicado ou desinformado pela
evolução da relação contratual -, não pode ser sancionada a devolver em dobro se cumpria
rigorosamente os termos da avença firmada.

Acrescento que a definição trazida no EREsp n. 1.413.542-RS, que embasa


parte dos fundamentos da divergência, tinha como substrato cobrança de valores não

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contratados em serviço de telefonia, razão pela qual, efetivamente, não socorre a


salvaguarda do ‘engano justificável’.

Ademais, no mesmo acórdão, no voto do Ministro Luis Felipe Salomão


(citado pelo Relator como um dos inspiradores do rumo traçado na decisão) consta o
seguinte trecho, bastante elucidativo em relação ao tema aqui ventilado:

De acordo com as Turmas de Direito Privado, portanto, o


"engano justificável", na cobrança de dívida de consumo, não afasta a boa-
fé objetiva, mas, a contrario sensu, o "engano injustificável" caracteriza a
má-fé do fornecedor, que "erra" quando não poderia "errar", tendo em
vista as cautelas que lhe são exigidas por força de sua posição jurídica
privilegiada.

Assim, a falta de cuidado (diligência, zelo) imposto ao


fornecedor, quando da cobrança da dívida, é que qualifica o engano como
injustificável e, consequentemente, caracteriza a conduta contrária à boa-
fé objetiva, ou seja, a má-fé.

Nesse sentido, não há que perquirir a existência de dolo


ou culpa do fornecedor, mas, objetivamente, verificar se o
engano/equívoco/erro na cobrança era ou não justificável.

Deve-se analisar, no caso concreto, se a cobrança indevida


decorreu ou não de conduta deliberada – inobservância do dever anexo de
lealdade – ou mesmo leviana do fornecedor, ao descumprir seu dever
anexo de proteção (cuidado) para com a integridade pessoal e patrimonial
do consumidor.

Sob tal ótica, há inúmeros precedentes das Turmas de


Direito Privado que pugnam pela inexistência de má-fé do fornecedor – ou
seja, inexistência de conduta contrária à boa-fé objetiva e, portanto,
configurada hipótese de engano justificável –, quando: (i) o pagamento

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tiver sido efetuado em decorrência de cláusula contratual posteriormente


declarada nula; ou (ii) houver controvérsia judicial em relação ao objeto da
cobrança indevida.

E mais adiante, refere com bastante clareza:

4.4. Assim, em resumo, a fim de afastar o aparente conflito


entre as Turmas de Direito Privado e de Direito Público e,
consequentemente, manter estável e coerente a jurisprudência desta
Corte, prestigiando-se o postulado da segurança jurídica, nos termos do
artigo 926 do CPC de 2015, creio seja fundamental estabelecer as
seguintes premissas sobre o tema em julgamento:

(i) a sanção civil de devolução em dobro, encartada no


parágrafo único do artigo 42 do CDC, revela-se possível quando a
cobrança indevida consubstanciar má-fé, compreendida esta como
conduta contrária à boa-fé objetiva, seja por força de inobservância do
dever anexo de lealdade – ato deliberado, com intuito fraudulento e
malicioso, de prejudicar o consumidor –, ou do dever anexo de proteção –
ato que denote leviandade em relação às cautelas exigidas no sentido de
preservação da integridade pessoal e patrimonial do vulnerável;

(ii) nessa perspectiva, caberá ao fornecedor, na


contestação ou na fase instrutória do processo, demonstrar que não
atuou em contrariedade à boa-fé objetiva, isto é, que não agiu de forma
desleal ou descuidada, pois o engano cometido era, sim, justificável; e

(iii) se houver divergência jurisprudencial em relação ao


objeto da cobrança indevida ou caso a cláusula contratual em que se
baseie for posteriormente declarada nula, configurar-se-á hipótese de

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engano justificável, excludente apta a afastar a incidência da sanção civil de


repetição em dobro do indébito. (sublinhei)

Portanto, vejo como adequada à boa-fé objetiva a conduta da instituição


financeira demandada, nos exatos limites traçados pela própria decisão paradigmática, na
medida em que a cobrança estava lastreada no contrato. A cobrança, àquela altura,
portanto, era agasalhada pelo legítimo exercício de direito, vigente até o momento de
eventual provimento judicial que declare anulada a disposição contratual.

De resto, não há uma linha sequer, no extenso acórdão, no sentido de


indicar que a existência de saldo credor, derivada de reformulação na modalidade
contratual originariamente firmada entre as partes, determine a aplicação da referida
decisão paradigmática.

Nestes termos, acompanho o voto da digna Relatora, na compreensão de


que a remodelação do contrato para a empréstimo consignado enseja a compensação
simples do que já foi adimplido e, havendo saldo em favor do consumidor, opera-se a
devolução simples.

Por fim, registro igualmente compreender que não se pode, pela


reformulação da fórmula contratual, retirar a reparação de danos morais in re ipsa.

Como já mencionado, absolutamente conhecida a precariedade financeira


dos consumidores recorrentes à espécie contratual do cartão com margem consignada.
Contudo, vislumbravam na concessão do empréstimo consignado (modalidade que
afirmam pretender) certo alívio para enfrentar suas carências. E neste sentido,
naturalmente se dispunham a sacrificar parcialmente seus parcos recursos mensais para
saldar a dívida contraída. Ressalto tal aspecto para que se examine com nitidez o quadro
existente. A contratação era uma necessidade do consumidor, premido pelos infortúnios da
vida. A disponibilização de recursos, portanto, ao início do contrato, amenizou o quadro de
precariedade, atraindo natural e consentido comprometimento financeiro para o futuro.
Nessa perspectiva, ainda que a modalidade tenha gerado insatisfação financeira, tanto que

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acorreu à intervenção do Poder Judiciário, não se pode ter como pressuposto que a
contratação em modalidade diversa tenha provocado, per si, dano extrapatrimonial. O
encaminhamento proposto, a meu sentir, traz adequada e justa solução, impondo ao
consumidor que, no aspecto, produza prova mínima dos danos extrapatrimoniais que alega
ter sofrido.

Saliento que a relação contratual que se põe ao largo do tempo, em boa


parte das vezes, traz desacertos e incompreensões. Contudo, tenho que seria equivocado
conceber como desnecessária a prova do dano alegado nestes casos, limitando seu
deferimento à mera configuração da falha do dever de informação. Note-se que, inclusive,
este descumprimento informacional pode ocorrer em outras espécies de contrato, com
empresas de fora do mercado financeiro (telefonia, concessionárias de energia elétrica ou
mesmo lojas de varejo), sem que se cogite de reconhecimento de danos morais in re ipsa.
No direito brasileiro, a regra é a necessidade de comprovação do dano, apenas dispensada
quando o prejuízo pode ser razoavelmente presumido.

Finalizo, portanto, registrando acompanhar em sua integralidade o


brilhante voto lançado pela Relatora.

DES. AMADEO HENRIQUE RAMELLA BUTTELLI

Sr. Presidente, eminentes colegas, na linha de entendimento dos


julgamentos aplicados na 19ª Câmara Cível a respeito da matéria, estou acompanhando, na
íntegra, o bem lançado voto da eminente relatora, Des. Mylene Maria Michel, que bem
analisou as questões necessárias à solução do presente Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas – IRDR.

DES. JOÃO PEDRO CAVALLI JÚNIOR

Eminentes Colegas.

Rendendo homenagens ao percuciente e minucioso voto da insigne


Relatora, acompanho-o na integralidade.

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DES. ROBERTO JOSÉ LUDWIG

Eminentes Colegas.

1. Considerações iniciais

A questão trazida a debate - e tão judiciosamente enfrentada no erudito


voto da eminente relatora - aflora em grande quantidade de processos, havendo efetiva
conveniência em que receba um tratamento uniforme pela jurisprudência deste tribunal e
possa, desse modo, orientar a aplicação em primeiro grau e, ainda, contribuir para a
segurança jurídica e a justiça no âmbito das relações de consumo.

Pela relevância do tema e com o intuito de contribuir para o debate através


da reflexão e da experiência como julgador, entendi fazer uma declaração de voto,
acompanhando a divergência iniciada pelo e. Vogal Des. Ricardo Pippi Schimidt, e que deve
ser lida sobretudo como esforço de complementação com o escopo do aperfeiçoamento da
solução alvitrada, com a qual concordo em maior parte, seja nas teses propostas, seja na
causa piloto, embora entenda, respeitosamente, que levam a algumas diferenças nas
conclusões.

Tenho reflexões a fazer nos seguintes tópicos:

(1) A necessidade de ponderação, já ressaltada pelo voto da e. relatora, e


da forma adequada de que seja feita, considerando-se que o legislador
já realizou importante configuração da relação de consumo, conciliando
o direito fundamental de liberdade com o bem social da proteção dos
consumidores, especialmente os vulneráveis;

(2) Destacar que a cláusula geral da boa-fé e o correlato princípio da


proteção da confiança representam o locus apropriado para que o
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estado-juiz complemente a formação da norma jurídica, utilizando da


ponderação de princípios opostos, o que coincide com o ponto de
ancoragem do dever legal de informação, a ser exigido concretamente
de forma acentuadamente mais grave do fornecedor ante a assimetria
da relação;

(3) Recordar que a análise da boa-fé também se estende ao consumidor,


que não está autorizado a agir de modo contraditório (p. ex., tomando
crédito, usando de funcionalidades próprias do cartão e depois pedindo
a conversão em mútuo), ou a realizar pedidos inverossímeis ou mesmo
a agir em litigância predatória;

(4) Frisar a imprescindibilidade da consideração do diálogo de fontes, o


que exige que, para a anulação do contrato de consumo por violação do
dever de informação, a devolução de valores pagos em erro substancial
e cobrados pelo fornecedor indevidamente - com base em contrato
anulável (ou nulo de pleno direito à luz do CDC) e em violação à boa-fé
objetiva - seja sancionada pela dobra do § ún. do art. 42 do CDC, nos
termos do precedente firmado pelo STJ nos Embargos de Divergência
no Recurso Especial nº 1.413.542/RS,140 sob a relatoria do Ministro
Antônio Herman V. Benjamin.

140 DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. HERMENÊUTICA DAS NORMAS DE
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO
CDC. REQUISITO SUBJETIVO. DOLO/MÁ-FÉ OU CULPA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DO CRITÉRIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
MODULAÇÃO DE EFEITOS PARCIALMENTE APLICADA. ART. 927, § 3º, DO CPC/2015. IDENTIFICAÇÃO DA CONTROVÉRSIA 1.
Trata-se de Embargos de Divergência que apontam dissídio entre a Primeira e a Segunda Seções do STJ acerca da exegese
do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor - CDC. A divergência refere-se especificamente à
necessidade de elemento subjetivo para fins de caracterização do dever de restituição em dobro da quantia cobrada
indevidamente.(...)Parece prudente e justo, portanto, que se deva modular os efeitos da presente decisão, de maneira
que o entendimento aqui fixado seja aplicado aos indébitos de natureza contratual não pública cobrados após a data da
publicação deste acórdão. TESE FINAL 28. Com essas considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência para, no
mérito, fixar-se a seguinte tese: A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC, É
CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE
OCORRER INDEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS 29. Impõe-se
MODULAR OS EFEITOS da presente decisão para que o entendimento aqui fixado - quanto a indébitos não decorrentes de
prestação de serviço público - se aplique somente a cobranças realizadas após a data da publicação do presente acórdão.
RESOLUÇÃO DO CASO CONCRETO 30. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido fixou como requisito a má-fé, para fins
do parágrafo único do art. 42 do CDC, em indébito decorrente de contrato de prestação de serviço público de telefonia, o
que está dissonante da compreensão aqui fixada. Impõe-se a devolução em dobro do indébito. CONCLUSÃO 31.
Embargos de Divergência providos. (EREsp n. 1.413.542/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, relator para
acórdão Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 21/10/2020, DJe de 30/3/2021.)
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2. Da moldura fática

Antes de abordar os temas jurídicos, cumpre destacar alguns fatos


relevantes do caso, tal como feito no voto da e. relatora, sobre os quais se busca
estabelecer uma ou mais teses jurídicas passíveis de uniformização.

O primeiro aspecto fático a mencionar diz com universo de contratantes,


que tem as seguintes características, de acordo com os informativos colacionados –
notadamente a pesquisa de Doll141 - e que foram abordados pela e. relatora, assim como
da experiência do primeiro grau, obtida especialmente da leitura da documentação de
processos individuais e de depoimentos pessoais:

(a) em grande parte, cuida-se de idosos, em decorrência da própria


configuração do tipo contratual (pagamento por consignação em folha de proventos);

(b) em sua grande maioria, possuem renda baixa, em geral resumida ao


benefício previdenciário; ainda assim, frequentemente, é o integrante do grupo familiar
que possui meio de acesso a crédito consignado;

(c) muitos têm baixa escolaridade, bem como frequentemente são


analfabetos digitais, não possuindo e-mail ou não sabendo utilizá-lo;

(d) a maior parte está endividada e até mesmo superendividada por conta
dos múltiplos empréstimos já descontados em folha e também na conta corrente, razão
pela qual já não dispõem de margem consignável;

(e) a maior parte jamais recebeu o plástico (cartão de crédito) e, dentre os


que o receberam, somente alguns poucos o utilizaram para compras;

141 DOLL, Johannes. Algumas considerações sobre o crédito consignado para idosos: dados de uma pesquisa. In: MARQUES,
Cláudia Lima; LUNARDELLI, Rosângela; LIMA, Clarissa Costa (Org). Direitos do Consumidor Endividado II: vulnerabilidade
e inclusão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
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(d) muitos efetuaram saques, frequentemente por meio de transferência a


uma conta bancária indicada após contato telefônico em que lhes era ofertada a
disponibilidade de saque;

(e) alguns receberam faturas físicas ou, raramente, por e-mail, dos quais a
maioria tinha dificuldade de entender que era necessário efetuar algum pagamento à parte
da fatura, pensando que toda a sua obrigação de pagar se resolveria pelo meio do desconto
em folha.

Delineados os traços gerais deste quadro fático, resulta que apenas uma
pequena parte das demandas pode ser qualificada como litigância predatória, que diz com
aqueles consumidores que sabem ter contratado um cartão de crédito consignado,
provavelmente após terem sido informados de que não possuíam mais margem
consignável, e inclusive utilizaram o plástico para efetuar compras a crédito. Quanto a
estes, a prova a ser produzida pela instituição financeira, que tem tal ônus, poderá
confirmar, ainda que indiretamente, a prestação suficiente de informações, de molde a
afastar a hipótese de erro substancial e, consequentemente, não haverá falar nem em
anulação, nem em conversão. Ainda, no caso concreto, após a devida comprovação, a
litigância maliciosa ou temerária poderá ser sancionada pelo juízo.

Outra hipótese não incomum diz com a situação em que, a despeito de a


fornecedora não ter logrado êxito em comprovar a prestação adequada e suficiente de
informações, ou não tenha havido formalização apropriada da avença, o comportamento
do consumidor pode caracterizar a adesão tácita ou concreta ao contrato, como pode ser
demonstrado pela utilização eficiente do cartão como cartão de crédito para efetuar
compras e/ou o pagamento das faturas de forma a transparecer não somente a
compreensão do negócio, como também o ajuste das vontades, conquanto tácito.

Quanto à maioria das causas judiciais, entretanto, há demandas efetivas de


solução judicial movidas por consumidor que se viu enredado numa relação na qual
ingressou de forma questionável sob a óptica da transparência e da qual tem grande
dificuldade ou, no extremo, impossibilidade material de sair, por força do endividamento
crescente com o saldo do cartão.
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Considerando a finalidade de buscar a segurança jurídica pela


uniformização da atividade jurisdicional individual, convém inserir na tese a ser assentada
propostas de regulação que contemplem essas situações.

3. Das teses propostas

3.1. Da declaratória de nulidade ou anulabilidade

A douta relatoria propõe, como primeira tese, o que designo como tese
declaratória, acoplada com pretensão a obter um provimento desconstitutivo da relação
contratual, a seguinte formulação:

1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando celebrado


pelo consumidor em erro substancial quanto à sua natureza, decorrente de falha na
prestação de serviços bancários por inobservância ao dever de informação.

A redação da proposta confirma que a solução tem sua principal inspiração


no direito civil ordinário, ou seja, no Código Civil, pela adoção dos conceitos de
anulabilidade e de erro substancial, assim como pela remissão aos dispositivos daquele
códex.

A sustentação dessa solução pode ser obtida na fundamentação


encontrada no texto do voto da e. relatora através do recurso à teoria do diálogo das fontes
com o Código de Defesa do Consumidor, o que se faz de fato imprescindível, na medida em
que a relação discutida pertence ao microcosmo do consumo.

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É com fundamento na “perspectiva da proteção e valorização da pessoa


humana”142 que se sugere a releitura dos institutos de direito civil a partir da diretriz
constitucional. Desse modo, as relações de direito privado e, principalmente, a sua
interpretação, devem levar em consideração os interesses daqueles em situação de
vulnerabilidade.

A constitucionalização do direito privado, que foi bem referida pelo voto da


eminente reltora, promove a “densificação teórica da tutela do patrimônio mínimo”,
primando pela efetivação da confiança e, em consequência, da legítima expectativa
despertada no contratante.143 Luiz Edson Fachin sugere que se faça a interpretação das
situações provenientes das relações jurídicas analisando mais do que a literalidade da
legislação:

Daí por que a arquitetura do sistema de Direito se arma a partir das fontes, e
destas para os modos de surgimento das regras, constituindo-se, pois, em uma
fórmula que divide o que se proclama inseparável. É insuficiente, sob a angulação
crítica, mera familiaridade conceitual ou zonas de interseção no conteúdo formal
dos institutos. Mostra-se imprescindível verificar, na engenharia material das
figuras jurídicas, os problemas nucleares colocados a partir da sociedade e não
adredemente solvidos, numa aparente interlocução epistemológica, mediante
conceitos previamente estabelecidos.144

A realização do Direito, portanto, deve ultrapassar aquele Direito


positivado, de modo que se permita a análise das situações consideradas jurídicas – ou seja,
importantes para o direito a partir do diálogo entre as necessidades que pulsam da
sociedade e o que está “colocado” pelo ordenamento jurídico. Disso decorre também a

142
MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. Seguro-saúde e abuso de direito. Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor. v. 4.
p. 835-847, abr./2011. Revista dos Tribunais Online (Thomson Reuters).
143 CATALAN, Marcos. Um sucinto inventário de 25 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor no Brasil. In:

MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Revista de Direito do Consumidor, v. 103, ano 25, jan./fev., p. 33. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016.
144 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2012. p. 33.
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importância da “jurisprudência criadora”,145 que cria ao ligar o Direito às expectativas da


sociedade. Na hipótese, cabe aos Tribunais interpretar as relações jurídicas pelas lentes da
igualdade, de modo que sejam os julgados “’pontes’ entre o corpo jurídico e o cenário
social”.146
Cabe, dessa forma, àquele que interpreta o direito, ultrapassar os conceitos
apresentados pela legislação, adaptando-os “à realidade circundante”: “(...) é necessário ter
em mente o contexto social e histórico, reconhecendo-se, então, o conjunto de normas,
preceitos, princípios e valores desta sociedade e deste momento histórico”147. Essa
necessária releitura das instituições de Direito Civil, sugerida por Fachin, está atrelada à
“(...) valorização de elemento como boa-fé e confiança, os quais também revelam uma
transformação dessa ordem de ideias”148.
Não há dúvida, na doutrina, de que a aplicação do direito privado brasileiro
há de se socorrer da teoria do diálogo das fontes, considerando a peculiaridade do sistema
jurídico pátrio, que escolheu unificar praticamente todo o direito privado – civil e comercial
– sob o Código Civil de 2002, mas manteve uma convivência paralela e mutuamente
influente de mundos normativos diferentes ao preservar, ao lado daquela codificação, o
Código de Defesa do Consumidor como um microcosmo relativamente independente.

Posta essa premissa, impõe-se a indagação sobre a conveniência de se


optar pela solução da anulabilidade com base em vício de consentimento, atrelada a
conceitos mais vetustos da privatística, em detrimento da teoria das nulidades de pleno
direito do CDC, fundadas nos conceitos de abuso de direito ou de poder contratual, e da

145 “Os desafios presentes destacam a força construtiva do fatos, daí o papel acentuado de uma jurisprudência criadora. Isso
pode corresponder a alterações na compreensão das fontes, sujeita a polêmica e a oscilações de peso sob o influxo da
minimização do Estado. A sociedade e as relações sócias são muito mais que vasos comunicantes entre o Direito e a
Sociedade, não suscetíveis de serem confinados.” FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil
Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 283.
146 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2012. p. 283.
147
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2012. p. 281.
148
“Justifica-se a insistência em centrar e colocar no palco da relação entre o Direito e a sociedade o problema de assimetria,
a relação de interdependência, exatamente para que fique claro o fato de que é o Direito que dá conta das relações sociais.
Embora isso pareça uma flagrante obviedade, em um sistema dominado por uma orientação monolítica e concentrada, o
reconhecimento dessa realidade se mostra relevante”. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo
Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 247.
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boa-fé objetiva, que são independentes de exames complexos acerca dos intrincados temas
do consentimento do paradigma da vontade.

Respeitosamente, penso que a solução se faz interessante como forma de


enfrentar o fato da litigância abusiva; porém, nas consequências, há de se apurar, a cada
vez, se estão contempladas as diretrizes prevalentes da proteção do consumidor, que
possuem raiz axiológica no direito constitucional.

No caso, a solução preconizada pelo brilhante voto da e. relatora consiste


em inverter o ônus da prova e associá-lo ao dever de informação, ao invés de acoplá-lo à
prova do vício do consentimento, o que tem o condão de deslocar o problema mais difícil
da privatística tradicional das nulidades, e o recolocar no universo da proteção do
consumidor.

Portanto, é possível concordar com a tese 1, embora, conforme se


desenvolve abaixo, haja necessidade de introduzir diferenciações quanto aos efeitos.

Paralelamente, considero conveniente traçar algumas linhas a mais para


aproveitar as vantagens da solução e, desse modo, contemplar situações em que há
necessidade de se acautelar o fornecedor de boa-fé contra a litigância massiva e
irresponsável, bem como prover mecanismos para o estado-juiz enfrentá-la, sem prejudicar
a necessária proteção do consumidor vulnerável.

Trata-se da reflexão sobre como deve ser realizado o exame do


cumprimento do dever de informação e da caracterização do erro substancial, que
reconduzo ao critério de verossimilhança das alegações do consumidor (art. 6º, inc. VIII, do
CDC), contrastada com a sua conduta prática quanto à eventual utilização de
funcionalidades específicas da modalidade do cartão de crédito consignado, como a
efetuação de compras de mercadorias ou serviços, ou a efetuação de saques. Assim,
vedado o comportamento contraditório, ao consumidor que efetivamente utilizou do
cartão de crédito para compras de produtos e mercadorias, não prevalece a inversão do
ônus da prova, cabendo ao juízo apreciar eventual caracterização de litigância frívola.

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Propõe-se, então, na linha do sustentado pelo judicioso voto divergente do


Des. Ricardo Pippi Schmidt, a seguinte alternativa:

1. É anulável o contrato de cartão de crédito consignado quando celebrado pelo


consumidor em erro substancial quanto à sua natureza, decorrente de falha na prestação
de serviços bancários por inobservância ao dever de informação. 1.1. Na análise do alegado
erro, incumbe ao fornecedor o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de
informação; 1.2. Os instrumentos contratuais devem conter as cláusulas essenciais a essa
modalidade de negociação, sendo ônus da instituição financeira comprovar que informou
ao consumidor, prévia e adequadamente: a) a natureza, o objeto, os direitos, as obrigações
e as consequências decorrentes do contrato de cartão de crédito consignado; b) a
existência de modalidades e serviços de crédito diversos, como o empréstimo pessoal
consignado, esclarecendo as diferenças entre uma e outra contratações, seus custos e
características essenciais; c) a disponibilidade, ou não, de margem disponível para a
celebração de empréstimo pessoal consignado; d) que a fatura do cartão de crédito poderá
ser paga total ou parcialmente até a data do vencimento; e) que, se não realizado o
pagamento total da fatura, será efetuado o pagamento mínimo mediante desconto na
folha de pagamento ou em benefício previdenciário, com o refinanciamento do saldo
devedor, acrescido de juros. 1.3. No exame do cumprimento do dever de informação e da
caracterização do erro substancial, deve ser observado o critério de verossimilhança das
alegações do consumidor (art. 6º, inc. VIII, do CDC), contrastada com a sua conduta prática
quanto à eventual utilização de funcionalidades específicas da modalidade do cartão de
crédito consignado, como a efetuação de compras de mercadorias ou serviços, ou a
efetuação de saques.

3.2. Da tese constitutiva negativo-positiva (conversão)

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O voto da e. relatora prepara de modo muito técnico e sólido a


possibilidade de conversão do contrato de cartão de crédito consignado no de empréstimo
consignado.

É bem verdade que, provavelmente, haverá dificuldades práticas de


concretização, a serem resolvidas pelo juízo na fase de cumprimento e que poderão,
eventualmente, erguer novas necessidades de uniformização.

Uma questão, porém, demanda atenção já neste momento conformador da


tese.

Trata-se de definir a forma (simples ou dobrada) da restituição (ou


compensação) dos valores que tenham sido pagos pelo consumidor com base no contrato
formalmente constituído em erro substancial e, portanto, indevidos, pagamento em erro
que corresponde a uma cobrança que pode ser catalogada como eivada de abuso e/ou
violação da boa-fé objetiva pelo fornecedor.

O conceito de repetição de indébito, na dogmática tradicional, vincada pelo


paradigma da vontade e aos vícios do consentimento, relaciona-se ao pagamento em erro,
como ainda se lê no art. 877 do CC.149 Essa principiologia pressupõe a simetria das relações,
o que, no entanto, precisa ser revisto quando se insere a discussão do pagamento errôneo
num contexto assimétrico, como é a relação de consumo.

Nesse contexto, como determinado pela teoria do diálogo das fontes,


penso que aflora a imprescindibilidade de uma intervenção mais grave na liberdade do
fornecedor, sob pena de que a solução da repetição de indébito seja insuficiente na óptica
da proteção consumidor e, portanto, traduza uma proteção desproporcional por
deficiência.

Como bem aduzido pelo culto voto da e. relatora, há imperiosidade de


interpretação do direito constitucional e, também, do direito privado através das técnicas
da ponderação de princípios colidentes, da concordância prática e da irradiação dos direitos
fundamentais sobre as relações entre particulares.

149 Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.
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O princípio da proporcionalidade, que foi destacado no brilhante voto da e.


relatora, tem por efeito a proibição de insuficiência em deveres de proteção de direitos
fundamentais (Untermassverbot).

O cumprimento, pelos poderes de estado, do dever de proteção derivado


do direito fundamental submete-se ao princípio da proporcionalidade através da figura
dogmática da “proibição de insuficiência”.

A ponderação com direitos de proteção acusa algumas peculiaridades. A


primeira, destacada por Robert Alexy, consiste em que a própria admissão dos chamados
direitos fundamentais de proteção demarca uma postura teórica que encontra resistência
por parte de quem, temeroso de uma expansão e de consequente
hiperconstitucionalização do direito, prefere a redução do espectro dos direitos
fundamentais à defesa do indivíduo contra o estado.150 Dessa maneira, assumir os direitos
fundamentais de proteção suscita a questão da ubiquidade dos direitos fundamentais e da
inflação da jurisdição constitucional, ao ponto de se temer a passagem do estado de
legislação parlamentar para um estado de jurisdição de tribunal constitucional.151

Todavia, ao invés de um retrocesso ao estado liberal ou, por outro lado, de


uma superdeterminação de todo o direito infraconstitucional pela constituição, convém
uma terceira via, que consiste em estruturar adequadamente a operação com deveres de
proteção.152

Aspecto central do modelo de estruturação da ponderação com direitos de


proteção, como aponta Alexy, consiste na alternatividade das possibilidades de proteção.
Não é a intervenção indevida, mas a omissão de proteção adequada, suficiente e
proporcional que se faz inconstitucional e, pois, objeto de controle.

Lothar Michael, similarmente, frisa algumas particularidades desse modelo:


(1) identificação isolada de fim e meio: aqui o objeto de levantamento (e pois do exame do

150 Cfr. ALEXY, Robert. Zur Struktur der Grundrechte auf Schutz. In: SIECKMANN, Jan-R. (Hrsg.). Die Prinzipientheorie der
Grundrechte: Studien zur Grundrechtstheorie Robert Alexys. Baden-Baden: Nomos, 2007, S. 105-121.
151 Cfr. ALEXY, Robert. Zur Struktur der Grundrechte auf Schutz. In: SIECKMANN, Jan-R. (Hrsg.). Die Prinzipientheorie der
Grundrechte: Studien zur Grundrechtstheorie Robert Alexys. Baden-Baden: Nomos, 2007, S. 105-121.
152 Cfr. ALEXY, Robert. Zur Struktur der Grundrechte auf Schutz. In: SIECKMANN, Jan-R. (Hrsg.). Die Prinzipientheorie der
Grundrechte: Studien zur Grundrechtstheorie Robert Alexys. Baden-Baden: Nomos, 2007, S. 105-121, S. 108.
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controle de insuficiência) não é o meio desejado, mas, sim, são os meios de proteção
eleitos pela autoridade competente, diante da completa inatividade de sua omissão; e
como finalidade opera-se a proteção jurídico-fundamental em face do indivíduo e também
da totalidade dos cidadãos, assim como com os interesses colidentes com a proteção; (2)
idoneidade: examina-se aqui se o meio eleito pelo legislador é idôneo para servir à
finalidade da proteção ou a outras finalidades (opostas); (3) efetividade (Effektivität) ao
invés de necessidade: aqui, ao invés de outros meios mais suaves e de igual efetividade
(necessidade), buscam-se outros meios mais efetivos, mas de igual suavidade, ou seja, que
sejam mais eficazes na proteção e que ao mesmo tempo não interfiram mais gravemente
em direitos de terceiros ou em outras finalidades;153 e (4) proporcionalidade em sentido
estrito (ponderação): neste exame, aspira-se a eliminar restrições insuportáveis ao direito
fundamental a ser protegido, em ponderação com finalidades opostas e direitos de
terceiros, ou seja, o controle diz com verificar se os meios eleitos pelo legislador para a
consecução da finalidade da proteção se mostram suficientes, sempre tendo em
consideração, no tocante à densidade de controle, a pergunta pela prognose de qual
proteção oferecem medidas estatais.154

No que importa para o presente caso, considerando que tanto o CC como


CDC estabeleceram normas protetivas em face do contratante que incide em erro, parece
imprescindível que se adote proteção que seja de fato suficiente para o consumidor
vulnerável, inserido numa relação que é particularmente menos simétrica e mais
desequilibrada que a desenhada na codificação civil comum. E, na espécie, a necessidade
de aplicação de uma sanção ao fornecedor poderoso que viola a boa-fé objetiva, em
prejuízo de consumidor vulnerável, exige a sanção como o meio mais idôneo, mais efetivo e
mais conveniente à proteção.155

153 MICHAEL, Lothar. Grundfälle zur Verhältnismässigkeit. JuS, 2001, Heft 8, S. 767.
154 A proteção contra a insuficiência não implica esteja ordenada a otimização de todos os meios e finalidades; ela aponta
para um aumento na qualidade da proteção pelo incremento da efetividade, mantida a mesma intensidade de
intervenção em direitos de terceiros ou outras finalidades colidentes.
155 Cfr. MICHAEL, Lothar. As três estruturas de argumentação do princípio da proporcionalidade – para a dogmática da
proibição de excesso e de insuficiência e dos princípios da igualdade. Trad. Luís Afonso Heck. In: HECK, Luís Afonso (org.).
Direito natural, direito positivo, direito discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 199. Essa advertência
quanto à limitação do exame à violação por omissão, merece especial atenção no tocante à norma de direito
fundamental associada. Esta não pode prestar-se como espaço para que grupos de pressão venham ao tribunal
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Pensando-se o tema pela perspectiva inversa, a proporcionalidade da


intervenção estatal através dos órgãos e decisões do Poder Judiciário inequivocamente
deve ser buscada nos casos concretos, mas existe uma presunção de que o legislador, ao
estabelecer regras de proteção do consumidor na edição do respectivo código, configurou
de modo proporcional a convivência entre aqueles princípios. Com mais razão, as
disposições que preveem infrações claras a normas cogentes inseridas no CDC presumem-
se proporcionais na ponderação entre aqueles princípios, porquanto dizem com o cerne da
proteção.

Fazendo-se o teste concreto da proporcionalidade, o resultado não é


diferente, porque, no caso, a proibição de cobrança de valores contratados em violação à
boa-fé objetiva insere-se entre o rol de normas de clareza meridiana e de
proporcionalidade manifesta na ponderação entre a gravidade da intervenção na liberdade
contratual do fornecedor – que é mínima, ao não impedir nem dificultar o exercício da
atividade – e a relevância da proteção dos direitos do consumidor, que é elevada, uma vez
que o consumidor ordinariamente é a parte economicamente mais frágil na relação.

Aqui ingressa a relevância da consideração de que, constatada a violação da


boa-fé subjetiva ou pelo menos a objetiva do fornecedor ao conformar uma relação de
contratação que é diversa (cartão de crédito) daquela que confere com o interesse do
consumidor (empréstimo), a repetição ou compensação simples mostra-se insuficiente
para a proteção do consumidor, atraindo a necessidade de uma sanção adicional, que o
Código de Defesa do Consumidor provê para qualquer caso em que o consumidor venha a
pagar valor indevido, ressalvado a hipótese de engano justificável do fornecedor, que é o
parágrafo único do art. 42.156

constitucional para obter a substituição da estimação feita pelo legislador e da escolha dos meios de como certa
proteção se deva realizar, por uma outra estimação do modo como ela devesse dar-se, de acordo com uma corrente
ideológica discrepante. No controle da proibição de insuficiência e na norma resultante, ao tribunal cabe apenas apontar
a omissão cristalizada na insuficiência da medida, não pretender impor uma norma nova, com medidas simplesmente
alternativas, que lhe pareçam mais convenientes. A exceção – confirmatória da regra geral – consiste nos casos de meio
único de proteção suficiente, como bem sublinhado por Michael.
156 Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer
tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição
do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo
hipótese de engano justificável.
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Essa medida escapa ao aferramento das soluções preconizadas pela


codificação tradicional, que tende a induzir o intérprete a condicionar a aplicação de
sanções civis – como as previstas no art. 940 do CC e 42 do CDC – à comprovação do
elemento volitivo ou animístico de cunho subjetivo (má-fé), quando a evolução jurídica
caminhou para a admissibilidade, notadamente no universo protetivo como o do
consumidor, de sancionamento por simples violação da boa-fé objetiva.

Se essa violação da boa-fé objetiva pode ou deve ser remetida às figuras da


culpa, como sustentado por acórdão do STJ no AgRg no REsp 1.117.014/SP, Rel. Ministro
Humberto Martins, j. 2.2.2010, DJe 19.2.2010),157 é tema que não necessita de maior
aprofundamento, sendo certo que basta a ofensa à boa-fé objetiva, em algum dos seus
deveres que compõem o seu feixe.

Essa evolução se vislumbra no importante precedente invocado pela


Defensoria Pública e que, ressalvado entendimento em contrário, aplica-se também à
situação sob exame. Trata-se dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº
1.413.542/RS,158 sob a relatoria do Ministro Antônio Herman V. Benjamin, no qual o STJ
conferiu, a meu sentir, uma interpretação mais consentânea do art. 42 à principiologia
protetiva dominante no CDC, na esteira do comando constitucional que limita o princípio
da liberdade dos fornecedores, enquanto agentes econômicos, para compatibilizá-la com

157 No Código Civil, só a má-fé permite a aplicação da sanção. Na legislação especial, tanto a má-fé como a culpa
(imprudência, negligência e imperícia) dão ensejo à punição do fornecedor do produto em restituição em dobro".
158 DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. HERMENÊUTICA DAS NORMAS DE
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO
CDC. REQUISITO SUBJETIVO. DOLO/MÁ-FÉ OU CULPA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DO CRITÉRIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
MODULAÇÃO DE EFEITOS PARCIALMENTE APLICADA. ART. 927, § 3º, DO CPC/2015. IDENTIFICAÇÃO DA CONTROVÉRSIA 1.
Trata-se de Embargos de Divergência que apontam dissídio entre a Primeira e a Segunda Seções do STJ acerca da exegese
do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor - CDC. A divergência refere-se especificamente à
necessidade de elemento subjetivo para fins de caracterização do dever de restituição em dobro da quantia cobrada
indevidamente.(...) Parece prudente e justo, portanto, que se deva modular os efeitos da presente decisão, de maneira
que o entendimento aqui fixado seja aplicado aos indébitos de natureza contratual não pública cobrados após a data da
publicação deste acórdão. TESE FINAL 28. Com essas considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência para, no
mérito, fixar-se a seguinte tese: A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC, É
CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE
OCORRER INDEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS 29. Impõe-se
MODULAR OS EFEITOS da presente decisão para que o entendimento aqui fixado - quanto a indébitos não decorrentes de
prestação de serviço público - se aplique somente a cobranças realizadas após a data da publicação do presente acórdão.
RESOLUÇÃO DO CASO CONCRETO 30. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido fixou como requisito a má-fé, para fins
do parágrafo único do art. 42 do CDC, em indébito decorrente de contrato de prestação de serviço público de telefonia, o
que está dissonante da compreensão aqui fixada. Impõe-se a devolução em dobro do indébito. CONCLUSÃO 31.
Embargos de Divergência providos. (EREsp n. 1.413.542/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, relator para
acórdão Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 21/10/2020, DJe de 30/3/2021.)
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outros princípios de igual força constitucional, como os que impõem a proteção de grupos
sociais vulneráveis, como o consumidor (art. 170).159

Por isso, tenho por divergir, respeitosamente, do alvitre contido no voto da


Eminente Relatora, que sustentou a impossibilidade da repetição em dobro ao argumento
de que (1) a anulação do negócio jurídico com fundamento no erro impõe a restituição das
partes ao estado anterior, nos termos do art. 182 do Código Civil; e (2) a repetição em
dobro prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC apenas se aplicaria aos casos de
repetição de indébito, do que não se cogitaria no caso.

Com todo o respeito, parece-me mais apropriada solução diversa.

Veja-se que o Código brasileiro adotou a orientação de que o erro só é


causa de anulação do negócio jurídico quando for substancial e reconhecível pelo outro
contratante, de modo que, segundo Humberto Theodoro Jr., “o peso decisivo da
anulabilidade deslocou-se da conduta do que pratica a declaração errônea de vontade para
o comportamento de quem se beneficia dos respectivos efeitos”. Desse modo, “estabelece-
se, nessa linha voltada para a segurança das relações jurídicas, um ônus para cada parte de
verificar se a outra não está incorrendo em erro evidente; e desse ônus decorre a obrigação
de, segundo a boa-fé, fazer-lhe a competente comunicação”,160 diligência que observará,
conforme o art. 138 do Código Civil, as circunstâncias do negócio.

A anulação do negócio jurídico, nesse contexto, decorre mesmo do fato de


que o beneficiário do negócio concorreu culposamente para a consumação do ato viciado,
razão pela qual não pode impedir o declarante em erro substancial de promover a anulação
do negócio defeituosamente praticado.

159Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípiosI - soberania nacional;II -
propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do
meio ambiente; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 42, de 19.12.2003); VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. IX - tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de
qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
160 JUNIOR, Humberto Theodoro. Negócio Jurídico. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo GEN, 2020. p. 350.

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Não é demais ressaltar que isso tudo é o que se espera da relação entre
particulares, de modo que, se assim é na relação civil comum, é certo que algo mais deve-
se esperar da relação da qual aqui se trata, em que os beneficiários dos negócios são
instituições financeiras em detrimento de consumidores, constitucionalmente reconhecidos
como sujeitos que merecem tratamento especial em razão de sua vulnerabilidade.

Ora, o CDC estipula que são direitos básicos do consumidor, dentre outros,
"a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços" e a proteção
contra "métodos comerciais coercitivos ou desleais"161. A prestação de informações
demonstra uma conduta de boa-fé por parte do fornecedor, que informa aquilo que ele já
sabe para o consumidor, que presumidamente ainda não sabe do que está sendo
informado. Esse dever de informar é um dever de conduta ou comportamento positivo, de
modo que o silêncio total ou parcial representa uma "subinformação", que pode levar o
consumidor a tomar decisões que não tomaria se tivesse desde logo recebido as
informações adequadas. Conforme Marques, Miragem e Benjamin, no sistema do CDC, a
informação correta "está diretamente ligada à lealdade, ao respeito no tratamento entre
parceiros".162

Existe mesmo um dever de cooperação que deve ser observado, e que


reflete a preservação da lealdade dos participantes da relação jurídica, os quais não podem
ser posicionados em pontas distintas e com interesses opostos.163 É certo dizer que a falta
de informações adequadas “representa uma vulnerabilidade tanto maior quanto mais
importante for esta informação detida pelo outro",164 o que é especialmente verdadeiro no
caso concreto, em que se está diante de uma espécie contratual de maior complexidade

161 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,
com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como
sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012) IV - a proteção contra a publicidade
enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e serviços;
162 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno; BENJAMIN, Antônio HermanV. Comentários ao Código De Defesa Do
Consumidor. Revista dos Tribunais, 2022. Disponível em:
https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/72654266/v7.
163 BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Bancos de Dados e Superendividamento do Consumidor: cooperação, cuidado e
informação. Revista de Direito do Consumidor, v. 50, p. 36-57, Abr-Jun 2004. p. 41.
164 MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e a Proteção dos Vulneráveis. Revista dos Tribunais,

2014. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/.


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que tipos mais simples (como o mútuo), acusando características peculiares a serem
observadas atentamente pelo consumidor.

Nesse sentido, quando o consumidor contrata um cartão de crédito sob a


impressão de estar contratando um empréstimo consignado, não se está diante de um erro
espontâneo ou casual de sua parte, mas diante de um erro que decorre, pelo menos em
maior parte, da conduta da parte contrária, que, ao fornecer uma subinformação sobre o
produto, levou o consumidor a tomar decisão que não tomaria de outro modo. Esse
silêncio, que até pode ser qualificado como desleal, em casos extremos até poderia
aproximar a conduta das instituições financeiras do dolo civil, conforme art. 147: “Nos
negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou
qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem
ela o negócio não se teria celebrado”.

Entretanto, não é preciso ir tão longe.

Ainda que não se pretenda rejeitar a proposta conceitual dada ao problema


pela eminente relatora, a solução jurídica derradeira não pode ficar subordinada e limitada
à norma civil comum, pois o caso concreto impõe a interpretação dialógica com as normas
protetivas do consumidor. Nesse sentido, peço vênia para expressar que não parece fazer a
melhor justiça a decisão que reconhece a prática de ato ilícito pela instituição financeira e
limita-se a restituir o status quo ante.

Não se está a ignorar, ainda, que o art. 42 do CDC, especialmente o caput


do dispositivo, volte-se primariamente à cobrança de dívidas; contudo, o caso concreto
clama por uma hermenêutica que não se submeta à literalidade, mas ao sentido e objetivo
da norma, especialmente do seu parágrafo único, para que sejam atendidas as finalidades
protetivas da norma em sua integralidade. Assim, entendo ser especialmente relevante
observar a natureza da repetição em dobro prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC.
Segundo Luiz Cláudio Carvalho de Almeida (assim citado por Sergio Cavalieri Filho):165

165 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. Disponível em: Minha Biblioteca, (6th edição). Grupo GEN,
2022. p. 258.
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A irrelevância da presença do dolo ou culpa para se concluir pelo dever de


indenizar prende-se à constatação de que o sistema de proteção do consumidor
é todo baseado em critérios objetivos de aferição de atendimento à chamada
teoria da qualidade. Assim sendo, a sanção em tela tem função pedagógica e
inibidora de condutas lesivas ao consumidor, tendo em vista em maior grau o
interesse social no controle das imperfeições do mercado do que propriamente
o interesse particular do consumidor individualmente considerado. Permite-se,
assim, vislumbrar no dispositivo legal em comento hipótese de aplicação das
chamadas punitive damages (indenizações com finalidade punitiva) no Brasil.

É, portanto, nessa “função pedagógica e inibidora de condutas lesivas ao


consumidor” que reside a necessidade de se aplicar ao caso concreto a repetição em dobro
prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC.

Nesse sentido, já entendeu o STJ que “a promoção de descontos em


benefício previdenciário, a título de prestações de mútuo e sem a autorização do
consumidor, viola a boa-fé objetiva e, na forma do art. 42, parágrafo único, do CDC, enseja
a repetição do indébito em dobro”.166 Ainda, já decidiu a Corte Superior que a repetição em
dobro decorre da violação da boa-fé objetiva, sendo irrelevante investigar caso a caso se a
instituição tinha a intenção de induzir o consumidor a contratar produto diverso do que o
pretendido:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CIVIL.


PROCESSUAL CIVIL. TELEFONIA FIXA. COBRANÇA INDEVIDA. AÇÃO DE REPETIÇÃO
DE INDÉBITO DE TARIFAS. 1) RESTITUIÇÃO EM DOBRO DO INDÉBITO (PARÁGRAFO

166 AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C PEDIDO
DE RESTITUIÇÃO DE INDÉBITO. DESCONTOS EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. AUSÊNCIA DE CONTRATAÇÃO. VIOLAÇÃO À
BOA-FÉ OBJETIVA. REPETIÇÃO EM DOBRO DO INDÉBITO. DANO MORAL. VALOR PROPORCIONAL ÀS CIRCUNSTÂNCIAS DOS
AUTOS. REEXAME. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. Nos termos de precedente da Corte Especial do STJ,
"A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo
do fornecedor que realizou a cobrança indevida, revelando-se cabível quando a referida cobrança consubstanciar
conduta contrária à boa-fé objetiva " (EAREsp 676.608/RS, Relator Ministro Og Fernandes, julgado em 21/10/2020, DJe
de 30/3/2021). 2. No caso, a promoção de descontos em benefício previdenciário, a título de prestações de mútuo e sem
a autorização do consumidor, viola a boa-fé objetiva e, na forma do art. 42, parágrafo único, do CDC, enseja a repetição
do indébito em dobro. 3. O valor arbitrado pelas instâncias ordinárias a título de danos morais somente pode ser
revisado em sede de recurso especial quando irrisório ou exorbitante. Precedentes. Na hipótese, a indenização por danos
morais fixada em R$ 8.000,00 (oito mil reais) não se mostra excessiva, sobretudo se considerada a quantidade de
descontos ilegais promovidos na pensão da autora (de dez/2013 a maio/2017) e a necessidade de, com a condenação,
dissuadir a instituição financeira de lesar outros consumidores. 4. Agravo interno improvido. (AgInt no AREsp n.
1.907.091/PB, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 31/3/2023.)
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ÚNICO DO ARTIGO 42 DO CDC). DESINFLUÊNCIA DA NATUREZA DO ELEMENTO


VOLITIVO DO FORNECEDOR QUE REALIZOU A COBRANÇA INDEVIDA. DOBRA
CABÍVEL QUANDO A REFERIDA COBRANÇA CONSUBSTANCIAR CONDUTA
CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA. 2) APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL
DECENAL DO CÓDIGO CIVIL (ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL). APLICAÇÃO ANALÓGICA
DA SÚMULA 412/STJ. 3) MODULAÇÃO PARCIAL DOS EFEITOS DA DECISÃO.
CONHECIMENTO E PROVIMENTO INTEGRAL DO RECURSO.
1. Trata-se de embargos de divergência interpostos contra acórdão em que se
discute o lapso prescricional cabível aos casos de repetição de indébito por
cobrança indevida de valores referentes a serviços não contratados, promovida
por empresa de telefonia. Discute-se, ainda, acerca da necessidade de
comprovação da má-fé pelo consumidor para aplicação do art. 42, parágrafo
único, do Código de Defesa do Consumidor.
2. Na configuração da divergência do presente caso, temos, de um lado, o
acórdão embargado da Terceira Turma concluindo que a norma do art. 42 do
Código de Defesa do Consumidor pressupõe a demonstração de que a cobrança
indevida decorreu de má-fé do credor fornecedor do serviço, enquanto os
acórdãos-paradigmas da Primeira Seção afirmam que a repetição em dobro
prescinde de má-fé, bastando a culpa. Ilustrando o posicionamento da Primeira
Seção: EREsp 1.155.827/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Primeira Seção, DJe
30/6/2011. Para exemplificar o posicionamento da Segunda Seção, vide: EREsp
1.127.721/RS, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, Rel. p/ Acórdão Min. Marco
Buzzi, Segunda Seção, DJe 13/3/2013.
3. Quanto ao citado parágrafo único do art. 42 do CDC, abstrai-se que a cobrança
indevida será devolvida em dobro, "salvo hipótese de engano justificável". Em
outras palavras, se não houver justificativa para a cobrança indevida, a repetição
do indébito será em dobro. A divergência aqui constatada diz respeito ao caráter
volitivo, a saber: se a ação que acarretou cobrança indevida deve ser voluntária
(dolo/má-fé) e/ou involuntária (por culpa).
4. O próprio dispositivo legal caracteriza a conduta como engano e somente
exclui a devolução em dobro se ele for justificável. Ou seja, a conduta base para a
repetição de indébito é a ocorrência de engano, e a lei, rígida na imposição da
boa-fé objetiva do fornecedor do produto ou do serviço, somente exclui a
devolução dobrada se a conduta (engano) for justificável (não decorrente de
culpa ou dolo do fornecedor).
5. Exigir a má-fé do fornecedor de produto ou de serviço equivale a impor a
ocorrência de ação dolosa de prejudicar o consumidor como requisito da
devolução em dobro, o que não se coaduna com o preceito legal. Nesse ponto, a
construção realizada pela Segunda Seção em seus precedentes, ao invocar a má-
fé do fornecedor como fundamento para a afastar a duplicação da repetição do
indébito, não me convence, pois atribui requisito não previsto em lei.
6. A tese da exclusividade do dolo inviabiliza, por exemplo, a devolução em
dobro de pacotes de serviços, no caso de telefonia, jamais solicitados pelo
consumidor e sobre o qual o fornecedor do serviço invoque qualquer
"justificativa do seu engano". Isso porque o requisito subjetivo da má-fé é
prova substancialmente difícil de produzir. Exigir que o consumidor prove dolo
ou má-fé do fornecedor é imputar-lhe prova diabólica, padrão probatório que
vai de encontro às próprias filosofia e ratio do CDC.
7. Não vislumbro distinção para os casos em que o indébito provém de contratos
que não envolvam fornecimento de serviços públicos, de forma que também
deve prevalecer para todas as hipóteses a tese, que defendi acima, de que tanto
a conduta dolosa quanto culposa do fornecedor de serviços dá azo à devolução
em dobro do indébito, de acordo com o art. 42 do CDC. Nessas modalidades
contratuais, também deve prevalecer o critério dúplice do dolo/culpa. Assim,
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tanto a conduta dolosa quanto a culposa do fornecedor de serviços dão substrato


à devolução em dobro do indébito, à luz do art. 42 do CDC.
8. A Primeira Seção, no julgamento do REsp 1.113.403/RJ, de relatoria do
Ministro Teori Albino Zavascki (DJe 15/9/2009), submetido ao regime dos
recursos repetitivos do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução STJ
8/2008, firmou o entendimento de que, ante a ausência de disposição específica
acerca do prazo prescricional aplicável à prática comercial indevida de cobrança
excessiva, é de rigor a incidência das normas gerais relativas à prescrição
insculpidas no Código Civil na ação de repetição de indébito de tarifas de água e
esgoto. Assim, tem-se prazo vintenário, na forma estabelecida no art. 177 do
Código Civil de 1916, ou decenal, de acordo com o previsto no art. 205 do Código
Civil de 2002. Diante da mesma conjuntura, não há razões para adotar solução
diversa nos casos de repetição de indébito dos serviços de telefonia.
9. A tese adotada no âmbito do acórdão recorrido, de que a pretensão de
repetição de indébito por cobrança indevida de valores referentes a serviços não
contratados, promovida por empresa de telefonia, configuraria enriquecimento
sem causa e, portanto, estaria abrangida pelo prazo fixado no art. 206, § 3º, IV,
do Código Civil, não parece ser a melhor. A pretensão de enriquecimento sem
causa (ação in rem verso) possui como requisitos: enriquecimento de alguém;
empobrecimento correspondente de outrem; relação de causalidade entre
ambos; ausência de causa jurídica; inexistência de ação específica. Trata-se,
portanto, de ação subsidiária que depende da inexistência de causa jurídica. A
discussão acerca da cobrança indevida de valores constantes de relação
contratual e eventual repetição de indébito não se enquadra na hipótese do art.
206, § 3º, IV, do Código Civil, seja porque a causa jurídica, em princípio, existe
(relação contratual prévia em que se debate a legitimidade da cobrança), seja
porque a ação de repetição de indébito é ação específica. Doutrina.
10. Na hipótese aqui tratada, a jurisprudência da Segunda Seção, relativa a
contratos privados, seguia compreensão que, com o presente julgamento, passa
a ser superada, em consonância com a dominante da Primeira Seção, o que faz
sobressair a necessidade de privilegiar os princípios da segurança jurídica e da
proteção da confiança dos jurisdicionados.
11. Assim, proponho modular os efeitos da presente decisão para que o
entendimento aqui fixado seja empregado aos indébitos de natureza contratual
não pública pagos após a data da publicação do acórdão.
12. Embargos de divergência conhecidos e providos integralmente, para impor a
devolução em dobro do indébito.
13. Fixação das seguintes teses. Primeira tese: A restituição em dobro do
indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do
elemento volitivo do fornecedor que realizou a cobrança indevida, revelando-se
cabível quando a referida cobrança consubstanciar conduta contrária à boa-fé
objetiva. Segunda tese: A ação de repetição de indébito por cobrança de valores
referentes a serviços não contratados promovida por empresa de telefonia deve
seguir a norma geral do prazo prescricional decenal, consoante previsto no artigo
205 do Código Civil, a exemplo do que decidido e sumulado no que diz respeito
ao lapso prescricional para repetição de tarifas de água e esgoto (Súmula
412/STJ). Modulação dos efeitos:
Modulam-se os efeitos da presente decisão - somente com relação à primeira
tese - para que o entendimento aqui fixado quanto à restituição em dobro do
indébito seja aplicado apenas a partir da publicação do presente acórdão. A
modulação incide unicamente em relação às cobranças indevidas em contratos
de consumo que não envolvam prestação de serviços públicos pelo Estado ou por
concessionárias, as quais apenas serão atingidas pelo novo entendimento
quando pagas após a data da publicação do acórdão.
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(EAREsp n. 676.608/RS, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em


21/10/2020, DJe de 30/3/2021.)

A alocação do problema na boa-fé objetiva, liberada das perplexidades do


universo do vício de consentimento e da culpa, recomenda que se revisite esse conceito,
mais uma vez.

A boa-fé constitui cláusula geral cuja violação, em tese, pode resultar em


ilicitude e, assim, fundar solução desconstitutiva e indenizatória.

A esse propósito, consigne-se que o novel Código Civil consagra, de modo


expresso e em diferentes oportunidades, a boa-fé, não só como critério de interpretação de
negócios jurídicos,167 mas também como limite da licitude da ação168 e, ainda, como
princípio geral a ser observado na relação contratual.169

Segundo a melhor doutrina, a boa-fé objetiva representa fonte de deveres


jurídicos para os contraentes, tanto na fase pré-contratual, como durante a execução do
contrato já constituído. Dentre os chamados deveres laterais ou instrumentais, de
cooperação e proteção dos recíprocos interesses, voltados para a finalidade da consecução
dos objetivos comuns da relação, citam-se os deveres de cuidado, previdência e segurança;
aviso e esclarecimento; informação; cooperação e colaboração; proteção e cuidado com a
pessoa e o patrimônio da contraparte; omissão e segredo.170

A proteção da boa-fé constitui um imperativo abrangente de todo o direito


privado, o que viabiliza o estreitamento de pontes entre a codificação comum e a defesa do
consumidor.

167 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos dolugar de sua celebração.
168 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
169
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios
de probidade e boa-fé.
170 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 437 ss.
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O respeito à boa-fé (fides) das pessoas liga-se indelevelmente à necessidade


de que o ordenamento proteja a confiança dos agentes no tráfego jurídico, para além de
considerações acerca da moralidade e dignidade de cada pessoa.

As relações contratuais têm início a partir da confiança estabelecida entre


as partes: “é graças à confiança que nos movimentamos em busca de uma relação com os
demais”.171 No âmbito dos contratos de cartão de crédito consignado, tal como
apresentado aos consumidores, com informações deficientes e, mais do que isso,
informações que conduzem à ideia de semelhança aos contratos de empréstimo
consignado (modalidade de contratação amplamente conhecida), são milhares, senão
milhões, os casos trazidos ao Poder Judiciário para tentar corrigir as expectativas criadas
nos consumidores, de acordo com as informações recebidas. A confiança na informação
apresentada desperta determinadas expectativas, que nem sempre são previstas pela
legislação:

Assim, em uma sociedade complexa, nem os contratos nem as leis acompanham


o comportamento cultural e o significado dos símbolos que compõem a
comunicação nos contratos sociais. O ato de confiar torna vulnerável aquele que
crê verdadeiro algo que não está expresso nem no acordo, nem na lei, mas que é
capaz de provocar uma expectativa legítima no contexto da contratação.172

Além disso, é necessário refletir sobre o que se entende por confiança. Na


hipótese, trata-se daquilo que impulsiona a contratação. Como dito, é a confiança
desenvolvida entre os contratantes que os leva à conclusão do contrato. Nas relações de
consumo, entretanto, está presente a ideia de vulnerabilidade, de modo que “fica mais
evidente a necessidade de proteção da confiança, pois serve também para aproximar os
desiguais dos iguais, notadamente diante da crescente complexidade das relações

171 NETO, André Perin Schmidt. Contratos na Sociedade de Consumo: vontade e confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016. p. 196.
172 NETO, André Perin Schmidt. Contratos na Sociedade de Consumo: vontade e confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016. p. 200.
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sociais”.173 A proteção e preservação da confiança se faz necessária, pois cada vez menos se
observa a efetivação do compromisso e da cooperação nas relações sociais.

Enfrentar a questão da confiança nas relações de consumo significa garantir


proteção suficiente, ainda que reste mitigada a segurança jurídica, uma vez que a conclusão
do contrato, pode-se dizer, é influenciada, senão decidida, com base na confiança
estabelecida entre as partes.174 É necessário, portanto, encarar a confiança e seu papel nas
relações contratuais, especialmente quando vislumbradas situações de vulnerabilidade,175
uma vez que nem sempre se faz presente a vontade no momento de contratar,176 situação
essa que se pauta, muitas vezes, na necessidade de contratar:

Tais julgamentos, entretanto, parecem desconhecer o declínio do voluntarismo e


a necessidade da tutela de uma infinidade de vulnerabilidades no campo das
relações sociais e a realidade de cada programa obrigacional concretamente
estabelecido. Assim, se por um lado, é possível perceber que se contrata visando
à satisfação de necessidades das mais distintas ordens – e não, ao menos em
regra, dando vazão a uma vontade, no mais das vezes inexistente – e, por que
alguém acreditou nas promessas do outro, de outro, infere-se que as pessoas não
são iguais, mas, longe disso, bastante distintas, e isso também em perspectiva
sociocultural. Por isso, desvalorizar a confiança, nessa órbita, é também, de
algum modo, desrespeitar o próprio Direito.177

Especialmente com relação aos contratos de cartão de crédito consignado,


a observância do dever de informação desempenha um papel de ainda maior relevância,
uma vez que esses contratos, via de regra, são direcionados a grupos duplamente

173 NETO, André Perin Schmidt. Contratos na Sociedade de Consumo: vontade e confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016. p. 206.
174 CATALAN, Marcos Jorge. A Morte da Culpa na Responsabilidade Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.
262.
175 “Nessas relações em que uma das partes é vulnerável, fica ainda mais evidente a necessidade de proteção da confiança,

pois serve também para aproximar os desiguais dos iguais, notadamente diante da crescente complexidade das relações
sociais. (...) A confiança é influência decisiva ou causa da contratação”. NETO, André Perin Schmidt. Contratos na
Sociedade de Consumo: vontade e confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 206.
176 “Torna-se imperioso enxergar que a confiança não está fundada em subjetivismos ou sentimentalismos, apesar das severas

críticas direcionadas a essa reflexão sob o argumento da necessidade de valorização da vontade externada pelos
parceiros negociais, censuras que, aliás, não terminam aqui, afirmando-se que a confiança, sozinha, não teria valor
algum, podendo ser equiparada a “um cego a guiar outro cedo””. CATALAN, Marcos Jorge. A morte da Culpa na
Responsabilidade Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 261.
177 CATALAN, Marcos Jorge. A Morte da Culpa na Responsabilidade Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.
261.
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vulneráveis: consumidores e idosos. É por essa razão que se faz ainda mais necessário
ampliar a ideia de confiança, uma vez que não só a vontade de contratar influencia na
decisão de contratar, mas também a confiança na informação.178

Nesses contratos, a confiança na informação prestada deve ser lida sob


duas perspectivas. A primeira se refere ao fato de que os contratos bancários são
amplamente reproduzidos, divulgados e oferecidos aos consumidores, especialmente
àqueles que apresentam condições especiais, como idosos que recebem benefícios
previdenciários ou servidores públicos que dispõem da possibilidade de descontos em
folha. Diante disso, não se pode ignorar que o consumidor, muitas vezes, sequer lê as
disposições contratuais em razão da confiança de que será mais um contrato como os
demais que já concluiu. A segunda questão se verifica quando, ainda que faça uma leitura
atenta, o consumidor não poderá alterar as cláusulas contratuais de que discordar, uma vez
que se trata de contrato de adesão.179

Uma vez que se reconheça a falha no dever de informação pelo prestador


do serviço – instituição bancária ou similar – e que essa falha induz o consumidor em erro
substancial, suficiente para fundamentar a anulação do contrato, fica evidente a violação à
boa-fé objetiva, estabelecida também na confiança que o consumidor deposita nas
informações que recebe.180

Reitero, a boa-fé objetiva, nesse contexto, representada pelo cumprimento


do dever de informação do consumidor e essencial para apurar causa de nulificação, é
essencial para permitir que o consumidor, ao contratar, supra a sua expectativa de ter
acesso – e, mais do que isso, compreensão – a todas as informações necessárias à formação

178 LUHMANN, Niklas. Confianza. Tradução de Amada Flores. Barcelona: Anthropos, 2005. p. 40.
179 “De modo geral, o interessado sequer lê as cláusulas impressas, por várias razões, como falta de tempo, confiança que
deposita no banco, imprudência, premência em ter o dinheiro à disposição etc. Muito seguidamente, se as lê, não as
entende e nem se acha capacitado para compreender o significado jurídico. E caso se dê ao trabalho de proceder uma
análise mais atenta, concluindo por discordar de alguma das imposições, não obterá resultados práticos, mesmo porque
não consegue acesso perante os verdadeiros responsáveis do banco ou da empresa. Os que o atendem, simplesmente
transmitem normas impessoais e comuns, nada decidindo ou alterando. Como aderente de um contrato, recebe o
instrumento pronto, incumbindo-lhe tão unicamente aceitar ou rejeitar as regras e condições estabelecidas.” RIZZARDO,
Arnaldo. Contratos de Crédito Bancário. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. Livro eletrônico.
180 EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2015. Livro eletrônico.


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da sua vontade de contratar.181 Não basta, portanto, a informação; é necessário garantir


que essa informação seja compreendida e adequada, “livre” – dentro do possível – dos
interesses das instituições financeiras e mais próxima da garantia da informação ao
consumidor e, em consequência, da confiança.

A informação, tal como prestada pelas instituições financeiras, desperta


confiança no consumidor de que estará a contratar uma modalidade já amplamente
difundida, o contrato de empréstimo consignado, quando, na verdade, está contratando
uma figura contratual completamente diversa, com implicações financeiras distintas e que
podem se tornar uma “dívida infinita” (outras taxas de juros, refinanciamento da fatura de
cartão de crédito, multa, etc). Pode-se dizer que a maior parte dos consumidores conhece,
com necessária clareza, o funcionamento da contratação de um empréstimo consignado;
contudo, o mesmo não pode ser dito com relação ao contrato de cartão de crédito
consignado, que mesmo na jurisprudência dos tribunais ainda parece instituto confuso.

Vale trazer, nesse cenário, as palavras de Judith Martins-Costa acerca da


formação da confiança do consumidor na informação prestada pelo fornecedor:

Considera-se que à posição de supremacia (econômica, técnica e informativa) do


fornecedor é correlato o «investimento de confiança» por parte do consumidor
acerca das qualidades do produto ou do serviço e das informações que lhes estão
sendo prestadas. Por outro lado, a posição de supremacia pode levar a abusos.
Por esta razão, justifica-se a forte atuação corretora da boa-fé em sua função de
limite ao exercício jurídico, por meio das figuras da suppressio, surrectio, e
vedação ao venire contra factum proprium, bem como da revisão contratual,
como oportunamente será desenvolvido.182

Cláudia Lima Marques, por sua vez, sustenta que o princípio da boa-fé
objetiva, quando se refere ao Direito do Consumidor, está “positivando em todo o seu

181EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015. Livro eletrônico.
182 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação,

2018. Livro eletrônico. p. 328.


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corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais”.183


Dentre esses deveres anexos, refere que o mais conhecido é o dever de informar, desde a
fase pré-contratual, e cita:

É a nova transparência obrigatória nas relações de consumo, em que vige um


novo dever de informar, imputado ao fornecedor de serviços e produtos, e uma
nova relevância jurídica da publicidade, instituída pelo CDC como forma de
proteger a confiança despertada por este método de marketing nos
consumidores brasileiros.

Essa inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao fornecedor do dever de


informar sobre o produto ou serviço que oferece (suas características, seus
riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a
regra do caveat emptor (que ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer
saber detalhes sobre o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato
registrado em cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada poderá
alegar) para a regra do caveat vendictor (que ordena ao vendedor ou corretor de
planos de saúde que informe sobre o seu conteúdo, riscos, exclusões, limitações
etc.). Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de conduta, de respeito, no
mercado, que não admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente,
do representante autônomo dos fornecedores, em face do dever legal. Este dever
legal de atuação conforme à boa-fé sempre que o fornecedor realiza ato negocial
visando atrair consumidores como clientes e criando expectativas legítimas é
reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça, como se observa no leading case:
"'Seguro de assistência médico-hospitalar – Plano de assistência integral
('cobertura total'), assim nominado no contrato. As expressões 'assistência
integral' e 'cobertura total' são expressões que têm significado unívoco na
compreensão comum, e não podem ser referidas num contrato de seguro,
esvaziadas do seu conteúdo próprio, sem que isso afronte o princípio da boa-fé
nos negócios. Recurso especial não conhecido" (REsp 26.456-2/SE, rel. Min. Ari
Pargendler, j. 13.08.2001).184

Nas palavras de Cláudia Lima Marques, “hoje o contrato é informação”,185


de forma que a violação ao dever de informar e a quebra da legítima expectativa do
consumidor levam à violação direta à boa-fé objetiva, suficiente para impor ao fornecedor

183
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019. p. RB-1.14 do livro eletrônico.
184 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019. p. RB-1.14 do livro eletrônico.
185
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019. p. RB-1.14 do livro eletrônico.
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o dever de devolver, em dobro, a quantia paga pelo consumidor, nos termos do art. 42 do
Código de Defesa do Consumidor.

Assim, a condenação da instituição financeira à repetição em dobro dos


descontos efetuados atende melhor à função pedagógica e inibidora da norma contida no
parágrafo único do art. 42 do CDC, sendo com ela plenamente compatível, sobretudo
porque a contratação do cartão de crédito consignado decorre da subinformação prestada
pelo fornecedor, ato ilícito por violação da boa-fé objetiva, independentemente de
eventual dolo de enganar o consumidor.

Com isso, privilegia-se solução que melhor consulta ao diálogo das fontes e
valoriza a mediação entre os sistemas comum e consumerista que é propiciada pela boa-fé
e pela proteção da confiança.

Proponho, assim, versão alternativa para a tese desconstitutiva-positiva:

2. O contrato de cartão de crédito consignado que tenha sido celebrado


mediante violação ao dever de informação é, caso tenha sido postulado, passível de
conversão em contrato de empréstimo pessoal consignado, devendo a este ser aplicada a
taxa média de mercado divulgada pelo BACEN, vigente na data da contratação, assegurada
a repetição em dobro ou a compensação dos valores pagos a maior. Não sendo possível o
cumprimento da obrigação pela instituição financeira, como na hipótese de inexistência de
margem consignável no momento do cumprimento de sentença, a obrigação será
convertida em perdas e danos com a recomposição das partes ao status quo ante, na forma
do art. 84, §1º, do CDC, mediante restituição à instituição financeira da quantia mutuada e,
ao consumidor, dos valores indevidamente pagos a maior, em dobro, admitida a
compensação.

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Em relação à causa piloto, portanto, confiro maior extensão ao provimento


recursal, para determinar a dobra do art. 42 do CDC em relação à restituição/compensação
dos valores pagos em erro substancial pelo consumidor.

3.3. Da tese indenizatória

Comungo do entendimento da douta relatora quanto à remessa da


pretensão indenizatória à necessidade de comprovação no caso concreto, o que exclui a
hipótese de dano moral in re ipsa. Também cumpre endossar a proposta quanto à
distribuição da carga probatória e, ainda, quanto ao critério a ser observado, que se vincula
a alguma violação de direito ligado à personalidade e à dignidade do consumidor.

Acompanho, pois, a relatora quanto à tese indenizatória:

3. A celebração de contrato de cartão de crédito consignado mediante


violação ao dever de informação não configura, por si só, dano moral in re ipsa, cabendo ao
consumidor demonstrar a ofensa à dignidade da pessoa humana ou a direitos da
personalidade.

Assim, reiterando o louvor ao brilhante voto da eminente relatora, dele


divirjo apenas nos tópicos apontados, de modo que voto por acompanhar a divergência
aberta pelo eminente desembargador Ricardo Pippi Schmidt.

DES. GUINTHER SPODE

Eminentes Colegas!

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Em primeiro lugar, cumpre referir a excelência do douto, exaustivo e


cuidadoso voto lançado pela eminente Relatora que em quase duzentas laudas apreciou
todas as nuances do presente IRDR.

Peço, entretanto, a mais rogada vênia para acompanhar a divergência


lançada pelo Desembargador Fernando Antônio Jardim Porto, eis reflete a posição da 11ª
Câmara Cível que componho, a respeito do tema ora em debate.

VOTO, portanto, por acolher o IRDR de acordo com as teses fixadas no voto
condutor da eminente Desembargadora Relatora, excepcionada apenas a questão da
repetição de indébito a ser aplicada nos moldes da fundamentação da divergência que
adotei. JULGO ainda procedente a causa piloto.

DES. ERGIO ROQUE MENINE

Acompanho o voto proferido pela Ilustre Desembargadora Relatora.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK

Acompanho a divergência parcial do Desembargador Ricardo Pippi Schmidt.

DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN

Eminentes Colegas.

Considerando que este é o entendimento já dominante na 20ª Câmara Cível


deste e. Tribunal de Justiça, acompanho o ilustre voto proferido pela preclara Relatora
Desª. Mylene Maria Michel, em toda sua extensão.

DES. ALBERTO DELGADO NETO - Presidente - Incidente de Resolucao de Demandas


Repetitivas nº 70084650589: "ACOLHERAM O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS
REPETITIVAS PARA FIXAR AS SEGUINTES TESES: 1. É ANULÁVEL O CONTRATO DE CARTÃO DE
CRÉDITO CONSIGNADO QUANDO CELEBRADO PELO CONSUMIDOR EM ERRO SUBSTANCIAL

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QUANTO À SUA NATUREZA, DECORRENTE DE FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


BANCÁRIOS POR INOBSERVÂNCIA AO DEVER DE INFORMAÇÃO. OS INSTRUMENTOS
CONTRATUAIS DEVEM CONTER AS CLÁUSULAS ESSENCIAIS A ESSA MODALIDADE DE
NEGOCIAÇÃO, SENDO ÔNUS DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA COMPROVAR QUE INFORMOU
AO CONSUMIDOR, PRÉVIA E ADEQUADAMENTE: A) A NATUREZA, O OBJETO, OS DIREITOS,
AS OBRIGAÇÕES E AS CONSEQUÊNCIAS DECORRENTES DO CONTRATO DE CARTÃO DE
CRÉDITO CONSIGNADO; B) A EXISTÊNCIA DE MODALIDADES E SERVIÇOS DE CRÉDITO
DIVERSOS, COMO O EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO, ESCLARECENDO AS DIFERENÇAS
ENTRE UMA E OUTRA CONTRATAÇÕES, SEUS CUSTOS E CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS; C) A
DISPONIBILIDADE, OU NÃO, DE MARGEM DISPONÍVEL PARA A CELEBRAÇÃO DE
EMPRÉSTIMO PESSOAL CONSIGNADO; D) QUE A FATURA DO CARTÃO DE CRÉDITO PODERÁ
SER PAGA TOTAL OU PARCIALMENTE ATÉ A DATA DO VENCIMENTO; E) QUE, SE NÃO
REALIZADO O PAGAMENTO TOTAL DA FATURA, SERÁ EFETUADO O PAGAMENTO MÍNIMO
MEDIANTE DESCONTO NA FOLHA DE PAGAMENTO OU EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO,
COM O REFINANCIAMENTO DO SALDO DEVEDOR, ACRESCIDO DE JUROS. 2. O CONTRATO
DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO QUE TENHA SIDO CELEBRADO MEDIANTE VIOLAÇÃO
AO DEVER DE INFORMAÇÃO É PASSÍVEL DE CONVERSÃO EM CONTRATO DE EMPRÉSTIMO
PESSOAL CONSIGNADO, DEVENDO A ESTE SER APLICADA A TAXA MÉDIA DE MERCADO
DIVULGADA PELO BACEN, VIGENTE NA DATA DA CONTRATAÇÃO, ASSEGURADA A
REPETIÇÃO NA FORMA SIMPLES OU A COMPENSAÇÃO DOS VALORES PAGOS A MAIOR. NÃO
SENDO POSSÍVEL O CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, COMO
NA HIPÓTESE DE INEXISTÊNCIA DE MARGEM CONSIGNÁVEL, O QUE DEVERÁ SER AFERIDO
EM CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, A OBRIGAÇÃO SERÁ CONVERTIDA EM PERDAS E DANOS
COM A RECOMPOSIÇÃO DAS PARTES AO STATUS QUO ANTE, NA FORMA DO ART. 84, §1º,
DO CDC, MEDIANTE RESTITUIÇÃO À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DA QUANTIA MUTUADA E,
AO CONSUMIDOR, DOS VALORES INDEVIDAMENTE PAGOS A MAIOR, NA FORMA SIMPLES,
ADMITIDA A COMPENSAÇÃO. 3. A CELEBRAÇÃO DE CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO
CONSIGNADO MEDIANTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAÇÃO NÃO CONFIGURA, POR SI
SÓ, DANO MORAL IN RE IPSA, CABENDO AO CONSUMIDOR DEMONSTRAR A OFENSA À

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DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA OU A DIREITOS DA PERSONALIDADE. DERAM PARCIAL


PROVIMENTO À APELAÇÃO CÍVEL PARA REFORMAR A SENTENÇA E JULGAR PARCIALMENTE
PROCEDENTES OS PEDIDOS FORMULADOS NA CAUSA-PILOTO, POR MAIORIA, VENCIDOS
EM PARTE OS DESEMBARGADORES RICARDO PIPPI SCHMIDT, EDUARDO JOÃO LIMA COSTA,
DILSO DOMINGOS PEREIRA, CAIRO ROBERTO RODRIGUES MADRUGA, VIVIAN CRISTINA
ANGONESE SPENGLER, FERNANDO ANTONIO JARDIM PORTO, ROBERTO JOSÉ LUDWIG,
GUINTHER SPODE E UMBERTO GUASPARI SUDBRACK."

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